PREAMBULO
SENHOR PRESIDENTE, MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES:
Obrigado vos sou pela vossa bondade, que outro sentimento não é o que aqui vos trouxe a ouvir-me, acedendo ao convite do Centro Republicano Português de S. Paulo.
Em verdade, pouco vos pode interessar pessoalmente quem deixou o quotidiano ofício de alvanel para vir aqui falar-vos da constituição de uma nacionalidade, como se fosse obra corrente de alvenaria comum de tijolos.
Trata-se, porém, de um ensaio de reconstrução, cujos processos são em certa medida, similares. É bem possível que desse trabalho algo mereça a vossa complacente atenção, não pela novidade — que a não tem — mas pela velharia do assunto; e porque, no intimo de cada um de nós há sempre certo interesse, misto de veneração e de curiosidade, pelos factos e personalidades antepassadas.
Devido à vastidão do assunto que me foi proposto, de difícil condensação, em virtude da complexidade de alguns dos seus problemas, e, particularmente, em razão da própria insuficiência, receio bem não corresponder, nem como narrador nem como alvanel. Confio apenas na vossa benevolência.
Antes de entrar no assunto próprio desta conferência, cumpre-me, em primeiro lugar, saudar o ilustre escritor brasileiro Sylvio Roméro, que a uma das suas últimas obras deu o título de PÁTRIA PORTUGUESA. [1906 - Sylvio Roméro, A Pátria Portuguesa - O Território e a Raça (Apreciação do livro de igual titulo de Teófilo Braga), Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1906.]
Pondo de lado o propósito critico desta obra, pode afirmar-se que ela condensa os mais exatos e completos conhecimentos relativos à origem da nacionalidade portuguesa. Seria por consequência uma flagrante injustiça que, a este propósito, e como português, não saudasse em primeiro lugar o eminente brasileiro, que se revela em sua obra, com nobre patriotismo, um sábio e verdadeiro amigo de Portugal.
É-lhe devida esta justíssima homenagem.
Obrigado vos sou pela vossa bondade, que outro sentimento não é o que aqui vos trouxe a ouvir-me, acedendo ao convite do Centro Republicano Português de S. Paulo.
Em verdade, pouco vos pode interessar pessoalmente quem deixou o quotidiano ofício de alvanel para vir aqui falar-vos da constituição de uma nacionalidade, como se fosse obra corrente de alvenaria comum de tijolos.
Trata-se, porém, de um ensaio de reconstrução, cujos processos são em certa medida, similares. É bem possível que desse trabalho algo mereça a vossa complacente atenção, não pela novidade — que a não tem — mas pela velharia do assunto; e porque, no intimo de cada um de nós há sempre certo interesse, misto de veneração e de curiosidade, pelos factos e personalidades antepassadas.
Devido à vastidão do assunto que me foi proposto, de difícil condensação, em virtude da complexidade de alguns dos seus problemas, e, particularmente, em razão da própria insuficiência, receio bem não corresponder, nem como narrador nem como alvanel. Confio apenas na vossa benevolência.
Antes de entrar no assunto próprio desta conferência, cumpre-me, em primeiro lugar, saudar o ilustre escritor brasileiro Sylvio Roméro, que a uma das suas últimas obras deu o título de PÁTRIA PORTUGUESA. [1906 - Sylvio Roméro, A Pátria Portuguesa - O Território e a Raça (Apreciação do livro de igual titulo de Teófilo Braga), Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1906.]
Pondo de lado o propósito critico desta obra, pode afirmar-se que ela condensa os mais exatos e completos conhecimentos relativos à origem da nacionalidade portuguesa. Seria por consequência uma flagrante injustiça que, a este propósito, e como português, não saudasse em primeiro lugar o eminente brasileiro, que se revela em sua obra, com nobre patriotismo, um sábio e verdadeiro amigo de Portugal.
É-lhe devida esta justíssima homenagem.
I.
O Território
O Território
Demora a nação portuguesa em um reduzido trato de terra situado a oeste da Península Ibérica, no extremo ocidental do continente europeu. Não ocupa mais do que 89.000 quilómetros quadrados, com 1.200 quilómetros de fronteira terrestre, limítrofe com terras de Espanha, e 850 quilómetros de costa marítima, banhada pelo Oceano Atlântico.
Com efeito, diminuto é em proporções esse país de portugueses; e surpreende como, participando de uma península, quase ilha, tão completamente caracterizada como unidade geomorfológica, essa estreita faixa de território se tenha conservado como país autónomo, dentro dos seus limites políticos e topográficos.
A cordilheira pirenaica constitui, de facto, uma impenetrável muralha que separa do Continente a Península Ibérica; o imenso fosso oceânico, composto dos mares Cantábrico, Atlântico e Mediterrânico circunda sem descontinuidades os quatro outros lados desse polígono pentagonal, suspenso na extremidade sudoeste da Europa. O sistema que limita e isola este apêndice do corpo continental é, pois, cerrado e perfeito.
Quaisquer que sejam as modalidades fisiográficas deste país insular, à unidade geomórfica parece que deveria corresponder a unidade, se não étnica, pelo menos política dos seus habitantes. Não obstante, porém, estas condições decisivas e circunscritas do meio geográfico, a heterogeneidade dos povos peninsulares é um facto tão notável como a múltipla diversidade dos seus aspetos e climas, dentro desse polígono de curto diâmetro, que apenas ocupa sobre o globo terrestre, cerca de 8 graus de latitude e 23 de longitude.
A sua localização, em relação ao continente europeu, apenas separado por um estreito canal do continente africano e colocado na portaria do grande lago mediterrânico, constituiu-o em uma das últimas atalaias que fecham o circuito do velho mundo; transformou-o em um vasto entreposto de todas as civilizações e de todas as correntes migratórias. Segundo a História, por este país transitaram povos que desceram dos planaltos genesíacos da Ásia Central, gentes do Irão, caravanas da Caldeia, frotas de Fenícios, bandos de Berberes e de Mouros vindos do noroeste africano, colónias que emigraram do centro e do oriente da Europa, exércitos de Eslavos e hordas de Hiperbóreos oriundos do norte escandinavo.
A esta multiplicidade de povos e de raças, corresponde o quadro territorial com suas varias regiões corográficas, e concomitante diversidade de caracteres climatéricos. Estas circunstâncias, pois, deveriam ter sido o motivo bastante para a diferenciação das diversas parcelas desse todo, fundindo-se as que mais se assemelhavam e formando núcleos independentes ou nacionalidades.
Com efeito, por um conjunto de condições atinentes à natureza humana da sua população e à natureza física do seu habitat, as diversas províncias da Espanha conservam caracteres assaz distintos, fundados em caracteres étnicos igualmente diferentes.
Assim também a atual província portugalense, que se mantém autónoma, nas suas condições diferenciais de ordem geográfica e etnológica.
Olhando sob o ponto de vista morfológico esta faixa de território, nota-se que é limitada por incidentes topográficos claramente definidos; pelo lado de terra, as linhas de água, as cristas montanhosas e os vales, que contornam uma zona em anfiteatro, esbatendo-se até ao nível do mar; a poente e sul, segundo uma linha de costa marítima, recortada de praias e abras.
Não é só o acidente geológico que, como uma alterosa montanha ou um profundo hiato, circunscreve um país e o isola de outros. Dentro do mesmo país, muito embora as características unitárias da sua constituição geográfica, a terra do planalto é sempre distinta — pela sua situação altimétrica, pelo seu clima, pelo habitat especial que oferece a sua fauna e flora — da terra da encosta e do vale. A serra e a ribeira constituem de facto territórios diferentes, não só como meio físico, mas também como meio social, sendo não obstante partes componentes da mesma região ou unidade geográfica.
Assim deve considerar-se o país português, e também as províncias costeiras de Espanha, em relação ao planalto central da Península Ibérica, se bem que não haja a demarcar estes territórios, separando-os do núcleo central, divisas evidentes ininterruptas de carácter geológico ou geográfico. São unidades metricamente inferiores, componentes de uma unidade geomórfica de valor superior.
A conformação do território português, e a sua separação do país espanhol, é delimitada principalmente pela disposição das suas bacias hidrográficas; os rios e seus grandes afluentes voltam-se para o nordeste e o norte contornando os planaltos espanhóis da Estremadura e Castela, dos quais se separa o anfiteatro português; o Guadiana que se escoa para o sul, fecha o quadrilátero segundo uma linha quási paralela à orla marítima. A situação das suas enseadas e portos, dos quais Lisboa e Lagos têm a primazia, dá a esta zona de litoral português uma importância capital, colocada como está sobre a esteira atlântica do trafego entre as costas ocidentais da Europa e os outros continentes, e como ponto de convergência sobre o oceano das vias comerciais da Península.
Devido à sua quantiosa rede hidrográfica e concordante sistema orográfico, as terras de Portugal são regadas com mais abundância do que os planaltos castelhanos e em maior escala na parte do país ao norte do Tejo, do que ao sul, onde as charnecas plainas do baixo Alentejo, têm um aspecto árido e uniforme. O norte do país, mais acidentado, mais cortado por talwegs de rios e torrentes, tem uma variedade de climas locais, a que corresponde uma grande diversidade de tipos agrológicos.
Pela sua constituição geomórfica, sob a influencia do clima marítimo que corresponde á sua situação, e dentro do tipo «temperado mediterrânico» em que é classificado, o país abrange os climas de montanhas, de vales e de planícies. Acresce a estas variações a contextura geológica do solo, também de um notável polimorfismo; a esta multiplicidade de caracteres corresponde uma fauna e flora também rica e variada.
Adaptando-se a estas diversas condições de vida, a população que tem habitado este território, que vive da exploração direta do solo, adquiriu as formas correspondentes da vida social, desde o primitivo regímen nómade do caçador até ao regímen pastoril e agrícola, nas suas fases comunista e particularista.
Esta população conta atualmente pouco mais de cinco milhões de unidades, isto é, 56,2 por quilómetro quadrado, densidade superior à média europeia; deste total, 62 por cento se empregam em trabalhos rurais, o resto, nas industrias, no comércio e nas profissões liberais.
O diminuto trato de terreno sobre que se fixa a nação portuguesa representa, portanto, um conjunto sintético de caracteres geográficos, um quadro definido, dentro do qual uma numerosa família vive e trabalha quotidianamente pela existência tendo os meios bastantes para essa luta e para a sua vitória.
Fácil é de explicar, segundo a conformação do próprio solo, a constituição de seu território como unidade geográfica independente; vejamos como se organizou essa família humana, quais as suas origens, as suas razões de ser como unidade social ou nacionalidade, também independente e autónoma.
Com efeito, diminuto é em proporções esse país de portugueses; e surpreende como, participando de uma península, quase ilha, tão completamente caracterizada como unidade geomorfológica, essa estreita faixa de território se tenha conservado como país autónomo, dentro dos seus limites políticos e topográficos.
A cordilheira pirenaica constitui, de facto, uma impenetrável muralha que separa do Continente a Península Ibérica; o imenso fosso oceânico, composto dos mares Cantábrico, Atlântico e Mediterrânico circunda sem descontinuidades os quatro outros lados desse polígono pentagonal, suspenso na extremidade sudoeste da Europa. O sistema que limita e isola este apêndice do corpo continental é, pois, cerrado e perfeito.
Quaisquer que sejam as modalidades fisiográficas deste país insular, à unidade geomórfica parece que deveria corresponder a unidade, se não étnica, pelo menos política dos seus habitantes. Não obstante, porém, estas condições decisivas e circunscritas do meio geográfico, a heterogeneidade dos povos peninsulares é um facto tão notável como a múltipla diversidade dos seus aspetos e climas, dentro desse polígono de curto diâmetro, que apenas ocupa sobre o globo terrestre, cerca de 8 graus de latitude e 23 de longitude.
A sua localização, em relação ao continente europeu, apenas separado por um estreito canal do continente africano e colocado na portaria do grande lago mediterrânico, constituiu-o em uma das últimas atalaias que fecham o circuito do velho mundo; transformou-o em um vasto entreposto de todas as civilizações e de todas as correntes migratórias. Segundo a História, por este país transitaram povos que desceram dos planaltos genesíacos da Ásia Central, gentes do Irão, caravanas da Caldeia, frotas de Fenícios, bandos de Berberes e de Mouros vindos do noroeste africano, colónias que emigraram do centro e do oriente da Europa, exércitos de Eslavos e hordas de Hiperbóreos oriundos do norte escandinavo.
A esta multiplicidade de povos e de raças, corresponde o quadro territorial com suas varias regiões corográficas, e concomitante diversidade de caracteres climatéricos. Estas circunstâncias, pois, deveriam ter sido o motivo bastante para a diferenciação das diversas parcelas desse todo, fundindo-se as que mais se assemelhavam e formando núcleos independentes ou nacionalidades.
Com efeito, por um conjunto de condições atinentes à natureza humana da sua população e à natureza física do seu habitat, as diversas províncias da Espanha conservam caracteres assaz distintos, fundados em caracteres étnicos igualmente diferentes.
Assim também a atual província portugalense, que se mantém autónoma, nas suas condições diferenciais de ordem geográfica e etnológica.
Olhando sob o ponto de vista morfológico esta faixa de território, nota-se que é limitada por incidentes topográficos claramente definidos; pelo lado de terra, as linhas de água, as cristas montanhosas e os vales, que contornam uma zona em anfiteatro, esbatendo-se até ao nível do mar; a poente e sul, segundo uma linha de costa marítima, recortada de praias e abras.
Não é só o acidente geológico que, como uma alterosa montanha ou um profundo hiato, circunscreve um país e o isola de outros. Dentro do mesmo país, muito embora as características unitárias da sua constituição geográfica, a terra do planalto é sempre distinta — pela sua situação altimétrica, pelo seu clima, pelo habitat especial que oferece a sua fauna e flora — da terra da encosta e do vale. A serra e a ribeira constituem de facto territórios diferentes, não só como meio físico, mas também como meio social, sendo não obstante partes componentes da mesma região ou unidade geográfica.
Assim deve considerar-se o país português, e também as províncias costeiras de Espanha, em relação ao planalto central da Península Ibérica, se bem que não haja a demarcar estes territórios, separando-os do núcleo central, divisas evidentes ininterruptas de carácter geológico ou geográfico. São unidades metricamente inferiores, componentes de uma unidade geomórfica de valor superior.
A conformação do território português, e a sua separação do país espanhol, é delimitada principalmente pela disposição das suas bacias hidrográficas; os rios e seus grandes afluentes voltam-se para o nordeste e o norte contornando os planaltos espanhóis da Estremadura e Castela, dos quais se separa o anfiteatro português; o Guadiana que se escoa para o sul, fecha o quadrilátero segundo uma linha quási paralela à orla marítima. A situação das suas enseadas e portos, dos quais Lisboa e Lagos têm a primazia, dá a esta zona de litoral português uma importância capital, colocada como está sobre a esteira atlântica do trafego entre as costas ocidentais da Europa e os outros continentes, e como ponto de convergência sobre o oceano das vias comerciais da Península.
Devido à sua quantiosa rede hidrográfica e concordante sistema orográfico, as terras de Portugal são regadas com mais abundância do que os planaltos castelhanos e em maior escala na parte do país ao norte do Tejo, do que ao sul, onde as charnecas plainas do baixo Alentejo, têm um aspecto árido e uniforme. O norte do país, mais acidentado, mais cortado por talwegs de rios e torrentes, tem uma variedade de climas locais, a que corresponde uma grande diversidade de tipos agrológicos.
Pela sua constituição geomórfica, sob a influencia do clima marítimo que corresponde á sua situação, e dentro do tipo «temperado mediterrânico» em que é classificado, o país abrange os climas de montanhas, de vales e de planícies. Acresce a estas variações a contextura geológica do solo, também de um notável polimorfismo; a esta multiplicidade de caracteres corresponde uma fauna e flora também rica e variada.
Adaptando-se a estas diversas condições de vida, a população que tem habitado este território, que vive da exploração direta do solo, adquiriu as formas correspondentes da vida social, desde o primitivo regímen nómade do caçador até ao regímen pastoril e agrícola, nas suas fases comunista e particularista.
Esta população conta atualmente pouco mais de cinco milhões de unidades, isto é, 56,2 por quilómetro quadrado, densidade superior à média europeia; deste total, 62 por cento se empregam em trabalhos rurais, o resto, nas industrias, no comércio e nas profissões liberais.
O diminuto trato de terreno sobre que se fixa a nação portuguesa representa, portanto, um conjunto sintético de caracteres geográficos, um quadro definido, dentro do qual uma numerosa família vive e trabalha quotidianamente pela existência tendo os meios bastantes para essa luta e para a sua vitória.
Fácil é de explicar, segundo a conformação do próprio solo, a constituição de seu território como unidade geográfica independente; vejamos como se organizou essa família humana, quais as suas origens, as suas razões de ser como unidade social ou nacionalidade, também independente e autónoma.
II.
As civilizações pré-históricas
As civilizações pré-históricas
O método de estudo tem de ser naturalista, pois que a inquirição histórica nos abandona junto aos primeiros documentos escritos. As origens dos povos e das civilizações ficam ainda mais longe. Para as atingir muito há que caminhar, e muitas vezes se erra o caminho, porque os rastos dos povos sobre a terra, se vão apagando e perdendo; as tradições vão sendo esquecidas, e jazem apenas soterrados no próprio solo onde viveram, as ruínas das civilizações, os cadáveres fosseis dos homens antepassados, encobertos pelos detritos sedimentares do tempo e das aluviões.
São-nos legados como elementos de análise esses restos materiais, muitas vezes disformes, esqueletos corroídos, outrora animados pela efémera vestimenta da vida; e conjuntamente os esqueletos desmantelados dessa própria vida, das casas, dos túmulos, das artes, das industrias... que se vão decompondo e transformando nessa poeira infinita que constitui a matéria sempre viva da terra.
Aos arqueólogos compete a nova tarefa; há que fazer escavações e reconstruções; não existe sequer um roteiro; apenas a tradição, de quando a quando, como guia sempre enigmático e duvidoso.
Do solo português, que agora nos ocupa, foram desenterrados os vestígios mais remotos da industria humana.
Foi em 1866 que Carlos Ribeiro, o fundador dos estudos arqueo-geológicos em Portugal, desenterrou dos depósitos terciários da bacia do Tejo esses primeiros utensílios de pedra lascada, considerados como manufactura do homem. Estas descobertas no terciário português foram acompanhadas pelas de Thenay e Cantal em França, que as confirmaram quanto à provável existência de um ser humano durante esses afastados períodos geológicos. Admitidos esses «sílexes» lascados como obra do homem, este teria sido contemporâneo de espécies animais completamente extintas, próprias de um clima de altas temperaturas. A origem do homem teria, pois, ultrapassado a cronologia geológica até então prevista, não só contra os dogmas científicos e da génese bíblica, como também contra as mais audazes hipóteses da antropologia.
De acordo com as leis paleontológicas, e acompanhando a evolução da fauna fóssil contemporânea, nesse período geológico não deveria ter existido o homem no seu atual tipo genérico, mas a sua forma percursora; denominou-se então «Anthropopithecus ribeirensis». Muito mais tarde, em 1894, descobriu-se na ilha de Java, em terrenos terciários, os restos esqueléticos desse precursor do homem, de um ser intermediário, de atitude vertical e outros característicos humanos, ao qual o seu autor denominou «pithecanthropus erectus».
Estas descobertas são, pois, documentadas na própria formação do solo português, a qual foi acompanhada pelos tipos ancestrais do género humano. A este primeiro período de civilização se chamou eolítico.
Seguidamente, nos terrenos aluvionares de idade mais recente, e nos depósitos das cavernas do período quaternário, são encontrados ainda os vestígios do homem, com uma civilização mais avançada, usando o utensilio de pedra lascada, mais aperfeiçoado na sua forma, mais completo nas suas utilidades. O homem de então habita as cavernas e abrigos naturais; no começo troglodita e caçador, vai depois domesticando alguns animais, ensaiando algumas industrias caseiras como a do vestuário, da olaria, e outros artefactos rudimentares; enterra os seus mortos depositando-os nas criptas naturais, faz a trepanação. Intitula-se este período de paleolítico.
Durante este imenso período de muitos milhares de anos, e na sua ultima fase, predominaram no centro da Europa as baixas temperaturas e aí viveu uma fauna de clima frio, rica de espécies, da qual uma parte emigrou para os gelos do norte, outra desapareceu como o urso das cavernas, a rena, o mamute.
Na ultima época o trabalho da pedra adquiriu uma perfeição verdadeiramente notável; encontram-se pontas de flechas de um trabalho finíssimo, são verdadeiras joias: o homem trabalha os ossos dos animais para utensílios e objetos de adorno; enfeita-se e ornamenta o seu parco mobiliário com desenhos de um naturalismo ingénuo mas artista. É a infância da Arte.
Em grutas dos Pirinéus, nas vertentes francesas e espanholas, têm-se encontrado desenhos coloridos que reproduzem os animais da época, em grupos e atitudes de uma exatidão que surpreende. Visitei as celebres grutas de Altamira, perto de Torrelavega, e pude apreciar à luz de magnésio esses quadros pintados sobre os tetos abobados, em lugares arredados e escuros, onde não chega a claridade do dia. Parece que o homem de então, propositadamente confiou a esses escuros arcanos subterrâneos, que abrigaram as primeiras famílias humanas, o quadro desses animais, alguns desaparecidos, que constituíam o elemento basilar da sua vida primitiva de caçador e pastor.
Estas estações do quaternário, descobertas no solo da Península, atestam portanto que aqui existiu o homem, desde a sua forma percursora, evoluindo durante épocas afastadas de nós por verdadeiros cataclismos geológicos, ao lado de espécies animais que desapareceram, se transformaram também ou emigraram para os climas extremos da zona equatorial ou para os campos gelados das regiões polares.
Não se carece, pois, de recorrer ao Éden paradisíaco para buscar os descendentes de Adão, afim de povoar estas terras que ficavam no cabo do mundo. Nelas encontramos seres pré-adamicos, fixos ao solo como produtos natos. Sem querer perturbar a tese monogenista das origens humanas, acentuo este facto primordial da coexistência do homem com os fenómenos geológicos que prepararam o território peninsular desde as formações terciárias dos vales do Tejo e Sado.
Continuando as nossas pesquisas, novos vestígios encontramos e novos progressos nas primitivas civilizações humanas. À indústria da pedra lascada, segue-se a da pedra-polida; encontram-se restos do homem e da sua indústria em estações de formação mais recente, junto a restos de uma fauna igual à de nossos dias. Apenas nos distancia dessas eras a natureza bárbara e primitiva da civilização. Estamos em um novo período que se intitulou de neolítico, e com ele termina a IDADE DA PEDRA.
O homem ocupou ainda os abrigos naturais, mas abriu também grutas artificiais á semelhança daqueles, e construiu as primeiras choupanas sobre estacaria à beira dos lagos, ou dentro de paliçadas em campos fechados e entrincheirados. Inicia-se a vida comunista; manifesta-se o culto pelos mortos que são inumados primeiramente dentro das próprias habitações sob a primitiva lareira; na última fase deste período, porém, o homem construiu, à semelhança da sua casa, o túmulo megalítico; e desta sorte edificou extensas necrópoles. Os túmulos são câmaras de enormes blocos, cobertos por montes de terra, que parecem ser as lendárias construções de ciclopes; no interior foram depositados os cadáveres, ao lado os utensílios e o mobiliário de uso comum, os seus adornos e armas; havia pois a crença em uma vida futura — a morte era uma consagração.
Quem isto vos narra, meus senhores, algum tempo palmilhou por carreiros tortuosos os planaltos do Norte de Portugal, caminhando por essas chãs agrestes e frias, onde apenas produz o centeio, acompanhado pelo almocreve folgazão e fiel, e pelo canto dolente das cotovias. Por esses planaltos se estendem séries de túmulos megalíticos, (antas se chamam, com as suas mamoas) como se fora um extenso campo santo, colocado em lugar menos acessível ao desrespeito dos homens, mais próximo do azul do firmamento. Nesse ermo jaz a longa necrópole, eternamente enfeitada pelo manto florido e brilhante do céu estrelado, que as nuvens por vezes cobrem como crepes fúnebres e lutuosos.
Nas tardes de poentes arroxeados e serenos, quando o toque das Ave-Marias sobe dos campanários dos vales, ecoando pelas serras como litanias de órgão em uma imensa catedral, o viandante descobre-se, forçado por essa sugestão de melancólica religiosidade, e os joelhos dobram-se em uma prece muda por esses que já viveram, cujo culto imponente o prostra sobre a terra sagrada, e o fixa a ela, como esses túmulos imorredouros de granito, cobertos por montanhas, fixando eternamente ao mesmo solo os restos dos antepassados.
Sente-se que nessas construções tumulares de ciclópico aparelho, estão os alicerces de uma pátria.
Quaisquer que sejam entre os homens as formulas sociais ou as lutas dispersivas, nem estas nem os tempos conseguirão destruir por completo esses rústicos monumentos que sobre a terra implantaram as primeiras famílias humanas. No simples utensílio de pedra, que o homem primitivo transformou em amuleto simbolizando a potencia criadora, e nesses panteões de grandes penedos em cúpula, forçoso é confessar que estão os primeiros monumentos da fraternidade humana, as primeiras origens de uma nacionalidade.
De todos estes tipos sucedâneos de estações pré-históricas existem em Portugal numerosos exemplares e perfeitos. A ordem de continuidade entre estes estádios de civilização é tal, que em algumas estações mais avançadas da idade da pedra se principia a notar a aplicação dos metais, como se fosse a infiltração de uma nova civilização. Começa-se por um metal simples o cobre, que é nativo na Península.
É ainda neste promontório, no Sudeste, e dentro de Portugal, no Algarve, que aparecem os produtos desta indústria do cobre, constituindo uma natural transição para a indústria do bronze e do ferro. Na pré-história da Península, dever-se-á, portanto, abrir como termo cronológico de classificação uma idade do cobre.
Alguns dos momentos megalíticos do período neolítico subsistiram durante as idades e civilizações posteriores; pela sua continuidade dentro do seu quadro geográfico, e pela singularidade de alguns aspetos dentro do seu quadro arqueológico, a cronologia da pré-história peninsular não pode medir-se pelas datas atribuídas às civilizações do resto da Europa.
Esta confusão tem dado lugar às mais erradas interpretações dos factos pré-históricos de Portugal e Espanha, os quais constituem um cantão isolado, com características locais e cronologia própria.
As necrópoles megalíticas (de «dolmens», segundo a designação céltica) permaneceram em algumas zonas de Portugal durante toda a idade do bronze; alguns arqueólogos as faziam contemporâneas de estações das primeiras idades do ferro. Houve regiões do país, nos planaltos, em que os núcleos humanos permaneceram sob a civilização da pedra, enquanto nos grandes vales e na zona marítima, junto às estradas das migrações, os povos gozavam de civilizações mais avançadas. É o exemplo similar do Brasil, com os seus aldeamentos de índios aborígenes, concentrados pelos sertões, ainda na idade da pedra.
Em torno do culto dos mortos que erigiu essas necrópoles, uma doutrina religiosa se constituiu com os seus ritos, em que cada dólmen é uma catedral. De acordo com esta uniformidade de tipos arqueológicos, que se encontra por toda a parte, até nas Índias asiáticas, aventou-se a teoria de um povo-dos-dolmens caminhando pelo mundo inteiro, de oriente ao ocidente, impondo a sua civilização.
Entretanto, observamos como no pequeno território português é um facto a permanência do homem desde as suas origens, adstrito às condições físicas do seu meio, evoluindo gradativamente desde as manifestações mais simples da sua civilização. O progresso das civilizações autóctones e a influencia de outras, não se realiza tão somente pela irrupção de uma corrente imigratória; faz-se também insensivelmente, pelo contacto de elementos próximos, de povo a povo; há a introdução de uma nova arte ou indústria sem que um novo povo surja no quadro étnico do anterior; outras vezes dá-se a invasão de novo povo sem que se altere a civilização preexistente.
Sob o ponto de vista da sua composição étnica, a população da península era a esse tempo assaz mesclada. Já as duas raças primitivas de crânios longos e largos se haviam combinado em productos de variada mestiçagem. Qual deles foi o introdutor das novas civilizações? As causas determinantes deveriam ter sido várias e complexas; entretanto, o elemento primigénio foi o de crânio longo, ou dolicocéfalo; o invasor o de crânio largo ou braquicéfalo.
Inicia-se a idade dos metais com o aparecimento do cobre como elemento industrial; em continuação apareceu o bronze, por último o ferro. O bronze é uma liga de cobre e estanho; é um produto artificial.
Para explicar esta nova aquisição da indústria humana, mais invasões de elementos étnicos avançados são requeridas pelos eruditos; não obstante, os dois elementos cobre e estanho, encontram-se na Península, onde algumas tradições localizaram as «Cassitérides» das lendas argonautas do mundo clássico mediterrâneo.
As estações da idade do bronze confundem-se com as anteriores e ligam-se às sequentes, onde já aparecem as aplicações do ferro, cujos minérios se encontram no norte da Península em jazidas possantes e ricas.
São esclarecidas estas primeiras estações da idade do ferro pelas alvoradas indecisas da historia. Ligam-se com verosimilhança a legendas e inscrições datadas; são relacionadas em périplos e roteiros dos navegadores fenícios e gregos.
Uma grande dificuldade surge, porém, no meio de todos estes documentos, a qual está na exata interpretação dessas epígrafes e desses textos. As eruditas discussões a tal propósito preenchem uma vasta biblioteca!
Os dados arqueológicos, porém, suprem em parte esta insuficiência, denunciando-nos as formas e caracteres das civilizações; os dados antropológicos esclarecem-nos quanto aos tipos humanos fundamentais.
As famílias, as tribos, as «cidades», são situadas nos altos dos montes, em posições estratégicas adrede escolhidas. Em geral um sistema de muralhas concêntricas defende estas primitivas cidadelas que durante seculos se opuseram tenazmente às legiões invasoras dos romanos. A pouca distancia eram postas as necrópoles, cujas sepulturas com o seu fúnebre mobiliário são o repositório da história e civilização destes antigos povos.
Os «castros» e «cividades» — que assim denomina a tradição popular essas acrópoles fortificadas — tiveram no norte de Portugal o seu erudito exumador, Martins Sarmento, assim como as acrópoles de Micenas e Troia tiveram em Schliemann o sábio revelador das suas epopeias de grandezas. Aquelas, do norte português, são mais humildes, se bem que tão valiosas para a história dos bárbaros povos da Lusitânia.
A tradição popular conserva dessas estações noticia exata na sua toponímia local; a lenda envolve-as no seu nebuloso romantismo. A todos esses montes de ruinas o camponês chama «castelo de mouros»; todos eram cerrados por altas muralhas impenetráveis, do seu amago partia em direção ao rio ou fonte próxima um caminho subterrâneo por onde iam pela agua e levavam a beber os seus rebanhos.
Aí, junto à fonte que um deus bárbaro protege, nesse ponto misterioso do rio — nesses ribeiros de margens frondosas e bucólicas — a lenda conta que mouras encantadas surgem ainda hoje dessa entrada escondida, para se pentearem ao luar, debruçadas sobre o espelho das aguas cristalinas e luzentes.
E essa lenda de encantamento, veda, com o seu improfundável mistério, a entrada que nos levaria, se alguém ousasse descobri-la, até ao interior da cidadela soterrada, desvendando-nos a sua legendária historia!
A todos os restos arqueológicos de passadas épocas o povo inclui nas suas lendas da moirama. As invasões dos africanos deixaram com efeito na plebe portuguesa a impressão mais profunda e duradoura. É essa tradição que nos conduz pelos caminhos dispersos das aldeias em busca destes factos da história antiga nacional. A massa popular, ingénua e franca, conserva-nos, pois, com os caracteres das raças ancestrais, as suas novelas legendárias, os usos e costumes tradicionais, que nos levam á constituição das primeiras civilizações, as quais a história por completo ignora. Aí está, positivamente, nessa massa anónima que rasteja sobre a terra nacional o tesouro e a alma da pátria.
De entre as estações fortificadas que agora consideramos, tomarei a mais característica, o Castro de Saboroso, no centro do Minho. Espessas muralhas de cinco metros, de grossa alvenaria, circundam um aglomerado de casas cilíndricas, como moinhos, com estreitas ruelas lajeadas. Conservou-se este castro estranho á influencia romana. Encontram-se entre os detritos de louças, armas, utensílios e adornos —laminas de sílex lascado e machados de pedra polida. Este caso de sobreposição in loco de civilizações que se sucederam durante milhares de anos, é notável como documento de persistência no solo português de povos autóctones, cuja historia é paralela da historia geológica local.
A Citânia de Briteiros, pouco distante de Saboroso, a cividade de Tarroso, de Bagunte (explorada por mim) e tantas outras mais, constituem verdadeiras cidades nas quais a civilização romana completamente dominou. Entretanto, nada tem de romano o seu aspeto arqueológico. A arquitetura é a de Saboroso, esse oppidum típico: a alvenaria das casas cilíndricas é de aparelho helicoidal, modelo original e único; a singela ornamentação das ombreiras e padieiras de granito, assim como a ornamentação das suas louças de barro, é de estilo micénico, representando no norte do país essa civilização que se espalhou por todo o mundo mediterrânico e cuja síntese se encontra nas ilhas do mar Egeu.
Essa civilização, segundo Martins Sarmento, teria sido trazida pelos Ligures, vindos do Oriente, iguais aos povos de anteriores imigrações que ocuparam o noroeste da Europa até á ilha de Ea.
É interessante notar, como manifestação do carácter unitário de uma parte da população do norte português, que ainda hoje nas regiões montanhosas, onde o regime é pastoril e comunista se vêm os povoados constituídos como as antigas cividades; o casario, de perímetros retos ou circulares, agrupado como uma colmeia no cocuruto dos montes, sem muralhas todavia, abrigando uma colonia trabalhadora e pacifica que representa atualmente o primitivo habitante ancestral, dentro do seu ambiente arqueológico, como em outras eras.
Este curioso facto que vos aponto pertence à numerosa série de sobrevivências etnológicas que se notam em Portugal, que dão à sua população e à sua historia uma homogeneidade notável, contrastando com as outras nações europeias.
Ao passo que nas estações do centro a civilização é Egeana, ao longo das costas as influencias são fenícias ou cartaginesas. As descobertas do Sudeste da Península, que hoje enchem galerias de museu, foram ultimamente estudadas e comentadas por um sábio arqueólogo, o sr. Pierre Paris [1859-1931], em uma obra em dois volumes intitulada: «Ensaio sobre a arte e a indústria da Espanha primitiva». [ Essai sur l'art et l'industrie de l'Espagne primitive, 2 vols., 1903-1904 ]1903_-_pierre_paris_-_essaisurlarte_-_tome_1.pdf ; 1904_-_pierre_paris_-_essaisurlart_-_tome_2.pdf ]
Um facto capital se deduz deste estudo: é a existência de uma civilização ibérica rigorosamente determinada, anterior às influências vindas até á Península desde o oriente mediterrâneo por intermedio da civilização grega e dos fenícios. Esta tese, de uma categórica simplicidade, é de um alto alcance para a reconstituição do velho mundo ocidental; os Iberos dos antigos historiógrafos tem pois o seu lugar demarcado no vasto anfiteatro mediterrânico, por onde se espalhou a civilização dita Egeana ou greco-arcaica.
Em Portugal, Martins Sarmento e outros mais modestos estudiosos haviam já afirmado a primitiva independência da civilização do Ocidente ibérico; grato nos foi que este facto seja proclamado por um sábio estrangeiro às nacionalidades peninsulares.
«A arte indígena da Ibéria, diz o sr. P. Paris, abandonada a si própria, nas províncias afastadas do noroeste e do Centro, como paralisada por um vicio da natureza, permaneceu em um estado estacionário de rudeza barbara, e apenas por intervalos se vivificou sob a influencia longínqua da arte micénica. Pelo contrário, nos países que são banhados pelo Mediterrâneo, onde se estabeleceram os fenícios e os gregos, a dupla influencia do comércio e do espirito oriental e helénico, trouxe ás ideias e produções locais um elemento fecundante».
Entre todos os exemplares desta arte notabiliza-se o celebre busto da mulher de Elche, conservado no museu do Louvre, que constitui uma obra prima da arte ibérica.
Este fácies original, que começa a acentuar-se desde as necrópoles dolménicas da idade da pedra polida, e na civilização dos castros e cividades, toma nesta época proto-histórica caracteres definidos, dando a estes bárbaros que demoravam para além das colunas de Hercules, e apenas eram nomeados nas lendas argonáuticas, uma importância capital na formação das civilizações do antigo mundo mediterrâneo.
Não me refiro desde já a influencias romanas, porque todos estes factos lhe são anteriores.
Constata-se como nova aquisição para a historia, que os primeiros navegadores fenícios encontraram pelo litoral ibérico uma civilização que não era inferior á sua, notável pelo «florescente movimento comercial e marítimo que, partindo da ilha d'Ea, o mercado produtor do estanho, tomava rumo pela estrada do Atlântico para o Sudoeste da Espanha - seguido depois pelos aventureiros semitas — e pelas vias fluviais do Reno, Danúbio e Ródano para o interior da Europa». Os «Ligures», aparentados com os primitivos Albiões das ilhas britânicas, e com os oestrymnios, Cinetos e Tartéssios da Península, teriam sido os transmissores desta civilização de caracter micénico, levando-a até às margens do Reno, às praias do Báltico e talvez ao sul da Escandinávia. (M. Sarmento).
Foram estes povos ligúricos do litoral ibérico que guiaram os primeiros argonautas das lendas gregas e fenícias, em busca do tosão de ouro, pelo extremo ocidente da Europa. Dos fenícios não tiraram, sequer o alfabeto, tido como o único invento dos mercadores navegantes de Tiro e Sídon; as lapides de caracteres ibéricos, garantem a esta escrita uma incontestada antiguidade; pelo contrario esse alfabeto, cujos caracteres têm símiles em todos os povos da bacia mediterrânea, incluindo o norte berbérico da África, foi mais uma aquisição do traficante semita que o transplantou de mistura com mercadorias e civilizações cosmopolitas por toda a orla do Mediterrâneo, do ocidente ao oriente, ou vice-versa. A hegemonia dos pelasgos no oriente, lançou-os para o ocidente, forçando-os a passar as colunas de Hercules. Daí em diante, iberos e ligures lhes ensinaram a estrada ocidental para as minas do estanho, do cobre e do ouro. Nas suas lendas e périplos, o aventureiro semita escondeu a origem longínqua do seu comércio, negando a existência desses povos civilizados que demoravam nesses países remotos onde o sol se escondia; consoante um propósito de política comercial, confundiram e embaralharam povos e civilizações do ocidente europeu. E daí tiraram o máximo de gloria e de proveito.
A arqueologia pré-histórica, com o seu método naturalista de análise, veio esclarecer o problema; desfez-se a miragem oriental que colocava nesse ideal paraíso onde raiam as auroras, a fonte de todos os povos e civilizações; igualmente se derruiu o romance da civilização fenícia, do seu alfabeto e dos seus inventos. Afirmou-se com nitidez a existência de uma civilização ocidental abrangendo os países desta parte do Mediterrâneo, as terras que se estendem pelas costas atlânticas, pelas ilhas inglesas, até ao mar do Norte; fez-se a reconstituição desse vasto mundo ocidental; e nesses tempos primitivos que a história esqueceu, para além do mais puro arcaísmo grego, encontra-se uma civilização que não é oriental que não é caldaica, assíria ou egípcia, que tem as suas artes e industrias, que tem uma escrita que não é ideográfica nem hieroglífica, composta de sinais alfabetiformes.
Invertem-se os polos do mapa antigo das primeiras civilizações. A Península Ibérica, entre o Mediterrâneo e o Atlântico, ligando os dois continentes, foi o entreposto natural dessa civilização, a chave de todos esses roteiros marítimos que seguiram os povos vindos do oriente asiático ou do norte africano, ao mesmo tempo que o terminus das longas estradas terrestres do centro, do Norte e do oriente europeu. Aqui se estabelece o polo ocidental.
Por circunstâncias de lugar, tendo-se limitado às costas marítimas uma parte das influencias étnicas navegantes e instáveis, tendo-se acantonado outras nos distritos centrais e sendo absorvidas pelos núcleos autóctones, um facto notável é a permanência de certos tipos étnicos peninsulares e consequente homogeneidade do seu composto antropológico.
Dentro da Península, a província LUSITANIA, que pode considerar-se teoricamente o núcleo territorial da nação portuguesa, conserva o seu caracter original, linearmente definido. Poder-se-á afirmar com Martins Sarmento, o sábio arqueólogo português, que: os lusitanos, ao contrário do que geralmente se pensa, têm, graças à sua posição geográfica, uma das mais puras árvores genealógicas dos povos antigos. Formado por um grupo de tribos, pertencentes à migração ária que primeiro penetrou na Europa... este povo manteve-se no Noroeste da Espanha com a sua velha língua, os seus velhos costumes, a sua velha civilização, enfim, até à conquista romana».
São-nos legados como elementos de análise esses restos materiais, muitas vezes disformes, esqueletos corroídos, outrora animados pela efémera vestimenta da vida; e conjuntamente os esqueletos desmantelados dessa própria vida, das casas, dos túmulos, das artes, das industrias... que se vão decompondo e transformando nessa poeira infinita que constitui a matéria sempre viva da terra.
Aos arqueólogos compete a nova tarefa; há que fazer escavações e reconstruções; não existe sequer um roteiro; apenas a tradição, de quando a quando, como guia sempre enigmático e duvidoso.
Do solo português, que agora nos ocupa, foram desenterrados os vestígios mais remotos da industria humana.
Foi em 1866 que Carlos Ribeiro, o fundador dos estudos arqueo-geológicos em Portugal, desenterrou dos depósitos terciários da bacia do Tejo esses primeiros utensílios de pedra lascada, considerados como manufactura do homem. Estas descobertas no terciário português foram acompanhadas pelas de Thenay e Cantal em França, que as confirmaram quanto à provável existência de um ser humano durante esses afastados períodos geológicos. Admitidos esses «sílexes» lascados como obra do homem, este teria sido contemporâneo de espécies animais completamente extintas, próprias de um clima de altas temperaturas. A origem do homem teria, pois, ultrapassado a cronologia geológica até então prevista, não só contra os dogmas científicos e da génese bíblica, como também contra as mais audazes hipóteses da antropologia.
De acordo com as leis paleontológicas, e acompanhando a evolução da fauna fóssil contemporânea, nesse período geológico não deveria ter existido o homem no seu atual tipo genérico, mas a sua forma percursora; denominou-se então «Anthropopithecus ribeirensis». Muito mais tarde, em 1894, descobriu-se na ilha de Java, em terrenos terciários, os restos esqueléticos desse precursor do homem, de um ser intermediário, de atitude vertical e outros característicos humanos, ao qual o seu autor denominou «pithecanthropus erectus».
Estas descobertas são, pois, documentadas na própria formação do solo português, a qual foi acompanhada pelos tipos ancestrais do género humano. A este primeiro período de civilização se chamou eolítico.
Seguidamente, nos terrenos aluvionares de idade mais recente, e nos depósitos das cavernas do período quaternário, são encontrados ainda os vestígios do homem, com uma civilização mais avançada, usando o utensilio de pedra lascada, mais aperfeiçoado na sua forma, mais completo nas suas utilidades. O homem de então habita as cavernas e abrigos naturais; no começo troglodita e caçador, vai depois domesticando alguns animais, ensaiando algumas industrias caseiras como a do vestuário, da olaria, e outros artefactos rudimentares; enterra os seus mortos depositando-os nas criptas naturais, faz a trepanação. Intitula-se este período de paleolítico.
Durante este imenso período de muitos milhares de anos, e na sua ultima fase, predominaram no centro da Europa as baixas temperaturas e aí viveu uma fauna de clima frio, rica de espécies, da qual uma parte emigrou para os gelos do norte, outra desapareceu como o urso das cavernas, a rena, o mamute.
Na ultima época o trabalho da pedra adquiriu uma perfeição verdadeiramente notável; encontram-se pontas de flechas de um trabalho finíssimo, são verdadeiras joias: o homem trabalha os ossos dos animais para utensílios e objetos de adorno; enfeita-se e ornamenta o seu parco mobiliário com desenhos de um naturalismo ingénuo mas artista. É a infância da Arte.
Em grutas dos Pirinéus, nas vertentes francesas e espanholas, têm-se encontrado desenhos coloridos que reproduzem os animais da época, em grupos e atitudes de uma exatidão que surpreende. Visitei as celebres grutas de Altamira, perto de Torrelavega, e pude apreciar à luz de magnésio esses quadros pintados sobre os tetos abobados, em lugares arredados e escuros, onde não chega a claridade do dia. Parece que o homem de então, propositadamente confiou a esses escuros arcanos subterrâneos, que abrigaram as primeiras famílias humanas, o quadro desses animais, alguns desaparecidos, que constituíam o elemento basilar da sua vida primitiva de caçador e pastor.
Estas estações do quaternário, descobertas no solo da Península, atestam portanto que aqui existiu o homem, desde a sua forma percursora, evoluindo durante épocas afastadas de nós por verdadeiros cataclismos geológicos, ao lado de espécies animais que desapareceram, se transformaram também ou emigraram para os climas extremos da zona equatorial ou para os campos gelados das regiões polares.
Não se carece, pois, de recorrer ao Éden paradisíaco para buscar os descendentes de Adão, afim de povoar estas terras que ficavam no cabo do mundo. Nelas encontramos seres pré-adamicos, fixos ao solo como produtos natos. Sem querer perturbar a tese monogenista das origens humanas, acentuo este facto primordial da coexistência do homem com os fenómenos geológicos que prepararam o território peninsular desde as formações terciárias dos vales do Tejo e Sado.
Continuando as nossas pesquisas, novos vestígios encontramos e novos progressos nas primitivas civilizações humanas. À indústria da pedra lascada, segue-se a da pedra-polida; encontram-se restos do homem e da sua indústria em estações de formação mais recente, junto a restos de uma fauna igual à de nossos dias. Apenas nos distancia dessas eras a natureza bárbara e primitiva da civilização. Estamos em um novo período que se intitulou de neolítico, e com ele termina a IDADE DA PEDRA.
O homem ocupou ainda os abrigos naturais, mas abriu também grutas artificiais á semelhança daqueles, e construiu as primeiras choupanas sobre estacaria à beira dos lagos, ou dentro de paliçadas em campos fechados e entrincheirados. Inicia-se a vida comunista; manifesta-se o culto pelos mortos que são inumados primeiramente dentro das próprias habitações sob a primitiva lareira; na última fase deste período, porém, o homem construiu, à semelhança da sua casa, o túmulo megalítico; e desta sorte edificou extensas necrópoles. Os túmulos são câmaras de enormes blocos, cobertos por montes de terra, que parecem ser as lendárias construções de ciclopes; no interior foram depositados os cadáveres, ao lado os utensílios e o mobiliário de uso comum, os seus adornos e armas; havia pois a crença em uma vida futura — a morte era uma consagração.
Quem isto vos narra, meus senhores, algum tempo palmilhou por carreiros tortuosos os planaltos do Norte de Portugal, caminhando por essas chãs agrestes e frias, onde apenas produz o centeio, acompanhado pelo almocreve folgazão e fiel, e pelo canto dolente das cotovias. Por esses planaltos se estendem séries de túmulos megalíticos, (antas se chamam, com as suas mamoas) como se fora um extenso campo santo, colocado em lugar menos acessível ao desrespeito dos homens, mais próximo do azul do firmamento. Nesse ermo jaz a longa necrópole, eternamente enfeitada pelo manto florido e brilhante do céu estrelado, que as nuvens por vezes cobrem como crepes fúnebres e lutuosos.
Nas tardes de poentes arroxeados e serenos, quando o toque das Ave-Marias sobe dos campanários dos vales, ecoando pelas serras como litanias de órgão em uma imensa catedral, o viandante descobre-se, forçado por essa sugestão de melancólica religiosidade, e os joelhos dobram-se em uma prece muda por esses que já viveram, cujo culto imponente o prostra sobre a terra sagrada, e o fixa a ela, como esses túmulos imorredouros de granito, cobertos por montanhas, fixando eternamente ao mesmo solo os restos dos antepassados.
Sente-se que nessas construções tumulares de ciclópico aparelho, estão os alicerces de uma pátria.
Quaisquer que sejam entre os homens as formulas sociais ou as lutas dispersivas, nem estas nem os tempos conseguirão destruir por completo esses rústicos monumentos que sobre a terra implantaram as primeiras famílias humanas. No simples utensílio de pedra, que o homem primitivo transformou em amuleto simbolizando a potencia criadora, e nesses panteões de grandes penedos em cúpula, forçoso é confessar que estão os primeiros monumentos da fraternidade humana, as primeiras origens de uma nacionalidade.
De todos estes tipos sucedâneos de estações pré-históricas existem em Portugal numerosos exemplares e perfeitos. A ordem de continuidade entre estes estádios de civilização é tal, que em algumas estações mais avançadas da idade da pedra se principia a notar a aplicação dos metais, como se fosse a infiltração de uma nova civilização. Começa-se por um metal simples o cobre, que é nativo na Península.
É ainda neste promontório, no Sudeste, e dentro de Portugal, no Algarve, que aparecem os produtos desta indústria do cobre, constituindo uma natural transição para a indústria do bronze e do ferro. Na pré-história da Península, dever-se-á, portanto, abrir como termo cronológico de classificação uma idade do cobre.
Alguns dos momentos megalíticos do período neolítico subsistiram durante as idades e civilizações posteriores; pela sua continuidade dentro do seu quadro geográfico, e pela singularidade de alguns aspetos dentro do seu quadro arqueológico, a cronologia da pré-história peninsular não pode medir-se pelas datas atribuídas às civilizações do resto da Europa.
Esta confusão tem dado lugar às mais erradas interpretações dos factos pré-históricos de Portugal e Espanha, os quais constituem um cantão isolado, com características locais e cronologia própria.
As necrópoles megalíticas (de «dolmens», segundo a designação céltica) permaneceram em algumas zonas de Portugal durante toda a idade do bronze; alguns arqueólogos as faziam contemporâneas de estações das primeiras idades do ferro. Houve regiões do país, nos planaltos, em que os núcleos humanos permaneceram sob a civilização da pedra, enquanto nos grandes vales e na zona marítima, junto às estradas das migrações, os povos gozavam de civilizações mais avançadas. É o exemplo similar do Brasil, com os seus aldeamentos de índios aborígenes, concentrados pelos sertões, ainda na idade da pedra.
Em torno do culto dos mortos que erigiu essas necrópoles, uma doutrina religiosa se constituiu com os seus ritos, em que cada dólmen é uma catedral. De acordo com esta uniformidade de tipos arqueológicos, que se encontra por toda a parte, até nas Índias asiáticas, aventou-se a teoria de um povo-dos-dolmens caminhando pelo mundo inteiro, de oriente ao ocidente, impondo a sua civilização.
Entretanto, observamos como no pequeno território português é um facto a permanência do homem desde as suas origens, adstrito às condições físicas do seu meio, evoluindo gradativamente desde as manifestações mais simples da sua civilização. O progresso das civilizações autóctones e a influencia de outras, não se realiza tão somente pela irrupção de uma corrente imigratória; faz-se também insensivelmente, pelo contacto de elementos próximos, de povo a povo; há a introdução de uma nova arte ou indústria sem que um novo povo surja no quadro étnico do anterior; outras vezes dá-se a invasão de novo povo sem que se altere a civilização preexistente.
Sob o ponto de vista da sua composição étnica, a população da península era a esse tempo assaz mesclada. Já as duas raças primitivas de crânios longos e largos se haviam combinado em productos de variada mestiçagem. Qual deles foi o introdutor das novas civilizações? As causas determinantes deveriam ter sido várias e complexas; entretanto, o elemento primigénio foi o de crânio longo, ou dolicocéfalo; o invasor o de crânio largo ou braquicéfalo.
Inicia-se a idade dos metais com o aparecimento do cobre como elemento industrial; em continuação apareceu o bronze, por último o ferro. O bronze é uma liga de cobre e estanho; é um produto artificial.
Para explicar esta nova aquisição da indústria humana, mais invasões de elementos étnicos avançados são requeridas pelos eruditos; não obstante, os dois elementos cobre e estanho, encontram-se na Península, onde algumas tradições localizaram as «Cassitérides» das lendas argonautas do mundo clássico mediterrâneo.
As estações da idade do bronze confundem-se com as anteriores e ligam-se às sequentes, onde já aparecem as aplicações do ferro, cujos minérios se encontram no norte da Península em jazidas possantes e ricas.
São esclarecidas estas primeiras estações da idade do ferro pelas alvoradas indecisas da historia. Ligam-se com verosimilhança a legendas e inscrições datadas; são relacionadas em périplos e roteiros dos navegadores fenícios e gregos.
Uma grande dificuldade surge, porém, no meio de todos estes documentos, a qual está na exata interpretação dessas epígrafes e desses textos. As eruditas discussões a tal propósito preenchem uma vasta biblioteca!
Os dados arqueológicos, porém, suprem em parte esta insuficiência, denunciando-nos as formas e caracteres das civilizações; os dados antropológicos esclarecem-nos quanto aos tipos humanos fundamentais.
As famílias, as tribos, as «cidades», são situadas nos altos dos montes, em posições estratégicas adrede escolhidas. Em geral um sistema de muralhas concêntricas defende estas primitivas cidadelas que durante seculos se opuseram tenazmente às legiões invasoras dos romanos. A pouca distancia eram postas as necrópoles, cujas sepulturas com o seu fúnebre mobiliário são o repositório da história e civilização destes antigos povos.
Os «castros» e «cividades» — que assim denomina a tradição popular essas acrópoles fortificadas — tiveram no norte de Portugal o seu erudito exumador, Martins Sarmento, assim como as acrópoles de Micenas e Troia tiveram em Schliemann o sábio revelador das suas epopeias de grandezas. Aquelas, do norte português, são mais humildes, se bem que tão valiosas para a história dos bárbaros povos da Lusitânia.
A tradição popular conserva dessas estações noticia exata na sua toponímia local; a lenda envolve-as no seu nebuloso romantismo. A todos esses montes de ruinas o camponês chama «castelo de mouros»; todos eram cerrados por altas muralhas impenetráveis, do seu amago partia em direção ao rio ou fonte próxima um caminho subterrâneo por onde iam pela agua e levavam a beber os seus rebanhos.
Aí, junto à fonte que um deus bárbaro protege, nesse ponto misterioso do rio — nesses ribeiros de margens frondosas e bucólicas — a lenda conta que mouras encantadas surgem ainda hoje dessa entrada escondida, para se pentearem ao luar, debruçadas sobre o espelho das aguas cristalinas e luzentes.
E essa lenda de encantamento, veda, com o seu improfundável mistério, a entrada que nos levaria, se alguém ousasse descobri-la, até ao interior da cidadela soterrada, desvendando-nos a sua legendária historia!
A todos os restos arqueológicos de passadas épocas o povo inclui nas suas lendas da moirama. As invasões dos africanos deixaram com efeito na plebe portuguesa a impressão mais profunda e duradoura. É essa tradição que nos conduz pelos caminhos dispersos das aldeias em busca destes factos da história antiga nacional. A massa popular, ingénua e franca, conserva-nos, pois, com os caracteres das raças ancestrais, as suas novelas legendárias, os usos e costumes tradicionais, que nos levam á constituição das primeiras civilizações, as quais a história por completo ignora. Aí está, positivamente, nessa massa anónima que rasteja sobre a terra nacional o tesouro e a alma da pátria.
De entre as estações fortificadas que agora consideramos, tomarei a mais característica, o Castro de Saboroso, no centro do Minho. Espessas muralhas de cinco metros, de grossa alvenaria, circundam um aglomerado de casas cilíndricas, como moinhos, com estreitas ruelas lajeadas. Conservou-se este castro estranho á influencia romana. Encontram-se entre os detritos de louças, armas, utensílios e adornos —laminas de sílex lascado e machados de pedra polida. Este caso de sobreposição in loco de civilizações que se sucederam durante milhares de anos, é notável como documento de persistência no solo português de povos autóctones, cuja historia é paralela da historia geológica local.
A Citânia de Briteiros, pouco distante de Saboroso, a cividade de Tarroso, de Bagunte (explorada por mim) e tantas outras mais, constituem verdadeiras cidades nas quais a civilização romana completamente dominou. Entretanto, nada tem de romano o seu aspeto arqueológico. A arquitetura é a de Saboroso, esse oppidum típico: a alvenaria das casas cilíndricas é de aparelho helicoidal, modelo original e único; a singela ornamentação das ombreiras e padieiras de granito, assim como a ornamentação das suas louças de barro, é de estilo micénico, representando no norte do país essa civilização que se espalhou por todo o mundo mediterrânico e cuja síntese se encontra nas ilhas do mar Egeu.
Essa civilização, segundo Martins Sarmento, teria sido trazida pelos Ligures, vindos do Oriente, iguais aos povos de anteriores imigrações que ocuparam o noroeste da Europa até á ilha de Ea.
É interessante notar, como manifestação do carácter unitário de uma parte da população do norte português, que ainda hoje nas regiões montanhosas, onde o regime é pastoril e comunista se vêm os povoados constituídos como as antigas cividades; o casario, de perímetros retos ou circulares, agrupado como uma colmeia no cocuruto dos montes, sem muralhas todavia, abrigando uma colonia trabalhadora e pacifica que representa atualmente o primitivo habitante ancestral, dentro do seu ambiente arqueológico, como em outras eras.
Este curioso facto que vos aponto pertence à numerosa série de sobrevivências etnológicas que se notam em Portugal, que dão à sua população e à sua historia uma homogeneidade notável, contrastando com as outras nações europeias.
Ao passo que nas estações do centro a civilização é Egeana, ao longo das costas as influencias são fenícias ou cartaginesas. As descobertas do Sudeste da Península, que hoje enchem galerias de museu, foram ultimamente estudadas e comentadas por um sábio arqueólogo, o sr. Pierre Paris [1859-1931], em uma obra em dois volumes intitulada: «Ensaio sobre a arte e a indústria da Espanha primitiva». [ Essai sur l'art et l'industrie de l'Espagne primitive, 2 vols., 1903-1904 ]1903_-_pierre_paris_-_essaisurlarte_-_tome_1.pdf ; 1904_-_pierre_paris_-_essaisurlart_-_tome_2.pdf ]
Um facto capital se deduz deste estudo: é a existência de uma civilização ibérica rigorosamente determinada, anterior às influências vindas até á Península desde o oriente mediterrâneo por intermedio da civilização grega e dos fenícios. Esta tese, de uma categórica simplicidade, é de um alto alcance para a reconstituição do velho mundo ocidental; os Iberos dos antigos historiógrafos tem pois o seu lugar demarcado no vasto anfiteatro mediterrânico, por onde se espalhou a civilização dita Egeana ou greco-arcaica.
Em Portugal, Martins Sarmento e outros mais modestos estudiosos haviam já afirmado a primitiva independência da civilização do Ocidente ibérico; grato nos foi que este facto seja proclamado por um sábio estrangeiro às nacionalidades peninsulares.
«A arte indígena da Ibéria, diz o sr. P. Paris, abandonada a si própria, nas províncias afastadas do noroeste e do Centro, como paralisada por um vicio da natureza, permaneceu em um estado estacionário de rudeza barbara, e apenas por intervalos se vivificou sob a influencia longínqua da arte micénica. Pelo contrário, nos países que são banhados pelo Mediterrâneo, onde se estabeleceram os fenícios e os gregos, a dupla influencia do comércio e do espirito oriental e helénico, trouxe ás ideias e produções locais um elemento fecundante».
Entre todos os exemplares desta arte notabiliza-se o celebre busto da mulher de Elche, conservado no museu do Louvre, que constitui uma obra prima da arte ibérica.
Este fácies original, que começa a acentuar-se desde as necrópoles dolménicas da idade da pedra polida, e na civilização dos castros e cividades, toma nesta época proto-histórica caracteres definidos, dando a estes bárbaros que demoravam para além das colunas de Hercules, e apenas eram nomeados nas lendas argonáuticas, uma importância capital na formação das civilizações do antigo mundo mediterrâneo.
Não me refiro desde já a influencias romanas, porque todos estes factos lhe são anteriores.
Constata-se como nova aquisição para a historia, que os primeiros navegadores fenícios encontraram pelo litoral ibérico uma civilização que não era inferior á sua, notável pelo «florescente movimento comercial e marítimo que, partindo da ilha d'Ea, o mercado produtor do estanho, tomava rumo pela estrada do Atlântico para o Sudoeste da Espanha - seguido depois pelos aventureiros semitas — e pelas vias fluviais do Reno, Danúbio e Ródano para o interior da Europa». Os «Ligures», aparentados com os primitivos Albiões das ilhas britânicas, e com os oestrymnios, Cinetos e Tartéssios da Península, teriam sido os transmissores desta civilização de caracter micénico, levando-a até às margens do Reno, às praias do Báltico e talvez ao sul da Escandinávia. (M. Sarmento).
Foram estes povos ligúricos do litoral ibérico que guiaram os primeiros argonautas das lendas gregas e fenícias, em busca do tosão de ouro, pelo extremo ocidente da Europa. Dos fenícios não tiraram, sequer o alfabeto, tido como o único invento dos mercadores navegantes de Tiro e Sídon; as lapides de caracteres ibéricos, garantem a esta escrita uma incontestada antiguidade; pelo contrario esse alfabeto, cujos caracteres têm símiles em todos os povos da bacia mediterrânea, incluindo o norte berbérico da África, foi mais uma aquisição do traficante semita que o transplantou de mistura com mercadorias e civilizações cosmopolitas por toda a orla do Mediterrâneo, do ocidente ao oriente, ou vice-versa. A hegemonia dos pelasgos no oriente, lançou-os para o ocidente, forçando-os a passar as colunas de Hercules. Daí em diante, iberos e ligures lhes ensinaram a estrada ocidental para as minas do estanho, do cobre e do ouro. Nas suas lendas e périplos, o aventureiro semita escondeu a origem longínqua do seu comércio, negando a existência desses povos civilizados que demoravam nesses países remotos onde o sol se escondia; consoante um propósito de política comercial, confundiram e embaralharam povos e civilizações do ocidente europeu. E daí tiraram o máximo de gloria e de proveito.
A arqueologia pré-histórica, com o seu método naturalista de análise, veio esclarecer o problema; desfez-se a miragem oriental que colocava nesse ideal paraíso onde raiam as auroras, a fonte de todos os povos e civilizações; igualmente se derruiu o romance da civilização fenícia, do seu alfabeto e dos seus inventos. Afirmou-se com nitidez a existência de uma civilização ocidental abrangendo os países desta parte do Mediterrâneo, as terras que se estendem pelas costas atlânticas, pelas ilhas inglesas, até ao mar do Norte; fez-se a reconstituição desse vasto mundo ocidental; e nesses tempos primitivos que a história esqueceu, para além do mais puro arcaísmo grego, encontra-se uma civilização que não é oriental que não é caldaica, assíria ou egípcia, que tem as suas artes e industrias, que tem uma escrita que não é ideográfica nem hieroglífica, composta de sinais alfabetiformes.
Invertem-se os polos do mapa antigo das primeiras civilizações. A Península Ibérica, entre o Mediterrâneo e o Atlântico, ligando os dois continentes, foi o entreposto natural dessa civilização, a chave de todos esses roteiros marítimos que seguiram os povos vindos do oriente asiático ou do norte africano, ao mesmo tempo que o terminus das longas estradas terrestres do centro, do Norte e do oriente europeu. Aqui se estabelece o polo ocidental.
Por circunstâncias de lugar, tendo-se limitado às costas marítimas uma parte das influencias étnicas navegantes e instáveis, tendo-se acantonado outras nos distritos centrais e sendo absorvidas pelos núcleos autóctones, um facto notável é a permanência de certos tipos étnicos peninsulares e consequente homogeneidade do seu composto antropológico.
Dentro da Península, a província LUSITANIA, que pode considerar-se teoricamente o núcleo territorial da nação portuguesa, conserva o seu caracter original, linearmente definido. Poder-se-á afirmar com Martins Sarmento, o sábio arqueólogo português, que: os lusitanos, ao contrário do que geralmente se pensa, têm, graças à sua posição geográfica, uma das mais puras árvores genealógicas dos povos antigos. Formado por um grupo de tribos, pertencentes à migração ária que primeiro penetrou na Europa... este povo manteve-se no Noroeste da Espanha com a sua velha língua, os seus velhos costumes, a sua velha civilização, enfim, até à conquista romana».
III.
Os tipos antropológicos
Os tipos antropológicos
Antes de prosseguir narrando o pouco que a historia nos revela a propósito destes povos, nossos antepassados, vamos verificar, aplicando o mesmo processo naturalista de análise, quais as raças ou tipos de que se compõem os primeiros núcleos de habitadores do país de Portugal.
Pelos estudos antropométricos feitos sobre os restos humanos das estações arqueológicas, desde os tempos pré-históricos, e pelas observações realizadas sobre os habitantes atuais, poder-se-á separar esse composto nos seguintes elementos étnicos constituintes:
1.°- RAÇA PRIMITIVA DOLICOCÉFALA: crânio longo, face curta, baixa estatura, morena, cabelos escuros. E' o chamado Homo mediterraneus ou Homo arabicus, substractum o mais primitivo, que se encontra em todos os países da bacia do Mediterrâneo, costas europeias e africanas, na sua metade ocidental. É a primeira raça autóctone, proveniente desse tipo de Neanderthal que vem desde a época paleolítica, e cujos representantes atuais mais puros se encontram localizados nas montanhas do Alto-Minho, Trás-os-Montes e Beira.
Dentro deste tipo dolicocéfalo, dois subtipos teremos a considerar: um de baixa estatura, o primitivo autóctone já descrito; outro de alta estatura, de posterior influencia, exemplificado nos trogloditas das costas mediterrânicas, no crânio clássico do Cro-Magnon.
2.°- RAÇA BRAQUICÉFALA: crânio largo, baixa estatura, morena, cabelos escuros. É o denominado Homo Alpinus. Considera-se a raça dos primeiros emigrantes pré-históricos, que chegaram à Península ibérica no começo do período neolítico. A esta raça chamaram os antropólogos Céltica, ou Celto-eslava: Lígure, porém, será a sua mais acertada designação histórica. Desta raça se encontram em Portugal raros tipos puros: aparece fundida nos tipos médios ou mesaticocéfalos, sem ter uma localização definida. Em Espanha localizam-se os seus representantes na região Cantábrica, na baixa Andaluzia, incluindo a bacia do Guadiana.
3. °- RAÇA DOLICOCÉFALA HARMÓNICA: crânio e face longos, alta estatura, olhos claros, tez branca, cabelos louros ou ruivos. É o chamado Homo Europœus, por se considerar o tipo nobre europeu. Apareceu este tipo nos cemitérios de túmulos alinhados das primeiras idades do ferro; denominou-se por isso dos Reihengräber, segundo a classificação de Hölder. É a raça também conhecida por nórdica, kymrica, teutónica, germânica ou gaulesa. Invadiu a Península em várias épocas; aparece nos cemitérios luso-romanos de Cascais do tipo dos Reihengräber. As suas invasões posteriores datam do seculo V, e a sua influência nas populações de Portugal acentuou-se no norte do país e em núcleos da costa marítima— nestes, conjuntamente com o tipo nítido do libifenício.
Quanto aos caracteres gerais descritivos, dar-vos-ei o seguinte resumo:
Cor dos olhos e dos cabelos: É a população mais morena da Europa; a influência loura segue a zona marítima do Noroeste e Sudoeste, prolongando-se com a Galiza atual. Nas regiões centrais e montanhosas o tipo moreno é o mais puro. O português, pelo seu tipo médio, aproxima-se do Aquitânio, do habitante das ilhas ocidentais do Mediterrâneo e do tipo Berbere do norte africano.
Índice cefálico: E' o mais dolicocéfalo dos povos europeus; o tipo mais puro encontra-se também nas terras montanhosas de Trás-os-Montes e Beira.
Dos países limítrofes, a Espanha é mesaticefala, a França mais braquicefala.
Estatura: A média portuguesa é igual à italiana, inferior à francesa, ligeiramente superior à espanhola. O montanhês do norte de Portugal é baixo, representando o dolicocéfalo primitivo; no centro é alto, acusando a descendência no tipo dolicóide de Cro-Magnon; nas planícies da faixa marítima é alto, denunciando a influencia do elemento nórdico invasor.
No seu tipo médio o português integra-se no quadro da população mediterrâneos, nas suas plagas ocidentais.
A população portuguesa é considerada atualmente como a mais dolicocéfala e homogénea da Europa Ocidental.
Portanto, dentro da Península Ibérica, a gente portuguesa conserva-se em uma formula étnica, com feição distinta, não obstante as zonas intermedias de contacto com as outras províncias peninsulares.
Pelos estudos antropométricos feitos sobre os restos humanos das estações arqueológicas, desde os tempos pré-históricos, e pelas observações realizadas sobre os habitantes atuais, poder-se-á separar esse composto nos seguintes elementos étnicos constituintes:
1.°- RAÇA PRIMITIVA DOLICOCÉFALA: crânio longo, face curta, baixa estatura, morena, cabelos escuros. E' o chamado Homo mediterraneus ou Homo arabicus, substractum o mais primitivo, que se encontra em todos os países da bacia do Mediterrâneo, costas europeias e africanas, na sua metade ocidental. É a primeira raça autóctone, proveniente desse tipo de Neanderthal que vem desde a época paleolítica, e cujos representantes atuais mais puros se encontram localizados nas montanhas do Alto-Minho, Trás-os-Montes e Beira.
Dentro deste tipo dolicocéfalo, dois subtipos teremos a considerar: um de baixa estatura, o primitivo autóctone já descrito; outro de alta estatura, de posterior influencia, exemplificado nos trogloditas das costas mediterrânicas, no crânio clássico do Cro-Magnon.
2.°- RAÇA BRAQUICÉFALA: crânio largo, baixa estatura, morena, cabelos escuros. É o denominado Homo Alpinus. Considera-se a raça dos primeiros emigrantes pré-históricos, que chegaram à Península ibérica no começo do período neolítico. A esta raça chamaram os antropólogos Céltica, ou Celto-eslava: Lígure, porém, será a sua mais acertada designação histórica. Desta raça se encontram em Portugal raros tipos puros: aparece fundida nos tipos médios ou mesaticocéfalos, sem ter uma localização definida. Em Espanha localizam-se os seus representantes na região Cantábrica, na baixa Andaluzia, incluindo a bacia do Guadiana.
3. °- RAÇA DOLICOCÉFALA HARMÓNICA: crânio e face longos, alta estatura, olhos claros, tez branca, cabelos louros ou ruivos. É o chamado Homo Europœus, por se considerar o tipo nobre europeu. Apareceu este tipo nos cemitérios de túmulos alinhados das primeiras idades do ferro; denominou-se por isso dos Reihengräber, segundo a classificação de Hölder. É a raça também conhecida por nórdica, kymrica, teutónica, germânica ou gaulesa. Invadiu a Península em várias épocas; aparece nos cemitérios luso-romanos de Cascais do tipo dos Reihengräber. As suas invasões posteriores datam do seculo V, e a sua influência nas populações de Portugal acentuou-se no norte do país e em núcleos da costa marítima— nestes, conjuntamente com o tipo nítido do libifenício.
Quanto aos caracteres gerais descritivos, dar-vos-ei o seguinte resumo:
Cor dos olhos e dos cabelos: É a população mais morena da Europa; a influência loura segue a zona marítima do Noroeste e Sudoeste, prolongando-se com a Galiza atual. Nas regiões centrais e montanhosas o tipo moreno é o mais puro. O português, pelo seu tipo médio, aproxima-se do Aquitânio, do habitante das ilhas ocidentais do Mediterrâneo e do tipo Berbere do norte africano.
Índice cefálico: E' o mais dolicocéfalo dos povos europeus; o tipo mais puro encontra-se também nas terras montanhosas de Trás-os-Montes e Beira.
Dos países limítrofes, a Espanha é mesaticefala, a França mais braquicefala.
Estatura: A média portuguesa é igual à italiana, inferior à francesa, ligeiramente superior à espanhola. O montanhês do norte de Portugal é baixo, representando o dolicocéfalo primitivo; no centro é alto, acusando a descendência no tipo dolicóide de Cro-Magnon; nas planícies da faixa marítima é alto, denunciando a influencia do elemento nórdico invasor.
No seu tipo médio o português integra-se no quadro da população mediterrâneos, nas suas plagas ocidentais.
A população portuguesa é considerada atualmente como a mais dolicocéfala e homogénea da Europa Ocidental.
Portanto, dentro da Península Ibérica, a gente portuguesa conserva-se em uma formula étnica, com feição distinta, não obstante as zonas intermedias de contacto com as outras províncias peninsulares.
IV.
Quadro dos povos primitivos
Quadro dos povos primitivos
Conjugando os dados da arqueologia pré-histórica com os da antropometria e da história, poderemos estabelecer de um modo sumário o quadro cronológico dos povos que concorreram para a constituição do português atual:
Todos estes povos forneceram elementos para a composição da atual população portuguesa. Entretanto, o quadro de aparência complexa e desordenada, uniformiza-se e simplifica-se desde que cataloguemos os elementos pelas suas relações de afinidade.
Sobre o primogénito fundo ibero-berbérico, o elemento ligúrico completamente se adaptou, combinando-se em um producto definido: é o mesatocéfalo.
Os elementos posteriores de natureza berbérica, semita, púnica, etc., encontraram já nesse composto aborígene elementos afins, não provocam alterações radicais do tipo primitivo, reforçam apenas alguns dos seus caracteres étnicos fundamentais.
O elemento verdadeiramente estranho é o germânico, gálata ou celta, cuja ação é mais notável nos países da Galiza e Portugal. Esta influência é nestes meios étnicos mais antiga e profunda do que têm suposto alguns dos nossos mais doutos historiógrafos. Vem desde o primeiro período da idade do ferro.
Ao lígure compete, de facto, um papel primordial na história das civilizações e na formação dos povos peninsulares, mas às posteriores invasões teutónicas, coube também missão não menos importante na constituição do organismo nacional, quer sobre o ponto de vista étnico ou antropológico, quer sob o ponto de vista social.
- - O habitante autóctone, contemporâneo dos fenómenos geológicos que produziram as formações aluvionares consecutivas ao período terciário, companheiro de uma fauna de espécies desaparecidas, anterior aos fenómenos glaciários das primeiras épocas do período quaternário.
- - Um povo de caracteres similares, porém de maiores proporções, irmão do primitivo berbere do norte africano, cuja descendência se propagou pelo ocidente da Europa; é o povo ibérico, não ariano.
- - Nova população de tipo antropológico diferente; consta dos primeiros lígures braquicéfalos, vindos do Oriente, portadores de uma civilização mais avançada; as primeiras imigrações com a indústria da pedra polida, as segundas com a indústria dos metais; é um povo ariano.
- - Primeira invasão dos povos indo-germânicos, ditos celtas ou gauleses, que se estabeleceram ao noroeste e sudeste da península.
- - Expedições de libifenícios, vindo primeiramente como negociantes estabelecer os seus «empórios» ou «feitorias» pela costa marítima; mais tarde os púnicos ou cartagineses como conquistadores, pretendendo avassalar toda a península. Desde o século XII até ao século II antes de Cristo.
- - Povos de nacionalidade romana, dominando politicamente toda a península, impondo a sua civilização e a sua língua. Não se acusa a sua influência sob o ponto de vista étnico por serem povos de composição similar à dos vencidos, tendo o mesmo fundo ibero-lígure.
- - Segunda invasão de povos germânicos ou teutónicos, começando no seculo V, da era atual. Os vândalos, alanos e suevos primeiro, os visigodos depois.
- - Conquista dos árabes e berberes, vindos do norte da África, e estabelecendo-se na península desde os séculos VIII a XII.
Todos estes povos forneceram elementos para a composição da atual população portuguesa. Entretanto, o quadro de aparência complexa e desordenada, uniformiza-se e simplifica-se desde que cataloguemos os elementos pelas suas relações de afinidade.
Sobre o primogénito fundo ibero-berbérico, o elemento ligúrico completamente se adaptou, combinando-se em um producto definido: é o mesatocéfalo.
Os elementos posteriores de natureza berbérica, semita, púnica, etc., encontraram já nesse composto aborígene elementos afins, não provocam alterações radicais do tipo primitivo, reforçam apenas alguns dos seus caracteres étnicos fundamentais.
O elemento verdadeiramente estranho é o germânico, gálata ou celta, cuja ação é mais notável nos países da Galiza e Portugal. Esta influência é nestes meios étnicos mais antiga e profunda do que têm suposto alguns dos nossos mais doutos historiógrafos. Vem desde o primeiro período da idade do ferro.
Ao lígure compete, de facto, um papel primordial na história das civilizações e na formação dos povos peninsulares, mas às posteriores invasões teutónicas, coube também missão não menos importante na constituição do organismo nacional, quer sobre o ponto de vista étnico ou antropológico, quer sob o ponto de vista social.
V.
A Lusitânia
A Lusitânia
São incompletos os dados da geografia antiga sobre a localização dos diversos povos peninsulares. Júlio Cesar em seus Comentários alguma coisa nos diz sobre a denominação de alguns povos da Gália, seus países, tipos, usos e costumes. Dele concluímos a natureza dos aquitanos, mescla de gauleses com a raça aborígene, verificamos a igualdade étnica entre celtas e galos, e classificamos os belgas como gauleses ou germanos autênticos.
De Estrabão, que escreveu no primeiro seculo da era atual, extratamos: «Ao norte do Tejo dilata-se a «Lusitânia» habitada pela mais poderosa das nações ibéricas e que entre todas por mais tempo deteve as armas romanas. Este país tem por limites ao sul o Tejo, a oeste e norte o Oceano, a oriente as possessões de Carpetanos, dos Vetões, dos Vaceus, e dos Calaicos, não falando senão dos povos conhecidos, porque há outros que não merecem nomear-se, por obscuros e pouco importantes. Em oposição ao que acabamos de dizer, alguns autores modernos compreendem entre os povos da Lusitânia estas tribos limítrofes. Neste caso devemos dizer que estas tribos confinam pelo lado de leste os Calaicos com o território dos Asturos e dos Celtiberos, e os outros todos com a Celtibéria... Os últimos povos da Lusitânia são os «Artabros» que habitam parte do Capo Nério. Na vizinhança do mesmo cabo, que forma a extremidade tanto do lado ocidental como do setentrional da Ibéria, habitam os Célticos, próximos parentes dos das margens do Anas. Conta-se, com efeito, que um bando destes últimos empreendeu outrora uma expedição em companhia dos Túrdulos contra os povos desta parte da Ibéria e entraram em desordem com os seus aliados logo na margem ulterior do Limes, e, perdendo em tal ocasião para cumulo de desgraça o chefe que o comandava, se espalhou no país, decidido a permanecer aí...»
Este trecho nos explica a importância do país dos Lusitanos, que se estendia desde o Tejo até ao mar Cantábrico, e demarca exatamente a situação dos primitivos Celtas, ao sul nas margens do Guadiana, e ao norte junto do Cabo Finisterra, conforme a indicação de Heródoto e Plínio. Estas localizações celtas correspondem de facto às influências gaulesas que já notamos, ao norte e sul, alongando-se pela faixa atlântica, verificadas no tipo medio da atual população destas províncias.
Segundo o próprio Estrabão, na mesopotâmia entre o Tejo e o Guadiana, além de populações célticas, acantonavam-se algumas tribos de Lusitanos. A área do país lusitano, cuja designação tem apenas valor histórico, estendia-se, pois segundo o atual território de Portugal e mais a província da Galiza.
Desta feita reduz-se a termos muito concisos a teoria «Celtista» que transformava em «Celtas» todos os povos da península; a autonomia das tribos lusitanas e outras não célticas naufragava nesse mesmo oceano céltico; teve, porém, entre nós um salvador de muito saber, Martins Sarmento, o qual antes de Jubainville e outros etnólogos de além Pirenéus, estabeleceu em bases perfeitas a tese ligúrica do ocidente europeu.
«Para nós, Lusitanos, diz Sarmento — como os Albiões, Oestrininides, Hibernos, Cempsos, Cinetos e Tartéssios, são ramos da velha emigração ariana cuja afinidade de costumes e língua com os lígures, selloi, graicei, etc., não pode ser seriamente contestada, nem em face das afirmações dos escritores antigos, nem das razões que se nos impõem por diferentes vias.»
O lusitano resistiu à invasão céltica, como se opôs à conquista romana. Não obstante, romanizou-se em parte, e esta tendência para a romanização explica-se pela afinidade original destes povos. Não só as fórmulas de culto, que os antigos historiadores diziam ser à maneira grega, mas também as línguas, teriam um íntimo parentesco, do qual saíram os idiomas românicos. O basco e o germano do Norte, conservaram os seus idiomas, não obstante a ação da civilização romana; é que não havia entre estes povos e o romano as mesmas afinidades étnicas.
Entretanto, deve declarar-se que o caracter arqueológico das civilizações pré-históricas peninsulares, desenterradas em escavações de antigas cidades e necrópoles, tem um cunho particular que força a sua classificação como luso-romanas e não somente romanas. O elemento luso, como de resto o elemento italiota, galo ou etrusco, não se fundiu por completo nesse meio romanisante. Características fundamentais os diferenciam entre si e a cada qual do elemento romano.
Não obstante as batalhas destruidoras entre raças e povos, estes nunca desaparecem por completo; são muitas vezes os vencedores que se fundem na massa dos vencidos, e estes conservam sob o jugo politico das novas leis e autonomia do seu caracter étnico, dos seus costumes e tradições.
Um exemplo vos aponto, digno de nota na nacionalidade britânica, cujas qualidades coletivas são apresentadas como modelo; é a distinção entre o escocês, o gaélico, o irlandês, e o anglo-saxão. Aí, o domínio dos homens nórdicos foi completo; e apesar disso, está em permanente revolta (como o francês contra o alemão) o espirito dos povos ibero-ligúricos que ocupam justamente a Irlanda, o país de Gales e o Norte escocês; são da mesma estirpe os povos que habitaram o noroeste da Península, conservando cá e lá o mesmo tipo moreno, as mesmas tradições populares, e um folclore similar com idênticas lendas e cantigas, que nasceram do mesmo fundo comum e desde as epopeias rudimentares da idade do bronze.
Citar-vos-ei ainda Sarmento que diz: «É um facto que as costas ocidentais da Espanha foram infestadas por diferentes bandos germânicos, que, segundo o seu costume se decimavam em lutas fratricidas, e foram em seguida quási totalmente exterminados pelos árabes. A invasão árabe, melhor dotada de força e de cultura, submeteu quase toda a antiga Lusitânia, e muitas vezes inquietou a Galiza, ao norte; mas não é menos verdade que, a par e passo que os novos semitas foram expulsos, se vê levantar, desde os confins do Algarve até às fronteiras da Galiza, um povo possuindo o mesmo modo de sentir e de pensar, a mesma língua, conservando a toponímia pré-romana, e ligando aos seus castros, aos seus dolmens, ás suas fontes, etc., uma infinidade de tradições que sem duvida têm as suas raízes na civilização pré-romana.»
Seria longo, meus senhores, e resultaria demasiado fatigante, a discussão dos princípios enunciados nestas teses etnológicas. A eruditos importa essa questão que implica com um mundo de ciências.
Deste conjunto de observações, estudos e hipóteses, resulta como epilogo, não obstante uma aureola nebulosa que a ciência mal dissipa, um país a LUSITÂNIA, um povo o LUSITANO, cujas condições mesológicas e étnicas, muito embora a sua complexidade, lhe garantem autonomia dentro do clássico mundo europeu.
Dentro desse mesmo país de hoje, localizado como ao tempo do geógrafo Estrabão, está o núcleo de uma nacionalidade moderna, a PORTUGUESA, proveniente desse anterior composto ibero-lígure; apesar das suas diminutas proporções, resiste e reconstitui-se sob os grandes cataclismos históricos que assolam o país, e luta heroicamente pela sua independência, ocupando algumas paginas da historia da humanidade com as suas epopeias de imorredoura e universal glória.
De Estrabão, que escreveu no primeiro seculo da era atual, extratamos: «Ao norte do Tejo dilata-se a «Lusitânia» habitada pela mais poderosa das nações ibéricas e que entre todas por mais tempo deteve as armas romanas. Este país tem por limites ao sul o Tejo, a oeste e norte o Oceano, a oriente as possessões de Carpetanos, dos Vetões, dos Vaceus, e dos Calaicos, não falando senão dos povos conhecidos, porque há outros que não merecem nomear-se, por obscuros e pouco importantes. Em oposição ao que acabamos de dizer, alguns autores modernos compreendem entre os povos da Lusitânia estas tribos limítrofes. Neste caso devemos dizer que estas tribos confinam pelo lado de leste os Calaicos com o território dos Asturos e dos Celtiberos, e os outros todos com a Celtibéria... Os últimos povos da Lusitânia são os «Artabros» que habitam parte do Capo Nério. Na vizinhança do mesmo cabo, que forma a extremidade tanto do lado ocidental como do setentrional da Ibéria, habitam os Célticos, próximos parentes dos das margens do Anas. Conta-se, com efeito, que um bando destes últimos empreendeu outrora uma expedição em companhia dos Túrdulos contra os povos desta parte da Ibéria e entraram em desordem com os seus aliados logo na margem ulterior do Limes, e, perdendo em tal ocasião para cumulo de desgraça o chefe que o comandava, se espalhou no país, decidido a permanecer aí...»
Este trecho nos explica a importância do país dos Lusitanos, que se estendia desde o Tejo até ao mar Cantábrico, e demarca exatamente a situação dos primitivos Celtas, ao sul nas margens do Guadiana, e ao norte junto do Cabo Finisterra, conforme a indicação de Heródoto e Plínio. Estas localizações celtas correspondem de facto às influências gaulesas que já notamos, ao norte e sul, alongando-se pela faixa atlântica, verificadas no tipo medio da atual população destas províncias.
Segundo o próprio Estrabão, na mesopotâmia entre o Tejo e o Guadiana, além de populações célticas, acantonavam-se algumas tribos de Lusitanos. A área do país lusitano, cuja designação tem apenas valor histórico, estendia-se, pois segundo o atual território de Portugal e mais a província da Galiza.
Desta feita reduz-se a termos muito concisos a teoria «Celtista» que transformava em «Celtas» todos os povos da península; a autonomia das tribos lusitanas e outras não célticas naufragava nesse mesmo oceano céltico; teve, porém, entre nós um salvador de muito saber, Martins Sarmento, o qual antes de Jubainville e outros etnólogos de além Pirenéus, estabeleceu em bases perfeitas a tese ligúrica do ocidente europeu.
«Para nós, Lusitanos, diz Sarmento — como os Albiões, Oestrininides, Hibernos, Cempsos, Cinetos e Tartéssios, são ramos da velha emigração ariana cuja afinidade de costumes e língua com os lígures, selloi, graicei, etc., não pode ser seriamente contestada, nem em face das afirmações dos escritores antigos, nem das razões que se nos impõem por diferentes vias.»
O lusitano resistiu à invasão céltica, como se opôs à conquista romana. Não obstante, romanizou-se em parte, e esta tendência para a romanização explica-se pela afinidade original destes povos. Não só as fórmulas de culto, que os antigos historiadores diziam ser à maneira grega, mas também as línguas, teriam um íntimo parentesco, do qual saíram os idiomas românicos. O basco e o germano do Norte, conservaram os seus idiomas, não obstante a ação da civilização romana; é que não havia entre estes povos e o romano as mesmas afinidades étnicas.
Entretanto, deve declarar-se que o caracter arqueológico das civilizações pré-históricas peninsulares, desenterradas em escavações de antigas cidades e necrópoles, tem um cunho particular que força a sua classificação como luso-romanas e não somente romanas. O elemento luso, como de resto o elemento italiota, galo ou etrusco, não se fundiu por completo nesse meio romanisante. Características fundamentais os diferenciam entre si e a cada qual do elemento romano.
Não obstante as batalhas destruidoras entre raças e povos, estes nunca desaparecem por completo; são muitas vezes os vencedores que se fundem na massa dos vencidos, e estes conservam sob o jugo politico das novas leis e autonomia do seu caracter étnico, dos seus costumes e tradições.
Um exemplo vos aponto, digno de nota na nacionalidade britânica, cujas qualidades coletivas são apresentadas como modelo; é a distinção entre o escocês, o gaélico, o irlandês, e o anglo-saxão. Aí, o domínio dos homens nórdicos foi completo; e apesar disso, está em permanente revolta (como o francês contra o alemão) o espirito dos povos ibero-ligúricos que ocupam justamente a Irlanda, o país de Gales e o Norte escocês; são da mesma estirpe os povos que habitaram o noroeste da Península, conservando cá e lá o mesmo tipo moreno, as mesmas tradições populares, e um folclore similar com idênticas lendas e cantigas, que nasceram do mesmo fundo comum e desde as epopeias rudimentares da idade do bronze.
Citar-vos-ei ainda Sarmento que diz: «É um facto que as costas ocidentais da Espanha foram infestadas por diferentes bandos germânicos, que, segundo o seu costume se decimavam em lutas fratricidas, e foram em seguida quási totalmente exterminados pelos árabes. A invasão árabe, melhor dotada de força e de cultura, submeteu quase toda a antiga Lusitânia, e muitas vezes inquietou a Galiza, ao norte; mas não é menos verdade que, a par e passo que os novos semitas foram expulsos, se vê levantar, desde os confins do Algarve até às fronteiras da Galiza, um povo possuindo o mesmo modo de sentir e de pensar, a mesma língua, conservando a toponímia pré-romana, e ligando aos seus castros, aos seus dolmens, ás suas fontes, etc., uma infinidade de tradições que sem duvida têm as suas raízes na civilização pré-romana.»
Seria longo, meus senhores, e resultaria demasiado fatigante, a discussão dos princípios enunciados nestas teses etnológicas. A eruditos importa essa questão que implica com um mundo de ciências.
Deste conjunto de observações, estudos e hipóteses, resulta como epilogo, não obstante uma aureola nebulosa que a ciência mal dissipa, um país a LUSITÂNIA, um povo o LUSITANO, cujas condições mesológicas e étnicas, muito embora a sua complexidade, lhe garantem autonomia dentro do clássico mundo europeu.
Dentro desse mesmo país de hoje, localizado como ao tempo do geógrafo Estrabão, está o núcleo de uma nacionalidade moderna, a PORTUGUESA, proveniente desse anterior composto ibero-lígure; apesar das suas diminutas proporções, resiste e reconstitui-se sob os grandes cataclismos históricos que assolam o país, e luta heroicamente pela sua independência, ocupando algumas paginas da historia da humanidade com as suas epopeias de imorredoura e universal glória.
VI.
As origens pré-históricas da nacionalidade
As origens pré-históricas da nacionalidade
Na fase da civilização imediatamente anterior á conquista romana, deixamos os povos da Lusitânia fortificados no alto dos montes que dominam as planícies e os vales secundários do norte do país. Dentre as florestas espessas que ocupavam o fértil solo dessas bacias, talhadas por inúmeros ribeiros e torrentes, outra floresta se erguia, dominando a primeira, constituída pelos píncaros fortificados que habitavam os remotos povoadores.
O país eriçado de rusticas fortalezas, deveria ter apresentado aos primeiros invasores um aspeto temeroso, que o pânico e os desastres das primeiras hostes conquistadoras claramente atestam.
Todos os pontos dominantes de importância estratégica têm uma cividade, um oppidum, um castro, um pequeno fortim ou atalaia preventiva; a organização defensiva destes povoados é homogénea e perfeita.
Escondidos no alto das suas acrópoles, habituados a viver cada qual sobre si, ora se guerreiam, ora se coligam contra o estrangeiro invasor. Este, para conquistar esse país tão admiravelmente defendido, tinha que batalhar passo a passo, conquistar castro a castro.
Não era sem razão que Apiano se refere a estes bárbaros da Lusitânia como «gens belicosíssima» notáveis pelo sentimento violento de indómita independência.
A cada uma destas cidadelas corresponde um cântico do poema heroico e guerreiro deste povo. O monte Medullium, sobranceiro ao rio Minho, conta Orósio que foi cercado com um fosso de 15.000 passos, a fim de vencer a multidão aí fortificada; essa gente era «trux natura et ferox» preferindo a morte voluntaria à escravidão. (A. Sampaio).
É igual a epopeia de Numancia, a celebre cividade das cabeceiras do rio Douro; e são iguais as dos demais castros nas suas lutas com os romanos. Além, era Augusto quem comandava o exército romano; aquém, era Cipião o general. Combateram na Península contra os lusitanos os mais valorosos soldados e generais romanos; aqui tiveram muitos a morte e experimentaram outros as desastrosas derrotas. Roma venceu por último, não obstante a resistência de Viriato e a revolta de Sertório.
A reconstituição histórica da sociedade desta época, cujo meio físico e cuja estrutura étnica acabamos de esboçar, foi obra de um investigador consciencioso e douto, Alberto Sampaio.
Companheiro de Martins Sarmento, ambos de Guimarães, a vetusta cidade minhota, como aquele se dedicou à penosa investigação das nossas origens históricas. M. Sarmento, escavando os montes e desenterrando a civilização ligúrica: A. Sampaio interpretando os restos arqueológicos, os documentos escritos, as tradições, os usos e costumes nessa misteriosa antiguidade. A sua obra de restauração baseia-se nos documentos de toda a espécie provenientes da sociedade ásturo-leonesa, á medida da sua reorganização. Esta fórmula transitória, entre o período romano e o português, condensa elementos da vida anterior, e elementos de gestação da vida futura da nacionalidade portuguesa. Esses documentos constam de: títulos de doação, compra e venda de propriedades rústicas, relatos de inquirições, livros de usos e costumes, livros de linhagens, alçadas dos primeiros reis, etc.; a grande parte destes documentos foi lida e publicada na obra «Portugalia Monumenta Historica»; o seu estudo constitui a base da historia dos primeiros tempos da fundação do estado português, e forma o primeiro capitulo a antepor à Historia de Portugal de Alexandre Herculano.
Alberto Sampaio avançou alguns seculos por esse passado misterioso que Herculano respeitara; as suas obras irmanam-se, pela comum orientação filosófica, pela superior honestidade de investigação, pela pureza da linguagem, pela elevação e inteireza do patriotismo.
A obra de Sampaio, intitula-se modestamente «As vilas do Norte de Portugal». Esta obra de reconstituição abrange o período de quase 13 seculos; demonstra o desenvolvimento da sociedade portuguesa, marchando sempre em uma filiação histórica, desde quando a civilização romana, após a conquista pelas armas (14 da era cristã) se impôs à população vencida, de modo a tornar-se a base da sociedade que ainda hoje existe.
Vou transcrever, resumindo, esse imenso quadro, certo de que ele constituirá o capitulo mais importante e original desta lição.
Dentro de cada Cividade com seus Oppida existia uma população fixa, organizada em Gens ou famílias.
Cada cividade ocupava uma circunscrição agraria, Ager, que lhe proporcionava a alimentação em cereais, frutas, animais domésticos e bravios. O regímen era o das pastagens comunais, tais como chegaram até hoje nas regiões montanhosas. A cultura cerealífera, acanhada e rudimentar, não constitui ainda um regime particular de propriedade.
Com a romanização constituíram-se as Villas; nelas os chefes das cividades instruídos pelos conquistadores instalaram, em parcelas os clientes pobres, e tomaram para si uma secção agricultada por servos. Nessa já vasta propriedade desponta desde logo a pequena cultura. Coberto o país de vilas ou prédios rústicos, sistematicamente organizado para a exploração agrícola, jamais se interrompe o aproveitamento do solo e o alargamento da gente. Fixa-se a terminologia rural, da qual o neo-dialecto deriva a de uso corrente. A romanização transformou a primitiva sociedade e criou uma nova. É o período da grande e definitiva civilização.
Em 409 chegam os Suevos, povos de raça nórdica ou germânicos; o seu advento não provoca mudanças radicais; breve, invasores e invadidos se unem para constituir um reino á parte, que vai até 515, ano em que outros povos de estirpe germânica, os Visigodos, o absorveram.
A organização social, porém, não se altera; apenas alguns nomes germânicos se substituem aos romanos, como estes haviam suplantado os das citânias.
Com a invasão sarracena, em 712, a desordem foi maior e prolongada. Os invasores não conseguiram fixar-se para além do Douro. Apesar da incerteza, do terror do inimigo e decadência das cidades as villas permaneceram; dentro delas, guiado pela pratica, o povo perseverou no cultivo da terra, muito embora, na falta de governo protetor, a visse frequentes vezes talada, e tivesse de a defender ou esconder-se, enquanto passavam os exércitos indisciplinados; com o trabalho agrícola manteve também as tradições do domínio espiritual.
Da Villa passa o regime da propriedade, através da evolução agraria neo-goda, até à Freguesia rural.
A feudalidade não se institui em Portugal; na alta Idade-Média a pequena lavoura romana transforma-se em pequena propriedade. As duas instituições, «vilas e freguesias», sucedem-se mas não se confundem; as villas foram propriedades em todo o rigor da palavra; a freguesia é uma espécie de comuna sem carta, que se forma em volta do campanário. Em ambas o perímetro é em geral o mesmo, e idêntica a população, proveniente da estirpe antiga das clientelas, que desceram das citânias acasteladas.
O senhorio é que diversificou; os domini faziam uma classe de grandes proprietários, com poder quase absoluto sobre a maioria dos cultivadores, entretanto que os senhores asturo-leoneses careciam da riqueza, do poder, da fixidez e autoridade dos outros. Desfeitos os grandes fundos, satisfazem-se com fragmentos os mais ambiciosos e os mesmos bens da coroa não passam de retalhos dispersos pela província. Depois da catástrofe visigótica cessa o viver faustoso das classes superiores; a mediania nas condições gerais da vida e um regime sem requintes são o tipo comum. Apesar da divisão do senhorio, das lutas com o estrangeiro e discórdias internas, os lavradores não cessam de tirar da terra nunca inerte o sustento de cada dia e o custeio das despesas públicas: os dirigentes descem pela maior parte ao nível popular.
Tal era a sociedade, cujos traços fundamentais memora a tradição nos documentos precedentes. As batalhas incessantes que selecionaram e nobilitaram os combatentes mais valorosos, levaram a liberdade ás ultimas camadas da população rural; metodicamente armada pela necessidade do ataque e defesa, apresentava-se já, antes de se fundar o Estado Português, exercitada por igual na guerra e no trabalho; a cada passo o « apelido» arrancava-a das cabanas, dos pardieiros e quintanas, reunindo-a no campo da peleja.
Acoutiados pela coroa os nobres são os cavaleiros de profissão: residindo em casas sem luxo, vivem em intimidade com o povo, ora na melhor harmonia, ora em questiúnculas de proprietários minúsculos, mas sempre protegendo-o. Deste, os mais pobres combatem a pé e peões formam a admirável infantaria portuguesa mediévica. Dos herdadores abastados saem os cavaleiros vilãos, que na batalha ocupam o lugar honroso da vanguarda; dado o primeiro choque, confundem-se com os cavaleiros nobres e selo-ão também, se a fortuna e a sorte das armas os ajudar. O casteleiro, em cujas mãos reside a última defesa do país e o rico-homem, governador da terra, com pendão e caldeira, assentam-se ambos no tempo de paz, á mesa do lavrador, e comem do seu pão. Acima do todos está o rei, senhor do seu reino, com o império absoluto. Apesar do poder supremo, tão pouco exigente, contenta-se com o asseio que os foreiros lhe fazem no paço, e com a comida rustica que sabem preparar. A disciplina distingue os homens, mas liga-os a irmandade do sangue, assim como os iguala a mesma vida do espírito e uma pobreza forte.
Ao findar este quadro estamos dentro do ‹Estado Portucalense», cujas origens históricas estão fixadas no próprio topónimo, de onde provém a denominação do novo reino. De facto, na margem esquerda do Douro, onde passava o itinerário de Lisboa a Braga, estava Calem com o seu castro: Portucale castrum se chamou; fronteiro, na margem direita ficava o porto de Calem: Portucale locum.
Nesse «Castro» ou « Cividade » pré-romana se originou o nome de um distrito, um condado, um futuro reino.
O rio Douro foi a divisa que o ultimo cadastro peninsular dos romanos atribui á Lusitânia; para o norte ficava a Galécia. Nessa Cividade dos confins da Lusitânia, os mesmos fenómenos arqueológicos acusam a permanência da população, a continuidade das civilizações, sob a influencia dos mesmos cruzamentos étnicos e de análogos acontecimentos históricos.
Pelo determinismo de todas estas circunstâncias de ordem geográfica, étnica, e histórica, dentro da velha Lusitânia teve a sua nascença a nação portucalense. Isto se contrapõe, de facto, ao princípio estabelecido por Alexandre Herculano, negando quaisquer relações de afinidade entre a nação atual e essas tribos de lusitanos; segundo o nosso grande historiador, era impossível ir entroncar neles a nossa história ou deles descer logicamente a esta. E diz: «Portugal, nascido no seculo XII em um angulo da Galiza, constituído sem atenção às divisões políticas anteriores, dilatando-se pelo território do Gharb sarraceno, é uma nação inteiramente moderna.» Em verdade, assim é, se considerarmos tão somente o individuo político, organizado pelo esforço e tenacidade dos nossos primeiros príncipes e seus cavaleiros.
Todavia, não era moderno, mas de mui remota origem, o povo que ocupava a terra da nação portuguesa, nestas datas históricas da sua nova constituição política. Segundo os métodos arqueológicos e antropológicos foi esboçado o quadro dessa linhagem que ascende a épocas anteriores às mais antigas cronologias.
Ao tempo de Herculano, a historia natural dos povos e civilizações estava em seus inícios; em Portugal ensaiavam-se as primeiras escavações e dos caracteres antropológicos dos seus habitantes nada se sabia. As nossas origens estavam cada vez mais obscurecidas por velhos mitos e lendas locais, que os eruditos, em seu pedantismo clássico, haviam acumulado, transcrevendo, comentando, ampliando os historiadores, geógrafos e cronistas, gregos, romanos, árabes, etc.
Com a sua celebrada hombridade, o ilustre cronista desprendeu-se de todos esses romances de classicistas, e fundou no período Asturo-leonês a História de Portugal.
Ao passo que assim procedia, porém, Herculano dirigiu a coordenação, a leitura e a publicação de todos os documentos originais que constituem a obra colossal «Portugalia Monumenta Historica»; este tombo de velhos pergaminhos compreende justamente os fundamentos da historia portuguesa, anterior ao século XII. Para além deste seculo, e na natureza dos antepassados povoadores da terra portugalense, nos seus costumes, mitos e tradições, estão as origens da nacionalidade histórica que o nome tomou de um velho «Castro» pré-histórico, colocado como epígrafe em seu brasão de vetusta genealogia.
Há uns doze anos iniciou-se a publicação de uma revista de «materiais para o estudo do povo português» sob o título de PORTVGALIA. O seu diretor, no prospeto, assim dizia: «Admitida a nação portuguesa como um organismo étnico com vida própria, independente — com razões de ser de ordem etnológica e histórica - procura-se estudá-lo por todos os seus aspetos, definindo a natureza e relação dos próprios elementos, a fisiologia e mesologia da sua vida orgânica e habitat, acentuando os caracteres específicos que formam e explicam atualmente o tipo nacional».
Para limitar o campo de estudo aí se analisava o fundo popular, a grei, no sentido hierárquico e usual do termo, que constitui o substractum da nacionalidade, o que há de primitivo e original, desde remotas origens até hoje; desta feita se colhiam os verdadeiros elementos da vida e do caracter nacional, a nossa razão de ser e da nossa historia. Propunha-se então o renascimento da alma popular; iniciava-se com patriotismo e esperança obra tradicionalista de reivindicação pela grei portuguesa. Abria-se um período de renascença dentro da própria nacionalidade que seria também o renascimento de um velho povo.
O diretor dessa revista nada mais tem hoje a acrescentar sobre os elementos e processos de estudo da nacionalidade portuguesa; na natureza das raças, na contextura dos povos, como função do meio local e social, estão as origens da nacionalidade, os princípios basilares da sua historia, e do sistema politico que lhe compete.
Vimos, no quadro desta sociedade, nos começos do período portugalense, a feição constitucionalmente democrática desse organismo social; os príncipes, os nobres, os cavaleiros, vivem em comunidade com os humildes lavradores. A nobreza não constitui uma casta hierática; é fundamentalmente popular e democrática.
Oliveira Martins, cujas opiniões políticas depois se alteraram, levando-o a preparar em Portugal um partido político de governação, fundado no absoluto poder real, escrevia em 1885 a este propósito:
«A Espanha (que para o autor inclui Portugal) foi por todo o sempre uma democracia. Era-o na sua existência de tribo; foi-o sob o regime municipal romano. A invasão das instituições germânicas aristocráticas não pôde destruir a anterior constituição da Espanha, nem fundar no seio dela o regime da hereditariedade e da casta, como o fundara no resto da europa. Este facto social e histórico, combinando-se com o caracter da raça, com a nobreza, o orgulho e a independência pessoal, fez da Península uma democracia - ora militar, ora eclesiástica, ora monárquica, ora oligarquicamente governada. O fundo, como as rochas ígneas, era inabalável; o resto eram acidentes como os terrenos superiores, sujeitos às influencias erosivas das correntes, isto é, ás ações determinadas pela vontade dos homens».
Ora, meus senhores, esse fundo, «como as rochas ígneas» é hoje o pedestal inabalável da Republica.
Condensa a alma de um povo por todo o sempre democrata, é a síntese indissolúvel do caracter étnico, moral e social dessa nacionalidade, cujas origens se confundem com a historia do próprio solo nacional, desde os períodos geológicos do «Quaternário».
Igualou os homens dessa primitiva sociedade portuguesa, como diz Alberto Sampaio, a irmandade do sangue e uma pobreza forte. A nobre humildade d'esta «pobreza forte» é ainda hoje uma qualidade ingénita deste pequeno povo de Portugal.
Uns lhe profetizam o glorioso renascimento das suas antigas epopeias. Outros, por carência de elementos nórdicos, falta de individualização, de educação particularista, lhe prognosticam uma irremediável decadência. Nem uns, nem outros estarão na verdade; questão de seita ou de orientação científica.
Muito embora o contrario proclamem esses processos filosóficos, eu creio, senhores, no ressurgimento da pátria portuguesa.
Apontar-me-eis talvez, escarnecendo, o meu erro.
Quaisquer que sejam, porém, os destinos dessa pátria, mesmo junto ao abismo tenebroso onde se sepultam os povos e as nações, eu permanecerei, convicto, errando.
Bem me importam, senhores, os vossos sorrisos; não me concedei, sequer, um único dos vossos aplausos.
Perante vós eu encarnarei, se o quiserdes, com todo o seu ridículo e teatral aspeto, esse personagem da novela cavalheiresca, pronto a bater-se com leal e nobre fé - tresloucado que ele seja — por essa dama ideal que é... a nossa pátria.
S. Paulo, 22, Julho, 1911.
RICARDO SEVERO.
O país eriçado de rusticas fortalezas, deveria ter apresentado aos primeiros invasores um aspeto temeroso, que o pânico e os desastres das primeiras hostes conquistadoras claramente atestam.
Todos os pontos dominantes de importância estratégica têm uma cividade, um oppidum, um castro, um pequeno fortim ou atalaia preventiva; a organização defensiva destes povoados é homogénea e perfeita.
Escondidos no alto das suas acrópoles, habituados a viver cada qual sobre si, ora se guerreiam, ora se coligam contra o estrangeiro invasor. Este, para conquistar esse país tão admiravelmente defendido, tinha que batalhar passo a passo, conquistar castro a castro.
Não era sem razão que Apiano se refere a estes bárbaros da Lusitânia como «gens belicosíssima» notáveis pelo sentimento violento de indómita independência.
A cada uma destas cidadelas corresponde um cântico do poema heroico e guerreiro deste povo. O monte Medullium, sobranceiro ao rio Minho, conta Orósio que foi cercado com um fosso de 15.000 passos, a fim de vencer a multidão aí fortificada; essa gente era «trux natura et ferox» preferindo a morte voluntaria à escravidão. (A. Sampaio).
É igual a epopeia de Numancia, a celebre cividade das cabeceiras do rio Douro; e são iguais as dos demais castros nas suas lutas com os romanos. Além, era Augusto quem comandava o exército romano; aquém, era Cipião o general. Combateram na Península contra os lusitanos os mais valorosos soldados e generais romanos; aqui tiveram muitos a morte e experimentaram outros as desastrosas derrotas. Roma venceu por último, não obstante a resistência de Viriato e a revolta de Sertório.
A reconstituição histórica da sociedade desta época, cujo meio físico e cuja estrutura étnica acabamos de esboçar, foi obra de um investigador consciencioso e douto, Alberto Sampaio.
Companheiro de Martins Sarmento, ambos de Guimarães, a vetusta cidade minhota, como aquele se dedicou à penosa investigação das nossas origens históricas. M. Sarmento, escavando os montes e desenterrando a civilização ligúrica: A. Sampaio interpretando os restos arqueológicos, os documentos escritos, as tradições, os usos e costumes nessa misteriosa antiguidade. A sua obra de restauração baseia-se nos documentos de toda a espécie provenientes da sociedade ásturo-leonesa, á medida da sua reorganização. Esta fórmula transitória, entre o período romano e o português, condensa elementos da vida anterior, e elementos de gestação da vida futura da nacionalidade portuguesa. Esses documentos constam de: títulos de doação, compra e venda de propriedades rústicas, relatos de inquirições, livros de usos e costumes, livros de linhagens, alçadas dos primeiros reis, etc.; a grande parte destes documentos foi lida e publicada na obra «Portugalia Monumenta Historica»; o seu estudo constitui a base da historia dos primeiros tempos da fundação do estado português, e forma o primeiro capitulo a antepor à Historia de Portugal de Alexandre Herculano.
Alberto Sampaio avançou alguns seculos por esse passado misterioso que Herculano respeitara; as suas obras irmanam-se, pela comum orientação filosófica, pela superior honestidade de investigação, pela pureza da linguagem, pela elevação e inteireza do patriotismo.
A obra de Sampaio, intitula-se modestamente «As vilas do Norte de Portugal». Esta obra de reconstituição abrange o período de quase 13 seculos; demonstra o desenvolvimento da sociedade portuguesa, marchando sempre em uma filiação histórica, desde quando a civilização romana, após a conquista pelas armas (14 da era cristã) se impôs à população vencida, de modo a tornar-se a base da sociedade que ainda hoje existe.
Vou transcrever, resumindo, esse imenso quadro, certo de que ele constituirá o capitulo mais importante e original desta lição.
Dentro de cada Cividade com seus Oppida existia uma população fixa, organizada em Gens ou famílias.
Cada cividade ocupava uma circunscrição agraria, Ager, que lhe proporcionava a alimentação em cereais, frutas, animais domésticos e bravios. O regímen era o das pastagens comunais, tais como chegaram até hoje nas regiões montanhosas. A cultura cerealífera, acanhada e rudimentar, não constitui ainda um regime particular de propriedade.
Com a romanização constituíram-se as Villas; nelas os chefes das cividades instruídos pelos conquistadores instalaram, em parcelas os clientes pobres, e tomaram para si uma secção agricultada por servos. Nessa já vasta propriedade desponta desde logo a pequena cultura. Coberto o país de vilas ou prédios rústicos, sistematicamente organizado para a exploração agrícola, jamais se interrompe o aproveitamento do solo e o alargamento da gente. Fixa-se a terminologia rural, da qual o neo-dialecto deriva a de uso corrente. A romanização transformou a primitiva sociedade e criou uma nova. É o período da grande e definitiva civilização.
Em 409 chegam os Suevos, povos de raça nórdica ou germânicos; o seu advento não provoca mudanças radicais; breve, invasores e invadidos se unem para constituir um reino á parte, que vai até 515, ano em que outros povos de estirpe germânica, os Visigodos, o absorveram.
A organização social, porém, não se altera; apenas alguns nomes germânicos se substituem aos romanos, como estes haviam suplantado os das citânias.
Com a invasão sarracena, em 712, a desordem foi maior e prolongada. Os invasores não conseguiram fixar-se para além do Douro. Apesar da incerteza, do terror do inimigo e decadência das cidades as villas permaneceram; dentro delas, guiado pela pratica, o povo perseverou no cultivo da terra, muito embora, na falta de governo protetor, a visse frequentes vezes talada, e tivesse de a defender ou esconder-se, enquanto passavam os exércitos indisciplinados; com o trabalho agrícola manteve também as tradições do domínio espiritual.
Da Villa passa o regime da propriedade, através da evolução agraria neo-goda, até à Freguesia rural.
A feudalidade não se institui em Portugal; na alta Idade-Média a pequena lavoura romana transforma-se em pequena propriedade. As duas instituições, «vilas e freguesias», sucedem-se mas não se confundem; as villas foram propriedades em todo o rigor da palavra; a freguesia é uma espécie de comuna sem carta, que se forma em volta do campanário. Em ambas o perímetro é em geral o mesmo, e idêntica a população, proveniente da estirpe antiga das clientelas, que desceram das citânias acasteladas.
O senhorio é que diversificou; os domini faziam uma classe de grandes proprietários, com poder quase absoluto sobre a maioria dos cultivadores, entretanto que os senhores asturo-leoneses careciam da riqueza, do poder, da fixidez e autoridade dos outros. Desfeitos os grandes fundos, satisfazem-se com fragmentos os mais ambiciosos e os mesmos bens da coroa não passam de retalhos dispersos pela província. Depois da catástrofe visigótica cessa o viver faustoso das classes superiores; a mediania nas condições gerais da vida e um regime sem requintes são o tipo comum. Apesar da divisão do senhorio, das lutas com o estrangeiro e discórdias internas, os lavradores não cessam de tirar da terra nunca inerte o sustento de cada dia e o custeio das despesas públicas: os dirigentes descem pela maior parte ao nível popular.
Tal era a sociedade, cujos traços fundamentais memora a tradição nos documentos precedentes. As batalhas incessantes que selecionaram e nobilitaram os combatentes mais valorosos, levaram a liberdade ás ultimas camadas da população rural; metodicamente armada pela necessidade do ataque e defesa, apresentava-se já, antes de se fundar o Estado Português, exercitada por igual na guerra e no trabalho; a cada passo o « apelido» arrancava-a das cabanas, dos pardieiros e quintanas, reunindo-a no campo da peleja.
Acoutiados pela coroa os nobres são os cavaleiros de profissão: residindo em casas sem luxo, vivem em intimidade com o povo, ora na melhor harmonia, ora em questiúnculas de proprietários minúsculos, mas sempre protegendo-o. Deste, os mais pobres combatem a pé e peões formam a admirável infantaria portuguesa mediévica. Dos herdadores abastados saem os cavaleiros vilãos, que na batalha ocupam o lugar honroso da vanguarda; dado o primeiro choque, confundem-se com os cavaleiros nobres e selo-ão também, se a fortuna e a sorte das armas os ajudar. O casteleiro, em cujas mãos reside a última defesa do país e o rico-homem, governador da terra, com pendão e caldeira, assentam-se ambos no tempo de paz, á mesa do lavrador, e comem do seu pão. Acima do todos está o rei, senhor do seu reino, com o império absoluto. Apesar do poder supremo, tão pouco exigente, contenta-se com o asseio que os foreiros lhe fazem no paço, e com a comida rustica que sabem preparar. A disciplina distingue os homens, mas liga-os a irmandade do sangue, assim como os iguala a mesma vida do espírito e uma pobreza forte.
Ao findar este quadro estamos dentro do ‹Estado Portucalense», cujas origens históricas estão fixadas no próprio topónimo, de onde provém a denominação do novo reino. De facto, na margem esquerda do Douro, onde passava o itinerário de Lisboa a Braga, estava Calem com o seu castro: Portucale castrum se chamou; fronteiro, na margem direita ficava o porto de Calem: Portucale locum.
Nesse «Castro» ou « Cividade » pré-romana se originou o nome de um distrito, um condado, um futuro reino.
O rio Douro foi a divisa que o ultimo cadastro peninsular dos romanos atribui á Lusitânia; para o norte ficava a Galécia. Nessa Cividade dos confins da Lusitânia, os mesmos fenómenos arqueológicos acusam a permanência da população, a continuidade das civilizações, sob a influencia dos mesmos cruzamentos étnicos e de análogos acontecimentos históricos.
Pelo determinismo de todas estas circunstâncias de ordem geográfica, étnica, e histórica, dentro da velha Lusitânia teve a sua nascença a nação portucalense. Isto se contrapõe, de facto, ao princípio estabelecido por Alexandre Herculano, negando quaisquer relações de afinidade entre a nação atual e essas tribos de lusitanos; segundo o nosso grande historiador, era impossível ir entroncar neles a nossa história ou deles descer logicamente a esta. E diz: «Portugal, nascido no seculo XII em um angulo da Galiza, constituído sem atenção às divisões políticas anteriores, dilatando-se pelo território do Gharb sarraceno, é uma nação inteiramente moderna.» Em verdade, assim é, se considerarmos tão somente o individuo político, organizado pelo esforço e tenacidade dos nossos primeiros príncipes e seus cavaleiros.
Todavia, não era moderno, mas de mui remota origem, o povo que ocupava a terra da nação portuguesa, nestas datas históricas da sua nova constituição política. Segundo os métodos arqueológicos e antropológicos foi esboçado o quadro dessa linhagem que ascende a épocas anteriores às mais antigas cronologias.
Ao tempo de Herculano, a historia natural dos povos e civilizações estava em seus inícios; em Portugal ensaiavam-se as primeiras escavações e dos caracteres antropológicos dos seus habitantes nada se sabia. As nossas origens estavam cada vez mais obscurecidas por velhos mitos e lendas locais, que os eruditos, em seu pedantismo clássico, haviam acumulado, transcrevendo, comentando, ampliando os historiadores, geógrafos e cronistas, gregos, romanos, árabes, etc.
Com a sua celebrada hombridade, o ilustre cronista desprendeu-se de todos esses romances de classicistas, e fundou no período Asturo-leonês a História de Portugal.
Ao passo que assim procedia, porém, Herculano dirigiu a coordenação, a leitura e a publicação de todos os documentos originais que constituem a obra colossal «Portugalia Monumenta Historica»; este tombo de velhos pergaminhos compreende justamente os fundamentos da historia portuguesa, anterior ao século XII. Para além deste seculo, e na natureza dos antepassados povoadores da terra portugalense, nos seus costumes, mitos e tradições, estão as origens da nacionalidade histórica que o nome tomou de um velho «Castro» pré-histórico, colocado como epígrafe em seu brasão de vetusta genealogia.
Há uns doze anos iniciou-se a publicação de uma revista de «materiais para o estudo do povo português» sob o título de PORTVGALIA. O seu diretor, no prospeto, assim dizia: «Admitida a nação portuguesa como um organismo étnico com vida própria, independente — com razões de ser de ordem etnológica e histórica - procura-se estudá-lo por todos os seus aspetos, definindo a natureza e relação dos próprios elementos, a fisiologia e mesologia da sua vida orgânica e habitat, acentuando os caracteres específicos que formam e explicam atualmente o tipo nacional».
Para limitar o campo de estudo aí se analisava o fundo popular, a grei, no sentido hierárquico e usual do termo, que constitui o substractum da nacionalidade, o que há de primitivo e original, desde remotas origens até hoje; desta feita se colhiam os verdadeiros elementos da vida e do caracter nacional, a nossa razão de ser e da nossa historia. Propunha-se então o renascimento da alma popular; iniciava-se com patriotismo e esperança obra tradicionalista de reivindicação pela grei portuguesa. Abria-se um período de renascença dentro da própria nacionalidade que seria também o renascimento de um velho povo.
O diretor dessa revista nada mais tem hoje a acrescentar sobre os elementos e processos de estudo da nacionalidade portuguesa; na natureza das raças, na contextura dos povos, como função do meio local e social, estão as origens da nacionalidade, os princípios basilares da sua historia, e do sistema politico que lhe compete.
Vimos, no quadro desta sociedade, nos começos do período portugalense, a feição constitucionalmente democrática desse organismo social; os príncipes, os nobres, os cavaleiros, vivem em comunidade com os humildes lavradores. A nobreza não constitui uma casta hierática; é fundamentalmente popular e democrática.
Oliveira Martins, cujas opiniões políticas depois se alteraram, levando-o a preparar em Portugal um partido político de governação, fundado no absoluto poder real, escrevia em 1885 a este propósito:
«A Espanha (que para o autor inclui Portugal) foi por todo o sempre uma democracia. Era-o na sua existência de tribo; foi-o sob o regime municipal romano. A invasão das instituições germânicas aristocráticas não pôde destruir a anterior constituição da Espanha, nem fundar no seio dela o regime da hereditariedade e da casta, como o fundara no resto da europa. Este facto social e histórico, combinando-se com o caracter da raça, com a nobreza, o orgulho e a independência pessoal, fez da Península uma democracia - ora militar, ora eclesiástica, ora monárquica, ora oligarquicamente governada. O fundo, como as rochas ígneas, era inabalável; o resto eram acidentes como os terrenos superiores, sujeitos às influencias erosivas das correntes, isto é, ás ações determinadas pela vontade dos homens».
Ora, meus senhores, esse fundo, «como as rochas ígneas» é hoje o pedestal inabalável da Republica.
Condensa a alma de um povo por todo o sempre democrata, é a síntese indissolúvel do caracter étnico, moral e social dessa nacionalidade, cujas origens se confundem com a historia do próprio solo nacional, desde os períodos geológicos do «Quaternário».
Igualou os homens dessa primitiva sociedade portuguesa, como diz Alberto Sampaio, a irmandade do sangue e uma pobreza forte. A nobre humildade d'esta «pobreza forte» é ainda hoje uma qualidade ingénita deste pequeno povo de Portugal.
Uns lhe profetizam o glorioso renascimento das suas antigas epopeias. Outros, por carência de elementos nórdicos, falta de individualização, de educação particularista, lhe prognosticam uma irremediável decadência. Nem uns, nem outros estarão na verdade; questão de seita ou de orientação científica.
Muito embora o contrario proclamem esses processos filosóficos, eu creio, senhores, no ressurgimento da pátria portuguesa.
Apontar-me-eis talvez, escarnecendo, o meu erro.
Quaisquer que sejam, porém, os destinos dessa pátria, mesmo junto ao abismo tenebroso onde se sepultam os povos e as nações, eu permanecerei, convicto, errando.
Bem me importam, senhores, os vossos sorrisos; não me concedei, sequer, um único dos vossos aplausos.
Perante vós eu encarnarei, se o quiserdes, com todo o seu ridículo e teatral aspeto, esse personagem da novela cavalheiresca, pronto a bater-se com leal e nobre fé - tresloucado que ele seja — por essa dama ideal que é... a nossa pátria.
S. Paulo, 22, Julho, 1911.
RICARDO SEVERO.
Nas palavras de Sylvio Roméro :
Teófilo Braga "de 1862 a 1872, época em que viveu em Coimbra e no Porto, não tinha ainda misturado à sua metafísica à Hegel e às suas visões históricas à Michelet — as balbúrdias etnográficas, bebidas em Max-Müller, Lenormant, Maspero; as antropológicas, de Broca, e as positivistas, de Comte." (A Pátria Portuguesa, p. 10)
(...)
Alexandre Herculano "fala de Iberos, Celtas, Celtiberos, Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos, Suevos, Godos e Árabes, em rápidos traços, é certo; mas com uma firmeza de tintas verdadeiramente superior. Não há ali uma só palavra a riscar. Tivesse ele contemplado os Ligures, e o quadro das populações primitivas da península seria completo. É, porém, perfeitamente desculpável neste ponto; porque só mais tarde é que Belloguet, Broca, Jubainville vieram a insistir sobre as populações Liguricas espalhadas na Espanha, Itália, França e Inglaterra, antes do advento dos Celtas; Belloguet, em 1861, supondo-as aparentadas com os Líbios; Broca, em 1873, dando-as provavelmente como o povo braquicéfalo que se misturou com os Celtas de César; Jubainville, cinco anos após, provando serem os aludidos Ligures um ramo ariano entrado na Europa antes dos Celtas."
(...) o problema fez um passo gigantesco com os estudos do dr. Martins Sarmento, que provou serem os Ligures essa população que em França tem andado erradamente conhecida com o nome de Celtas modernos ou Celtas da historia, a que Bertrand sofisticadamente chama — Proto-Celtas e agora Lefèvre, em obediência à tradição, denomina — Préceltas, expediente que nada faz adiantar a questão."
Teófilo Braga "de 1862 a 1872, época em que viveu em Coimbra e no Porto, não tinha ainda misturado à sua metafísica à Hegel e às suas visões históricas à Michelet — as balbúrdias etnográficas, bebidas em Max-Müller, Lenormant, Maspero; as antropológicas, de Broca, e as positivistas, de Comte." (A Pátria Portuguesa, p. 10)
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Alexandre Herculano "fala de Iberos, Celtas, Celtiberos, Fenícios, Gregos, Cartagineses, Romanos, Suevos, Godos e Árabes, em rápidos traços, é certo; mas com uma firmeza de tintas verdadeiramente superior. Não há ali uma só palavra a riscar. Tivesse ele contemplado os Ligures, e o quadro das populações primitivas da península seria completo. É, porém, perfeitamente desculpável neste ponto; porque só mais tarde é que Belloguet, Broca, Jubainville vieram a insistir sobre as populações Liguricas espalhadas na Espanha, Itália, França e Inglaterra, antes do advento dos Celtas; Belloguet, em 1861, supondo-as aparentadas com os Líbios; Broca, em 1873, dando-as provavelmente como o povo braquicéfalo que se misturou com os Celtas de César; Jubainville, cinco anos após, provando serem os aludidos Ligures um ramo ariano entrado na Europa antes dos Celtas."
(...) o problema fez um passo gigantesco com os estudos do dr. Martins Sarmento, que provou serem os Ligures essa população que em França tem andado erradamente conhecida com o nome de Celtas modernos ou Celtas da historia, a que Bertrand sofisticadamente chama — Proto-Celtas e agora Lefèvre, em obediência à tradição, denomina — Préceltas, expediente que nada faz adiantar a questão."
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