Gama e Castro previu, com quatro décadas de antecedência, o fim da monarquia brasileira e, com mais de um século, a perda da independência de Portugal - J. M. Q.
José da Gama e Castro (1795-1873) nasceu na Vila de Sernancelhe, em 7 de Outubro de 1795. Era filho de Maurício José de Castro e Sá, escrivão da Câmara Eclesiástica de Coimbra, e afilhado do bispo Francisco Lemos de Faria Pereira Coutinho, Conde de Aljezur. Cursou Medicina na Universidade de Coimbra (1814-1819), onde obteve o título de doutor em Filosofia no final do ano seguinte.
No Outono de 1820, eclodiu a Revolução no Porto, à qual Gama e Castro se opôs manifestando posições que manteria até o fim dos seus dias: aversão ao liberalismo em todas as suas modalidades, e lealdade à Igreja e à Coroa.
Não o podendo calar, os revolucionários constituíram um juízo de exceção para investigar a sua conduta profissional. Nada se apurou de errado, mas Gama e Castro viu-se forçado a procurar refúgio no mosteiro cisterciense de Salzedas. Em 1823, foi de lá que saiu para apoiar a Vilafrancada. Mais tarde, após a Aclamação de D. Miguel como Rei de Portugal na reunião das Cortes de 1828, foi nomeado Físico-Mor do Exército e da Corte, postos que conservou até à derrota portuguesa na guerra civil (1831-1834).
Gama e Castro passou as décadas seguintes no exílio, fixando-se inicialmente em Itália, onde editou o jornal O Precursor (1834-1837). Após breves passagens pela Suíça e pela Alemanha, morou quatro anos no Rio de Janeiro (1838-1842), onde traduziu, pela primeira vez para português, O Federalista de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, publicado em 1840. Aí escreveu e publicou O novo príncipe, ou o espírito dos governos monárquicos [edição do Rio de Janeiro, 1841, pdf ] onde, sob uma epígrafe de Petrarca, desafiou os seus contemporâneos a não tornarem os seus corações insensíveis à verdade. O seu principal propósito, como escreveu no Prefácio, foi o de "restaurar algumas verdades já velhas, porém arteiramente desviadas ou esquecidas".
Gama e Castro adotou uma perspetiva mais conservadora do que tradicionalista, mas com reflexões muito úteis nos domínios da política, economia, educação pública, assistência social e relações internacionais.
Com quatro décadas de antecedência, previu a queda da monarquia brasileira porque, sem ter ali uma nobreza reconhecida e representada numa Câmara Alta, a sua base era muito frágil - Intuiu que, sem a existência de uma representação de elites cujo prestígio e poder não dependa de eleições, o poder das oligarquias financeiras ficaria sem freio e esmagaria tudo o que se atravessasse à sua frente. Eis as suas exactas palavras: "Regra geral; quanto maior for a importância e a vida política que a constituição de um país tiver dado ao elemento democrático, tanto maior necessidade haverá de uma força muito poderosa que retenha dentro do álveo esta torrente que, com uma única aluvião que faça, pode levar tudo diante de si." [Lisboa, Pro Domo, 1945, p. 294]
Nas pequenas localidades, nos sindicatos, nas associações profissionais, grémios, etc., a democracia pode praticar-se sem necessidade de propagandas. As pessoas votam para escolher quem bem conhecem e para defender os interesses que são também os seus. Baseando-se na observação das realidades, era para ele claro que o "elemento democrático", fora dos pequenos meios, é o meio pelo qual os políticos profissionais se colocam, em nome do interesse geral, ao serviço dos poderosos interesses económicos e financeiros, que lhes subsidiam as campanhas para a obtenção de lugares nos parlamentos. Com mais de um século de distância, previu por isso também a perda de soberania dos pequenos Estados europeus que, como Portugal, adoptassem o modelo das eleições partidocráticas. Num único parágrafo, uma única reflexão bastava: "toda a nação que, tendo importantes relações exteriores que administrar, e muito especialmente com vizinhos poderosos, não obstante isto se organizar debaixo de forma democrática, pode contar com a perda infalível da sua independência, ou, por outras palavras, da sua existência como nação" (p. 134, da edição brasileira; Lisboa, Pro Domo, 1945, p. 140). Na época, para qualquer cidadão letrado, era óbvio que as eleições em que fossem necessários meios de imprensa e de propaganda para motivar os votos, davam quase sempre a vitória aos que dispunham de mais dinheiro, dos que, munindo os cofres dos candidatos ou dos partidos, traziam o poder acorrentado à sua força.
Antecipando António Sardinha, preconizou uma Aliança Peninsular entre Portugal e Espanha. O seu critério foi colocado, porém, apenas em termos de vantagens económicas: "as vantagens da sua posição geográfica"... chama os dois Estados "a ser o laço de todo o comércio entre o Mediterrâneo e o Oceano, e a escala natural de todos os vasos que das duas Índias demandam os mares do Norte" (ver pp. 391, 430 e 434, da edição brasileira). Tal como Sardinha, defendeu uma Aliança e não a união política de Portugal e de Espanha, rejeitando claramente os projetos federativos que apelavam para a criação dos "Estados Unidos Peninsulares" (p. 70, da edição brasileira) de conhecida inspiração maçónica.
Muito crítico dos tratados comerciais estabelecidos por Portugal com a Inglaterra (pp. 397-407, da edição brasileira), em especial o de Methuen, foi, todavia, menos previdente ao propor uma "união aduaneira peninsular" segundo o modelo do Zollverein (1833). Verificou-se mais tarde ter sido esse o prólogo da criação do Estado Alemão (1862-1871) e, no século XX, foi por via do modelo da unificação alemã que foi criada uma Comunidade Económica Europeia, que alguns defenderam com o propósito de se vir a criar um Estado Europeu.
Gama e Castro, intuindo terríveis consequências para Portugal, sobretudo se a Monarquia viesse a ser derrubada, como veio a acontecer em 1910, aconselhou muita prudência aos portugueses nas relações internacionais: "Nunca nação alguma pequena consinta em fazer tratados de comércio, por mais vantajosos que eles possam parecer lhe, com outra nação poderosa; porque o resultado infalível deste mau passo será a sua perdição e ruína." (p. 404). A sua lealdade à causa da independência do Reino de Portugal ficou bem patente em muitas páginas.
José da Gama e Castro retornou à Europa em 1842. Juntou-se aos companheiros que, exilados em Paris, conspiravam pela restauração de Portugal na legitimidade do rei D. Miguel. Ocupou-se doravante em publicar artigos nos jornais União, Opinião Pública e Observador Austríaco, mantendo o seu consultório médico como fonte de sustento. Foi também correspondente do Jornal do Comércio, semanário que, no Rio de Janeiro, acolhia os seus textos desde a época em que vivera no Brasil.
Morreu em Paris, em 8 de Setembro de 1873, com o título de Visconde de Sernancelhe, concedido por D. Miguel pelos serviços prestados à Causa Portuguesa.
Muito crítico dos tratados comerciais estabelecidos por Portugal com a Inglaterra (pp. 397-407, da edição brasileira), em especial o de Methuen, foi, todavia, menos previdente ao propor uma "união aduaneira peninsular" segundo o modelo do Zollverein (1833). Verificou-se mais tarde ter sido esse o prólogo da criação do Estado Alemão (1862-1871) e, no século XX, foi por via do modelo da unificação alemã que foi criada uma Comunidade Económica Europeia, que alguns defenderam com o propósito de se vir a criar um Estado Europeu.
Gama e Castro, intuindo terríveis consequências para Portugal, sobretudo se a Monarquia viesse a ser derrubada, como veio a acontecer em 1910, aconselhou muita prudência aos portugueses nas relações internacionais: "Nunca nação alguma pequena consinta em fazer tratados de comércio, por mais vantajosos que eles possam parecer lhe, com outra nação poderosa; porque o resultado infalível deste mau passo será a sua perdição e ruína." (p. 404). A sua lealdade à causa da independência do Reino de Portugal ficou bem patente em muitas páginas.
José da Gama e Castro retornou à Europa em 1842. Juntou-se aos companheiros que, exilados em Paris, conspiravam pela restauração de Portugal na legitimidade do rei D. Miguel. Ocupou-se doravante em publicar artigos nos jornais União, Opinião Pública e Observador Austríaco, mantendo o seu consultório médico como fonte de sustento. Foi também correspondente do Jornal do Comércio, semanário que, no Rio de Janeiro, acolhia os seus textos desde a época em que vivera no Brasil.
Morreu em Paris, em 8 de Setembro de 1873, com o título de Visconde de Sernancelhe, concedido por D. Miguel pelos serviços prestados à Causa Portuguesa.
O Novo Príncipe e o Integralismo Lusitano
Em O Novo Príncipe, Gama e Castro concluiu com estas palavras: "Não sei se é esta a última vez que me dirijo aos Portugueses pela imprensa: se assim for, peço-lhes que me tomem esta obra pelo testamento da minha lealdade, e pelo último atrevimento do meu amor."
Em Abril de 1914, ao lançar a 1ª série da revista Nação Portuguesa, os jovens integralistas publicaram um índice programático - "O que nós queremos" - e uma lista de publicações aconselhadas para um plano de estudos a realizar. Em Dezembro de 1915, O Novo Príncipe de José da Gama e Castro passou a integrar aquela lista de obras. Em 1945, a editora PRO DOMO, publicou uma nova edição conforme à edição de 1841.
O Integralismo Lusitano tinha começado por defender a fórmula que Gama e Castro lançou ao objectar o "Paradoxo de Thiers" a respeito do poder régio - "o rei reina e não governa" - transformando-o nesse outro: O REI GOVERNA, MAS NÃO ADMINISTRA (Lisboa, Pro Domo, 1945, p. 164).
Mais tarde, Mário Saraiva, situando-se no desenvolvimento da Media via entre Liberalismo e Absolutismo aberta pelo Integralismo Lusitano, vai adiante afirmar que o Rei não deve governar nem administrar, mas deve chefiar tudo o que não seja discutível no plano nacional – a Justiça, a Diplomacia e as Forças Armadas. É a actual doutrina da Suprema Magistratura Nacional da Instituição Real (In Razões Reais).
Os primeiros mestres do integralismo adoptaram também, de Gama e Castro, a exposição dos dois princípios da legitimidade pessoal do rei - a justiça da aquisição e a diuturnidade da posse (Lisboa, Pro Domo, 1945, p. 156). Não seguiram porém a sua interpretação do que seria o "poder divino dos reis". Escreveu Gama e Castro: "a escolha [do rei] é incontestavelmente humana; mas a ... confirmação é divina, o que a torna inviolável e santa" (Rio de Janeiro, p. 146; Lisboa, Pro Domo, 1945, p. 150). Essa asserção - o poder real como inviolável e santo - faz-se eco da doutrina protestante do "direito divino dos reis", afastando-se de um aspeto essencial da doutrina do poder régio adoptada pelos doutores da Restauração e pelos Integralistas: o princípio da legitimidade da instituição assenta na doutrina do pacto de sujeição dos reis ao serviço das Repúblicas, como defendera Francisco Suárez em Defensio fidei catholicae et apostolicae adversus Anglicanae sectae errores (1613), João Pinto Ribeiro em Usurpação, retenção & restauração de Portugal (1642) ou Francisco de Gouveia, em Justa Aclamação (1644).
Como referido, o livro intitulado O Novo Príncipe só em Dezembro de 1915 foi incluído na lista das publicações aconselhadas pelos integralistas. Terá havido hesitação em face de uma tão pouco católica interpretação da doutrina do "direito divino dos reis"? É possível. Se foi esse o motivo, a verdade é que acabaram por incluí-la pelo inquestionável valor documental de uma obra que deu tão firme e profundo testemunho de lealdade e amor a Portugal.
27.01.2023
J. M. Q.
Em Abril de 1914, ao lançar a 1ª série da revista Nação Portuguesa, os jovens integralistas publicaram um índice programático - "O que nós queremos" - e uma lista de publicações aconselhadas para um plano de estudos a realizar. Em Dezembro de 1915, O Novo Príncipe de José da Gama e Castro passou a integrar aquela lista de obras. Em 1945, a editora PRO DOMO, publicou uma nova edição conforme à edição de 1841.
O Integralismo Lusitano tinha começado por defender a fórmula que Gama e Castro lançou ao objectar o "Paradoxo de Thiers" a respeito do poder régio - "o rei reina e não governa" - transformando-o nesse outro: O REI GOVERNA, MAS NÃO ADMINISTRA (Lisboa, Pro Domo, 1945, p. 164).
Mais tarde, Mário Saraiva, situando-se no desenvolvimento da Media via entre Liberalismo e Absolutismo aberta pelo Integralismo Lusitano, vai adiante afirmar que o Rei não deve governar nem administrar, mas deve chefiar tudo o que não seja discutível no plano nacional – a Justiça, a Diplomacia e as Forças Armadas. É a actual doutrina da Suprema Magistratura Nacional da Instituição Real (In Razões Reais).
Os primeiros mestres do integralismo adoptaram também, de Gama e Castro, a exposição dos dois princípios da legitimidade pessoal do rei - a justiça da aquisição e a diuturnidade da posse (Lisboa, Pro Domo, 1945, p. 156). Não seguiram porém a sua interpretação do que seria o "poder divino dos reis". Escreveu Gama e Castro: "a escolha [do rei] é incontestavelmente humana; mas a ... confirmação é divina, o que a torna inviolável e santa" (Rio de Janeiro, p. 146; Lisboa, Pro Domo, 1945, p. 150). Essa asserção - o poder real como inviolável e santo - faz-se eco da doutrina protestante do "direito divino dos reis", afastando-se de um aspeto essencial da doutrina do poder régio adoptada pelos doutores da Restauração e pelos Integralistas: o princípio da legitimidade da instituição assenta na doutrina do pacto de sujeição dos reis ao serviço das Repúblicas, como defendera Francisco Suárez em Defensio fidei catholicae et apostolicae adversus Anglicanae sectae errores (1613), João Pinto Ribeiro em Usurpação, retenção & restauração de Portugal (1642) ou Francisco de Gouveia, em Justa Aclamação (1644).
Como referido, o livro intitulado O Novo Príncipe só em Dezembro de 1915 foi incluído na lista das publicações aconselhadas pelos integralistas. Terá havido hesitação em face de uma tão pouco católica interpretação da doutrina do "direito divino dos reis"? É possível. Se foi esse o motivo, a verdade é que acabaram por incluí-la pelo inquestionável valor documental de uma obra que deu tão firme e profundo testemunho de lealdade e amor a Portugal.
27.01.2023
J. M. Q.
Bibliografia
1841 – O Novo Príncipe, ou o espírito dos governos monárquicos. Rio de Janeiro, 1841. (edição portuguesa: Lisboa, PRO DOMO, 1945, 502 páginas)
[ 1841_-_jose da gama_e_castro_-_o_novo_principe.pdf ] [ josé_da_gama_e_castro_-_o_novo_príncipe .pdf ]
1933 - Diário da emigração para Itália, Lisboa, Tipografia Henrique Torres, 1933.
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