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São Tomás de Aquino, 1224(25?) - 1274


O pensamento político-social de São Tomás de Aquino é a alternativa ao pensamento político moderno e a base para superar a crise do Estado e restaurar a civilização ocidental.
​
Síntese do pensamento político-social de São Tomás de Aquino, segundo António Sardinha:.
1. Sociologia Tomista e o Conceito Político de Grei
  • Unidade e Destino Coletivo: O conceito de “grei” (povo) é central, derivado da sociologia tomista e do tratado De regimine principum. António Sardinha mostra que, para São Tomás, a sociedade deve ser vista como um todo uno, com destino comum, e não como uma mera soma de indivíduos isolados.
  • Utilidade Coletiva: O Estado e os governantes existem para promover o bem comum, não os interesses particulares. O rei medieval deixou de ser um mero arrecadador de tributos e passou a ser o representante de uma pátria moral, onde todos têm igual valor.
2. Respublica Christiana e Universalidade
  • Cristandade como Pátria Moral: A Respublica Christiana do período medieval é apresentada como uma comunidade espiritual que transcende fronteiras nacionais, promovendo laços universais e um destino superior para todos os povos.
  • Influência da Igreja: A Igreja, através do Tomismo, promoveu a ideia de uma civilização fundada na família, no município e na corporação, valorizando o trabalho e a propriedade como bens comuns.
3. Separação e Cooperação entre Igreja e Estado
  • Autonomia dos Poderes: São Tomás defende que o poder espiritual (Igreja) e o poder temporal (Estado) devem ser autónomos, mas devem cooperar para o bem comum. A Igreja orienta moralmente, sem governar diretamente, e os órgãos do Estado, com liberdade administrativa, devem agir de acordo com os princípios cristãos.
  • Limite ao Despotismo: A separação é vista como garantia de liberdade e limitação ao poder absoluto, evitando tanto o despotismo religioso quanto o estatal.
4. Pessoa versus Indivíduo
  • Distinção Fundamental: O Tomismo distingue “pessoa” (ser racional, com dignidade e vocação universal) de “indivíduo” (ser material, centrado em si mesmo). António Sardinha aplica essa distinção para criticar o individualismo das sociedades anglo-saxónicas e germânicas, defendendo o personalismo e universalismo da civilização hispânica.
  • Crítica ao Individualismo: O Estado moderno, fundado no indivíduo, é visto como fonte de crises e desequilíbrios. A superação dessa crise exige restaurar a centralidade da pessoa e dos agrupamentos sociais intermédios (famílias, municípios, corporações).
5. Justiça, Ordem e Bem Comum
  • Justiça: Para São Tomás, a justiça é a força que mantém a ordem social e espiritual. O Estado deve defender os interesses permanentes e a autonomia dos corpos sociais e promover o equilíbrio entre autoridade e liberdade.
  • Crise do Estado Moderno: Inspirado pelo Tomismo, Sardinha vê a crise do Estado como reflexo de uma crise espiritual do Ocidente, causada pelo individualismo materialista e pelo subjetivismo revolucionários. A solução está em retomar os princípios perenes da tradição cristã e tomista.
6. Legado Filosófico e Atualidade
  • O Tomismo como Base do Conhecimento: O Tomismo integra a herança clássica e valoriza a objetividade - o realismo - contrapondo-se ao moderno idealismo subjectivo. A filosofia de São Tomás de Aquino é um fundamento sólido para o conhecimento, a renovação intelectual e a ordem social.
  • Tradição e Renovação: O tradicionalismo define-se como renovador, rejeitando o conservadorismo político. O tradicionalismo preserva as substâncias essenciais da tradição, conciliando os ensinamentos do passado com os desafios contemporâneos.

​Resumo das Ideias Centrais retomadas de São Tomás de Aquino.
  • A separação entre Igreja e Estado garante as liberdades e limita os absolutismos e os abusos.
  • O Estado é instituído para a realização do bem comum no respeito do pluralismo e autonomia dos corpos sociais.
  • A pessoa tem primazia sobre o indivíduo; a sociedade é mais do que uma soma de indivíduos.
  • Acima do individualismo materialista e do subjetivismo, a Justiça e a Ordem são os fundamentos da Civilização. 


​J.M.Q.

EXCERTOS
A ideia de Raça entre nós é em Frei Bernardo de Brito que aparece pela primeira vez. A concepção jurídica de um todo uno, idêntico na composição e no destino, já se definira, no entanto, com D. João II. É o conceito político de Grei que, nascido da sociologia tomista por derivação do De regimine principum, se alenta soberanamente nessa admirável hora de Quatrocentos em que o coração da Nacionalidade bate sereno e regular.

​[...]

Não se ignora a verificadíssima lei sociológica que depõe na subida de um césar a melhoria sensível das classes espezinhadas. Os regimes electivos – ou consulares, como em Roma, ou mesmo vitalícios, como na Polónia – geram inevitavelmente a monopolização do poder nas mãos de uma oligarquia que promove a instabilidade nas direcções do Estado e conduz a uma regência perpétua de clientelas, derrubando-se umas às outras, na tarefa insana das Danaides da fábula. Já assim não acontece com as composições ditatoriais ou hereditárias. Evitam por qualidade de nascença a intromissão abusiva das castas e são as operárias zelosas da verdadeira capacidade civil do povo. Com a queda da república romana, é o patriciado que tomba entre os clamores irados da plebe. O Príncipe, que o substitui, acompanha-se de um respiro largo nas camadas obscuras da população, contida no mais duro desprezo pelas regalias demasiadas com que a nobilitas se isentava. O pretenso sistema democrático da Grécia clássica resolve-se, no cabo, num morgadio de felizes que se apoiava na escravatura, com o retórico declamando no agoras, à custa do seu semelhante, todo torcido para a courela alheia, no calvário sem nome de a amanhar e fazer produzir. O título de cidadão restringia-se tanto quanto possível. E só quando os Tiranos se estreiam com um novo ciclo é que essa cinta de ferro se vence, atraindo ao seio da Cidade muitos esforços secularmente repudiados. 
​
Sempre as batalhas da economia antiga terminaram pela vitória do ditador, cujo advento restituía ao agregado aquela justa harmonia já tão desejada pelo apólogo de Menénio Agripa. Repetem-se no decurso das idades as normas inflexíveis com que a história se governa. E ao longo do demorado período mediévico nós presenciamos o aparecimento das monarquias ocidentais com motivo predominante nas Comunas. É que as Comunas viam, sem hesitações, no poder real uma força que as defendia das tropelias do suserano e estabelecia ao mesmo tempo limites que lhes facultavam o desenvolvimento da sua actividade legítima. Manifesta-se aqui, com influências bem patentes, a teoria das «ordens» do Estado que, ressuscitada da constituição política de Aristóteles, São Tomás vai impor ao pensamento culto da Europa através das máximas vulgarizadas no De regimine principum. O critério da «utilidade colectiva» ilumina a claríssima concepção, em que a euritmia dos edifícios helénicos distribui pelas partes do corpo social um senso notável de proporção e medida. O Rei não é mais o prócere dos próceres que arrecada o tributo e arrebanha os vassalos como gado. Os povos pertencem já a uma pátria moral que não conhece fronteiras e dentro da qual os malados valem tanto como os senhores. 
​
É a ideia confraternizadora da Respublica Christiana que, difundida pela admirável criação teocrática da Igreja, promove laços de natureza espiritual que despertam nas nacionalidades adolescentes o sentido de um destino superior de que todos, pequenos e grandes, participam. A própria nobreza guerreira, nutrindo-se da turbulência gótica, deixa amaciar o seu germanismo depresa pelos propósitos solidaristas da Cavalaria. É a hora em que o Ocidente atinge a mocidade franca. Estuam-lhe nas veias as mais generosas seivas. A inquietação do génio ilumina-lhe a pupila sonhadora. E não sei que enlevo de subir lhe perfuma o coração, abrindo nos vôos da Catedral como uma flor magnífica das alturas.

[...]


A Revolução, preconizando o homem-abstracto, o absoluto-homem, envolve a negativa de Pátria, porque anula no entusiasmo das suas generalizações a fama incansável do Tempo e do Espaço por cuja obra se promove a diferenciação das fronteiras e o instinto bem vivo de raça. Os linearismos ditatoriais do Marquês acusam entre nós o ingresso das teorias enfáticas que os tratadistas do século XVIII andaram divulgando numa apologia cerrada do Estado metafísico e todo-poderoso. O Discurso do Método empolga-nos com as sentenças de um frade barbadinho. São expulsos os Jesuítas como monarcómacos e sequazes dos republicanos, por partilharem os ditames da sociologia de São Tomás contra as exorbitâncias da concentração monárquica.[1] O ensaio de Igreja Lusitana que nesse momento se efectua com o teólogo António Pereira de Figueiredo, o presbítero Francisco José da Serra Xavier e o doutíssimo D. Frei Manuel do Cenáculo Vilas-Boas, é mais uma prova da adaptação entre nós das ideias estrangeiras, bebidas no febronismo e nos publicistas do movimento galicano. Dos Concelhos já se não inquiria senão para se abolirem as Cortes Gerais com a célebre declaração de apócrifo em que o Desembargo do Paço condenou o livro do arcediago Francisco Vaz de Gouveia, que tanto influira doutrinariamente na acta dos Três-Estados do Reino em 1641. 

[1] Vid. Divisão duodécima na Dedução cronológica e analítica.
 

[...]
Os filantropismos salivosos dos regeneradores de 24 de Agosto [de 1820] não sofismaram, todavia, o despertar da consciência colectiva. A Nação nessa altura cheia de carácter, recuperada a normalidade do seu temperamento, repele sem hesitações o emplasto constitucionalista que se lhe pretende aplicar, conforme o modelo oferecido pelas Constituintes espanholas de 1812. Até hoje tem-se figurado o arranco de reacção que se desenrola da Vilafrancada ao epílogo prematuro de Évora-Monte como um lampejo exasperado de quantas preferências inferiores regiam as nossas populações. E a mentira dos compêndios, servindo o ódio sem tréguas dos partidos. Inculca-se como o regresso a um absolutismo tirânico de melodrama a linda manifestação de espírito concelhio que se coroa com a reunião das Cortes-Gerais em 1828. Bem opostamente, D. Miguel significava o protesto da Raça contra as aclimatações centralistas do Marquês. Tornava-se à representação das classes com os procuradores das vilas e os delegados dos mesteres. Era com a especificação regional, expressa nos Municípios, a diferenciação técnica que nas Corporações se efectuava.

A base pluralista da comunidade consagrava-se assim na índole instauradora da acção miguelina, antecipada pela formidável lei de 4 de junho de 1824. Com o ser a herança gloriosa da Grei, ajustava-se esse programa político com os ditames da sociologia tomista, renascida mais tarde na síntese de Auguste Comte. As calúnias e as insídias do sectarismo é que transtornaram a compreensão de uma era em que Portugal tentava reconciliar a espontaneidade dos elementos nacionais com as directrizes supremas do Estado. Figura-se o digníssimo Príncipe exilado como um monstro resfolegando crime pelas narinas dilatadas gostosamente para a hecatombe. Eu não sou legitimista, não só por atmosfera de família, mas por considerar o critério da Legitimidade como escusado na questão portuguesa, em que apenas o interesse geral deve predominar. Contudo, não me esquivo a reconhecer a identidade que havia entre o monarca deposto pelos efeitos da Quádrupla-Aliança e o País que lhe queria como à carne da sua carne. D. Miguel, erguido pelo génio vibrante do Luso às cumeadas de herói-salvador, traduz o embate das antigas liberdades – bem concretas e bem vigorosas, em que as relações múltiplas do agrupamento se encarnavam e satisfaziam – com o liberalismo metafísico da Revolução Francesa, alheio a toda a realidade ambiente, preocupado apenas com o homem abstracto de Jean-Jacques Rousseau. E não se recorte em cores carregadas de quinto-acto trágico o apostolismo intolerante do Portugal-Corcunda! D. Miguel, embarcando em Sines vestido de pano de Portalegre, porque não vestia senão de fazendas nossas, é, com a pequena mala de roupa que o acompanhava, uma imagem extraordinária para se reter. Corriam-no as vilas dos vencedores, é certo. Mas com ele abalava a alma das vilas que o estremecera tão entranhadamente como outrora ao Mestre, quando o Castelhano atravessava as fronteiras. E se o sentimento da Pátria atinge ainda por momentos o calor excepcional das grandes horas de um povo, é pela Patuleia, ao pensar-se que o Proscrito regressaria. E regressava, se não fosse o general Concha à frente de uns tantos mil espanhóis.

​
[...]
Pelo poder das sociedades agrárias em que por índole se emoldurava, resistira ao flagelo bárbaro, ganhara força perante o arremesso devastador da onda gótica. Dá-lhe essa força o alastramento da religião cristã que encontra no feitio íntimo do indígena um terreno bem preparado. O conceito germânico da autoridade baseava-se na posse, constituia-o um princípio de ordem meramente territorial. Permanecendo em «banda», o homem loiro usurpador não pôde desfibrar as raízes invencíveis do autóctone. Nos esforços empenhados para uma expoliação completa é que a Igreja se alevanta nos concílios toledanos a defender o direito sagrado da terra. O carácter belicoso da monarquia goda abranda-se. Deixa-se então penetrar pelas altas influências morais em que se adivinham já os fundamentos futuros da concepção política de São Tomás. «E se alguns deles for cruel contra os seus povos, por braveza e por cobiça ou por avareza sejam excomungados.»
A palavra eclesiástica protege as agremiações indígenas da Península contra a sapata de ferro do bárbaro conquistador. São essas mesmas agremiações que impossibilitam a vitória do feudalismo entre nós. O feudalismo teve lá fora uma vasta missão de carácter social. É ele que organiza as nacionalidades surgidas dos escombros do mundo romano. Mas o motivo que assim o torna um agente de coordenação colectiva é a razão porque em Portugal não pôde nunca vingar. A sociedade aqui estava naturalmente formada. As behetrias representam o tecido estrutural da Pátria que vai erguer-se tão depressa elejam um príncipe como seu regedor vitalício. A tentativa do barão leonês aborta por isso nos seus propósitos de arrogância senhorial, porque, em vez de um meio disperso e enfraquecido, há já um povo com existência sua, traduzido em órgãos conformes à natureza histórica da Raça.

​
In O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional (1915)



​Falseando o princípio católico de que toda a autoridade legítima vem de Deus, gera-se num sentido vicioso de investidura pessoal o absurdo direito divino dos dinastas, a quem os doutores reformados concedem até a prerrogativa da ordenação sacerdotal. Na concepção católica da Realeza, a Monarquia, como expressão do conjunto social, está acima do Rei. Com os mandamentos políticos do «livre-exame», o Rei suplanta a Monarquia. Esvai-se a identidade religiosa e moral do orbe católico em que cada Estado procura preponderar, levado apenas em atenção ao seu alargamento insaciável. As nações pequenas subalternizam-se em precárias esferas de influência. Quem pesa na balança é a espada bruta de Brenus. Assiste-se ao embate da hegemonia francesa com a hegemonia espanhola. As lutas de guelfos e gibelinos são pálidas sombras ao pé do passar e repassar de exércitos em que o coração da Europa se confrange e ensanguenta duradoiramente. Em Roma o Príncipe da Paz já não pode nada. Os preceitos germânicos da posse tinham-se sobreposto aos ditames claros de São Tomás. Os Reis reinam já por si – pelo seu capricho absoluto, e não pelo direito da sociedade em se conservar.

Não é denegrindo a Alemanha na sua literatura, na sua ciência, nas suas artes e nas suas indústrias, não é acusando-a de bárbara, o que é um elogio em relação à nossa civilização maçónica e negativista, e indo no dia seguinte louvá-la em Beethoven e em Wagner, que o nosso problema de latinos se coloca em face da guerra contemporânea.

Se o nosso génio corre perigo de morte e se a nossa repulsa carece de ser afirmada diante das avançadas belicosas do homem-loiro, é na condenação inexorável do individualismo contagiado por ele ao Ocidente que o nosso ataque deve insistir, sem recorrer a caricaturas grosseiríssimas que só deslustram a quem se não peje de utilizá-las.

Na verdade, se o Ocidente padeceu o mal da Revolução, se a mentira democrática nos dissolve e gangrena irreparavelmente, agradeça-se a esse nefando «espírito-de-análise», assoprado lá das bandas tristonhas da Germânia!

Na Alemanha o «livre-exame» traduziu a constituição de uma mentalidade autónoma perante a supremacia intelectual do Latinismo. Transferido para as categorias psicológicas do Ocidente por meio da rigida inteligência huguenote, deu no abuso do criticismo, sem dúvida a pior das muitas pestes que nos têm visitado. Esfarelou-nos os nossos motivos inatos de crer e de querer. Foi o indivíduo abstracto dos Imortais-Princípios, sobrepujando a regra eterna da colectividade. Foi Port-Royal, foi a Enciclopédia – é Jean-Jacques, é o Liberalismo. Pelo amor cerebral das ficções inventa a transcendência opressiva da Lei. A lei passa a determinar a sociedade, em vez de unicamente a exprimir. Surge daqui a paranóia parlamentar, tendo surgido antes, numa série de terminações em ismo – dentro da religião, o Jansenismo; em política religiosa, o Regalismo; e no campo do direito público, o Absolutismo. No fundo sempre o indivíduo, sempre a opinião caprichosa, sempre o livre-exame!

Pombal aclimata aos nossos horizontes uma abstrusão tamanha. Protege os Padres-do-Oratório, gafados do defeito jansenista. Premia com bom dinheiro a Tentativa Teológica de Pereira de Figueiredo. Expulsa os jesuítas como terríveis republicanos, por eles defenderem as razões políticas de São Tomás. Declara apócrifo o tratado de Vaz de Gouveia sobre a Justa Aclamação de D. João IV, em que se estabeleciam as limitações tradicionais da nossa Monarquia. Eis porque o Marquês é bem o representante da corrente enciclopedista na sua face primeira – a de apelo ao poder civil para suplantar as altas hierarquias eclesiásticas.

Na separação dos dois poderes – do poder temporal e do poder espiritual – é que descansa a mais sólida garantia da liberdade. São dois polos que se neutralizam reciprocamente para tudo o que haja de significar a preponderância despótica de qualquer deles.

O poder espiritual é, na frase de Auguste Comte, «a reacção normal da inteligência e do sentimento sobre a força». Conforme o grande filósofo da Ordem, «o princípio revolucionário consiste sobretudo na absorção do poder espiritual pelas forças temporais, que não reconhecem outra autoridade teórica que não seja a razão individual».

A razão individual é, como já vimos, filha directa do Protestantismo. «Tendo rejeitado toda a autoridade espiritual para fazer prevalecer o livre-exame, escreve ainda Auguste Comte, o protestantismo não podia evitar a anarquia senão submetendo a Igreja ao Estado, cujo poder representava a supremacia material, emanada do número, em virtude da igualdade.»

São as vésperas da Revolução. Seu precursor natural, o nosso Marquês vai no companhamento dos chamados «reis-filósofos». E puxado pelas ideias em voga que recebera da sua passagem demorada pelas cortes de Londres e Viena, Pombal é o maior responsável pelas desgraças da Pátria. País de arreigada estrutura agrícola, quis-nos vestir o molde industrialista com companhias omnipotentes e monopólios pesadíssimos, à maneira do que presenciara lá fora. Sufoca a espontaneidade social com o seu estadismo enfático. E é, por antagónico que pareça, o primeiro passo dado entre nós para a estreia da liberdade romântica em 1820.

Não consente reservas a afirmação feita acima sobre a origem protestante da Revolução. «O princípio do exame individual supõe directamente a igualdade como condição basilar – acentua Auguste Comte. Ele não admite outra autoridade senão a supremacia do número.» Existe por via disso um estreito traço de parentesco entre as ditaduras caprichosas do século XVIII e os caprichos ditatoriais da paranóia de 89.

Legaliza-se por fim a cartilha declamatória da «Bondade-Natural». É o triunfo do homem a-histórico de Sorel, isento de todos os condicionalismos físicos e sociais. Uma lei que seja boa é boa em toda a parte, como em toda a parte é certo o mesmo axioma de geometria – declarava Condorcet na Convenção.

Assim, pela obsessão constante do indivíduo – pelo motivo absorvente do racionalismo – se promove o desequilíbrio da sociedade desde que o improviso legislativo elimina a acção experimental do Costume. Segue-se-lhe o desarranjo económico pela abolição do estatuto colectivo do Trabalho. E como complemento, consagra-se por norma governamental e administrativa a estulta insolência dos Parlamentos, que outra coisa não é senão o «livre-exame» aplicado ao jogo complexo dos fenómenos sociais.


In A Questão Ibérica - O Território e a Raça, 1915; ed 1916​


​Dizemos ‘civilização católica e romana’, porque, sem o Cristianismo, a civilização latina, ou teria desaparecido, ou não seria mais que a legitimação de quantas durezas e de quantas desigualdades constituíram a base da cidade-antiga. A cidade-antiga fundamentava-se na escravidão e no cesarismo, suprimindo assim a responsabilidade moral dos indivíduos porque lhes não reconhecia a sua autonomia interior. A liberdade, por isso, só nasceu durante essa caluniada Idade Média, já filha dos séculos cristãos, quando a Igreja alevantou a sociedade dos escombros que a soterravam e lhe deu a Família por alicerce invencível.

É da Família que deriva mais tarde a Pátria, pelo alargamento da comunidade doméstica no Município e na Corporação. O Município consagra o amor da terra, a Corporação, o amor do trabalho.
A cidade-antiga não prezava nem o trabalho nem a terra. O trabalho, como tarefa baixa, deixava-o aos escravos; a terra, como matéria fiscal, entregava-a à voracidade insatisfeita do Estado. Pois a Igreja dignifica o trabalho e nas Catacumbas o maior elogio que se inscreve sobre a lousa funerária dos humildes é um apenas: o de operarius. Pois a Igreja abençoa e santifica a propriedade e tira dela a Europa moderna, povoando-a de paróquias como uma abelha povoa de favos a sua colmeia. Lembremo-lo nós no instante que passa, para que não se sobreponham nunca à obra criadora do Catolicismo as falsas ideologias revolucionárias que afincadamente se pretendem substituir à nossa civilização tradicional.

Vós, Eminentíssimo Senhor, guardais como poucos a honra e a nobreza dessa civilização. A vossa catedral de Lovaina foi sempre um reduto extremado do pensamento católico contra as alterações depressivas da verdade religiosa e da verdade filosófica. A vós se deve poderosamente a renovação intelectual a que o Santo Padre Leão XIII presidiu com a sua imortal encíclica Aeterni Patris em que São Tomás é invocado como o modelo eterno da eterna sabedoria. Tão depressa Roma indicou o regresso ao Tomismo como o caminho mais direito para se obter o acordo da Razão com a Fé, logo junto de Vós, Eminentíssimo Senhor, se acendeu a candeia serena do estudo, a fim de se opor à influência perniciosa do naturalismo o verbo forte do Anjo das Escolas, do admirável Doutor Angélico. Não percorremos agora, nem em rápido relance, o que foi, debaixo dos vossos auspícios, esse renascimento assombroso da Escolástica. Por São Tomás, comentador de Aristóteles, a Igreja recebera da Antiguidade o que havia de humano e de saudável nas boas letras clássicas. A continuidade da cultura a Igreja a salvou na crise das invasões bárbaras, ao anoitecer da estrela pagã.

Também, pelo mesmo património invencível, a Igreja nos salva hoje nas melhores e mais belas conquistas do espírito ocidental, elevando com o Tomismo um baluarte inderrubável contra os sistemas e contra as teorias que, hora a hora, dia a dia, nos chegavam do outro lado do Reno, desde que de lá se alevantara a grande pestilência da Reforma.
Antes que o arcebispo de Malines se erguesse em padroeiro da sua pátria perante o crescer dos exércitos germânicos, já o professor de Lovaina, catedrático insigne, ligado para sempre à mais nobre das revivescências da filosofia, se apresentava no combate não menos aguerrido das ideias, ordenando a nossa defesa mental de católicos e de romanos em face das heresias sociais e morais geradas pelo individualismo protestante.

A guerra espantosa que nos quebra, como a vara de ferro simbólica da Bíblia, arranca as suas raízes da divisão trazida à unidade da Europa pela palavra anárquica de Lutero. Acabou de se romper então o equilíbrio de sentimentos e de interesses em que a noção superior de Cristandade mantivera unidos os povos e os reis debaixo do sinal pacificador da Cruz. Na falta de um poder que, pela sua divina fraqueza, em nada signifique as ambições da terra e em tudo nos fale a linguagem suprema da disciplina e do sacrifício, a sociedade internacional dissolveu-se, a sociedade internacional deixou de existir. O drama actual em que as nações se enclavinham umas nas outras, despedaçando-se duramente como leoas enraivadas, é a consequência trágica desse erro já secular.

Nós a expiámos com a maior das catástrofes que a história assinala, não querendo ainda reconhecer que a tanto nos levou o individualismo sem freio da cisão de Lutero. Tal foi a primeira vitória do como que avant-guerre em que a Latinidade começou a sentir os impulsos demolidores que hoje a Alemanha traduz na rudeza dos factos, ao proclamar como nunca a sua aptidão ao domínio universal. Seguiram-se depois as inovações perniciosas do século XVIII, em que o filosofismo enfático dos Enciclopedistas, amigos de Frederico II, antecedeu e preparou a Revolução que marca na Europa o princípio da hegemonia da Prússia. Do alto da cadeira de São Pedro já Leão XIII o recordava na sua encíclica Diuturnum iliud.


In Mensagem ao Cardeal Mercier em nome dos Católicos Portugueses​, 10 de Junho de 1917

De Séneca e Lucano aos imperadores Trajano e Teodósio, é a Península Ibérica que transfunde nas várias camadas de Roma o seu sangue moço e seivoso. A aptidão colonizadora dos seus filhos, séculos depois magnificamente afirmada na criação de mais de vinte nacionalidades americanas, cedo se traduz em Trajano lançando os alicerces da moderna Roménia com colonos levados daqui. E não me parece despropositado lembrar que o povo romeno possui no seu idioma um vocábulo – dor – que, sendo inexprimível, só é comparável à nossa saudade. («Je n’ai trouvé le presque équivalent que dans la langue de nos frères portugais, la saudade», diz a poetisa romena Adrio Val na sua conferência Poètes Roumains.)

Triunfa o cristianismo na Península e a feição católica do génio hispânico reveste-se de tal universalidade que nós quase podemos asseverar ser o hispanismo, depois do catolicismo, a base fundamental do conceito de Latinidade. Na Idade-Média não só salvámos a civilização dominando o crescer da onda maometana, como transmitimos à restante Europa o que do Oriente viera até à Península em aquisições de cultura por intermédio das escolas e dos filósofos árabes. Os trabalhos recentes do professor Asín Palacios ensinam-nos como São Tomás e como Dante foram intelectualmente nossos tributários.

Sucedem-se as Descobertas e com elas uma nova dilatação da cristandade, trazendo-se à ciência novos horizontes e novas soluções. Sem reserva e sem desprimor, nessa hora máxima da história, que Charles Maurras continua adornando com o falso prestígio da Renascença, enquanto os portugueses na Índia feriam o Islamismo pelas costas, impedindo o seu avanço até ao coração da Europa Central, e Carlos V limpava de piratas, com a nossa colaboração, o antigo mar latino, e defendia a Igreja dos assaltos da reforma – em França, Francisco I não hesitava em se aliar ao Turco e em pactuar com o Protestantismo.

Por isso nós merecemos um Camões – intérprete supremo da consciência culta e religiosa daquela época, ao passo que a França, discípula – acentue-se – dos nossos humanistas, se contentava consigo própria escutando o diálogo de Ronsard com as Musas à sombra da vinha de mestre Horácio.
​
E o inventário não terminaria ainda, se de mais carecêssemos para demonstrar como o génio hispânico nas suas duas metades inseparáveis – Portugal e Castela – constitui, na verdade, pelo carácter universal da sua vocação histórica, a coluna dorsal da Latinidade. 


in Hispanismo e Latinidade​, 1922.


​... D. Frei Bartolomeu dos Mártires pertencia à ordem de São Domingos, em cujo seio, mesmo como primaz bracarense, viveu e morreu. ‘Construtores’ – no alto sentido que é preciso atribuir a semelhante designação – de tantíssimos templos e mosteiros medievais, os dominicanos exerceram durante a Idade Média, sobretudo, uma acção benéfica no desenvolvimento e progressos das belas-artes, desde a pintura à arquitectura – a arte mais eminentemente social, porque nenhuma, como ela, traduz a presença ou a ausência de uma aspiração comum na colectividade. Acresce que da ordem de São Domingos fôra São Tomás de Aquino, e a São Tomás – à sua lição de permanente sabedoria – pedem hoje os críticos, inspirados na razão salutar das coisas, uma regra que liberte a inteligência e a sensibilidade modernas da debilidade congénita que as atira, como crianças sem ama, para as tortuosidades morais do ‘misticismo estético’.
Ponderava São Tomás, repetindo, para o baptizar, a Aristóteles, que «ninguém pode viver sem deleitação». Eis porque todo aquele – acrescenta o Doutor Angélico – que está privado dos deleites espirituais, cai inevitavelmente nos deleites carnais. Emoldurando a afirmação de São Tomás, escreve Jacques Maritain no seu Art et Scolastique – magnífico breviário de bom-senso e condução artística: «L’art apprend aux hommes les délectations de l’esprit, et parce qu’il est sensible lui-même et adapté à leur nature, il peut le mieux les conduire à plus noble que lui. Il joue ainsi dans la vie naturelle le même rôle, si l’on peut dire, que les graces sensibles dans la vie spirituelle; et de très loin, sans y penser, il prépare la race humaine à la contemplation (à la contemplation des saints), dont la délectation spirituelle excède toute délectation, et qui semble être la fin de toutes les opérations des hommes; car pourquoi les travaux serviles et le commerce, sinon pourque le corps, étant pourvu des choses nécessaires à la vie, soit en l’état requis pour la contemplation? Pourquoi les vertus morales et la prudence, sinon pour procurer le calme des passions et la paix intérieure, dont la contemplation a besoin? Pourquoi le gouvernement tout entier de la vie civile, sinon pour assurer la paix extérieure nécessaire à la contemplation? De sorte qu’à les considerer comme il faut – é Maritain que o acentua – toutes les fonctions de la vie humaine semblent au service de ceux qui contemplent la vérité.» ["A arte ensina aos homens as delícias da mente e, por ser sensível e adaptada à sua natureza, pode melhor levá-los a mais nobres do que ela. Ele desempenha, assim, na vida natural, por assim dizer, o mesmo papel que as graças sensíveis desempenham na vida espiritual; e de longe, sem pensar nisso, prepara a raça humana para a contemplação (a contemplação dos santos), cujo deleite espiritual excede todo o deleite, e que parece ser o fim de todas as operações dos homens; pois por que o trabalho servil e o comércio, senão que o corpo, sendo provido das necessidades da vida, pode estar no estado necessário para a contemplação? Porquê virtudes morais e prudência, senão para obter a calma das paixões e a paz interior de que a contemplação necessita? Por que todo o governo da vida civil, senão para assegurar a paz externa necessária à contemplação? De modo que, se as considerarmos adequadamente todas as funções da vida humana parecem estar ao serviço daqueles que contemplam a verdade."]

In A 'religião da Beleza', 1922

Da posse e utilização da riqueza, diz Santo Tomás que o homem não deve considerar as coisas exteriores como próprias, mas sim como comuns, de modo que haja nelas uma parte para acudir aos outros nas suas necessidades». Na sua famosa encíclica Rerum novarum, depois de nos recordar esta passagem do admirável Doutor Angélico, Leão XIII acrescenta: «Quem recebeu da divina bondade uma grande abundância, seja de bens externos e corporais, ou seja, de bens de espírito, recebeu-os com o fim de os fazer servir ao seu próprio aperfeiçoamento e, simultaneamente, como ministro da Providência, para promover o alívio do próximo». ​

​In A crise do Estado, 1922

Expositor fiel do pensamento político de São Tomás, vejamos como Jacques Zeiller formula esse problema das relações da Igreja com o Estado, segundo os canonistas:

«En quel sens, d’après lui (S. Tomás), le souverain laïque doit-il obéir à l’Église? Nous lisons la réponse dans le De regimine principum. Le pouvoir civil doit aider les hommes à marcher dans la voie du bien. Or, quelle est la voie du vrai bien et quels y sont les obstacles? C’est la loi divine qui le marque et son enseignement appartient au ministère de l’Église. C’est donc comme autorité enseignante et morale, comme dispensatrice de la parole divine de laquelle découlent tous les devoirs des individus et des sociétés, que l’Église prétendra à la direction des peuples et exigera des souverains qui les gouvernent l’obéissance à ses lois.» E no desenvolvimento do seu tema, Jacques Zeiller, professor da universidade suíça de Friburgo, determina as condições em que a intervenção da Igreja se realiza: «Mais cette exigence ne détruit pas l’autonomie du pouvoir civil, qui, porvu qu’il s’aquitte de sa charge en union d’esprit avec l’Église, est libre de réaliser dans son domaine le bien social suivant les moyens humains qui lui paraissent les meilleurs. Saint Tomas demande au pouvoir d’être chrétien, il ne demande pas que l’État soit gouverné par l’Église. Le spirituel et le temporel doivent, dit-il, être séparés, ut a terrenis essent spiritual distincta. La suprématie de l’Église ne supposera point une immixtion constante et directe sur le terrain temporel. C’est non seulement le droit, mais c’est le devoir de la puissance civile d’agir par elle-même en vue du bien civil.»

Conquanto Jacques Zeiller se incline nas pisadas de Ed. Crabay – um na Idée de l’Etat dans Saint Thomas d’Aquin, o segundo na sua Politique de Saint Thomas d’Aquin –, para a opinião de que os princípios do Doutor Angélico em matéria de Igreja e de Estado perfilham um regime de teocracia parcial e indirecta, afigura-se-nos que Joseph de Maistre nos ajuda a ajuízar melhor da questão, quando nos acentua que se os Papas lutaram bastantes vezes contra os soberanos, não lutaram contra a soberania. «O próprio acto por que desligavam os súbditos do juramento de fidelidade, declarava a soberania inviolável.» Desde que se distinguia tão cuidadosamente entre a soberania e o soberano, e entre o espiritual e o temporal, como admitir a teocracia, que é a confusão dos dois poderes numa potestade única e permanente? Encontra a Igreja um inesperado reabilitador em Augusto Comte, pelo que toca ao seu internacionalismo. O filósofo positivista é o primeiro a demonstrar-nos que, distinguindo entre o espiritual e o temporal, a Igreja não tendia para a teocracia, antes a dificultava poderosamente. E porquê? Porque a Igreja «assure aux individus la possession d’eux-mêmes, en mettant dans leur coeur et dans leur esprit une loi toute divine, barrière infranchissable à la tyrannie et au sophisme» – confessa o publicista Coquille, de pura formação católica. E como que a recolher-lhe o eco, Augusto Comte reconhece da sua trincheira que «la foi, c’est-à-dire, la disposition à croire spontanément, sans demonstration préalable, aux dogmes proclamés par une autorité compétente, est la condition générale indispensable pour permettre l’établissement et le maintien d’une véritable communion intellectuele et morale».
Se a lei da Igreja é ditada e recebida pela fé e se a fé é a disposição para crer espontaneamente em dogmas proclamados por uma autoridade competente» a intervenção dos Papas correspondia sem dúvida no domínio político internacional a um estado de espírito, uma como que consciência colectiva, em que ele se apoiava e se tornara a expressão. Augusto Comte claramente o entende quando se refere ao individualismo metafísico, herdado da Reforma e gerador da Revolução. «Le príncipe de la liberté de conscience en annulant l’ancien pouvoir spirituel, a determiné la dissolution de l’ordre européen dont le maintien constituait l’un des atributs de l’autorité papale.» Separação, portanto, entre o espiritual e o temporal; autoridade religiosa e social derivada da fé, que, sendo, na definição de Comte, uma aceitação voluntária e antecipada, é, logicamente, uma livre manifestação da personalidade humana; unidade moral e sentimental, em que todos se congregavam e fortaleciam, de modo a justificar a existência de uma ‘sociedade das nações’, que tal foi na Europa mediévica o conceito orgânico de ‘Cristandade’, sinónimo de ‘ordem europeia’, conforme ainda o testemunho de Augusto Comte, eis o quadro que a Igreja nos oferece, em seguida à vitória do sistema gregoriano, ao qual a Europa deve os seus alicerces mais rijos. «Il n’y a pas de société sans gouvernement, el il n’y a qu’un gouvernement spirituel possible et efficace pour la société des nations», assegura um discípulo temperado de Comte, o escritor George Deherme.
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Combatida pelos legistas, irremediavelmente esfarrapada pela Reforma, o que restava da Cristandade, como coordenação superior das nacionalidades europeias, expirou, morreu em Vestfália. Voltemos a escutar Augusto Comte: «Qu’est-il arrivé à cet égard, depuis l’absorption du pouvoir papal? Les diverses puissances européennes sont rentrées, les unes vis-à-vis des autres, dans l’état sauvage, les rois ont fait graver sur leurs canons l’inscription dès lors exactement vrai: ultima ratio regum. Quel expédient a-t’on imaginé pour combler le vide immense que laissait à cet égard l’anulation du pouvoir spirituel? On doit sans doute rendre justice aux efforts trés estimables des diplomates pour produire et maintenir, à défaut d’un bien réel, ce qu’on a appelé l’équilibre européen, mais on ne peut s’empêcher de sourire à l’espoir de constituer par une telle voie un véritable gouvernement d’État. Il est evident que ce systeme d’équilibre, consideré dans sa durée totale, a occasionné plus des guerres qu’il ait empêché.»

In As quatro onças de oiro

Aqui se acolheram os últimos defensores da liberdade cristã da Europa, numa hora em que o absolutismo real, engrossado pelos ventos da Renascença e da Reforma, estrangulava avidamente as derradeiras franquias e privilégios, tanto localistas como corporativos, legados pela Idade Média. Se, incontestavelmente, são castelhanos em parte os tratadistas que inspiram a agitação filosófica que a política da Restauração utilizaria com ressonância e labareda, devemos, em todo o caso, acentuar que muitos deles, com o insigne Suárez à frente, professaram em cátedras portuguesas, acrescendo ainda que, reavivado de São Tomás e dos seus diligentes comentadores, o alto pensamento que os guiava, se pertencia ao património mental da Europa, só na Península encontrou o seu último reduto – um reduto firme e consciente. Em face da galhardia com que os nossos polemistas de Seiscentos, educados em tão segura formação, combateram, contra o Direito Romano dominante, o conceito patrimonial do Estado, não nos aventuraremos a uma afirmação leviana se os saudarmos como os precursores das modernas correntes nacionalistas. Sustentavam já eles então, contraditando as copiosas apologias filipinas, divulgadas por toda a Europa, que «os Reis foram feitos para os povos, e não os povos para os Reis». E, por que outros não eram as lições e os ensinamentos dos Jesuítas, compreendemos agora porque, um século a seguir, o marquês de Pombal os expulsaria por «monarcómacos & sequazes dos republicanos». Os Jesuítas, sequazes dos republicanos, é de estarrecer, na verdade, M. Homais na sua botica em Rouen!

In O Século XVII, 1924

Não é outro também o património filosófico português que, com o Suarismo e os seus glosadores do século XVII, fez tão conhecida na Europa a actividade especulativa dos mestres conimbricenses. Enriquecido hoje pelas valiosas contribuições das ciências psicológicas e das ciências naturais, o neotomismo encontrou em Louvain, e graças ao influxo do Cardeal Mercier, um poderoso centro de irradiação.

Não é para aqui o recordar que São Tomás incorporou na doutrina católica toda a herança antiga da razão humana. Expurgada dos excessos naturalistas, a Escolástica não é senão, como perennis philosophia, a teoria clássica do conhecimento. Usando simultaneamente da análise e da síntese, desenvolve a primeira quanto lhe é possível, enquanto agrupa imediatamente dentro da outra todos os elementos isolados.

O seu idealismo é um idealismo objectivo, partindo do domínio pleno do espírito para a plena posse da realidade. Ao contrário do idealismo subjectivo dos contemporâneos, que, descendendo em linha directa do kantismo, não só arruína a autoridade da razão, como nos lança numa floresta densa de erros, onde é necessário filiar a origem de toda a anarquia moderna.
​
«Travaillons donc à bien penser», já aconselhava Pascal. 

In O 'filósofo' Leonardo​

.... ​tardia, a justiça vai chegando. Não há muito que um dos mais originais espíritos do nosso tempo – o inglês Chesterton – sustentava que a guerra da Espanha com a Inglaterra, ao declinar o século XVI, foi uma guerra de civilização – estando a civilização pelo lado da Espanha. A Espanha, ou seja a Península, representava a continuidade cultural e moral de que a Europa se nutria e a cujas luzes se conformara social e espiritualmente. A derrota da ‘Invencível Armada’ inicia a série de desastres que se remotam na guerra dos Trinta-Anos com os tratados de Vestfália. Os tratados de Vestfália sancionaram como norma de conduta internacional o individualismo religioso e político. Foi a vitória das ‘éticas do Norte’ – como confessa Chesterton elucidativamente. E se tentarmos bosquejar a genealogia dos diversos males que afligem a dolorosa era de transição em que vivemos, minhas senhoras e meus senhores, a Vestfália teremos que remontar. O que confirmaram na Europa os tratados de Vestfália? O crepúsculo definitivo da Casa de Áustria, a queda da Espanha como potência europeia, como elemento ponderador da Cristandade. Mas não é só a Espanha que se some na sombra em Vestfália. Some-se também o prestígio diplomático do Pontificado – some-se igualmente o pouco que ainda restava do conceito da Cristandade. Abandonada às ‘éticas do Norte’ – na frase felicíssima de Chesterton –, ou, em outros termos, aos desvarios e exageros do individualismo, a Europa julgou-se libertada, como que entrada em outros caminhos de maior prosperidade e supremacia. Mas – ai de sua pobre e desvalida ilusão! –, desgarrando-se atrás de uma ignóbil mitologia social e filosófica, só para a sua ruína correu. Persistindo no seu erro, mais e mais se embrenhou nos círculos dantescos, em que hoje se despedaça, transviada. Não nos excedemos, por isso, minhas senhoras e meus senhores, se concluirmos que o início da decadência da Europa coincide com o início do crepúsculo da Península em Vestfália.

É imperioso, no entanto, rectificar-se: decadência da Europa, sim, mas não decadência da Península! Já veremos porquê. Oliveira Martins, e, com Oliveira Martins, Moniz Barreto, seu critico e seu amigo, fixaram como qualidade-mestra da alma hispânica o seu aferro ao conceito absoluto da Existência. Pelo aferro dos hispanos à ideia absoluta da Vida se compreende e explica aquilo que destaca a sua história da história das outras nações europeias – sucessoras na condução e hegemonia do mundo. Enquanto elas se baseiam na noção de indivíduo, os hispanos basearam-se sempre, por condição peculiar da sua índole, na noção de ‘pessoa’. Se recorrermos, minhas senhoras e meus senhores, à distinção que o Tomismo nos fornece entre ‘pessoa’ e ‘indivíduo’, abrangeremos sem dificuldade como o nacionalismo dos hispanos – centrípeto, acumulador por excelência – teria de ser universalista – aditivo, portanto – ao passo que o nacionalismo de ingleses e alemães, individualistas por pecado original, seria centrífugo, atómico, substractivo, como consequência. Eis aqui o motivo bem palpável porque nós fundámos ‘nacionalidades’, não conseguindo os outros povos, que enfática e empavonadamente se intitulam de ‘colonizadores’, ir além de ‘colónias’ e, quando muito de ‘Estados’, cujos fundamentos assentaram no extermínio sistemático das populações indígenas.

Insisto, senhoras e senhores, na distinção entre ‘pessoa’ e ‘indivíduo’, aplicando-a à história peninsular e à sua projecção universal. A ‘individualidade’ vem do corpo, da matéria, do instinto. Inversamente, a ‘personalidade’, vem da alma – é, observação aguda de um publicista contemporâneo – «a subsistência da alma, independentemente do corpo». «Desenvolver a sua individualidade – assinala o mesmo autor – é viver da vida egoísta das paixões, é fazer-se o centro de tudo e terminar, finalmente, por ser o escravo de mil bens passageiros que nos trazem um prazer de momento. A personalidade, ao contrário, aumenta na medida em que a alma, elevando-se ao de cima do mundo sensível, se prende mais estreitamente pela inteligência e pela vontade ao que constitui a vida do espírito.»[1]

Já na sua História do povo espanhol o hispanófilo inglês Martin Hume se choca com esse especial sentido dos hispanos em conceber a Vida. Confundindo-o embora com o ‘individualismo’, demonstra-nos Martin Hume a traços incisivos como a identificação do hispano com o Cristianismo correspondeu a uma forte solicitação do seu temperamento. Substitua-se ‘indivíduo’ por ‘pessoa’, e ‘individualidade’ por ‘personalidade’ – e tudo ficará certo. Um filósofo espanhol do nosso tempo, em que revive o casticismo intelectual dos velhos mestres peninsulares, George Santayana, qualifica de paganismo, tanto na existência das colectividades, como na pura determinação individual, quando derive apenas da vontade e pretenda exclusivamente servir o ‘eu’ – no que ele tenha de centrífugo ou substractivo, e ‘pagã’ assim a filosofia germânica, afastando-se completamente da objectividade e procurando sobrepor a inteligência, como princípio e fim de si mesma, às evidências constantes do Ser, pagã, é a norma introduzida pelo liberalismo na política e economia dos povos, em que o elemento absoluto da Vida se despreza totalmente e só se rende à satisfação do apetite imediato, das nossas necessidades estritamente animais. Triunfante na marcha da Europa, principalmente a partir do século XVII, o conceito pagão da Vida – da filosofia às directrizes dos Estados, da moral às belas-letras e às belas-artes – levou-nos automaticamente à crise trágica em que o Ocidente estaciona, insensibilizado pelo que nós julgamos um desmedido capital de civilização, mas que não é senão uma bastardia ou um envilecimento daquilo que por ‘civilização’, imperiosamente carecemos de considerar.


[1] Padre Garrigou-Lagrange, Le Sens commun.


In Madre-Hispânia (1924)

... ​se a experiência da fusão pacífica se inaugura no dia imediato ao de Toro, convém não esquecer que, embora desperta no subconsciente político dos dois Estados, não é, em todo o caso, a sua dominante, a mira que os absorve e entusiasma. O instinto da unidade peninsular – unidade cultural, moral e sentimental, e nunca unidade geometricamente efectivada dentro dos moldes de um exclusivo centralismo dinástico –, se na Idade Média e durante a gesta áurea da Reconquista nos entrelaça, a portugueses, castelhanos e aragoneses, como uma só alma e um só corpo, perante as arremetidas do Islamismo, amplia-se, clarifica-se numa visão já apurada das coisas, ao assomarem, para além da linha misteriosa das águas, o perfil moço da América e o prestígio vencido do Mar-Tenebroso. Portugueses e castelhanos estendem-se os braços e sentem, pela concessão paternal de um Pontífice, que o mundo é seu, porque, sendo de Cristo, é dos que levam, através das ondas tredas e dos continentes inóspitos, a bandeira da Cruz e a semente da Fé. A identificação do génio da Península com a essência pura do Cristianismo, Oliveira Martins, numa das suas mais belas intuições, a marcaria infalivelmente, ainda que subordinado aos preconceitos pessimistas de um Buckle. Moniz Barreto defini-la-ia, por sua parte, como uma «sede insensata de Absoluto».

Pois a «sede insensata de Absoluto», encontrando na unidade da crença a unidade da civilização, torna a história das duas pátrias – a história de Portugal e Castela – como que o prefácio da história da Idade Moderna. O sentimento do mesmo destino histórico ancora com firmeza nas verdades superiores, que norteiam o rumo dos dois povos peninsulares. Paralelismo tão radicado e tão sinceramente vivido, não enfraquece o patriotismo mais fundo e mais intransigente! Camões oferece-nos uma completa demonstração do quanto o seu lusitanismo acendrado não excluía o alto clarão hispanista, em que os Lusíadas estremecem, acesos. Pela espontânea e natural aliança do génio hispânico com o Cristianismo, portugueses e castelhanos fizeram sempre seus inimigos os inimigos tradicionais da fé cristã. Eis porque o seu labor, ou no campo das batalhas, ou nas amuradas das naus das Descobertas, foi inalteravelmente um labor de puro ‘europeísmo’. Enquanto a sua vocação nacional, caracterizada pela tendência universalista, se dirige ao ‘humano’, ao ‘estável’, ao que adiciona e não ao que subtrai, as outras nações continentais, quebrada a regra moral e política da Cristandade mediévica, só realizam obra de particularismo, de decomposição – de dissidência, numa palavra. Oswald Spengler, ao afirmar que os hispânicos souberam, primeiro que ninguém, imprimir uma directriz mundial à sua concepção da Vida, adjectiva de ‘ultramontana’ essa concepção. Se o adjectivo ‘ultramontano’ é para o germanismo nato de Spengler um epíteto pejorativo, é para nós o reconhecimento da estreita afinidade do génio hispânico com a noção do ‘homem’, tal como o Ocidente o concebeu e divulgou.

Sobre semelhante noção, a Europa se fez possível – e sobre ela grande parte da América se criou e desenvolveu. Carecemos de pedir ao Tomismo a sua admirável distinção entre ‘pessoa’ e ‘indivíduo’ para melhor abrangermos o que separa a civilização ultramontana dos hispanos, da civilização utilitária, encaminhada apenas à conquista do ‘relativo’ – apanágio daquelas raças que os substituíram no domínio e partilha do Orbe. Evidentemente que não nos vamos alargar na exposição de uma teoria que demandava, para ser clara e firme, algumas dezenas de páginas. Mas, partida do ‘indivíduo’ como fim de si próprio, a civilização dita ‘contemporânea’ é uma civilização de ‘consumidores’, e não de criadores. Recorrendo agora aos conceitos de Oswald Spengler, ao apresentar-no-la como dividida entre o conceito da ‘riqueza’ do inglês e o conceito do ‘dever’ do prussiano, anotaremos que ‘riqueza’ e ‘dever’ supõem sempre o ‘indivíduo’, valor centrífugo e errático, sobrepondo-se à colectividade e procurando subordiná-la ao seu império transitório. Contrariamente, os hispanos, não tendo do homem uma ideia de indivíduo, mas de ‘pessoa’, a sua expansão determina-se por um irreprimível instinto universalizador, porque a pessoa se lhe manifesta em inteira coincidência com a humanidade. A ‘sede insensata de Absoluto’, de que nos fala Moniz Barreto, impelia-nos assim a incorporar no próprio ideal de civilização as raças inferiores com quem tomávamos contacto, ao passo que o extermínio do indígena constituía o único método empregado por povos que, enfaticamente, se decoram com as honras excelsas de ‘colonizadores’. Em desterro ficámos na Europa, ao aluir, no século XVII, o pouco que organicamente restava de Cristandade. Aos morbos externos de individualismo, que a França ajudaria a triunfar em Vestfália, juntava-se a dissociação do paralelismo peninsular, por consequência dos feitos desastrosos da monarquia filipina.


in A Aliança Peninsular - Assentando posições, 1924.



​Se na Idade-Media fôra um português, o lisbonense Pedro Hispano, pontífice com o nome de João XXII, quem exercera uma das mais profundas influências nas universidades europeias com as suas Summulae logicales, os Commentarii Collegii Conimbrensis propagariam depois por toda a Europa o ensino filosófico professado na nossa tradicionalíssima Atenas, onde Aristóteles se lia e interpretava em grego. Viajando por Portugal, ainda rapaz, escreveria Menéndez Pelayo em data de 29 de Outubro de 1875: «Hombres en lo demás doctos y juiciosos, están llennos de preocupaciones respecto a la antigua filosofia, y sólo asi se explica el que tengan olvidadas por completo a los comentadores de la Escuela Conimbricense, y para nada tomen en cuenta el desarollo del Suarismo en Portugal que fue tan notable. Los libros más recientes vienen llenos de declamaciones contra la filosofia de los jesuítas, como si estuviésemos aún a la altura del siglo XVIII.»
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Pois pelo renascimento actual do Tomismo, nós apreciamos devidamente quanto valeu o esforço dos velhos mestres conímbricenses, que a Menéndez Pelayo arrancavam palavras de homenagem e que com os seus Commentarii foram escutados e glosados por toda a Europa. Conquanto represente a corrente filosófica que os desterrou dos espíritos inexoravelmente, Descartes seguiu ainda as lições dos Commentarii collegii Conimbrensis, e com ele a França culta que nos primeiros quarteis do século xvi raciocinava e meditava.
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Avalia-se já o sulco que abrimos com a nossa influência intelectual na vida francesa. Não influiríamos menos na sensibilidade! O caso das Cartas da Freira, que estou bem longe de atribuir à pobre Mariana Alcoforado, precisa de ser encarado e revisto à luz desse critério. Trata-se, à evidência, de uma composição literária, destinada a ganhar os favores da publicidade numa época em que a epistolografia andava no sabor corrente e em que o sentimentalismo português se acolhia em Paris, com os sucessos da Península durante a guerra da Restauração, como um tema favorito na Côrte e nos salões. No seu curioso volume Les portugais en France, Les Français en Portugal, justamente observa R. Francisque-Michel: «D’un autre côté, on semble avoir oublié que nous étions toujours à l’époque de notre litterature, que j’appellerais épistolaire, et où, chez nous, on parlait beaucoup du Portugal.»


 in A Aliança Peninsular - Errata necessária, 1924.

​Analisada e estudada a crise do Estado, levar-nos-ia muito longe qualquer tentativa que houvéssemos de esboçar acerca da sua possível restauração. No conflito de doutrinas e de interesses antagónicos, em que a Europa dos nossos dias tão tragicamente se debate, mais uma vez acentuamos que, estando em causa o individualismo herdado da Renascença e da Reforma, mas conduzido ao completo triunfo pela Revolução Francesa, está em causa tudo aquilo que, considerado até hoje no campo do Direito como matéria dogmática, constituiu a pura essência das teorias do Estado, reputadas intangíveis e ortodoxas por gerações consecutivas de tratadistas e de catedráticos. Bem fora de lhe subscrevermos as conclusões, não podemos deixar de anuir com ânimo incondicional às críticas notáveis que o Estado democrático, ou individualista, arrancou à pena fácil do Professor Léon Duguit. Se completarmos, porém, essas críticas com as luzes do magnífico estudo de Louis Bourgès (aconselhamo-lo aos nossos estudantes de Direito!), Le romantisme juridique, possuiremos enfim uma visão de conjunto sobre o problema que tanto nos toca e tanto nos apaixona.
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Afigura-se-nos desnecessário sublinhar o quanto prende as atenções dos contemporâneos o tema da «transformação do Estado». Por divergentes que sejam as suas directrizes filosóficas, ou simplesmente políticas, já não há nenhum autor digno de semelhante nome que fuja à repercussão de tal fenómeno. Menos atingidos pela gafa ideológica do século XVIII, os escritores tradicionalistas são, incontestavelmente, os que mais se aproximam do sentido orgânico da questão. É que, na verdade, não há ‘ideias velhas’, nem ‘ideias novas’. Há e haverá sempre ‘ideias sãs’ e ‘ideias falsas’. Fiéis à noção histórica do Estado e à sua função coordenadora, ou complementar, pervertida depois pela ênfase centralista do Absolutismo e das inflamações revolucionárias, os escritores tradicionalistas, se nos oferecem um campo amplíssimo para a nossa meditação se exercer, carecem, em todo o caso, para seu juízo e inteira justificação, de serem cotejados, em contraprova, pelos derradeiros mestres do Direito, gerado pelo Liberalismo. Neles é que se observam a latitude e a agudeza da crise do Estado, posta, por outro lado a nu, pelo Bolchevismo com processos de cirurgia violenta e primitiva. Já citámos o Professor Gaston Morin, da Universidade de Montpellier, no seu interessantíssimo volume, La révolte des faits contre le Code. Citaremos, por mais significativa e mais colocada no coração do problema, a recente Teoría social y jurídica del Estado, série de conferências pronunciadas em Buenos Aires pelo catedrático de Madrid, Adolfo Posada.

Se Gaston Morin, roçado de perto por um salutar vento de renovação, admite que na crise das instituições jurídicas contemporâneas, desde o regime do Trabalho e da Propriedade à própria constituição do Estado, o direito do «indivíduo» tende a ser substituído pelo direito do «agrupamento», Adolfo Posada classifica a já sensível modificação, operada nos cânones, tidos como inamovíveis, dos Imortais Princípios, quase como o seu natural desenvolvimento, como а última e mais depurada expressão do Liberalismo e da Democracia. Nota-se aqui bem flagrantemente o erro intelectual que nos levou à eliminação sistemática de todo o valor absoluto, tanto na vida do homem, como na vida das sociedades. As superstições derivadas do devenir hegeliano e do mito evolucionista arruinaram particularmente as virtudes compreensivas da razão, que, afastada cada vez mais da objеctividade, acabou, de negação em negação, por se negar a si mesma.
E se a construção racionalista – e não «racional» – do Estado se está desfazendo por defeito da sua própria inconsistência, não é porque se produzam forças ou acontecimentos, anteriormente não previstos. Desprezada e calcada pela rigidez abstracta das normas jurídicas, a realidade volta a restabelecer o seu império olvidado. Império brando e paternal, quando lho reconhecemos; mas, desde que se transgrida, fonte de calamidades e desequilíbrios, como os que puseram a pobre Europa na condição de uma túnica despedaçada! Cremos, porém, que o rumo, acentuadamente salutar, do pensamento moderno recolherá, aproveitando-a, a lição dolorosa dos factos. Semiderruído, o Estado parlamentar e burocrático desabará por certo totalmente. Talvez que rajadas fortes de catástrofe lhe acompanhem o desaparecimento. Talvez. Mas não duvidamos das bases em que a Ordem Nova se definirá, para segurança da civilização e seu futuro acrescentamento.
Era cair num linearismo censurável e até – porque não dizê-lo? – ridículo, se intentássemos levantar agora o arcaboiço do Estado vindoiro. Não nos furtamos, em todo o caso, a concordar com Gaston Morin e com Adolfo Posada que o social sucederá ao individual – o «grupo» ao «cidadão». Pedindo ao Tomismo uma distinção, tão genial como concreta, a «pessoа» осuрará o lugar do «indivíduo», para corrigir o que nele existe de centrífugo, de errático, de dispersivo. O Estado reflectirá assim a estrutura dos agregados, de que logicamente representa a soma e o ponderador. Síntese orgânica de um todo orgânico, o Estado, de elemento estrangulante e parasitário, quando centralista e irresponsável, volve-se, pelas virtudes naturais do Poder, no traço unitivo dos vários pluralismos, tanto profissionais e económicos, como intelectuais e morais. Verdadeiro suscitador das energias da colectividade, o Estado reencontra deste modo a sua índole tradicional – a função que o originou nos longes da história e inalteravelmente o legitimou no decurso dos séculos: defender os interesses permanentes, de que se nutrem o corpo e a alma das sociedades. Porque traiu esse seu único destino, o Estado contemporâneo – monopólio opressivo nas mãos de minorias cúpidas e incompetentes – é um Estado de consumidores, e não de produtores; é um Estado, cujos componentes denunciam espantosamente a mais incrível das inversões, qual é a da selecção dos piores, qual é a da selecção às avessas. Porquê? Porque, fundado sobre o indivíduo, e não sobre a pessoa, apela invariavelmente para as paixões e não para as aspirações – para o relativo, e não para o absoluto, para o material, e não para o espiritual, alimentando-se, sobretudo, de um ilusório embuste, o do antagonismo da liberdade com a autoridade.

Nada mais falso do que semelhante antagonismo! Na babilónia tonta das nomenclaturas sonoras, mas confusas, se não vazias, dos tratadistas (Marie de Roux no seu belo prefácio ao Romantisme juridique de Louis Bourgès chama-lhe com rara felicidade chimérisme technique), a ‘liberdade’ – garantia essencial do desenvolvimento do homem e das colectividades, acha-se invariavelmente comprometida e limitada na presença da ‘autoridade’. Daqui o sucesso da mitologia revolucionária, que, desarmando progressivamente a ‘autoridade’ das justas e normais prerrogativas, engendrou, segundo as circunstâncias, a debilidade do Poder, capitulando constantemente diante da mentirosa lei da ‘opinião’, ou de um bem pior abuso, que é o que se disfarça hipocritamente na tirania repulsiva da ‘legalidade constitucional’. Nós, porém, afirmávamos que nada mais falso do que o antagonismo da ‘liberdade’ com a ‘autoridade’. Escreve Louis Bourgès: «C’est une des erreurs les plus grossières du XIX siècle que d’avoir imaginé une contradiction entre l’idée d’autorité et l’idée de liberté. Cette erreur vient de la Révolution – continua –, qui avait opposé l’individu à l’Etat royal, en ne voyant dans le pouvoir du premier que sa liberté, et dans celui du second son autorité. En réalité elle opposait deux pouvoirs distincts, deux autorités, deux libertés. C’est un non-sens d’en conclure que la notion de liberté s’appose à celle d’autorité. Il n’y a pas d’opposition d’une idée à l’autre mais d’une personne à une autre. Lorsque deux personnes s’oppоsent, il est clair que leurs pouvoirs s’opposent. Et si l’une invoque sa liberté et l’autre son autorité, cela ne signifie pas que la première est sans autorité ni la seconde sans liberté, cela précise simplesment l’aspect du pouvoir par lequel les deux personnes se heurtent.»

E o autor do Romantisme juridique, assinalando expressivamente que «toda a autoridade comporta uma liberdade», prossegue, em termos de um raro vigor persuasivo: «Tandis que la doctrine de l’Ancien Régime laissait les autorités individuelles, familiales, professionelles, locales, s’épanouir en libertés concrètes et réservait ao roi le domaine de la souveraineté, dans lequel la nation est généralement incompétente, au contraire la doctrine moderne entrave ou étouffe le pouvoir de chacun dans la sphère ou il possède une autorité réelle et, en compensation, elle lui reconnaît insolément une fiction de liberté politique dans le domaine souverain, où il n’a pas d’autorité réelle et où il est fatalement le jouet des politiciens.»

Já que a toda a «autoridade» corresponde desta forma uma «liberdade», o papel do Estado é o de resumir e garantir na sua função soberana essa соеxistência de direitos e de deveres. Reconstrução, portanto, da «autoridade» e sua imediata identificação com a «liberdade». Como, porém? Integrando nos seus quadros próprios e dando-lhes a precisa representação, àquelas unidades sociais que, em linguagem com tanto de clássico como de realista, os antigos chamavam os «corpos do Estado» – ou seja, as famílias, agrupadas nos municípios, os municípios, agrupados nas províncias, e as províncias agrupando-se na nação, que resume conjuntamente em si a representação de outras pessoas colectivas, como as corporações e os grémios, como as universidades e a Igreja. A este desenhar já vigoroso do ‘social’ sobre o ‘individual’, considerando-o como um fenómeno exclusivo do nosso tempo, Adolfo Posada o qualifica de «novo liberalismo», entendendo-o Gaston Morin como uma transformação das linhas simplistas em que o Estado moderno se firma, por exigência irreprimível dos factos. Mas as reflexões de Louis Bourgès indicam-nos convencedoramente que não há transformação no sentido imediato em que Morin a toma, nem tão-pouco um fenómeno de carácter tão restrito, como Posada pretende. O que há é a vitória das «constantes», em que a sociedade se baseia, contra a perversão ideológica que as negou durante mais de um século, em nome de um conceito absurdo da «autoridade» e da «liberdade». Dolorosamente – e só Deus sabe por que esforços trágicos! –, o elemento absoluto, tão imprescindível na vida do homem, como na vida da sociedade, acabará por recuperar o seu império, criminosamente olvidado. Não nos esqueçamos de que a crise do Estado é um dos aspectos da crise que atravessa a civilização ocidental. Crise, maiormente, de directrizes – crise, maiormente, de pensamento e de inteligência –, não é possível separar a crise do Estado da crise mais funda de que a Europa recolhe hoje os frutos daninhos.

Conhecem-se já, louvores a Deus!, os caminhos a percorrer para que o problema se resolva – e se resolva com a desejada eficácia. Mas não ignoramos que a marcha da história é lenta e que lenta virá a correcção a tanto desvario amontoado, a tanta ruína voluntariamente buscada. Como nunca, perante os estragos de uma época absorvida unicamente pela atracção do «material», a lei do Espírito, vilipendiada por uns, jamais entrevista por outros, nos oferece a pedra firme das suas certezas – o fermento incorruptível da sua acção criadora! Rasgam-se aos nossos olhos as avenidas misteriosas de uma inesperada idade do mundo – idade decisiva de que nós seremos os obreiros, se não formos os seus imperdoáveis abortadores. Palavra dura – palavra feia, esta de ‘abortadores’ – mas palavra que traduz a enorme responsabilidade dos que possuindo, principalmente, um capital de cultura ou de virtude, o não socializarem em termos de imprimirem ao ciclo que começa o sinal positivo da tradição cristã do Ocidente! Logicamente nos pondera Louis Bourgès que, na «decomposição sucessiva da autoridade», a anarquia «est la dernière liberté publique à conquérir». Mas o que é a anarquia? É o insolidarismo total, de que a experiência russa nos mostrou a antecâmara – é o homem, lobo do homem, é a nossa natureza inferior prevalecendo rugidoramente sobre a dignidade da nossa consciência de humanos. Como se vence a anarquia – como se debelam as suas cem mil cabeças sempre renascentes? Pela instauração da Justiça – da Justiça, a que concedemos a maiúscula solene, embora desacreditada, para que ela nos surja revestida dos seus veneráveis atributos. Só ela, a Justiça, é a verdadeira força da conservação, como dizia uma mística – como dizia Santa Catarina de Siena. Mas a Justiça não reina senão quando a nossa actividade – comenta Louis Bourgès – se conforma com a lei superior da alma. A lei superior da alma é a lei imprescriptível do Espírito. «En refusant de reconnaître cette loi indépendante de la volonté humaine, l’homme se révolte contre la vérité objective de l’ordre» – prossegue Bourgès. «Par suite, l’ordre social est livré à la merci des conceptions subjectives de chacun; celles-ci peuvent encore se couvrir des mots justice, droit, mais ces mots n’ont plus aucune réalité et cachent mal le triomphe des ordres inférieurs de notre nature qu’aucune mesure ne contient plus. Au nom du droit subjectivisé, c’est toute la nature humaine qui se déchaîne et pousse les hommes et les peuples dans des luttes implacables, selon les ordres purement subjectifs de la cupidité, de la passion, de l’appétit et de la brutalité.» De maneira que uma inadiável revolução se nos impõe também a nós, os que combatemos a Revolução. «Car ce sera une fameuse révolution que le retour du monde à l’ordre», salienta Jacques Maritain, e nós com ele.
Sabe-se que «ordem» será. Não é a «ordem» que se nutre do simples arranjo exterior do Estado, mas «a ordem», filha da Justiça, por seu turno emanação de Deus e a mais bela centelha que resplandece por entre as imundícies do nosso coração de carne. Nós, os que na guerra árdua das ideias guardamos e espalhamos as sementes generosas do futuro, não nos tememos por isso dos solavancos de catástrofe, em que tudo à nossa volta parece ir-se abaixo. Até certo ponto, ajudam-nos no nosso labor os que, impelidos por cegos instintos demolidores, se afincam encarniçadamente em destruir o «existente». Recorda Jacques Maritain, encostado a um velho passo de Aristóteles, que nada se destrói sem que alguma coisa se produza, nem nada se produz sem que alguma coisa se destrua. «Toute la question est de savoir si c’est la production ou la destruction qui est l’évènement principal, c’est-à-dire si l’on passe d’une formе inférieure à une forme supérieure ou si c’est l’inverse, si l’on est en présence du changement qui fait un corps vivant, ou de celui qui fait une pourriture.» E o autor do Théonas, de onde é a transcrição, acrescenta: «Il est puéril d’imaginer que dans la nature matérielle quelque mal ne soit pas lié au bien par accident, et que parmi les hommes rien de beau puisse surgir sans quelque blessure. Mas il est absurde de penser (voilà le péché du romantisme révolutionnaire) qu’une perturbation et une subversion radicales sont la condition de tout progrès et que le cataclysme procure de soi un état meilleur.»

O que nos separa então dos «revolucionários», no sentido usual do vocábulo? Responde ainda Jacques Maritain: «Les révolutionnaires... prennent toute nouveauté pour une nouveauté d’achèvement ou de perfection, et condamnent tout le passé sans voir qu’ils ôtent ainsi toute possibilité de progrès réel et de révolution féconde, comme tout moyen de profiter des nouveautés solides acquises dans le passé». O «progresso real» ou, por outros termos, o enriquecimento do património colectivo («civilização» para Charles Maurras é um estado social em que o indivíduo que vem ao mundo encontra muito mais do que ele traz) depende, consequentemente, de uma adição, em que o passado, como experiência, conta por si a quase totalidade das parcelas. Mas quando falamos no passado, devemos esclarecer com Maritain que não é ao passado, como passado, que nos ligamos nós, os tradicionalistas, e sim à substância eterna que o passado elaborou e que, sendo vida, a vida nos transmitiu na sua impulsão criadora.[1]

Como homens de tradição, somos assim renovadores e, como tal, revolucionários. Se, no advento do Estado, restituído aos predicados sãos do Poder, nos não assusta o negrume que nos envolve, é porque acreditamos nas possibilidades reaccionárias (reabilitemos também a nobre palavra!) não só da sociedade portuguesa, mas das sociedades ocidentais. Um sinal? Ei-lo! Num momento de estranha inquietação surge outra vez para os cuidados cultos o livro presente do segundo Visconde de Santarém. Faliu o sistema que pela violência e pelo sofisma vencera o princípio a que o Visconde de Santarém se acolhia, ao ordenar as ‘Provas’ da Teoria das Cortes Gerais. E como um símbolo anunciador de inesperadas soluções, ao mesmo princípio recorrem os que na meditação do passado aprendem a aplanar as estradas por onde o futuro já vem marchando. Não pensamos numa ressurreição arqueológica – trabalho de arquitecto alheio às modificações e aos acréscimos do tempo – do que foram os Três Estados do Reino. Mas estabelecendo como fundamento do Estado histórico e nacional a representação das pessoas morais e dos interesses permanentes, se a instituição se não reproduz nos seus lineamentos primitivos, reproduzir-se-á na sua essência – no conteúdo vital que a animou. Esse conteúdo é o do social prevalecendo sobre o individual – é o do grupo substituindo o indivíduo. Assim era no passado. Assim o veremos com a já inevitável Ordem Nova, quando a hora soar do maximalismo do Ocidente – resposta heróica e luminosa à tropelada de pesadelo, em que a Ásia enigmática tenta despedaçar o que resta da velha supremacia europeia. Que actualidade mais bela para uma reedição do memorando trabalho do Visconde de Santarém?

Inclinêmo-nos diante da sua sombra egrégia, saudando-o como um precursor do Portugal Maior, reintegrado na aspiração universal e, portanto, humana do seu génio. E não se regateiem homenagens a quem, como o seu ilustre neto, sabe arcar, em benefício da cultura nacional, com as responsabilidades bem pesadas do nome glorioso que continua!


​Elvas, Quinta do Bispo, 20-VIII-1924.


[1] Na 1.ª edição, lê-se, certamente por lapso de revisão: «sendo vida na vida, nos transmitiu na sua impulsão criadora». Também se poderia ler: «sendo vida na vida, nos transmitiu a sua impulsão criadora»; mas parece menos rica de sentido esta interpretação, além de que a primeira se ajusta melhor ao estilo de Sardinha. (N. do Е. da 2.ª ed.)


In A Teoria das Cortes Gerais
, 1924.



​DE REGIMINE PRINCIPUM - 
https://tomasdeaquino.org/del-gobierno-de-los-principes-de-regimine-principum/

Tratado político inacabado, escrito por Santo Tomás de Aquino para o rei de Chipre, continuado por Ptolomeu de Luca, cerca do ano 1300.

Títulos da obra:
  • De regimine principum ad regem Cypri (latin) De regno (latin)
  • De regno ad regem Cypri (latin)
  • Liber de rege et regno, ad regem Cypri (latin) (De) regimine principum (latin)
  • (De) regimine principum ad regem Cypri (latin) (De) regno (latin)
  • (De) regno ad regem Cypri (latin)
  • Tractatus de regimine principum (latin)
  • Über die Herrschaft der Fürsten (allemand) Book on kingship (anglais)
  • On kingship (anglais)
  • On kingship to the king of Cyprus (anglais) On the governance of rulers (anglais)
  • On the government of princes (anglais)
  • Tratado del govierno de los principes (espagnol; castillan) 
  • De la royauté (français)
  • De la royauté ou Du gouvernement royal (français)
  • Du gouvernement royal (français)
  • Du royaume (français)
  • La royauté (français)
  • La royauté, au roi de Chypre (français)​

​Fontes e Refs.

  • aquino_-_de_regimine_principum___thomas_aquinas___internet_archive.pdf

  • 2024-03-07 - MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO POR OCASIÃO DO LABORATÓRIO "A ONTOLOGIA SOCIAL E O DIREITO NATURAL DE TOMÁS DE AQUINO EM PERSPECTIVA. APROFUNDAMENTOS PARA E DAS CIÊNCIAS SOCIAIS". ORGANIZADO PELA PONTIFÍCIA ACADEMIA DAS CIÊNCIAS SOCIAIS, 7-8 de Março de 2024. 20240307-messaggio-laboratorio-pass.pdf​


Integralismo Lusitano
1915 - António Sardinha - O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional
1930 - Luís de Almeida Braga, Caridade de Pátria

Outras referências:
Fotografia
Pedro Velez, Evocando S. Tomás sobre a Realeza, Correio Real, nº 30, Dezembro de 2024, p. 11.
​​...nós não levantaríamos nem o dedo mínimo, se salvar Portugal fosse salvar o conúbio apertado de plutocratas e arrivistas em que para nós se resumem, à luz da perfeita justiça, as "esquerdas" e as "direitas"!

​​- António Sardinha (1887-1925) - 
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