Defesa da Carta Enciclica de Sua Santidade Pio IX
Antero de Quental
RESUMO
Antero de Quental identifica a opinião pública e a imprensa liberal como fontes de contradição e perda de clareza moral, defendendo a superioridade da Igreja pela sua coerência e fidelidade à fé. E conclui que, apesar de seus defeitos, a Igreja mantém um valor espiritual eterno, em contraste com uma sociedade materialista e efémera.
A Igreja, o Século e a Contradição Moderna
Análise das tensões entre autoridade religiosa e espírito liberal
Análise das tensões entre autoridade religiosa e espírito liberal
- I. O Conflito entre o Espírito Cristão e o Mundo Moderno. No cenário tumultuado do mundo moderno — marcado por esperanças e decepções, crenças e descrenças, sistemas e negações — a Igreja Católica ergue-se como uma fortaleza inabalável. Enquanto tudo ao seu redor é instável, ela permanece firme, apoiada na solidez da fé. O barulho que ressoa ao seu redor não é de celebração, mas de contestação, refletindo a eterna luta entre o século e a Igreja, entre a razão rebelde e a autoridade revelada. A Igreja representa a estabilidade e a autoridade infalível, não se defendendo, nem argumentando: simplesmente condena e fulmina, agindo como tribunal e manifestando a voz absoluta do divino.
- A Encíclica Pontifícia: Natureza e Autoridade. A Encíclica não é apresentada como um ataque ou defesa, mas como uma condenação proveniente de um tribunal. O Papa, visto como eleito de Deus, transmite certezas absolutas ao mundo cristão, sendo a sua palavra considerada expressão imutável do sentimento cristão diante do século XIX e do mundo moderno. Aos fiéis, cabe aceitar a verdade da Igreja; aos demais, reconhecer a posição da Igreja em relação ao progresso, à ciência e à sociedade.
- II. Direito Humano versus Direito Divino. Antero destaca o confronto entre o direito humano e o direito divino, apresentando a Igreja como incapaz de se contradizer ou de submeter o saber humano às incertezas da razão. A Igreja não nega a liberdade, o direito ou a ciência; ao contrário, reivindica para si a posse legítima desses valores, desmascarando-os quando surgem como meros produtos da razão humana. A sociedade moderna, guiada por espectros dessas ideias, encontra na ciência a alma do mundo e na liberdade a sua essência. A Igreja, por sua vez, mantém-se à margem dessa perspectiva, e a Encíclica simboliza o retorno à penitência, restringindo a ciência ao papel de serva da doutrina. O texto evoca figuras históricas de imperadores e padres como instrumentos do poder divino. A repressão à carne e a submissão das massas são apresentadas como consequências lógicas desse sistema.
- III. Catolicismo Liberal e a Impossibilidade da Concórdia. Aponta-se a contradição interna daqueles que tentam conciliar tradição e progresso, fé e razão, Igreja e Estado, apelidando de “racionalismo cristão” ou “catolicismo liberal” a tentativa de unir opostos irreconciliáveis. A Igreja, fiel à sua natureza absoluta, rejeita tais auxiliares, pois aceitar compromissos seria transigir com o mundo e perder a sua essência. O dilema é evidente: ou se segue a Igreja com coerência, aceitando o seu caminho, ou se rompe com ela de forma lógica e corajosa. O mundo moderno tenta compatibilizar o temporal e o espiritual, mas o texto afirma que ambos são partes de uma mesma curva, inseparáveis, sendo a sociedade fruto da religião. O “monstro sem nome”, feito de contradições, é identificado como a opinião pública, incapaz de criar ou avançar devido à sua natureza híbrida e estéril.
- A Imprensa e a Opinião Liberal. A imprensa, central na formação da opinião pública, é criticada por perpetuar contradições e desviar a sociedade da clareza e lealdade. Em vez de aceitar ou rejeitar plenamente a autoridade da Igreja, a opinião liberal prefere manter-se num estado de contradição, criticando e, ao mesmo tempo, reivindicando seu vínculo com o cristianismo. Essa postura é vista como miséria e contradição, constituindo um insulto ao bom senso.
- IV. A Superioridade da Igreja e a Lógica dos Extremos. O texto defende que, mesmo numa causa considerada injusta, a Igreja mantém justiça e razão devido à força da sua posição extrema. Torquemada e Voltaire, representantes dos polos opostos, são ambos lógicos: um deposita confiança na fé absoluta, o outro na consciência. O católico crê sem indagar, missiona sem provar, condena sem discutir, pois a fé é viva e inextinguível. Diante das tempestades modernas, a Igreja não pode calar nem condescender, pois isso significaria a sua ruína. Se transigisse, perderia gradativamente a sua identidade, tornando-se irreconhecível e fraca, escrava do mundo e dos interesses temporais. Antero alerta para o perigo de uma Igreja que, ao tentar agradar aos liberais, perderia a sua essência e se tornaria obstáculo ao desenvolvimento livre da consciência humana. A religião, conclui-se, só faz sentido se for livre, nobre e elevada; caso contrário, torna-se uma sombra, um artifício ao serviço do poder político e incapaz de satisfazer a aspiração humana pelo divino. O resultado seria o obscurecimento moral, a ilusão transformada em lei e a miséria espiritual de uma sociedade privada do seu ideal religioso.
- V. Conclusão: A Igreja e a Matéria. Apesar de sua decadência, a Igreja vale mais do que uma sociedade materialista e desprovida de espírito. O seu maior defeito é o excesso de espiritualidade, enquanto os seus detratores são apenas matéria. Enquanto estes passarão e serão esquecidos, da Igreja permanecerá sempre uma recordação luminosa de poesia e beleza no coração da humanidade.
António Sardinha, in "A dor de Antero" (1924), referiu-se a este documento de Antero de Quental, escrevendo o seguinte:
"eu apontei como decisiva no espírito de Antero a influência do filosofismo semi-orgânico de Proudhon. O primeiro folheto de Antero, datado de 1864, demonstra-o claramente e dá-nos a nós, integralistas, o prazer de possuirmos na defesa do Syllabus um exemplo bastante anterior ao de Charles Maurras. Charles Maurras, sem ser um crente, defende, é certo, o admirável documento pontifício como um acto de sabedoria eterna, de cujo regimento e guarda depende a boa saúde da sociedade. Antero, também sem ser um crente, não defendia o Syllabus, rigorosamente. Compreendia-o como um dever respeitável da Igreja, incompatibilizada com o século e destinada a desaparecer, vítima dessa incompatibilidade, mas nobremente, em harmonia com o seu património moral. O folheto, bastante raro, intitulava-se Defesa da Carta Encíclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal. «É um protesto contra a falta de lógica com que as folhas liberais atacavam o Syllabus – apressa-se a elucidar Antero –, declarando-se ao mesmo tempo fiéis católicos». O autor, prossegue ele, «glorificando o Pontífice pela beleza da sua atitude intransigente em face do século, via nessa intransigência uma lei histórica, rezava respeitosamente um De profundis sobre a Igreja condenada pela mesma grandeza de sua instituição a cair inteira mas não a render-se, e atacava a hipocrisia dos jornais liberais». Hoje Antero teria que verberar os que procuram adaptar a Igreja à Democracia [= tirania dos partidos], e ainda, em virtude de Proudhon, seu mestre, o qual se não fartou de afirmar que a questão entre a Igreja e a Revolução não admite evasivas.
À primeira vista, Antero surge-nos como um sacrificado pelo espírito de análise e no seu pessimismo filosófico quase de antemão se contém o desfecho trágico que o levou ao suicídio. Não é outra, na verdade, a opinião corrente. Mas quem sobre o precioso volume Cartas de Antero de Quental se debruçar para a estranha psicologia do poeta, há-de encontrar nele, bem pelo contrário, uma inteligência sedenta de certezas e de modo nenhum disposta à solução desgraçada, com que por suas próprias mãos se atirou para a sepultura. Primeiro que ninguém, Antero repele a qualificação de budista, que no prefácio dos Sonetos Oliveira Martins lhe aplica (Carta autobiográfica). E em mais de uma carta nós o encontramos filiando o desalento contemporâneo nos excessos do criticismo, no intelectualismo agudo de uma época, que no caso doloroso de Amiel se encarnava dolorosamente."
"eu apontei como decisiva no espírito de Antero a influência do filosofismo semi-orgânico de Proudhon. O primeiro folheto de Antero, datado de 1864, demonstra-o claramente e dá-nos a nós, integralistas, o prazer de possuirmos na defesa do Syllabus um exemplo bastante anterior ao de Charles Maurras. Charles Maurras, sem ser um crente, defende, é certo, o admirável documento pontifício como um acto de sabedoria eterna, de cujo regimento e guarda depende a boa saúde da sociedade. Antero, também sem ser um crente, não defendia o Syllabus, rigorosamente. Compreendia-o como um dever respeitável da Igreja, incompatibilizada com o século e destinada a desaparecer, vítima dessa incompatibilidade, mas nobremente, em harmonia com o seu património moral. O folheto, bastante raro, intitulava-se Defesa da Carta Encíclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal. «É um protesto contra a falta de lógica com que as folhas liberais atacavam o Syllabus – apressa-se a elucidar Antero –, declarando-se ao mesmo tempo fiéis católicos». O autor, prossegue ele, «glorificando o Pontífice pela beleza da sua atitude intransigente em face do século, via nessa intransigência uma lei histórica, rezava respeitosamente um De profundis sobre a Igreja condenada pela mesma grandeza de sua instituição a cair inteira mas não a render-se, e atacava a hipocrisia dos jornais liberais». Hoje Antero teria que verberar os que procuram adaptar a Igreja à Democracia [= tirania dos partidos], e ainda, em virtude de Proudhon, seu mestre, o qual se não fartou de afirmar que a questão entre a Igreja e a Revolução não admite evasivas.
À primeira vista, Antero surge-nos como um sacrificado pelo espírito de análise e no seu pessimismo filosófico quase de antemão se contém o desfecho trágico que o levou ao suicídio. Não é outra, na verdade, a opinião corrente. Mas quem sobre o precioso volume Cartas de Antero de Quental se debruçar para a estranha psicologia do poeta, há-de encontrar nele, bem pelo contrário, uma inteligência sedenta de certezas e de modo nenhum disposta à solução desgraçada, com que por suas próprias mãos se atirou para a sepultura. Primeiro que ninguém, Antero repele a qualificação de budista, que no prefácio dos Sonetos Oliveira Martins lhe aplica (Carta autobiográfica). E em mais de uma carta nós o encontramos filiando o desalento contemporâneo nos excessos do criticismo, no intelectualismo agudo de uma época, que no caso doloroso de Amiel se encarnava dolorosamente."
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