A autenticidade de Grão Vasco
António Sardinha
Questão largamente debatida, mas infelizmente jamais fixada, esta do Grão-Vasco, formou-se-lhe redor um tamanho labirinto de hipóteses repudiáveis, umas por pretensiosas, outras por disparatadas, que, muito longo de a porem em via de solução, se a não asfixiaram por completo, arrastaram-na pelo menos para um campo inteiramente oposto e desorientador.
Contribuíram para isso poderosamente as divergências e as restrições do pouco de elucidativo que se aufere dos nossos antiquários, - divergências e restrições tais que, tornando bem problemática a identidade do grande pintor, degeneram quase numa perfeita negação da sua existência.
Depois, as controvérsias dos críticos acabaram de desnortear, porque, em presença de nossa crassíssima ignorância em arte, como de resto em tudo, foram estrangeiros os primeiros a pronunciarem-se sobro o assumpto. E se deles alguns possuíram a plena consciência do que apregoaram, a maior parte, num snobismo elegante do touristes entendidos, somente se desentranhou em imbecilidades incríveis que à viva força quiseram impor e dogmatizar.
Ora é balda velha em Portugal o acatar-se religiosamente ainda a sandice mais inqualificável logo que ela venha rotulada lá de fora. Foi isto precisamente o que aqui nos sucedeu, porque era precisamente isto o que então se dava a cada instante para mal das nossas coisas, que deste modo, monopolizadas em mãos de estranhos, andavam mesmo de rastos, enoveladas num mare magnum de erudição balofa, atestadas num pavoroso turbilhão de pedantismos sentenciosos.
Caía-se, pois, de contradição em contradição; e - consequência lógica - começou a levantar-se essa obstinada corrente de dúvida que, num crescendo espantoso, por aí se observa em volta questão, tendendo a absorvê-la de vez.
O Grão-Vasco, transformado em mito e atribuída a sua obra a pintores flamengos de passagem entre nós, passou a olhar-se apenas como uma legendária e suprema encarnação do nosso génio
Artístico nesse período áureo da Renascença em que a gente portuguesa tão brilhante e independentemente o vitalizou em manifestações imorredouras, que lhe marcaram um lugar inconfundível na grandiosa ressurreição da família latina.
Encarado o definido assim o Mestre, desfizeram-se do pronto as suspeitas otimistas de uma escola de pintura nossa, que, muito embora filha legitima da primitiva escola flamenga, se atraiçoava
cunho autónomo acentuadamente diferenciado e característico, e que, centralizada em Viseu, berço provável do seu patrono, se tivesse irradiado por todo o país.
Mas, apesar de uma razão tão destacante e tão convincente como esta era, nada se atendeu; e, estribando-se em não sei quê, decretou-se urbi et orbi, como é costumeira antiga na nossa boa terra, que o Grão-Vasco e a sua escola não eram mais que umas reles teias de aranha, refugiadas in extremis na convicção intransigente de dois ou três conservadores enragés.
Apoderara-se de todo o espírito iconoclasta da irreverência; e, radicada a negação, sob o domínio de uma obsessão inexplicável, expulsava-se dos santuários da Pátria a gloriosa figura de Vasco Fernandes. Todavia, reagindo contra esta sufocante atmosfera de descrença e de demolição, alguém houve que prevaleceu na sua fé.
Foi o respeitável professor do liceu de Viseu sr. Dr. Maximiano de Aragão, que, concentrando-se numa investigação aturadíssima, no cabo de muitas canseiras e de muitos desalentos, sem dúvida, pôde enfim arrancar ao pó do arquivo diocesano as provas irrefragáveis da existência de Grão-Vasco. Vieram de seguida as da sua obra e da sua escola. E hoje que constituem factos incontestáveis, delineio sobre tão preciosas descobertas o presente estudo, de síntese apenas, destinado tão somente à vulgarização que elas requerem e que só nas páginas da Ilustração encontrariam.
[negritos acrescentados]
(continuação [ pdf ] in Ilustração Portuguesa, dir. de Carlos Malheiro Dias)
Contribuíram para isso poderosamente as divergências e as restrições do pouco de elucidativo que se aufere dos nossos antiquários, - divergências e restrições tais que, tornando bem problemática a identidade do grande pintor, degeneram quase numa perfeita negação da sua existência.
Depois, as controvérsias dos críticos acabaram de desnortear, porque, em presença de nossa crassíssima ignorância em arte, como de resto em tudo, foram estrangeiros os primeiros a pronunciarem-se sobro o assumpto. E se deles alguns possuíram a plena consciência do que apregoaram, a maior parte, num snobismo elegante do touristes entendidos, somente se desentranhou em imbecilidades incríveis que à viva força quiseram impor e dogmatizar.
Ora é balda velha em Portugal o acatar-se religiosamente ainda a sandice mais inqualificável logo que ela venha rotulada lá de fora. Foi isto precisamente o que aqui nos sucedeu, porque era precisamente isto o que então se dava a cada instante para mal das nossas coisas, que deste modo, monopolizadas em mãos de estranhos, andavam mesmo de rastos, enoveladas num mare magnum de erudição balofa, atestadas num pavoroso turbilhão de pedantismos sentenciosos.
Caía-se, pois, de contradição em contradição; e - consequência lógica - começou a levantar-se essa obstinada corrente de dúvida que, num crescendo espantoso, por aí se observa em volta questão, tendendo a absorvê-la de vez.
O Grão-Vasco, transformado em mito e atribuída a sua obra a pintores flamengos de passagem entre nós, passou a olhar-se apenas como uma legendária e suprema encarnação do nosso génio
Artístico nesse período áureo da Renascença em que a gente portuguesa tão brilhante e independentemente o vitalizou em manifestações imorredouras, que lhe marcaram um lugar inconfundível na grandiosa ressurreição da família latina.
Encarado o definido assim o Mestre, desfizeram-se do pronto as suspeitas otimistas de uma escola de pintura nossa, que, muito embora filha legitima da primitiva escola flamenga, se atraiçoava
cunho autónomo acentuadamente diferenciado e característico, e que, centralizada em Viseu, berço provável do seu patrono, se tivesse irradiado por todo o país.
Mas, apesar de uma razão tão destacante e tão convincente como esta era, nada se atendeu; e, estribando-se em não sei quê, decretou-se urbi et orbi, como é costumeira antiga na nossa boa terra, que o Grão-Vasco e a sua escola não eram mais que umas reles teias de aranha, refugiadas in extremis na convicção intransigente de dois ou três conservadores enragés.
Apoderara-se de todo o espírito iconoclasta da irreverência; e, radicada a negação, sob o domínio de uma obsessão inexplicável, expulsava-se dos santuários da Pátria a gloriosa figura de Vasco Fernandes. Todavia, reagindo contra esta sufocante atmosfera de descrença e de demolição, alguém houve que prevaleceu na sua fé.
Foi o respeitável professor do liceu de Viseu sr. Dr. Maximiano de Aragão, que, concentrando-se numa investigação aturadíssima, no cabo de muitas canseiras e de muitos desalentos, sem dúvida, pôde enfim arrancar ao pó do arquivo diocesano as provas irrefragáveis da existência de Grão-Vasco. Vieram de seguida as da sua obra e da sua escola. E hoje que constituem factos incontestáveis, delineio sobre tão preciosas descobertas o presente estudo, de síntese apenas, destinado tão somente à vulgarização que elas requerem e que só nas páginas da Ilustração encontrariam.
[negritos acrescentados]
(continuação [ pdf ] in Ilustração Portuguesa, dir. de Carlos Malheiro Dias)
António Sardinha, "A autenticidade de Grão Vasco", Ilustração Portuguesa, 2.ª série, n.º 19 (02.07.1906), pp. 598-605. Texto datado de Viseu, 02.06.1906.