As Eleições (1878)
J. P. Oliveira Martins
... o político [...] pede os votos. Umas vezes traz dinheiro, outras seduções. Agora compra, logo incendeia. Um dispõe da autoridade, outro agarra-se à demagogia. Um pede tudo às influências, outro promete as idades de ouro da República. Este corrompe com ouro, aquele com tentações. Dos eleitores, uns satisfazem-se com o preço que lhes pagam, outros, cheios de gula, ambicionam futuros doirados.
...
Dominada pela intriga e pelo dinheiro, a Urna perverte o princípio da representação; e falseada a representação, corrompida e doente, os bons espíritos afastam-se dela, como se afasta de uma coisa repugnante quem tem os sentidos apurados.
...
Que as ideias políticas e económicas, ou por outra os partidos, tenham em cortes um lugar eminente, nada mais necessário nem mais justo; mas que as cortes, em vez de reunirem no seu seio todos os interesses, todas as vozes da sociedade, reunam apenas os delegados dos partidos, eis aí o vicio, eis aí o erro, que provém do sistema eleitoral.
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Dominada pela intriga e pelo dinheiro, a Urna perverte o princípio da representação; e falseada a representação, corrompida e doente, os bons espíritos afastam-se dela, como se afasta de uma coisa repugnante quem tem os sentidos apurados.
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Que as ideias políticas e económicas, ou por outra os partidos, tenham em cortes um lugar eminente, nada mais necessário nem mais justo; mas que as cortes, em vez de reunirem no seu seio todos os interesses, todas as vozes da sociedade, reunam apenas os delegados dos partidos, eis aí o vicio, eis aí o erro, que provém do sistema eleitoral.
As ideias que exponho ao público neste opúsculo já por vezes e verbalmente as tinha exposto a pessoas de elevado critério, larga experiência política e provados conhecimentos. O acolhimento e meditada aprovação com que foram recebidas incitaram-me a dar-lhes circulação mais geral.
Esperava o desdenhoso sorrir dos que tomam como paradoxos tudo o que sai da estreita esfera da rotina constitucional: encontrei coisa diversa em muitos conservadores e em bastantes demagogos das minhas relações. Decidi-me, pois, a publicar num rápido esboço o sistema das minhas ideias sobre a Representação do poder político. Não lhe dei, nem penso dar-lhe o desenvolvimento conveniente, porque é provável que o público português acolha o plano de um modo inteiramente diverso: isto é, com aquele soberano desdém dos que possuem a consciência de quanto valem.
I
Coisa alguma demonstra melhor do que as eleições o conflito permanente entre o modo real de sentir dos cidadãos e o modo convencional que faz com que à manifestação dos interesses e ambições de uma minoria mínima se chame nos jornais expressão da opinião publica.
O público português não tem opinião política, nem partido. O interesse, quase sempre nas suas formas mais elementares, muitas vezes nos seus aspetos mais abjetos, é o único propulsor da máquina eleitoral. Aqueles a quem nenhum interesse chama a votar, não votam; os que votam, fazem-no com um sentimento de tédio e de indiferença, e como quem tem a consciência de praticar uma ação antipática.
Blasonar-se de não votar é coisa que se ouve a cada instante. Abster-se, passa por um ato nobre. Os que não têm política, confessam-no com orgulho. Muitos dos que a têm chamam galés à profissão, e dizendo-o, ou exprimem o sentimento de nojo que se lhes levanta na consciência, ou afetam partilhar uma repugnância que a inteligência lhes diz ser fundada.
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As eleições são um ato condenado. Quem as não verbera, escarnece-as. Quando não provocam anátemas, provocam chascos: duas formas de reprovação, idênticas em si, mas expressas por modos que diferem com os temperamentos. A máxima parte das vezes não provocam, porém, senão a indiferença com que quase toda a gente olha para a miséria e para a imundície.
Eu não tenho a pretensão de vir dizer o que as eleições foram desta vez, além de tudo, porque basta para isso ler os jornais desde há três meses. Não é mister acrescentar uma vírgula ao que todos, - os do governo e os da oposição, - disseram. Os atos torpes, as veniagas, as simonias, as abjeções contadas durante o último trimestre, umas vezes com interessada indignação, outras com a naturalidade mais inocente, dão ensino bastante. Todos os palavrões dos advogados, todas as fórmulas secas dos juristas, vieram a dar unicamente nisto: uma feira.
De aqui eu, com muito boa gente, concluo uma coisa só, e é que progredimos no sentido me que vão levadas as sociedades nossas contemporâneas. O primeiro marco deste progresso viu-se quando há anos se generalizou em Lisboa, no Porto e nas províncias, com geral aplauso, o jogo das bolsas, a febre da especulação e depois a consequente moléstia das falências, eufemismo com que passou em moda chamar a certa espécie de roubos. O segundo viu-se agora que o dinheiro resolveu decididamente entrar sem rebuço na cena política. Este é o traço particularmente novo das eleições deste ano, e a meu ver o sintoma social mais grave. A influencia dos proprietários rurais viciava já o princípio da representação, mas a abdicação dos trabalhadores do campo é ao menos inconsciente e filha da ignorância. A influência dos capitalistas das cidades tem um caracter diverso, porque a abdicação dos cidadãos é perfeitamente consciente.
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Essa abdicação é imoral decerto, porque ninguém pode vender o brio a dinheiro; mas a principal causa da imoralidade não é ainda a avidez do preço: é a indiferença do povo pelas questões políticas.
Que seja Pedro ou Paulo quem governe, que as leis sejam radicais ou conservadoras, o povo a tudo responde com um desdém absoluto. A sessão de 1878 viu debater-se, ou antes votar-se sem debate, uma lei eleitoral e uma reforma administrativa no meio do silêncio geral da imprensa, ocupada a discutir os caráteres dos políticos, e do povo ocupado a trabalhar e a divertir-se.
Se há um facto indiscutível é este: o povo tem os nervos adormecidos para a política. Ora não há circunstância que mais concorra para tornar graves as questões económicas ou sociais, como usualmente se lhes chama. A mola dessa ordem de questões é o egoísmo; e só quando o espírito popular está arrebatado por um sentimento moral, político ou religioso, é que o egoísmo deixa de o dominar. Como em Portugal a escassez numérica da população fabril não dá às questões sociais o carácter operário que tem nas nações industriais, passou em julgado a opinião de que Portugal não tinha questões sociais.
Como se tais questões se levantassem apenas quando na indústria se declara a guerra entre capitalistas e trabalhadores!
O problema das relações entre o capital e o trabalho, fundo permanente e inevitável de todas as questões do nosso tempo, tanto pode surgir das greves, como da iniquidade do imposto e da prepotência tão corruptora como inepta dos argentários. Entre nós não sairá das greves, mas virá destas outras causas imediatas. Por isso as eleições de 1878 são, a nosso vêr, um importante sintoma.
Vê muito pouco quem não vê que a questão social (para usarmos desta expressão popular) se apresenta hoje sob
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dois aspetos diversos, opostos até certo ponto, mas sintomáticos de uma mesma coisa. Esses dois aspetos são a luta do proletariado e da burguesia, luta principalmente expressa nas greves; — e a desorganização dos costumes bancários, comerciais, industriais e políticos. Se entre nós não há greves que tomem carácter de crise social, há porém dignos representantes e exemplares conspícuos do que lá por fora a especulação desenfreada tem de melhor. Nem nos faltam Philliparts, nem T'Kints, e contamos entre os nossos, mais de um banco de Glasgow. [Oliveira Martins refere-se aqui ao colapso do City Glasgow Bank, em 2 de Outubro de 1878, abrindo uma crise financeira no Reino Unido].
Um bom-homem, cheio de ingenuidade, observaria que para tais casos há bancos de outra espécie nos tribunais e presídios em África; porque esse homem não sabia que são os Philliparts de toda a parte quem socorre os governos. Impotentes para pedir ao imposto somas que ele recusaria, os estadistas vêm diante de si o banqueiro a pedir-lhe que por amor-de-Deus contraia empréstimos. Os empréstimos conciliam por tal forma as conveniências da política e os interesses do banqueiro. Só aquele bom-homem de há pouco supõe ainda que aos Tesouros nacionais sucede o mesmo que a qualquer particular: custar-lhe a obter dinheiro emprestado. Phillipart não abandona o gabinete do ministro, não cessa de lhe oferecer as economias dos seus clientes: ele chegou a dar à republica espanhola, ele deu à Turquia, deu ao Perú, e hoje mesmo continua ainda a dar ao Egipto, quanto o Khediva quer.
Poucas nações tem aproveitado tanto dos seus bons ofícios como nós; e aceitando-os por um lado, e legislando por forma a abrir um largo mercado aos papéis que só passaram pelas mãos dos banqueiros para lhes deixar as luvas convenientes, nós temos chegado ao primoroso estado que todos sentem, quando o não sabem. A nossa questão financeira é uma questão social porque, primeiro, os bens dos morgados, depois os das corporações de mão-morta, depois
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os bens dotais foram transferidos para divida publica. No dia em que ela perigar, periga o pão dos inválidos nos asilos, e a vida dos enfermos nos hospitais, além do bem-estar de centenas de milhares de famílias.
Os podestàs da propriedade e da banca jamais consentirão em pagar 3 ou 4 mil contos de impostos, e a pequena propriedade, o consumo, o trabalho, não podem pagá-los ou não querem, e fazem muito bem em não querer. Os empresários da governação pública não podem arcar nem com a aristocracia nova, nem com o povo; nem podem pedir mais ao imposto, nem parar na execução do programa de obras públicas, que além de indispensáveis em si, são já também um instrumento indispensável para manter a influência dos estadistas.
Quereis a questão social mais grave, mais profunda? Ainda acreditais que sem greves não há socialismo? Esperai, pois, o dia em que nós fatalmente havemos de fazer o que fez o Egipto, o que fez a Turquia, o que fez a Espanha. Toda a gente sabe que num período mais ou menos longo será forçoso fazer bancarrota, uma vez que todos sabemos que é impossível a todos os partidos obter da nação 3 ou 4000 contos de novos impostos.
Este será o caminho por onde nós chegaremos à crise, se um milagre, - improvável como todos, — de bom-senso e coragem não mudar o rumo da nossa derrota.
O fogo que mina as sociedades modernas nos dias de hoje é ainda a chama do vulcão de 1793. O mal-estar de numerosas plebes e a desmoralização das altas-classes, foram no fim do século passado e serão no fim do atual as causas da explosão. É surdo quem não ouve o rugir da tormenta, e cego quem não vê no fanatismo e na criminosa cegueira dos regicidas de hoje, na torpe devassidão e na desenfreada cobiça das burguesias modernas, os mesmos bramidos que saiam do coração das plebes armando o braço
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de um Damiens contra o monarca, então primeiro em tudo, na luxuria dos costumes e na embriaguez da opulência. [itálico acrescentado]
Não é, porém, o fim especial deste opúsculo o caracterizar a questão social, pois que nos propomos apenas demonstrar que lugar tem e a que causas deve atribuir-se a desorganização da máquina eleitoral entre nós, e, pode dizer-se, em toda a parte.
A convicção de uma ruína quase certa, e da incapacidade dos partidos para a evitar, é a causa imediata da indiferença do nosso povo.
Essa indiferença, contudo, tem uma razão de ser mais profunda que, nem por escapar ao maior numero, deixa de ser verdadeira: é que o culto antigo das fórmulas do liberalismo morreu para todo o sempre. A idolatria da Liberdade acabou, a superstição das fórmulas varreu-se de um modo mais ou menos consciente, mas varreu-se já do espírito de toda agente. O jacobinismo pertence à história das nobres ilusões do espírito humano. «Porque a liberdade é um meio e não um fim: quer-se a liberdade, não para as nações serem livres, mas para serem felizes;» dizia Herculano na Voz do Profeta.
A adoração da Urna é uma das formas mais rudes dessa antiga religião caída. [Nota de rodapé do Autor: Os votos não têm virtude ou valor intrínseco. O facto de se ser representado não é em si benefício, mas apenas um meio de atingir o fim. Esse fim é a segurança das condições que permitem ao cidadão organizar a sua vida, sem mais obstáculos por parte dos seus concidadãos, do que os resultantes dos seus direitos mútuos; — é assegurar a cada cidadão as vantagens da sua atividade justamente exercida. O valor dos meios só deve apreciar-se pela maneira por que preenche nos fins. Um cidadão, nominalmente senhor de todos os meios, é menos livre se conseguir menos o fim, do que outro que o consiga mais, embora com meios incompletos. (Herbert Spencer, A Ciência social.]
A eleição na sua brutalidade numérica é um processo errado. Se o resultado aritmético não está subordinado à sorte,
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está-o decerto o resultado moral. Fazer um amálgama de elementos sociais indiferentes uns, antipáticos outros, é sujeitar a eleição à sorte. A eleição é de facto uma lotaria, e da Urna sai apenas uma sorte-grande.
Na Idade Media havia uma forma de julgamento chamada o Juízo-de-Deus; o acusado sujeitava-se a provas tão racionais como esta: pegar num ferro em brasa, e só quando se não queimava o absolviam. Não riais, na vossa bazófia moderna, deste processo. A Urna opera da mesma maneira. Todos por força se haviam de queimar! dir-vos-eis que sabeis física. Pois nem todos se queimavam; nem a instituição era absurda, porque nunca o espírito coletivo inventou uma tolice, nunca por séculos os homens praticaram disparates.
O Juízo-de-Deus é como a Vox populi. Essa voz também pode sair, e também sai da Urna; mas para que o povo na sua unidade ideal fale, é mister que esteja arrebatado por um entusiasmo, dominado por um sentimento vivo. A Urna dará então a voz coletiva, por isso que tal voz existe, real, viva, positivamente. É então que a Vox populi fala diversas línguas: são as agitações, são as eleições, são afinal as revoluções. Não vás pedir-lhe opiniões, não lhe perguntes porque ou para que quer. Se lhe ouvisses as respostas, ririas as mais das vezes, tão absurdas, tão exóticas, tão ridículas elas são! Pergunta-lhe, porém, o que quer, e saberá dizer-to. Domina-a e arrasta-a alguma coisa superior a ela própria e é impelida por uma fatalidade. Chama-se legião, e nesta palavra tem a unidade do querer.
De 1820 a 1834 a sociedade portuguesa, ainda antiga, viveu mais ou menos nesse estado de agitação febril. A Liberdade era o Deus ignoto que acendia em muitos peitos os fervores místicos, que dava a unidade e a coesão ideal ao povo, que o levava a cometer heroísmos, por uma santa ilusão, por um entusiasmo hoje apagado. De dogma,
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a liberdade passou a ser um princípio, e em vez de a levantarem num trono de lumes, os homens submetem-na hoje ao escalpelo da crítica.
Ora desde que o espírito crítico preside à elaboração do pensamento humano, desde que a complexidade das coisas começa a definir-se e a aparecer no seu conjunto orgânico, em vez de se erguer numa totalidade una e indefinida; desde que, por outro lado, e numa outra esfera correspondente, os interesses práticos ocupam o lugar da ideologia, a Vox populi, tem de ceder o lugar à Opinião.
Se depois, na luta entre a ideologia radical dos setembristas e o positivismo do partido cartista, a Urna primeiro, as armas depois, exprimiam talvez ainda (quando não esmagadas pela força) a voz do povo, era porque então o povo tinha voz. Pensar que ainda a tem, julgar que duram ainda os antigos entusiasmos e o culto fervente pela Liberdade, é um erro, é uma deplorável cegueira.
E como a Urna, se pode exprimir a voz do povo, não pode exprimir a opinião pública, por ser um instrumento grosseiro de mais para tanto, a Urna deu-nos noutro tempo os tribunos e os patriarcas da ideologia liberal, mas não pode dar-nos hoje senão o que a sociedade política atual tem de pior. Dominada pela intriga e pelo dinheiro, a Urna perverte o princípio da representação; e falseada a representação, corrompida e doente, os bons espíritos afastam-se dela, como se afasta de uma coisa repugnante quem tem os sentidos apurados. Os melhores dos moços, homens ilustres que a nação vê nas escolas, no exército, e nas profissões livres, abandonam sistematicamente as eleições ao seu triste e obscuro fado.
Pretendendo fundar a origem da autoridade na Opinião, e supondo que a Urna a pode manifestar, o constitucionalismo liberal lavrou a sua sentença condenatória. A Urna funciona bem ou mal, de volta com as revoluções, en-
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quanto há um sentimento coletivo. Suceda encontrar-se Portugal lançado amanhã numa luta em que se empenhe ou a monarquia, ou a religião ou a independência, e acaso vereis congregarem-se os elementos hoje em desordem. O plebiscito poderá ser que dê a voz unânime de cada partido, e os atos abjetos diminuirão ou desaparecerão.
Diante de uma causa política geral, calam-se muitas vezes os interesses, adiam-se as questões sociais. Essas crises, porém, em que só se pode apelar, para a voz do povo, origem de toda a autoridade, são cada dia menos próprias e menos adequadas à vida industrial e moral das sociedades; e que o não fossem, como verdadeiras exceções, jamais deveriam servir de ponto de partida para a construção das instituições.
Fora de tais momentos não há nem pode haver sentimento ou voz popular, porque as questões ordinárias, e ed cada dia, as questões praticas e plácidas, sobre aa quais a opinião tem de resolver, não se decidem por esse processo. Não são impressões nem sentimentos que podem esclarecer um problema económico ou administrativo: as coisas e técnicas só se debatem cientificamente, e a administração publica é uma ciência complexa da qual todas são subsidiarias. Ora as instituições têm ou devem ter por fim tornar regular e sábia a administração, e não, subordinada aos caprichos e aos contrassensos da voz do povo, que afinal é apenas a voz dos políticos.
A opinião resulta do debate entre os dados e conhecimentos técnicos, e por isso não pode sair da contagem dos votos sem valor nem alcance especial, que todos às massas deitam na Urna. Um ministério adotou um certo sistema de impostos. Não há imposto que não vá ferir alguém. Daí a agitação. Como se pleiteia o caso perante um público incompetente (qual é a maioria dos eleitores), os partidários buscam excitar a paixão em vez de esclarecer o
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entendimento; vergam-se todas as armas, falseiam-se todas as coisas; e cada qual diz na sua folha, para o público, heresias que não proferiria no meio dos seus, no conselho escolar se é professor, na Academia se lá o meteram. Resulta daí que se o pretendente consegue excitar os eleitores a ponto de vencer o adversário, vai para o lugar dele fazer exatamente o mesmo que na véspera condenara.
Este é o primeiro vício que o facto de atribuir à Urna a resolução de coisas que competem à opinião, traz consigo. O abismo chama o abismo. Depois de explorar o público, o político apela para a exploração da calúnia, ou da difamação. Se os nervos do povo se não comovem com os ataques aos atos, procede-se aos ataques às pessoas. E o descrédito das leis precede assim o descrédito pessoal dos legisladores: trocam-se nomes de ladrões, assassinos, adúlteros, incestuosos, como moeda corrente, perante o povo que vai por tal forma enchendo-se de edificação. Quando isto não basta, e o temperamento refratário das massas a tudo resiste já, entra em cena o dinheiro, sob todas as formas, e a Opinião da Urna resulta de uma soma de preços.
Por tal forma as Eleições são o grande propulsor da corrupção. Como tudo depende desse ato a que se dá uma falsa importância, todas as coisas se subordinam ao resultado dele.
Periodicamente aparece perante a turba dos eleitores, o político. Vem descoberto, pede os votos. Umas vezes traz dinheiro, outras seduções. Agora compra, logo incendeia. Um dispõe da autoridade, outro agarra-se à demagogia. Um pede tudo às influencias, outro promete as idades de ouro da República. Este corrompe com ouro, aquele com tentações. Dos eleitores, uns satisfazem-se com o preço que lhes pagam, outros, cheios de gula, ambicionam futuros doirados. A sociedade acha-se de tal modo entre dois
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escolhos, o da anarquia e o da podridão, e a Nau-do-Estado, com proa na Urna, vai constantemente esbarrando num ou noutro dos recifes.
O público português não tem opinião política, nem partido. O interesse, quase sempre nas suas formas mais elementares, muitas vezes nos seus aspetos mais abjetos, é o único propulsor da máquina eleitoral. Aqueles a quem nenhum interesse chama a votar, não votam; os que votam, fazem-no com um sentimento de tédio e de indiferença, e como quem tem a consciência de praticar uma ação antipática.
Blasonar-se de não votar é coisa que se ouve a cada instante. Abster-se, passa por um ato nobre. Os que não têm política, confessam-no com orgulho. Muitos dos que a têm chamam galés à profissão, e dizendo-o, ou exprimem o sentimento de nojo que se lhes levanta na consciência, ou afetam partilhar uma repugnância que a inteligência lhes diz ser fundada.
[ 8 ]
As eleições são um ato condenado. Quem as não verbera, escarnece-as. Quando não provocam anátemas, provocam chascos: duas formas de reprovação, idênticas em si, mas expressas por modos que diferem com os temperamentos. A máxima parte das vezes não provocam, porém, senão a indiferença com que quase toda a gente olha para a miséria e para a imundície.
Eu não tenho a pretensão de vir dizer o que as eleições foram desta vez, além de tudo, porque basta para isso ler os jornais desde há três meses. Não é mister acrescentar uma vírgula ao que todos, - os do governo e os da oposição, - disseram. Os atos torpes, as veniagas, as simonias, as abjeções contadas durante o último trimestre, umas vezes com interessada indignação, outras com a naturalidade mais inocente, dão ensino bastante. Todos os palavrões dos advogados, todas as fórmulas secas dos juristas, vieram a dar unicamente nisto: uma feira.
De aqui eu, com muito boa gente, concluo uma coisa só, e é que progredimos no sentido me que vão levadas as sociedades nossas contemporâneas. O primeiro marco deste progresso viu-se quando há anos se generalizou em Lisboa, no Porto e nas províncias, com geral aplauso, o jogo das bolsas, a febre da especulação e depois a consequente moléstia das falências, eufemismo com que passou em moda chamar a certa espécie de roubos. O segundo viu-se agora que o dinheiro resolveu decididamente entrar sem rebuço na cena política. Este é o traço particularmente novo das eleições deste ano, e a meu ver o sintoma social mais grave. A influencia dos proprietários rurais viciava já o princípio da representação, mas a abdicação dos trabalhadores do campo é ao menos inconsciente e filha da ignorância. A influência dos capitalistas das cidades tem um caracter diverso, porque a abdicação dos cidadãos é perfeitamente consciente.
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Essa abdicação é imoral decerto, porque ninguém pode vender o brio a dinheiro; mas a principal causa da imoralidade não é ainda a avidez do preço: é a indiferença do povo pelas questões políticas.
Que seja Pedro ou Paulo quem governe, que as leis sejam radicais ou conservadoras, o povo a tudo responde com um desdém absoluto. A sessão de 1878 viu debater-se, ou antes votar-se sem debate, uma lei eleitoral e uma reforma administrativa no meio do silêncio geral da imprensa, ocupada a discutir os caráteres dos políticos, e do povo ocupado a trabalhar e a divertir-se.
Se há um facto indiscutível é este: o povo tem os nervos adormecidos para a política. Ora não há circunstância que mais concorra para tornar graves as questões económicas ou sociais, como usualmente se lhes chama. A mola dessa ordem de questões é o egoísmo; e só quando o espírito popular está arrebatado por um sentimento moral, político ou religioso, é que o egoísmo deixa de o dominar. Como em Portugal a escassez numérica da população fabril não dá às questões sociais o carácter operário que tem nas nações industriais, passou em julgado a opinião de que Portugal não tinha questões sociais.
Como se tais questões se levantassem apenas quando na indústria se declara a guerra entre capitalistas e trabalhadores!
O problema das relações entre o capital e o trabalho, fundo permanente e inevitável de todas as questões do nosso tempo, tanto pode surgir das greves, como da iniquidade do imposto e da prepotência tão corruptora como inepta dos argentários. Entre nós não sairá das greves, mas virá destas outras causas imediatas. Por isso as eleições de 1878 são, a nosso vêr, um importante sintoma.
Vê muito pouco quem não vê que a questão social (para usarmos desta expressão popular) se apresenta hoje sob
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dois aspetos diversos, opostos até certo ponto, mas sintomáticos de uma mesma coisa. Esses dois aspetos são a luta do proletariado e da burguesia, luta principalmente expressa nas greves; — e a desorganização dos costumes bancários, comerciais, industriais e políticos. Se entre nós não há greves que tomem carácter de crise social, há porém dignos representantes e exemplares conspícuos do que lá por fora a especulação desenfreada tem de melhor. Nem nos faltam Philliparts, nem T'Kints, e contamos entre os nossos, mais de um banco de Glasgow. [Oliveira Martins refere-se aqui ao colapso do City Glasgow Bank, em 2 de Outubro de 1878, abrindo uma crise financeira no Reino Unido].
Um bom-homem, cheio de ingenuidade, observaria que para tais casos há bancos de outra espécie nos tribunais e presídios em África; porque esse homem não sabia que são os Philliparts de toda a parte quem socorre os governos. Impotentes para pedir ao imposto somas que ele recusaria, os estadistas vêm diante de si o banqueiro a pedir-lhe que por amor-de-Deus contraia empréstimos. Os empréstimos conciliam por tal forma as conveniências da política e os interesses do banqueiro. Só aquele bom-homem de há pouco supõe ainda que aos Tesouros nacionais sucede o mesmo que a qualquer particular: custar-lhe a obter dinheiro emprestado. Phillipart não abandona o gabinete do ministro, não cessa de lhe oferecer as economias dos seus clientes: ele chegou a dar à republica espanhola, ele deu à Turquia, deu ao Perú, e hoje mesmo continua ainda a dar ao Egipto, quanto o Khediva quer.
Poucas nações tem aproveitado tanto dos seus bons ofícios como nós; e aceitando-os por um lado, e legislando por forma a abrir um largo mercado aos papéis que só passaram pelas mãos dos banqueiros para lhes deixar as luvas convenientes, nós temos chegado ao primoroso estado que todos sentem, quando o não sabem. A nossa questão financeira é uma questão social porque, primeiro, os bens dos morgados, depois os das corporações de mão-morta, depois
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os bens dotais foram transferidos para divida publica. No dia em que ela perigar, periga o pão dos inválidos nos asilos, e a vida dos enfermos nos hospitais, além do bem-estar de centenas de milhares de famílias.
Os podestàs da propriedade e da banca jamais consentirão em pagar 3 ou 4 mil contos de impostos, e a pequena propriedade, o consumo, o trabalho, não podem pagá-los ou não querem, e fazem muito bem em não querer. Os empresários da governação pública não podem arcar nem com a aristocracia nova, nem com o povo; nem podem pedir mais ao imposto, nem parar na execução do programa de obras públicas, que além de indispensáveis em si, são já também um instrumento indispensável para manter a influência dos estadistas.
Quereis a questão social mais grave, mais profunda? Ainda acreditais que sem greves não há socialismo? Esperai, pois, o dia em que nós fatalmente havemos de fazer o que fez o Egipto, o que fez a Turquia, o que fez a Espanha. Toda a gente sabe que num período mais ou menos longo será forçoso fazer bancarrota, uma vez que todos sabemos que é impossível a todos os partidos obter da nação 3 ou 4000 contos de novos impostos.
Este será o caminho por onde nós chegaremos à crise, se um milagre, - improvável como todos, — de bom-senso e coragem não mudar o rumo da nossa derrota.
O fogo que mina as sociedades modernas nos dias de hoje é ainda a chama do vulcão de 1793. O mal-estar de numerosas plebes e a desmoralização das altas-classes, foram no fim do século passado e serão no fim do atual as causas da explosão. É surdo quem não ouve o rugir da tormenta, e cego quem não vê no fanatismo e na criminosa cegueira dos regicidas de hoje, na torpe devassidão e na desenfreada cobiça das burguesias modernas, os mesmos bramidos que saiam do coração das plebes armando o braço
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de um Damiens contra o monarca, então primeiro em tudo, na luxuria dos costumes e na embriaguez da opulência. [itálico acrescentado]
Não é, porém, o fim especial deste opúsculo o caracterizar a questão social, pois que nos propomos apenas demonstrar que lugar tem e a que causas deve atribuir-se a desorganização da máquina eleitoral entre nós, e, pode dizer-se, em toda a parte.
A convicção de uma ruína quase certa, e da incapacidade dos partidos para a evitar, é a causa imediata da indiferença do nosso povo.
Essa indiferença, contudo, tem uma razão de ser mais profunda que, nem por escapar ao maior numero, deixa de ser verdadeira: é que o culto antigo das fórmulas do liberalismo morreu para todo o sempre. A idolatria da Liberdade acabou, a superstição das fórmulas varreu-se de um modo mais ou menos consciente, mas varreu-se já do espírito de toda agente. O jacobinismo pertence à história das nobres ilusões do espírito humano. «Porque a liberdade é um meio e não um fim: quer-se a liberdade, não para as nações serem livres, mas para serem felizes;» dizia Herculano na Voz do Profeta.
A adoração da Urna é uma das formas mais rudes dessa antiga religião caída. [Nota de rodapé do Autor: Os votos não têm virtude ou valor intrínseco. O facto de se ser representado não é em si benefício, mas apenas um meio de atingir o fim. Esse fim é a segurança das condições que permitem ao cidadão organizar a sua vida, sem mais obstáculos por parte dos seus concidadãos, do que os resultantes dos seus direitos mútuos; — é assegurar a cada cidadão as vantagens da sua atividade justamente exercida. O valor dos meios só deve apreciar-se pela maneira por que preenche nos fins. Um cidadão, nominalmente senhor de todos os meios, é menos livre se conseguir menos o fim, do que outro que o consiga mais, embora com meios incompletos. (Herbert Spencer, A Ciência social.]
A eleição na sua brutalidade numérica é um processo errado. Se o resultado aritmético não está subordinado à sorte,
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está-o decerto o resultado moral. Fazer um amálgama de elementos sociais indiferentes uns, antipáticos outros, é sujeitar a eleição à sorte. A eleição é de facto uma lotaria, e da Urna sai apenas uma sorte-grande.
Na Idade Media havia uma forma de julgamento chamada o Juízo-de-Deus; o acusado sujeitava-se a provas tão racionais como esta: pegar num ferro em brasa, e só quando se não queimava o absolviam. Não riais, na vossa bazófia moderna, deste processo. A Urna opera da mesma maneira. Todos por força se haviam de queimar! dir-vos-eis que sabeis física. Pois nem todos se queimavam; nem a instituição era absurda, porque nunca o espírito coletivo inventou uma tolice, nunca por séculos os homens praticaram disparates.
O Juízo-de-Deus é como a Vox populi. Essa voz também pode sair, e também sai da Urna; mas para que o povo na sua unidade ideal fale, é mister que esteja arrebatado por um entusiasmo, dominado por um sentimento vivo. A Urna dará então a voz coletiva, por isso que tal voz existe, real, viva, positivamente. É então que a Vox populi fala diversas línguas: são as agitações, são as eleições, são afinal as revoluções. Não vás pedir-lhe opiniões, não lhe perguntes porque ou para que quer. Se lhe ouvisses as respostas, ririas as mais das vezes, tão absurdas, tão exóticas, tão ridículas elas são! Pergunta-lhe, porém, o que quer, e saberá dizer-to. Domina-a e arrasta-a alguma coisa superior a ela própria e é impelida por uma fatalidade. Chama-se legião, e nesta palavra tem a unidade do querer.
De 1820 a 1834 a sociedade portuguesa, ainda antiga, viveu mais ou menos nesse estado de agitação febril. A Liberdade era o Deus ignoto que acendia em muitos peitos os fervores místicos, que dava a unidade e a coesão ideal ao povo, que o levava a cometer heroísmos, por uma santa ilusão, por um entusiasmo hoje apagado. De dogma,
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a liberdade passou a ser um princípio, e em vez de a levantarem num trono de lumes, os homens submetem-na hoje ao escalpelo da crítica.
Ora desde que o espírito crítico preside à elaboração do pensamento humano, desde que a complexidade das coisas começa a definir-se e a aparecer no seu conjunto orgânico, em vez de se erguer numa totalidade una e indefinida; desde que, por outro lado, e numa outra esfera correspondente, os interesses práticos ocupam o lugar da ideologia, a Vox populi, tem de ceder o lugar à Opinião.
Se depois, na luta entre a ideologia radical dos setembristas e o positivismo do partido cartista, a Urna primeiro, as armas depois, exprimiam talvez ainda (quando não esmagadas pela força) a voz do povo, era porque então o povo tinha voz. Pensar que ainda a tem, julgar que duram ainda os antigos entusiasmos e o culto fervente pela Liberdade, é um erro, é uma deplorável cegueira.
E como a Urna, se pode exprimir a voz do povo, não pode exprimir a opinião pública, por ser um instrumento grosseiro de mais para tanto, a Urna deu-nos noutro tempo os tribunos e os patriarcas da ideologia liberal, mas não pode dar-nos hoje senão o que a sociedade política atual tem de pior. Dominada pela intriga e pelo dinheiro, a Urna perverte o princípio da representação; e falseada a representação, corrompida e doente, os bons espíritos afastam-se dela, como se afasta de uma coisa repugnante quem tem os sentidos apurados. Os melhores dos moços, homens ilustres que a nação vê nas escolas, no exército, e nas profissões livres, abandonam sistematicamente as eleições ao seu triste e obscuro fado.
Pretendendo fundar a origem da autoridade na Opinião, e supondo que a Urna a pode manifestar, o constitucionalismo liberal lavrou a sua sentença condenatória. A Urna funciona bem ou mal, de volta com as revoluções, en-
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quanto há um sentimento coletivo. Suceda encontrar-se Portugal lançado amanhã numa luta em que se empenhe ou a monarquia, ou a religião ou a independência, e acaso vereis congregarem-se os elementos hoje em desordem. O plebiscito poderá ser que dê a voz unânime de cada partido, e os atos abjetos diminuirão ou desaparecerão.
Diante de uma causa política geral, calam-se muitas vezes os interesses, adiam-se as questões sociais. Essas crises, porém, em que só se pode apelar, para a voz do povo, origem de toda a autoridade, são cada dia menos próprias e menos adequadas à vida industrial e moral das sociedades; e que o não fossem, como verdadeiras exceções, jamais deveriam servir de ponto de partida para a construção das instituições.
Fora de tais momentos não há nem pode haver sentimento ou voz popular, porque as questões ordinárias, e ed cada dia, as questões praticas e plácidas, sobre aa quais a opinião tem de resolver, não se decidem por esse processo. Não são impressões nem sentimentos que podem esclarecer um problema económico ou administrativo: as coisas e técnicas só se debatem cientificamente, e a administração publica é uma ciência complexa da qual todas são subsidiarias. Ora as instituições têm ou devem ter por fim tornar regular e sábia a administração, e não, subordinada aos caprichos e aos contrassensos da voz do povo, que afinal é apenas a voz dos políticos.
A opinião resulta do debate entre os dados e conhecimentos técnicos, e por isso não pode sair da contagem dos votos sem valor nem alcance especial, que todos às massas deitam na Urna. Um ministério adotou um certo sistema de impostos. Não há imposto que não vá ferir alguém. Daí a agitação. Como se pleiteia o caso perante um público incompetente (qual é a maioria dos eleitores), os partidários buscam excitar a paixão em vez de esclarecer o
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entendimento; vergam-se todas as armas, falseiam-se todas as coisas; e cada qual diz na sua folha, para o público, heresias que não proferiria no meio dos seus, no conselho escolar se é professor, na Academia se lá o meteram. Resulta daí que se o pretendente consegue excitar os eleitores a ponto de vencer o adversário, vai para o lugar dele fazer exatamente o mesmo que na véspera condenara.
Este é o primeiro vício que o facto de atribuir à Urna a resolução de coisas que competem à opinião, traz consigo. O abismo chama o abismo. Depois de explorar o público, o político apela para a exploração da calúnia, ou da difamação. Se os nervos do povo se não comovem com os ataques aos atos, procede-se aos ataques às pessoas. E o descrédito das leis precede assim o descrédito pessoal dos legisladores: trocam-se nomes de ladrões, assassinos, adúlteros, incestuosos, como moeda corrente, perante o povo que vai por tal forma enchendo-se de edificação. Quando isto não basta, e o temperamento refratário das massas a tudo resiste já, entra em cena o dinheiro, sob todas as formas, e a Opinião da Urna resulta de uma soma de preços.
Por tal forma as Eleições são o grande propulsor da corrupção. Como tudo depende desse ato a que se dá uma falsa importância, todas as coisas se subordinam ao resultado dele.
Periodicamente aparece perante a turba dos eleitores, o político. Vem descoberto, pede os votos. Umas vezes traz dinheiro, outras seduções. Agora compra, logo incendeia. Um dispõe da autoridade, outro agarra-se à demagogia. Um pede tudo às influencias, outro promete as idades de ouro da República. Este corrompe com ouro, aquele com tentações. Dos eleitores, uns satisfazem-se com o preço que lhes pagam, outros, cheios de gula, ambicionam futuros doirados. A sociedade acha-se de tal modo entre dois
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escolhos, o da anarquia e o da podridão, e a Nau-do-Estado, com proa na Urna, vai constantemente esbarrando num ou noutro dos recifes.
II
Se, portanto, no ordinário modo de ser das sociedades contemporâneas houvesse um sentimento de tal modo elevado que fosse comum a todos os homens e apagasse as diferenças de interesses que os dividem entre si e os isolam; — se uma ideia religiosa ou cívica dominasse por tal forma os indivíduos que perante essa causa maior eles esquecessem todos os motivos de ordem secundaria que usualmente presidem às decisões dos homens, e lhes determinam os atos da vontade; - poderia com razão supor-se que a soma dos votos individuais exprimisse o pensamento ou a opinião coletiva. Apagadas todas as diferenças, perante a dedicação religiosa ou cívica, os votos traduziriam na sua pureza o verdadeiro querer do povo.
As constituições emanadas das doutrinas de direito público em vigor no princípio deste século e inspiradas pelo culto da Liberdade, religião criada pelo naturalismo moderno, supõem que de facto o amor da causa pública ou civismo impera no espírito do povo; e é desta falsa hipótese que provém todos os vícios e erros da organização política. Essa maquina inteira assenta sobre um equívoco, e é por isso que a política nunca foi tanto como é hoje uma burla organizada em sistema. Não se atribua, pois, a uma corrupção dos costumes, nem a uma desorganização das ideias morais, que não são em Portugal superiores às do resto da Europa, nem no nosso tempo superiores às das idades que nos precederam, a decadência dos
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costumes políticos. A causa especial e particular desse facto está no vicio das ideias orgânicas do direito público, está no absurdo das disposições constitucionais.
Perante a indiscutível necessidade de delegar a autoridade política, cometida pela filosofia do direito a todos os cidadãos, as constituições liberais emanadas da revolução francesa legislaram o sufrágio e à representação obtida por meio dele chamaram nacional. A análise e a crítica deste primeiro passo no sentido de organizar a democracia bastam para condenar o sistema. Nem o sufrágio é a forma exclusiva e única de obter a representação das forças sociais, embora seja uma dessas formas; nem à representação cabe o nome de nacional porque entre as ideias de nação e de sociedade há uma distancia enorme, e o fim da representação de um povo é principalmente o regimento dos seus negócios, a resolução das suas questões como sociedade, e não a sua afirmação como nação, isto é como unidade política perante as demais nações ou unidades políticas.
Deixemos porém este caminho para chegarmos ao nosso fim, por outro mais acessível do que o da psicologia política.
O erro que fundamentalmente vicia a representação é a suposição de uma igualdade política consagrada perante os altares do civismo; porque tal igualdade é uma utopia enquanto o for a igualdade social, e porque esses altares cívicos estão nus, e o deus que leva o eleitor à urna é apenas o Egoísmo. Sobre a Utilidade assenta de facto a máquina social, e supor que uma abnegação de qualquer ordem a suporta, e obrar e legislar em virtude dessa suposição, é perverter a justa utilidade, e pôr no lugar dos interesses legítimos, interesses corrompidos.
Lamente embora o filósofo ou o moralista a ausência de abnegação cívica: nem por isso os factos deixarão
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de o ser; e uma filosofia mais profunda e menos piegas ou menos retórica mostrará sempre que a utilidade é o principio fundamental da esfera social, o que não quer dizer que seja, como o supunha Bentham, o principio único de todas as esferas do espírito humano.
No momento em que o direito publico desconhece esta realidade e funda as leis sobre princípios ou quiméricos ou estranhos à natureza da sua esfera, sucede o que sucede sempre que os erros dos homens investem de frente com as leis naturais: conseguem apenas desnaturar as coisas, isto é perverte-las.
Quando um homem vai com uma lista entre o polegar e o indicador lança-la na urna, esse homem nesse momento é sobretudo um cidadão; isto é, o membro de uma sociedade na qual ocupa um lugar, exerce uma profissão, vive de certos e determinados interesses: ou é um lavrador ou um trabalhador rural, ou é um fabricante ou um operário, ou é um proprietário ou é um rendeiro, ou é educado ou analfabeto, ou é católico ou ateu, ou é capitalista ou proletário. Seja porém o que for, é sempre uma coisa diversa do cidadão que antes deitou e do que depois dele vai deitar uma outra lista. Ou a lista possui em si e por virtude própria um valor, ou tem apenas o de traduzir graficamente a opinião de quem a deita. Como seria absurdo supor a primeira, resulta que o processo de somar as listas é a infração de um princípio proclamado por Bezout e todos os aritméticos: não podem somar-se quantidades heterogéneas.
Admitamos porém que algum quid misterioso, o deus da Urna, torne um momento homogéneos, perante si, os cidadãos eleitores: valem igualmente todos os votos e no altar das eleições celebra-se o culto da pancrácia. Esse deus ignoto não pode, porém, fazer com que cada qual, na sociedade, deixar de ser o que de facto é; não pode con-
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seguir que os interesses morais e económicos das classes de indivíduos deixem de viver num sistema de antagonismo orgânico. Do seio da urna tem de nascer um deputado, facto que forçosamente diminui o número dos candidatos. Eles são dois apenas por via de regra; demos que sejam tres, que sejam quatro. Quatro homens em oposição poderão traduzir a vontade justa e os interesses legítimos que se opõem como centos ou milhares? Que princípio, que motivo, fundado na utilidade, fará com que ateus e católicos, fabricantes e operários, lavradores e trabalhadores, amos e criados, votem num mesmo candidato? Nenhum; e à falta dele aparecem os motivos fundados em influencias nefastas, em interesses ilegítimos e numa utilidade pessoal exclusiva, coisa diversa da utilidade social ou colectiva, que é a síntese e não a soma das diferentes utilidades individuais.
Suponhamos porém que isto não era assim e que de facto cada molécula social, ou cada grupo de interesses mais ou menos proximamente homogéneos apresentava o seu candidato; suponhamos que num circulo se propunham dez, ou vinte ou trinta indivíduos à deputação. Sucederia o que já sucede hoje desde que o número de candidatos excede o de dois: sair eleito em virtude do princípio das maiorias o representante da minoria! dar a urna o contrário do que se lhe pede! consagrar a lei a sua própria condenação! Num círculo de 10000 eleitores, obteve o candidato A 4000 votos, o B 3000 e o C 3000; concordavam 6000 eleitores em excluir A, ao passo que só 4000 concordavam em o admitir; conclusão positiva: o eleito representa a minoria; — conclusão legal: o eleito é o representante da maioria!
Deste facto resulta que não deve haver, nem realmente há por via de regra, mais de dois candidatos. Em duas cabeças, em dois homens, tem de amalgamar-se, de
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reunir-se, de fundir-se todos os interesses antagónicos do circulo; esse acordo que vinte séculos de historia tormentosa desmente, afirma-o e impõe-o a constituição. Quando a ciência, procedendo racionalmente, e a observação empunhando os factos, afirmam que a vida é uma luta, a sociedade uma arena, a história uma guerra, vem a constituição, painel da misericórdia, cair por sobre tudo isso, nega-lo, refutá-lo, e exigir que tudo ceda ao seu caridoso empenho, que tudo se curve às suas ordens divinas, que todos concordem e se abracem e esqueçam quem são e como vivem e de que vivem, perante a caixa verde de três chaves que tem por nome Urna!
Resultado é que a concórdia obtida é apenas uma burla; que o representante, por isso que devia representar tudo não representa coisa alguma; que o cidadão, reconhecendo a inutilidade social do voto, ou não vota se tem pudor, ou vende o voto se o não tem, ou vota por simpatia, por gratidão, por amizade, para ajudar um amigo ou para servir um protector, vota por tudo, menos pelo motivo para que o voto se fez.
Os dois candidatos são commumente delegados dos dois partidos que disputam o poder, que um tem e que o outro quer; e assim o deputado só legitimamente representa a opinião partidária. Que é essa opinião? que são os partidos? Longas paginas encheriam as respostas a estas perguntas. Convém suprimi-las por via da brevidade e principalmente por via do decoro. Uma só coisa basta afirmar sem provas, por isso que elas estão na consciência de todos: e é que entre os partidos e a sociedade portuguesa, entre uns bandos de especuladores e uma massa de gente laboriosa e nem tão corrompida e obtusa como às vezes se diz, não há pontos de contacto intimo, nem solidariedade.
Sobre cem cidadãos, noventa e nove não têm partido;
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sobre cem cidadãos, portanto, só um é representado em côrtes!
Ora o facto de a máxima parte da gente não ter partido, se imediatamente provém do nojo que os partidos causam, não pode nem deve atribuir-se apenas a tal motivo. Os partidos políticos nascem da diferença que há no modo de ver as questões de direito publico e administrativas, sendo assim como escolas em acção; e a máxima parte da gente, ocupada em funções de natureza diversa, não pode ou não quer estudar direito publico nem economia política, e por isso não tem partido. Que as ideias políticas e económicas, ou por outra os partidos, tenham em cortes um lugar eminente, nada mais necessário nem mais justo; mas que as cortes, em vez de reunirem no seu seio todos os interesses, todas as vozes da sociedade, reunam apenas os delegados dos partidos, eis aí o vicio, eis aí o erro, que provém do sistema eleitoral. Confiados todos os interesses sociais aos partidos, eles tornam-se em bandos, as ideias fogem varridas pela ambição e pela cobiça, e a administração publica fica à mercê das agitações, das revoluções, das bancarrotas, sobretudo à mercê de um lento e mole descair num torpor de corrupção, de indolência, de atrofia, por onde fatalmente se chega à morte. [nota do autor: Subsiste a forma exterior do governo livre, mus interiormente formou-se e cresceu uma realidade que faz com que o governo não seja livre. A familia dos políticos de profissão que entram na vida publica para ganhar dinheiro, que organizam as suas forças e formam a sua tática, torna-se de facto uma classe diretora absolutamente diversa daquela que a constituição se propunha a dar ao país, e movida por interesses de todo em todo diversos dos do público. É mister denunciar incessantemente a adoração dos meios de liberdade que afinal pervertem a liberdade cm si. (Herbert Spencer, A ciência social.)
Ao determinar a origem do voto, a lei partiu da sup-
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posição de indivíduos iguais entre si, e imaginou valores homogéneos; ao determinar as esferas da representação, a lei adoptou os círculos, como se a geografia fosse a única ou mesmo a superior expressão dos elementos de coesão social. O naturalismo que dominava os espíritos no principio deste século, o naturalismo de um Rousseau, de um Bentham, de um Constant, os fundadores do liberalismo parlamentar, obrigava-os a não ver n'uma sociedade o que realmente a constitui, isto é, os seus elementos orgânicos, os quais, se têm raizes na natureza inconsciente, elevam-se acima dela, como as arvores que além de se alimentarem do solo também vivem, pelas folhas, do ar luminoso e livre.
O circulo geográfico é uma miniatura de nação; e todos os antagonismos e todos os conflitos de ideias e de interesses, se reproduzem dentro dele; — entre os eleitores de um circulo geográfico não há pois homogeneidade de pensamento, ao passo que a há viva, real, entre os eleitores de um circulo social, qual seria por exemplo o dos proprietários rurais.
Sem antecipar sobre o plano deste trabalho, é necessário dizer, porém, desde já que não só as classes ou profissões constituem círculos ou esferas de representação social, por isso que nem só elas compõem os diferentes orgãos do corpo de uma sociedade. Os interesses geográficos são interesses reais, e é fora de dúvida que as regiões, ou círculos naturais, apresentam caracteres de solidariedade e autonomia bastantes para exigir uma representação. Tanto isto assim é que há só duas representações legítimas no sistema eleitoral que nos rege: a representação partidária, e a local ou de campanário. [nota do autor: Leia-se a Carta aos Eleitores de Sintra; Herculano, Opúsculos, V. 1º.]
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Desde que se trata de estradas, de caminhos de ferro, de regime de florestas, de portos, ou de regularização do curso das águas, todo o circulo se acha de acordo para querer ou para não querer uma certa cousa. E não há influências mais certas, candidaturas mais firmes, fora das que saem da copa do chapéu do ministro, do que as dos que dão estradas, fontes e sinos aos eleitores. A desorganização da representação chega a perverter até esta espécie que de si é legitima; porque os melhoramentos materiais distribuem-se irregularmente, conforme a tenacidade ou o peso do deputado, e amiúde se vê malbaratar-se o dinheiro em obras demasiadas ou mesmo inúteis, num círculo, faltando as necessárias a outros.
Tais são as consequências do sistema eleitoral; esse sistema trás origem do corpo de ideias constitucionais formuladas no primeiro quartel deste século e desautorizadas em cinquenta anos, tal e tão errado era o princípio que as fez nascer.
O descrédito chegou a um ponto em que os maiores amigos do sistema são hoje os inimigos da liberdade. Os cesaristas são os primeiros defensores do sufrágio universal que a democracia, como partido, não teve ainda a coragem de confessar que é uma burla.
Sobre o sufrágio universal, expressão do sistema eleitoral na sua genuinidade, se apoiou Napoleão III, e quando opinião e interesses já o abandonavam, quando o seu império cheirava já a cadáver, ainda então uma esmagadora maioria o exalçou sobre um trono de ilusões, que a guerra transformou breve em montanha de lodo e sangue. Entre nós é o partido conservador quem funda o sufrágio universal, sem que ninguém o reclame, sem que o povo se agite, pedindo-o: ele bem sabe que de um erro aritmético saem operações rendosas! ele bem sabe que escudar-se com os princípios radicais é o melhor modo
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de conservar a oligarquia dos políticos, rindo-se nas barbas dos doutrinários!
As constituições emanadas das doutrinas de direito público em vigor no princípio deste século e inspiradas pelo culto da Liberdade, religião criada pelo naturalismo moderno, supõem que de facto o amor da causa pública ou civismo impera no espírito do povo; e é desta falsa hipótese que provém todos os vícios e erros da organização política. Essa maquina inteira assenta sobre um equívoco, e é por isso que a política nunca foi tanto como é hoje uma burla organizada em sistema. Não se atribua, pois, a uma corrupção dos costumes, nem a uma desorganização das ideias morais, que não são em Portugal superiores às do resto da Europa, nem no nosso tempo superiores às das idades que nos precederam, a decadência dos
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costumes políticos. A causa especial e particular desse facto está no vicio das ideias orgânicas do direito público, está no absurdo das disposições constitucionais.
Perante a indiscutível necessidade de delegar a autoridade política, cometida pela filosofia do direito a todos os cidadãos, as constituições liberais emanadas da revolução francesa legislaram o sufrágio e à representação obtida por meio dele chamaram nacional. A análise e a crítica deste primeiro passo no sentido de organizar a democracia bastam para condenar o sistema. Nem o sufrágio é a forma exclusiva e única de obter a representação das forças sociais, embora seja uma dessas formas; nem à representação cabe o nome de nacional porque entre as ideias de nação e de sociedade há uma distancia enorme, e o fim da representação de um povo é principalmente o regimento dos seus negócios, a resolução das suas questões como sociedade, e não a sua afirmação como nação, isto é como unidade política perante as demais nações ou unidades políticas.
Deixemos porém este caminho para chegarmos ao nosso fim, por outro mais acessível do que o da psicologia política.
O erro que fundamentalmente vicia a representação é a suposição de uma igualdade política consagrada perante os altares do civismo; porque tal igualdade é uma utopia enquanto o for a igualdade social, e porque esses altares cívicos estão nus, e o deus que leva o eleitor à urna é apenas o Egoísmo. Sobre a Utilidade assenta de facto a máquina social, e supor que uma abnegação de qualquer ordem a suporta, e obrar e legislar em virtude dessa suposição, é perverter a justa utilidade, e pôr no lugar dos interesses legítimos, interesses corrompidos.
Lamente embora o filósofo ou o moralista a ausência de abnegação cívica: nem por isso os factos deixarão
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de o ser; e uma filosofia mais profunda e menos piegas ou menos retórica mostrará sempre que a utilidade é o principio fundamental da esfera social, o que não quer dizer que seja, como o supunha Bentham, o principio único de todas as esferas do espírito humano.
No momento em que o direito publico desconhece esta realidade e funda as leis sobre princípios ou quiméricos ou estranhos à natureza da sua esfera, sucede o que sucede sempre que os erros dos homens investem de frente com as leis naturais: conseguem apenas desnaturar as coisas, isto é perverte-las.
Quando um homem vai com uma lista entre o polegar e o indicador lança-la na urna, esse homem nesse momento é sobretudo um cidadão; isto é, o membro de uma sociedade na qual ocupa um lugar, exerce uma profissão, vive de certos e determinados interesses: ou é um lavrador ou um trabalhador rural, ou é um fabricante ou um operário, ou é um proprietário ou é um rendeiro, ou é educado ou analfabeto, ou é católico ou ateu, ou é capitalista ou proletário. Seja porém o que for, é sempre uma coisa diversa do cidadão que antes deitou e do que depois dele vai deitar uma outra lista. Ou a lista possui em si e por virtude própria um valor, ou tem apenas o de traduzir graficamente a opinião de quem a deita. Como seria absurdo supor a primeira, resulta que o processo de somar as listas é a infração de um princípio proclamado por Bezout e todos os aritméticos: não podem somar-se quantidades heterogéneas.
Admitamos porém que algum quid misterioso, o deus da Urna, torne um momento homogéneos, perante si, os cidadãos eleitores: valem igualmente todos os votos e no altar das eleições celebra-se o culto da pancrácia. Esse deus ignoto não pode, porém, fazer com que cada qual, na sociedade, deixar de ser o que de facto é; não pode con-
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seguir que os interesses morais e económicos das classes de indivíduos deixem de viver num sistema de antagonismo orgânico. Do seio da urna tem de nascer um deputado, facto que forçosamente diminui o número dos candidatos. Eles são dois apenas por via de regra; demos que sejam tres, que sejam quatro. Quatro homens em oposição poderão traduzir a vontade justa e os interesses legítimos que se opõem como centos ou milhares? Que princípio, que motivo, fundado na utilidade, fará com que ateus e católicos, fabricantes e operários, lavradores e trabalhadores, amos e criados, votem num mesmo candidato? Nenhum; e à falta dele aparecem os motivos fundados em influencias nefastas, em interesses ilegítimos e numa utilidade pessoal exclusiva, coisa diversa da utilidade social ou colectiva, que é a síntese e não a soma das diferentes utilidades individuais.
Suponhamos porém que isto não era assim e que de facto cada molécula social, ou cada grupo de interesses mais ou menos proximamente homogéneos apresentava o seu candidato; suponhamos que num circulo se propunham dez, ou vinte ou trinta indivíduos à deputação. Sucederia o que já sucede hoje desde que o número de candidatos excede o de dois: sair eleito em virtude do princípio das maiorias o representante da minoria! dar a urna o contrário do que se lhe pede! consagrar a lei a sua própria condenação! Num círculo de 10000 eleitores, obteve o candidato A 4000 votos, o B 3000 e o C 3000; concordavam 6000 eleitores em excluir A, ao passo que só 4000 concordavam em o admitir; conclusão positiva: o eleito representa a minoria; — conclusão legal: o eleito é o representante da maioria!
Deste facto resulta que não deve haver, nem realmente há por via de regra, mais de dois candidatos. Em duas cabeças, em dois homens, tem de amalgamar-se, de
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reunir-se, de fundir-se todos os interesses antagónicos do circulo; esse acordo que vinte séculos de historia tormentosa desmente, afirma-o e impõe-o a constituição. Quando a ciência, procedendo racionalmente, e a observação empunhando os factos, afirmam que a vida é uma luta, a sociedade uma arena, a história uma guerra, vem a constituição, painel da misericórdia, cair por sobre tudo isso, nega-lo, refutá-lo, e exigir que tudo ceda ao seu caridoso empenho, que tudo se curve às suas ordens divinas, que todos concordem e se abracem e esqueçam quem são e como vivem e de que vivem, perante a caixa verde de três chaves que tem por nome Urna!
Resultado é que a concórdia obtida é apenas uma burla; que o representante, por isso que devia representar tudo não representa coisa alguma; que o cidadão, reconhecendo a inutilidade social do voto, ou não vota se tem pudor, ou vende o voto se o não tem, ou vota por simpatia, por gratidão, por amizade, para ajudar um amigo ou para servir um protector, vota por tudo, menos pelo motivo para que o voto se fez.
Os dois candidatos são commumente delegados dos dois partidos que disputam o poder, que um tem e que o outro quer; e assim o deputado só legitimamente representa a opinião partidária. Que é essa opinião? que são os partidos? Longas paginas encheriam as respostas a estas perguntas. Convém suprimi-las por via da brevidade e principalmente por via do decoro. Uma só coisa basta afirmar sem provas, por isso que elas estão na consciência de todos: e é que entre os partidos e a sociedade portuguesa, entre uns bandos de especuladores e uma massa de gente laboriosa e nem tão corrompida e obtusa como às vezes se diz, não há pontos de contacto intimo, nem solidariedade.
Sobre cem cidadãos, noventa e nove não têm partido;
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sobre cem cidadãos, portanto, só um é representado em côrtes!
Ora o facto de a máxima parte da gente não ter partido, se imediatamente provém do nojo que os partidos causam, não pode nem deve atribuir-se apenas a tal motivo. Os partidos políticos nascem da diferença que há no modo de ver as questões de direito publico e administrativas, sendo assim como escolas em acção; e a máxima parte da gente, ocupada em funções de natureza diversa, não pode ou não quer estudar direito publico nem economia política, e por isso não tem partido. Que as ideias políticas e económicas, ou por outra os partidos, tenham em cortes um lugar eminente, nada mais necessário nem mais justo; mas que as cortes, em vez de reunirem no seu seio todos os interesses, todas as vozes da sociedade, reunam apenas os delegados dos partidos, eis aí o vicio, eis aí o erro, que provém do sistema eleitoral. Confiados todos os interesses sociais aos partidos, eles tornam-se em bandos, as ideias fogem varridas pela ambição e pela cobiça, e a administração publica fica à mercê das agitações, das revoluções, das bancarrotas, sobretudo à mercê de um lento e mole descair num torpor de corrupção, de indolência, de atrofia, por onde fatalmente se chega à morte. [nota do autor: Subsiste a forma exterior do governo livre, mus interiormente formou-se e cresceu uma realidade que faz com que o governo não seja livre. A familia dos políticos de profissão que entram na vida publica para ganhar dinheiro, que organizam as suas forças e formam a sua tática, torna-se de facto uma classe diretora absolutamente diversa daquela que a constituição se propunha a dar ao país, e movida por interesses de todo em todo diversos dos do público. É mister denunciar incessantemente a adoração dos meios de liberdade que afinal pervertem a liberdade cm si. (Herbert Spencer, A ciência social.)
Ao determinar a origem do voto, a lei partiu da sup-
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posição de indivíduos iguais entre si, e imaginou valores homogéneos; ao determinar as esferas da representação, a lei adoptou os círculos, como se a geografia fosse a única ou mesmo a superior expressão dos elementos de coesão social. O naturalismo que dominava os espíritos no principio deste século, o naturalismo de um Rousseau, de um Bentham, de um Constant, os fundadores do liberalismo parlamentar, obrigava-os a não ver n'uma sociedade o que realmente a constitui, isto é, os seus elementos orgânicos, os quais, se têm raizes na natureza inconsciente, elevam-se acima dela, como as arvores que além de se alimentarem do solo também vivem, pelas folhas, do ar luminoso e livre.
O circulo geográfico é uma miniatura de nação; e todos os antagonismos e todos os conflitos de ideias e de interesses, se reproduzem dentro dele; — entre os eleitores de um circulo geográfico não há pois homogeneidade de pensamento, ao passo que a há viva, real, entre os eleitores de um circulo social, qual seria por exemplo o dos proprietários rurais.
Sem antecipar sobre o plano deste trabalho, é necessário dizer, porém, desde já que não só as classes ou profissões constituem círculos ou esferas de representação social, por isso que nem só elas compõem os diferentes orgãos do corpo de uma sociedade. Os interesses geográficos são interesses reais, e é fora de dúvida que as regiões, ou círculos naturais, apresentam caracteres de solidariedade e autonomia bastantes para exigir uma representação. Tanto isto assim é que há só duas representações legítimas no sistema eleitoral que nos rege: a representação partidária, e a local ou de campanário. [nota do autor: Leia-se a Carta aos Eleitores de Sintra; Herculano, Opúsculos, V. 1º.]
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Desde que se trata de estradas, de caminhos de ferro, de regime de florestas, de portos, ou de regularização do curso das águas, todo o circulo se acha de acordo para querer ou para não querer uma certa cousa. E não há influências mais certas, candidaturas mais firmes, fora das que saem da copa do chapéu do ministro, do que as dos que dão estradas, fontes e sinos aos eleitores. A desorganização da representação chega a perverter até esta espécie que de si é legitima; porque os melhoramentos materiais distribuem-se irregularmente, conforme a tenacidade ou o peso do deputado, e amiúde se vê malbaratar-se o dinheiro em obras demasiadas ou mesmo inúteis, num círculo, faltando as necessárias a outros.
Tais são as consequências do sistema eleitoral; esse sistema trás origem do corpo de ideias constitucionais formuladas no primeiro quartel deste século e desautorizadas em cinquenta anos, tal e tão errado era o princípio que as fez nascer.
O descrédito chegou a um ponto em que os maiores amigos do sistema são hoje os inimigos da liberdade. Os cesaristas são os primeiros defensores do sufrágio universal que a democracia, como partido, não teve ainda a coragem de confessar que é uma burla.
Sobre o sufrágio universal, expressão do sistema eleitoral na sua genuinidade, se apoiou Napoleão III, e quando opinião e interesses já o abandonavam, quando o seu império cheirava já a cadáver, ainda então uma esmagadora maioria o exalçou sobre um trono de ilusões, que a guerra transformou breve em montanha de lodo e sangue. Entre nós é o partido conservador quem funda o sufrágio universal, sem que ninguém o reclame, sem que o povo se agite, pedindo-o: ele bem sabe que de um erro aritmético saem operações rendosas! ele bem sabe que escudar-se com os princípios radicais é o melhor modo
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de conservar a oligarquia dos políticos, rindo-se nas barbas dos doutrinários!
III
«As ideias do bem, do justo e do direito não vêm de fora ao homem, não derivam de algum poder desconhecido ou realidade transcendente, nem são inatas ou existentes no espirito anteriormente a toda a actividade da inteligência; mas são a expressão dessa energia íntima, desse princípio superior a que chamamos Vontade e que se revela à inteligência como todas as outras realidades.» [ nota do autor: V. a Synthese da vida juridica, pelo snr F. Machado. ]
Estas breves palavras contém em si a razão da crise política. A história dela é também curta e clara. Até ao principio deste século supunha-se que a autoridade política provinha de Deus. Uma revolução que agitou por trinta anos a Europa riscou das constituições este princípio, limpou os tronos desta lenda, varreu os milagres do foro do direito público. Essa foi a crise que alimentou a vida de nossos pais; e dela provém esta nova crise que alimentará a vida de nossos filhos. Entre duas revoluções, o papel do nosso tempo parece condenado ao trabalho de elaboração demorada e difícil que precede as grandes comoções políticas. Negou-se o direito divino em nome de um direito natural, porque a filosofia supunha que as ideias do bem, do justo e do direito, não vindo, como não vêm, de fora, eram inatas ou existentes no espírito anteriormente a toda a actividade da inteligência. Esta suposição levou a substituir a soberania antiga pela soberania popular.
A autoridade, encarnada outrora
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nas dinastias por virtude de uma unção divina, passou inteira para o povo em massa como depositário dos primeiros princípios inatos no espírito humano. Todos os homens ficaram igualmente soberanos, porque em todos a Natureza pôs, dizia-se, faculdades iguais e inerentes à qualidade de homem; o principio da autoridade passou a ser condição da espécie e de cada um dos seus indivíduos.
[Ao escrever que até ao princípio do século XIX a "autoridade política provinha de Deus" e que "a autoridade ... encarnava nas dinastias por virtude de uma unção divina", Oliveira Martins passa por cima da concepção do poder régio da segunda escolástica seiscentista, que prevalecera em Portugal até aos inícios do século XVIII, e cuja máxima expressão se obteve na Universidade de Coimbra por intermédio de Francisco Suárez ]
A filosofia e a ciência a um tempo condenam este principio fundamental do direito público moderno, ou melhor diremos já, antigo. Desde que a realidade das espécies foi banida das ciências da Natureza, como pode viver ainda apoiada a essa hipótese caduca e à excepcional soberania da espécie humana, a filosofia do direito? Cumprir-nos-á, portanto, abandonar-nos ao materialismo, em filosofia e em política? Não decerto; porque destruir a Espécie não é destruir o Espírito, senão para aqueles que o representam de um modo antropomorfo. Não podemos desenvolver este tema como seria para desejar e limitamo-nos a transcrever aqui as seguintes palavras de Hartmann: «Foi-se o tempo em que o homem, na liberdade, era oposto - aos animais como as maquinas em acção ou autómatos sem alma. Um exame mais profundo da vida dos brutos, os esforços empregados para lhes perceber a língua e os motivos das acções mostraram que o homem, os animais superiores, e os animais todos entre si, só estão separados, no que se refere às suas disposições intelectuais, por diferenças de grau, e não por diferenças de essência; que graças às suas aptidões superiores, o homem criou para seu uso uma língua mais perfeita, e que a ela deve a perfectibilidade continua que desenvolve através da série de gerações, perfectibilidade que falta aos animais, porque os seus meios de comunicação são demasiado defeituosos. Sabemos já
Estas breves palavras contém em si a razão da crise política. A história dela é também curta e clara. Até ao principio deste século supunha-se que a autoridade política provinha de Deus. Uma revolução que agitou por trinta anos a Europa riscou das constituições este princípio, limpou os tronos desta lenda, varreu os milagres do foro do direito público. Essa foi a crise que alimentou a vida de nossos pais; e dela provém esta nova crise que alimentará a vida de nossos filhos. Entre duas revoluções, o papel do nosso tempo parece condenado ao trabalho de elaboração demorada e difícil que precede as grandes comoções políticas. Negou-se o direito divino em nome de um direito natural, porque a filosofia supunha que as ideias do bem, do justo e do direito, não vindo, como não vêm, de fora, eram inatas ou existentes no espírito anteriormente a toda a actividade da inteligência. Esta suposição levou a substituir a soberania antiga pela soberania popular.
A autoridade, encarnada outrora
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nas dinastias por virtude de uma unção divina, passou inteira para o povo em massa como depositário dos primeiros princípios inatos no espírito humano. Todos os homens ficaram igualmente soberanos, porque em todos a Natureza pôs, dizia-se, faculdades iguais e inerentes à qualidade de homem; o principio da autoridade passou a ser condição da espécie e de cada um dos seus indivíduos.
[Ao escrever que até ao princípio do século XIX a "autoridade política provinha de Deus" e que "a autoridade ... encarnava nas dinastias por virtude de uma unção divina", Oliveira Martins passa por cima da concepção do poder régio da segunda escolástica seiscentista, que prevalecera em Portugal até aos inícios do século XVIII, e cuja máxima expressão se obteve na Universidade de Coimbra por intermédio de Francisco Suárez ]
A filosofia e a ciência a um tempo condenam este principio fundamental do direito público moderno, ou melhor diremos já, antigo. Desde que a realidade das espécies foi banida das ciências da Natureza, como pode viver ainda apoiada a essa hipótese caduca e à excepcional soberania da espécie humana, a filosofia do direito? Cumprir-nos-á, portanto, abandonar-nos ao materialismo, em filosofia e em política? Não decerto; porque destruir a Espécie não é destruir o Espírito, senão para aqueles que o representam de um modo antropomorfo. Não podemos desenvolver este tema como seria para desejar e limitamo-nos a transcrever aqui as seguintes palavras de Hartmann: «Foi-se o tempo em que o homem, na liberdade, era oposto - aos animais como as maquinas em acção ou autómatos sem alma. Um exame mais profundo da vida dos brutos, os esforços empregados para lhes perceber a língua e os motivos das acções mostraram que o homem, os animais superiores, e os animais todos entre si, só estão separados, no que se refere às suas disposições intelectuais, por diferenças de grau, e não por diferenças de essência; que graças às suas aptidões superiores, o homem criou para seu uso uma língua mais perfeita, e que a ela deve a perfectibilidade continua que desenvolve através da série de gerações, perfectibilidade que falta aos animais, porque os seus meios de comunicação são demasiado defeituosos. Sabemos já