O Génio Ocidental
António Sardinha
A Idade Média riu como ninguém ainda. E a sua gargalhada, assumindo facetas de génio nos tipos imorredoiros de Georges Dandin, - o marido coitado, e de Sieur Patbelin, expiraria estrondosa e livre, aos clarões do Santo-Ofício, nos grossos beiços plebeus do cura de Meudon e de certo mestre Gil,
«um que não tem nem um ceitil
e faz os aitos a el-rei».
A. S.
«um que não tem nem um ceitil
e faz os aitos a el-rei».
A. S.
António de Monforte, "O Génio Ocidental", In Dionysos - Revista mensal de filosofia, ciência e arte, Coimbra, nº 2, Março de 1912, pp. 90-97.
António Sardinha contesta aqui uma "miragem orientalista" que via, nos "mistérios" medievais , "filhos legítimos da representação dionisíaca" dos mistérios e das tragédias gregas da antiguidade. Sardinha entende que os mistérios medievais são por natureza cristãos, de fonte eclesiástica, gerados no Ocidente à roda do ano mil, quando “o mundo, sacudindo os seus velhos trapos, quis em toda a parte vestir o manto branco das igrejas”. Nessas criações do "génio Ocidental" não era necessária uma iniciação transfiguradora - bastava a força da fé. E os portugueses tiveram depois larga participação no movimento das ideias e crenças medievais.
Sardinha não anunciara ainda aos seus amigos a reconversão ao catolicismo (o que só acontecerá em 1913) mas resulta aqui bem nítida a sua distância dos esoterismos iniciáticos das maçonarias, bem como da interpretação anti-católica que Teófilo Braga apresentou a respeito dos Autos de Gil Vicente; Teófilo, "apoiando-se numas decisões conciliares e em certa ordenação de Carlos Magno, as quais feriam de ignomínia os histriões e homens do circo, generaliza logo que a Igreja, de mãos trocadas com a Realeza, combateu de morte o teatro nascente [T. Braga, Gil Vicente e as origens do Teatro nacional, 1898, pp. 8-11]. Teófilo deixa influenciar-se às vezes por Mr. Homais, boticário em Rouen. E no caso presente confunde a condenação moral dos restos de uma sociedade que os olhos de todos encaravam como a verdadeira consubstanciação do Pecado, com o alar tímido da crisálida que amanhecia ao bafo morno da lâmpada cristã."
[Monsieur Homais é um personagem criado por Gustave Flaubert no romance Madame Bovary (1857). Boticário de profissão, Homais desempenha um papel negativo com Emma Bovary e os demais personagens do romance, tornando-se um arquétipo de vaidade social e de pretensões científicas.]
8.12.2024 - J. M. Q.
António Sardinha contesta aqui uma "miragem orientalista" que via, nos "mistérios" medievais , "filhos legítimos da representação dionisíaca" dos mistérios e das tragédias gregas da antiguidade. Sardinha entende que os mistérios medievais são por natureza cristãos, de fonte eclesiástica, gerados no Ocidente à roda do ano mil, quando “o mundo, sacudindo os seus velhos trapos, quis em toda a parte vestir o manto branco das igrejas”. Nessas criações do "génio Ocidental" não era necessária uma iniciação transfiguradora - bastava a força da fé. E os portugueses tiveram depois larga participação no movimento das ideias e crenças medievais.
Sardinha não anunciara ainda aos seus amigos a reconversão ao catolicismo (o que só acontecerá em 1913) mas resulta aqui bem nítida a sua distância dos esoterismos iniciáticos das maçonarias, bem como da interpretação anti-católica que Teófilo Braga apresentou a respeito dos Autos de Gil Vicente; Teófilo, "apoiando-se numas decisões conciliares e em certa ordenação de Carlos Magno, as quais feriam de ignomínia os histriões e homens do circo, generaliza logo que a Igreja, de mãos trocadas com a Realeza, combateu de morte o teatro nascente [T. Braga, Gil Vicente e as origens do Teatro nacional, 1898, pp. 8-11]. Teófilo deixa influenciar-se às vezes por Mr. Homais, boticário em Rouen. E no caso presente confunde a condenação moral dos restos de uma sociedade que os olhos de todos encaravam como a verdadeira consubstanciação do Pecado, com o alar tímido da crisálida que amanhecia ao bafo morno da lâmpada cristã."
[Monsieur Homais é um personagem criado por Gustave Flaubert no romance Madame Bovary (1857). Boticário de profissão, Homais desempenha um papel negativo com Emma Bovary e os demais personagens do romance, tornando-se um arquétipo de vaidade social e de pretensões científicas.]
8.12.2024 - J. M. Q.
O GÉNIO OCIDENTAL
Excerto de um livro em preparo
Excerto de um livro em preparo
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O chamado Drama ou Representação de Adão (*), que, de origem anglo-normanda, correu em todas as línguas as sete-partidas do mundo, foi o tronco de onde vieram a descender os inumeráveis «mistérios» medievais.
Os «mistérios» medievais, de fonte exclusivamente eclesiástica, em contrário dos «milagres», nascidos das confrarias laicas, tomaram essa designação genérica, porque neles a princípio o motivo obrigado era sempre o desenvolvimento do mistério da Redenção, que os personagens bíblicos, patriarcas e profetas, que haviam anunciado a Jesus, apareciam a testemunhar na consumação do ato resgatador. E nunca se suponha que algum parentesco os ligava aos mistérios das velhas religiões que o Cristianismo subvertera. Saíam da necessidade de se materializar à turba dos fiéis a essência primaria da fé, ao passo que os outros, em termo oposto, apenas se abriam para os iniciados.
A sede das almas, que as crenças oficiais mal satisfaziam, levava à constituição de cultos esotéricos. Daí Elêusis, as alucinações dionisíacas, a perturbante sabedoria órfica. Assim os mistérios antigos se corporizaram, defendidos por um pacto terrivelmente sagrado, com o pavor divinatório a enterrá-los no fundo dos santuários. Procuravam a posse do Eterno, mas a Revelação cerrava-se, implacável, ao que não triunfasse da prova depuradora.
Com os «mistérios» medievais, traziam-se aos corações simples as verdades augustas, humanizavam-se as sublimidades teológicas, os símbolos viviam a vida dos sentimentos que dignificavam. E a catedral gótica abrigou na revoada de luz das suas naves a mulinha do presépio, a cena doce das oferendas, toda a alegria de uma natividade, depois com os passos crudelíssimos da Paixão a dor da mãe que chora o filho moribundo.
Já se vê a diferença profunda: - nos mistérios antigos residia o centro da própria Revelação, enquanto o «mistério» medieval funcionava como um prolongamento da complicada máquina litúrgica, - espécie de catequese figurada, vestimenta impressiva da doutrina estabelecida. Os mistérios antigos punham a ciência do Divino acima das práticas religiosas usuais; a Igreja identificava-a
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com a letra corrente, chamando para a claridade a imagem de Deus, a incarnação do Verbo. Deste modo a força da fé bastava onde se exigira a iniciação transfiguradora. Não podia, pois, existir duelo mais inconciliável: - O mistério antigo e o «mistério» medieval excluíam-se por natureza. Quem diria por isso, que o delírio órfico e a exaltação medieval se ajuntariam ao cabo numa síntese de harmonia e libertação?!
No dia em que Ésquilo se acolheu à proteção de um templo para que o não lapidassem os que o acusavam de haver traído o arcano tremendo dos mistérios, uma arte de arrebatamento, falando uma fala de terror e enleio, desabrochava ao sorriso largo do céu da Hélade, - a tragédia surgia a apertar as almas numa ânsia desconhecida. Os coros ingénuos do «mistério», ampliando-se na espiritualização máxima da catedral, achariam a nota-mestra, da qual, séculos andados, uma flor magnífica rebentaria sobre a colina mística de Bayreuth. É que Dioniso não morrera! Como no Começo por graça de Zeus ressuscitara da trucidação no seio de Deméter criadora, - Ele, - a Esperança do Mundo, Senhor dos Assombros Proféticos, voltava a renascer, - agora da derrocada formidável dos Deuses!
O transbordamento lírico que em ritmos serpentinos torcionara os plainos de Elêusis, fecundo revival transportador, arremesso doido para o Infinito, a Loucura-da-Cruz (Stultitia crucis, S. Paulo), esse poderoso ideal dinâmico, o reateava numa arrancada ainda maior, numa integração que a música, a ars nova dos teóricos do Quatrocento, tornaria absoluta. Língua de fogo, à uma absorvida e absorvente, espiral convulsa de protestação contra Apolo dogmático, fechado em linhas irredutíveis, em formas inquebrantáveis, — a fúria órfica, morbus sacer aureolando os Eleitos, não se sufocara no desabamento final do Olimpo. A catedral gótica, sigla de uma iniciação que só a hora presente pega a decifrar, rompendo com toda a lei estática, ganhando pelos vazios o mais embriagador, o mais voejante efeito ascensional, em Cristo, Sal das Almas, Semente da Leiva, reanimava a Dioniso, Esperança do Mundo, Encantador dos Homens, — embora assim se não pregue no Sermão de Zaratustra.
Como a tragédia, filha emancipada de Elêusis, a música, escapando-se da catedral que lhe fora mãe, ao ar-livre atingiria a adolescência, robustecendo-se e individualizando-se. E se a tragédia ensinara à Atenas, da cigarra de oiro e das vertentes calmas, as fórmulas intensificadoras da vida, lhe descerrara o véu das aparências para a mergulhar na contemplação do enigma fascinador, a música, — essa outra catedral não já da fé de uma raça, mas da fé do orbe inteiro! — dentro de si congregaria na mesma adoração as
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Doze-tribos dispersas, revelando-lhes a Monsalvato invisível, a Jerusalém prometida. Soará então o terceiro dia para Dioníso, - esse em que Ele, a firmar para sempre o seu reinado, há de descer lá de onde se refugiou desde que o latim dos Humanistas e as Sibilas de mestre Michaelo instalaram de novo a Apolo entre os homens em erro.
Ora a árvore genealógica do «mistério» atira as suas raízes ainda para além e bem para além do Drama de Adão. A miragem orientalista de um crítico ilustre quer que o «mistério» medieval não seja senão um filho legitimo da representação dionisíaca. A Igreja, em vez de o haver concebido e aleitado, recolhera-o apenas, tiritante, dos escombros da Antiguidade.
Bizâncio, - os oiros hieráticos de Blanchernes e de Santa Sofia assistiram ao desfiar de não sei que tragédia do baixo-helenismo, já intitulada Paixão de Cristo, onde, através de mais de dois mil e seiscentos versos e por entre declamações arrancadas ao próprio Eurípides, sobrenadavam, enlaçadas com as reminiscências pagãs, as doces, as virgíneas emoções da Idade-evangélica. Aí, segundo Guillaume Dubufe (La Valeur de l'Art) [ 1908 - Guillaume Dubufe - La Valeur de L'Art - pdf ] é que se encontra a ponte de passagem, essa composição híbrida marca a transição. Degenerescência a mais abastardada do gosto clássico, barroca, hipertrófica como o ambiente em que se fortalecera, a curiosa simbiose, organizar-se-ia em melodrama sob o patronato dos hirtos doutores da epopeia ecuménica e para espairecimento do Basileu. Porque o que a tomada de Constantinopla não explica, explicam-no os Cruzados, - escusado será dizer que eles é que acarretaram a semente estranha lá das paragens do Bósforo para esta dolorosa terra do Ocidente. E o «mistério» se gerou no alvoroçado despertar do ano mil, quando «le monde, secouant ses vieux haillons, voulait partout revêtir la robe blanche des églises» ... [“o mundo, sacudindo os seus velhos trapos, quis em toda a parte vestir o manto branco das igrejas” ...]
Não me parece a mim que os mistérios gregos ou a tragédia, herdeira deles, pudessem produzir o «mistério» medieval, porquanto os elementos psicológicos constitucionais não eram os mesmos, nem tão pouco se entendiam as necessidades de que uns e o outro emergiram. O rito eleusino, esotérico, destinara-se à exacerbação do furor divinatório, o «mistério» corporizava-se como um catecismo em ação para doutrinamento da grei. E se a absorção religiosa na Grécia, - examinado o facto na sua fisionomia geral -, dera a cerimónia dionisíaca e dela a tragédia se originara; se o mesmo fenómeno no Ocidente frutificava no «mistério» de onde o drama lírico veio a derivar, não nos convença a similitude, porque mais uma vez se verifica que os povos, que as
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épocas, em igualdade de circunstâncias, atuam sempre, trabalham sempre, numa direção conforme.
Mas se o «mistério» se não nobilita com ancestros tão recuados, apesar de ser com o Drama de Adão que adquire autonomia reconhecida, personalidade completa, já no tempo de Carlos Magno, de «Charles à la barbe fleurie», se desenhava a valer o movimento de que brotaria. Nas igrejas francesas por volta do século VIII já se intercalavam nos ofícios do Natal e da Páscoa diálogos servidos por pessoas, desempenhando esta ou aquela figura do Evangelho. E ainda hoje em Sexta-feira Maior a liturgia romana canta a paixão de Cristo, distribuindo pelos celebrantes as perguntas e as respostas que o texto apresenta. Não estará aqui a célula-mãe do «mistério»?
É outra a lição de Teófilo [Braga]. O eminente professor, apoiando-se numas decisões conciliares e em certa ordenação de Carlos Magno, as quais feriam de ignomínia os histriões e homens do circo (Gil Vicente e as origens do Teatro nacional), generaliza logo que a Igreja, de mãos trocadas com a Realeza, combateu de morte o teatro nascente. Teófilo deixa influenciar-se às vezes por Mr. Homais, boticário em Rouen. E no caso presente confunde a condenação moral dos restos de uma sociedade que os olhos de todos encaravam como a verdadeira consubstanciação do Pecado, com o alar tímido da crisálida que amanhecia ao bafo morno da lâmpada cristã.
Libertou-se o «mistério» das naves da catedral, depois de alcançar a maioridade com o Drama de Adão no século XII; e, desenrolando-se cá fora, junto dos pórticos,- o primeiro passo para a peregrinação infindável,- não cortou tão cedo o cordão umbilical. Da igreja, como do Paraíso, saía o personagem que representava Deus ou o Salvador, - sempre um clérigo de missa. Uma grande evolução se exprimia com este facto, porque a princípio o «mistério» limitava-se a pôr somente em cena os anunciadores da vinda do Messias. As confrarias, que a influência franciscana desenvolvera, é que começaram a representar a Paixão propriamente. Daí o apelidarem-se «confrarias da Paixão». É com elas que Cristo aparece no «mistério», - debaixo da vigilância do preboste do rei e com regulamentação dos conselheiros municipais.
Já então o «mistério» encontrara um competidor no «milagre». O «milagre» de carácter laico e em cuja dramatização ingénua se adivinha por vezes o sopro que florirá em Shakespeare, entremeava com os motivos sacros a nota mordente, o riso implacável do burguês medieval, do homem da comuna, que se educara
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na escola de «Renard le Goupil». A Idade Média riu como ninguém ainda. E a sua gargalhada, assumindo facetas de génio nos tipos imorredoiros de Georges Dandin, - o marido coitado, e de Sieur Patbelin, expiraria estrondosa e livre, aos clarões do Santo-Ofício, nos grossos beiços plebeus do cura de Meudon e de certo mestre Gil,
«um que não tem nem um ceitil
e faz os aitos a el-rei».
O «milagre, oriundo das corporações, louvava a vida do patrono, ou de uma gilde ou de uma cidade. Em honra da virgem constituiu-se o ciclo chamado de «Notre-Dame». Vários «milagres», revelando a graça e o poder de Maria, se espalharam de feira em feira, de burgo em burgo, palpitando os elementos futuros do drama pela análise dos caracteres, rudimentaríssima embora, pelo cuidado, ainda que infantil, da observação. Mais do que o motivo hierográfico, escolhiam a situação real, colhida de vida ambiente, um conflito de sentimentos, o ciúme, a ameaça da morte, - tudo vencido, mercê da intercessão, do milagre do Santo em cuja honra a representação se preparara. É este o caminho seguro do «milagre, - o que lhe garante curso desafogado. Porque o «milagre», mero animador de um vitral hagiológico, depressa se homologou com o «mistério», sabido que a diferença única que os separava, - a natureza exclusivamente eclesiástica do segundo, se enfraquecera com a sua deslocação para os pórticos.
Exemplo atualizado do «mistério» com reminiscências formais de «milagre» - L'ystoire de Monseigneur Saint Sébastien jouée par les habitants Lanlevillar l’année courant. M. V. L. XVIII au moys de may, que uma alquimia maravilhosa transfigurou no perturbante poema que é Le martyre de Saint Sebastien. A arte soleníssima de Stelio Efrena - o «uome singolare», o «virtuose» aliciante, dignificou numa reconstituição cheia de nobreza a esquecida criação medieval. Mas o filistinismo de uma época falha não se soube erguer na poderosa asa espiritual que o Poeta lhe estendia!
Com Tintagiles, com Palomides, o iluminado da Flandres achara o segredo emotivo do «milagre», - com a angústia e a inquietação do Pressentimento, de uma sombra negra alongada. D’Annunzio, - o altíssimo poeta latino (eu ia a chamar-lhe vate no sentido sacerdotal, religioso, que à palavra os Antigos atribuíam) -, restituindo-nos psicologicamente o «mistério, como uma doce cantiga de ama que Fausto, desiludido, escutasse, foi o Orfeu de uma reconciliação bem maior do que essa que já a sua arte realizara
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entre o Bárbaro da colina bávara e Zaratustra, descido da Montanha. É que corre um vento de revivescência para a representação medieval. Enquanto uns lhe aproveitam o espírito para uma obra suprema de congraçamento, os eruditos, colaborando no interesse popular, restauram-na com todo o aparato com o mais escrupuloso respeito. Debaixo do patrocínio de Gaston Paris e de d'Arbois Jubainville representou-se em 1898 em Ploujean um velho «mistério» bretão, - La vie de Saint Giresolé.
A vida nómada da Idade Média, com peregrinos caminho de Santiago nas Espanhas ou de San Tomás, na Inglaterra, com frades mendicantes, cantando e absolvendo, com jongleurs e homens de aventura, levara o «mistério», amassado com o «milagre» às paragens mais afastadas. O nosso auto tradicional é a sua aclimatação. E na literatura sobranceiramente designada «de cordel» corre um Auto da vida do milagroso Mártir S. Sebastião, que bem se deve considerar uma variante nacional do núcleo ou ciclo, de onde provém «L’histoire de Monseigneur Saint Sébastien». São os mesmos os elementos do «mistério» de D'Annunzio, desde a abertura com a confissão de Cristo pelos gémeos, Marcos e Marcelino, até à destruição dos ídolos do prefeito e à comparência do divino efebo perante o Imperador. D’Annunzio parece ter conhecido o singelo «Auto» português, tanto o seu poema se combina com ele nos menores detalhes. Só ao cabo o Poeta se desvia da lição popular para servir uma alevantada ideação, símbolo de uma fé amanhecente, no Laurier blessé. É aí que Cristo, entre as lamentações adoniásticas, recolhe a Dioniso que as Formas haviam trucidado uma vez mais para o remergulhar no seio de Deméter criadora, - «le gouffre de la lumière ineffable». [o abismo da luz inefável]
A extraordinária concordância entre o nosso «Auto» e L’ystoire de Monseigneur Saint Sebastien» não se explica sem se admitir uma larga participação de Portugal no movimento das ideias e das crenças medievais. Essa participação existia, - e intensa, e impressiva. Prova-o um «milagre» francês, pertencente ao ciclo de «Notre-Dame», o qual se nomeia: - «Comment la femme au roi de Portugal tua le sénéschal du roy et sa propre cousine, tant elle fut condamné à ardoir, et Notre Dame l’engaranti.» (Emile Gebhart, De Panurge a Sancho Pança). [ 1911_-_Émile_gebhart_-__de_panurge_a_sancho_pança_.pdf ]
É um rei de Portugal que se vai à caça e se perde no bosque de Compiègne. Um castelão dá-lhe hospitalidade e o rei, para lha pagar, pede-lhe a filha em casamento. Aqui desencadeia-se uma história de arrepiar os cabelos, a Virgem intervém e tudo acaba pelo rei distribuir o reino «aux pauvres» [aos pobres] e funda com a rainha uma abadia.
Na redação corrente do Poema de Kudruis, uma das com-
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panheiras de Hagen na ilha dos Grifos (A. Bossert, La littérature allemande au moyen age) [ 1893 - Adolphe Bossert - La littérature allemande au moyen age pdf ] é uma princesa de Portugal, chamada Hildeburc. Sabe Deus por onde é que Portugal ainda andava! Mas ressalta claro das fantasias e dos anacronismos que ocupávamos um papel ativo na formidável elaboração medieval.
As colónias vindas ao aceno de Sancho I, as associações de maçons que o Povoador atraíra, o auxilio dos Cruzados na reconquista, a condessa Mahaut e o infante de Bouvines entregam-nos a chave da comunhão arraigada da nossa vida nacional no ondular vasto da maré medieva. Não ficou na crença dinamarquesa como o génio do mal a infanta Beringela, - essa moreninha que entre brumas se finou gritando com saudades do sol? Como se compreende a ida dela para um trono do Norte sem uma integração completa de Portugal na comunidade europeia?
Tão rigorosa permuta de interesses e de sentimentos, que o conceito moral da Republica-Christiana aguentava, documenta-se com uma revelação curiosíssima: - a princesa Magalona e o Pedro da Provença, do folheto popular, são as figuras de um conto que entreteve a Europa culta e que o próprio Tetrarca parece que retocara. E muito mais decisiva é a circunstância de existir ainda na minha província uma sobrevivência do Drama de Adão, duplamente curiosa por ser a velha efabulação desempenhada por bonifrates, fantoches ou marionnettes, que a Idade Média utilizou nas representações hieráticas com beneplácito da Igreja.
D. Quixote conheceu-os, - já então interditos pelos latins de Roma, cobertos de abominação pelos graves doutores conciliares. E na minha província – que Deus e o Papa nos perdoem a pouca ortodoxia! – a usança persistiu. Falem a alguém despaísado dela, nos «Bonecos de Santo Aleixo» - e logo os olhos se lhe alumiarão e a visão amorável da terra o enternecerá!
Veio-lhes aquele nome - diz-se -, por haverem irradiado da aldeia de Santo Aleixo, no Alto Alentejo. Sendo assim, trata-se sem dúvida de uma dinastia sucedendo a outra ou, com o dessuramento do uso, de uma célula resistindo. E apresentam tipos exclusivos, repletos de individualidade, como o «Mestre-Sala» e o «Padre-Chanca», que não entroncam na estirpe egrégia de Polichinelo, que não se deram nunca com Tuti li mundi, nem se arrogam nada da prosápia de D. Roberto. As Encolhas, os «bailicos» à nossa saúde «para que mais uns cobres caiam», O que vende alpiste para canário não refletem parentesco com as demais exibições de marionnettes. Com todo o seu regionalismo não escaparam, porém, às influências atávicas. A farsa que segue o «Auto» é um eco da «sotie» alternando o «milagre». E pelos serões eternos, ao pasmo simples das apanhadeiras de azeitona desfiam a história da Criação,
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Deus apartando as águas e ao Sétimo descansando, Adão expulso do Paraíso, depois da gulodice fatal, a seguir a morte de Abel e por fim, numa promessa esperançada, num sinal de Aleluia, a anunciação do Messias, que os Santos-Reis, perdidos na noite, vêm demandando do cabo do mundo. Ora a queda de Adão, o fratricídio de Caim e as profecias de uma redempção eram, segundo Gaston Paris (Esquisse historique de la littérature française au moyen-âge [ 1907_-_Gaston_Paris_-_Esquisse_historique....pdf ]), as partes em que a composição anglo-normanda se dividia.
Evidente que o texto se perdeu: - a esta hora, sumido nas poeiras eruditas, Topsius esgaravata nele para que grossas brochuras surjam em glória da Imperial Alemanha. Mas os marionnettes rudimentares da minha terra continuam a repetir, na inconsciência da hereditariedade, os gestos, as atitudes, os movimentos dos senhores seus ilustres avós...
ANTÓNIO DE MONFORTE
[negritos acrescentados]
Nota desta edição:
(*) - O Drama de Adão data do século XII e parece ter sido escrito em Inglaterra.
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O chamado Drama ou Representação de Adão (*), que, de origem anglo-normanda, correu em todas as línguas as sete-partidas do mundo, foi o tronco de onde vieram a descender os inumeráveis «mistérios» medievais.
Os «mistérios» medievais, de fonte exclusivamente eclesiástica, em contrário dos «milagres», nascidos das confrarias laicas, tomaram essa designação genérica, porque neles a princípio o motivo obrigado era sempre o desenvolvimento do mistério da Redenção, que os personagens bíblicos, patriarcas e profetas, que haviam anunciado a Jesus, apareciam a testemunhar na consumação do ato resgatador. E nunca se suponha que algum parentesco os ligava aos mistérios das velhas religiões que o Cristianismo subvertera. Saíam da necessidade de se materializar à turba dos fiéis a essência primaria da fé, ao passo que os outros, em termo oposto, apenas se abriam para os iniciados.
A sede das almas, que as crenças oficiais mal satisfaziam, levava à constituição de cultos esotéricos. Daí Elêusis, as alucinações dionisíacas, a perturbante sabedoria órfica. Assim os mistérios antigos se corporizaram, defendidos por um pacto terrivelmente sagrado, com o pavor divinatório a enterrá-los no fundo dos santuários. Procuravam a posse do Eterno, mas a Revelação cerrava-se, implacável, ao que não triunfasse da prova depuradora.
Com os «mistérios» medievais, traziam-se aos corações simples as verdades augustas, humanizavam-se as sublimidades teológicas, os símbolos viviam a vida dos sentimentos que dignificavam. E a catedral gótica abrigou na revoada de luz das suas naves a mulinha do presépio, a cena doce das oferendas, toda a alegria de uma natividade, depois com os passos crudelíssimos da Paixão a dor da mãe que chora o filho moribundo.
Já se vê a diferença profunda: - nos mistérios antigos residia o centro da própria Revelação, enquanto o «mistério» medieval funcionava como um prolongamento da complicada máquina litúrgica, - espécie de catequese figurada, vestimenta impressiva da doutrina estabelecida. Os mistérios antigos punham a ciência do Divino acima das práticas religiosas usuais; a Igreja identificava-a
[91]
com a letra corrente, chamando para a claridade a imagem de Deus, a incarnação do Verbo. Deste modo a força da fé bastava onde se exigira a iniciação transfiguradora. Não podia, pois, existir duelo mais inconciliável: - O mistério antigo e o «mistério» medieval excluíam-se por natureza. Quem diria por isso, que o delírio órfico e a exaltação medieval se ajuntariam ao cabo numa síntese de harmonia e libertação?!
No dia em que Ésquilo se acolheu à proteção de um templo para que o não lapidassem os que o acusavam de haver traído o arcano tremendo dos mistérios, uma arte de arrebatamento, falando uma fala de terror e enleio, desabrochava ao sorriso largo do céu da Hélade, - a tragédia surgia a apertar as almas numa ânsia desconhecida. Os coros ingénuos do «mistério», ampliando-se na espiritualização máxima da catedral, achariam a nota-mestra, da qual, séculos andados, uma flor magnífica rebentaria sobre a colina mística de Bayreuth. É que Dioniso não morrera! Como no Começo por graça de Zeus ressuscitara da trucidação no seio de Deméter criadora, - Ele, - a Esperança do Mundo, Senhor dos Assombros Proféticos, voltava a renascer, - agora da derrocada formidável dos Deuses!
O transbordamento lírico que em ritmos serpentinos torcionara os plainos de Elêusis, fecundo revival transportador, arremesso doido para o Infinito, a Loucura-da-Cruz (Stultitia crucis, S. Paulo), esse poderoso ideal dinâmico, o reateava numa arrancada ainda maior, numa integração que a música, a ars nova dos teóricos do Quatrocento, tornaria absoluta. Língua de fogo, à uma absorvida e absorvente, espiral convulsa de protestação contra Apolo dogmático, fechado em linhas irredutíveis, em formas inquebrantáveis, — a fúria órfica, morbus sacer aureolando os Eleitos, não se sufocara no desabamento final do Olimpo. A catedral gótica, sigla de uma iniciação que só a hora presente pega a decifrar, rompendo com toda a lei estática, ganhando pelos vazios o mais embriagador, o mais voejante efeito ascensional, em Cristo, Sal das Almas, Semente da Leiva, reanimava a Dioniso, Esperança do Mundo, Encantador dos Homens, — embora assim se não pregue no Sermão de Zaratustra.
Como a tragédia, filha emancipada de Elêusis, a música, escapando-se da catedral que lhe fora mãe, ao ar-livre atingiria a adolescência, robustecendo-se e individualizando-se. E se a tragédia ensinara à Atenas, da cigarra de oiro e das vertentes calmas, as fórmulas intensificadoras da vida, lhe descerrara o véu das aparências para a mergulhar na contemplação do enigma fascinador, a música, — essa outra catedral não já da fé de uma raça, mas da fé do orbe inteiro! — dentro de si congregaria na mesma adoração as
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Doze-tribos dispersas, revelando-lhes a Monsalvato invisível, a Jerusalém prometida. Soará então o terceiro dia para Dioníso, - esse em que Ele, a firmar para sempre o seu reinado, há de descer lá de onde se refugiou desde que o latim dos Humanistas e as Sibilas de mestre Michaelo instalaram de novo a Apolo entre os homens em erro.
Ora a árvore genealógica do «mistério» atira as suas raízes ainda para além e bem para além do Drama de Adão. A miragem orientalista de um crítico ilustre quer que o «mistério» medieval não seja senão um filho legitimo da representação dionisíaca. A Igreja, em vez de o haver concebido e aleitado, recolhera-o apenas, tiritante, dos escombros da Antiguidade.
Bizâncio, - os oiros hieráticos de Blanchernes e de Santa Sofia assistiram ao desfiar de não sei que tragédia do baixo-helenismo, já intitulada Paixão de Cristo, onde, através de mais de dois mil e seiscentos versos e por entre declamações arrancadas ao próprio Eurípides, sobrenadavam, enlaçadas com as reminiscências pagãs, as doces, as virgíneas emoções da Idade-evangélica. Aí, segundo Guillaume Dubufe (La Valeur de l'Art) [ 1908 - Guillaume Dubufe - La Valeur de L'Art - pdf ] é que se encontra a ponte de passagem, essa composição híbrida marca a transição. Degenerescência a mais abastardada do gosto clássico, barroca, hipertrófica como o ambiente em que se fortalecera, a curiosa simbiose, organizar-se-ia em melodrama sob o patronato dos hirtos doutores da epopeia ecuménica e para espairecimento do Basileu. Porque o que a tomada de Constantinopla não explica, explicam-no os Cruzados, - escusado será dizer que eles é que acarretaram a semente estranha lá das paragens do Bósforo para esta dolorosa terra do Ocidente. E o «mistério» se gerou no alvoroçado despertar do ano mil, quando «le monde, secouant ses vieux haillons, voulait partout revêtir la robe blanche des églises» ... [“o mundo, sacudindo os seus velhos trapos, quis em toda a parte vestir o manto branco das igrejas” ...]
Não me parece a mim que os mistérios gregos ou a tragédia, herdeira deles, pudessem produzir o «mistério» medieval, porquanto os elementos psicológicos constitucionais não eram os mesmos, nem tão pouco se entendiam as necessidades de que uns e o outro emergiram. O rito eleusino, esotérico, destinara-se à exacerbação do furor divinatório, o «mistério» corporizava-se como um catecismo em ação para doutrinamento da grei. E se a absorção religiosa na Grécia, - examinado o facto na sua fisionomia geral -, dera a cerimónia dionisíaca e dela a tragédia se originara; se o mesmo fenómeno no Ocidente frutificava no «mistério» de onde o drama lírico veio a derivar, não nos convença a similitude, porque mais uma vez se verifica que os povos, que as
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épocas, em igualdade de circunstâncias, atuam sempre, trabalham sempre, numa direção conforme.
Mas se o «mistério» se não nobilita com ancestros tão recuados, apesar de ser com o Drama de Adão que adquire autonomia reconhecida, personalidade completa, já no tempo de Carlos Magno, de «Charles à la barbe fleurie», se desenhava a valer o movimento de que brotaria. Nas igrejas francesas por volta do século VIII já se intercalavam nos ofícios do Natal e da Páscoa diálogos servidos por pessoas, desempenhando esta ou aquela figura do Evangelho. E ainda hoje em Sexta-feira Maior a liturgia romana canta a paixão de Cristo, distribuindo pelos celebrantes as perguntas e as respostas que o texto apresenta. Não estará aqui a célula-mãe do «mistério»?
É outra a lição de Teófilo [Braga]. O eminente professor, apoiando-se numas decisões conciliares e em certa ordenação de Carlos Magno, as quais feriam de ignomínia os histriões e homens do circo (Gil Vicente e as origens do Teatro nacional), generaliza logo que a Igreja, de mãos trocadas com a Realeza, combateu de morte o teatro nascente. Teófilo deixa influenciar-se às vezes por Mr. Homais, boticário em Rouen. E no caso presente confunde a condenação moral dos restos de uma sociedade que os olhos de todos encaravam como a verdadeira consubstanciação do Pecado, com o alar tímido da crisálida que amanhecia ao bafo morno da lâmpada cristã.
Libertou-se o «mistério» das naves da catedral, depois de alcançar a maioridade com o Drama de Adão no século XII; e, desenrolando-se cá fora, junto dos pórticos,- o primeiro passo para a peregrinação infindável,- não cortou tão cedo o cordão umbilical. Da igreja, como do Paraíso, saía o personagem que representava Deus ou o Salvador, - sempre um clérigo de missa. Uma grande evolução se exprimia com este facto, porque a princípio o «mistério» limitava-se a pôr somente em cena os anunciadores da vinda do Messias. As confrarias, que a influência franciscana desenvolvera, é que começaram a representar a Paixão propriamente. Daí o apelidarem-se «confrarias da Paixão». É com elas que Cristo aparece no «mistério», - debaixo da vigilância do preboste do rei e com regulamentação dos conselheiros municipais.
Já então o «mistério» encontrara um competidor no «milagre». O «milagre» de carácter laico e em cuja dramatização ingénua se adivinha por vezes o sopro que florirá em Shakespeare, entremeava com os motivos sacros a nota mordente, o riso implacável do burguês medieval, do homem da comuna, que se educara
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na escola de «Renard le Goupil». A Idade Média riu como ninguém ainda. E a sua gargalhada, assumindo facetas de génio nos tipos imorredoiros de Georges Dandin, - o marido coitado, e de Sieur Patbelin, expiraria estrondosa e livre, aos clarões do Santo-Ofício, nos grossos beiços plebeus do cura de Meudon e de certo mestre Gil,
«um que não tem nem um ceitil
e faz os aitos a el-rei».
O «milagre, oriundo das corporações, louvava a vida do patrono, ou de uma gilde ou de uma cidade. Em honra da virgem constituiu-se o ciclo chamado de «Notre-Dame». Vários «milagres», revelando a graça e o poder de Maria, se espalharam de feira em feira, de burgo em burgo, palpitando os elementos futuros do drama pela análise dos caracteres, rudimentaríssima embora, pelo cuidado, ainda que infantil, da observação. Mais do que o motivo hierográfico, escolhiam a situação real, colhida de vida ambiente, um conflito de sentimentos, o ciúme, a ameaça da morte, - tudo vencido, mercê da intercessão, do milagre do Santo em cuja honra a representação se preparara. É este o caminho seguro do «milagre, - o que lhe garante curso desafogado. Porque o «milagre», mero animador de um vitral hagiológico, depressa se homologou com o «mistério», sabido que a diferença única que os separava, - a natureza exclusivamente eclesiástica do segundo, se enfraquecera com a sua deslocação para os pórticos.
Exemplo atualizado do «mistério» com reminiscências formais de «milagre» - L'ystoire de Monseigneur Saint Sébastien jouée par les habitants Lanlevillar l’année courant. M. V. L. XVIII au moys de may, que uma alquimia maravilhosa transfigurou no perturbante poema que é Le martyre de Saint Sebastien. A arte soleníssima de Stelio Efrena - o «uome singolare», o «virtuose» aliciante, dignificou numa reconstituição cheia de nobreza a esquecida criação medieval. Mas o filistinismo de uma época falha não se soube erguer na poderosa asa espiritual que o Poeta lhe estendia!
Com Tintagiles, com Palomides, o iluminado da Flandres achara o segredo emotivo do «milagre», - com a angústia e a inquietação do Pressentimento, de uma sombra negra alongada. D’Annunzio, - o altíssimo poeta latino (eu ia a chamar-lhe vate no sentido sacerdotal, religioso, que à palavra os Antigos atribuíam) -, restituindo-nos psicologicamente o «mistério, como uma doce cantiga de ama que Fausto, desiludido, escutasse, foi o Orfeu de uma reconciliação bem maior do que essa que já a sua arte realizara
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entre o Bárbaro da colina bávara e Zaratustra, descido da Montanha. É que corre um vento de revivescência para a representação medieval. Enquanto uns lhe aproveitam o espírito para uma obra suprema de congraçamento, os eruditos, colaborando no interesse popular, restauram-na com todo o aparato com o mais escrupuloso respeito. Debaixo do patrocínio de Gaston Paris e de d'Arbois Jubainville representou-se em 1898 em Ploujean um velho «mistério» bretão, - La vie de Saint Giresolé.
A vida nómada da Idade Média, com peregrinos caminho de Santiago nas Espanhas ou de San Tomás, na Inglaterra, com frades mendicantes, cantando e absolvendo, com jongleurs e homens de aventura, levara o «mistério», amassado com o «milagre» às paragens mais afastadas. O nosso auto tradicional é a sua aclimatação. E na literatura sobranceiramente designada «de cordel» corre um Auto da vida do milagroso Mártir S. Sebastião, que bem se deve considerar uma variante nacional do núcleo ou ciclo, de onde provém «L’histoire de Monseigneur Saint Sébastien». São os mesmos os elementos do «mistério» de D'Annunzio, desde a abertura com a confissão de Cristo pelos gémeos, Marcos e Marcelino, até à destruição dos ídolos do prefeito e à comparência do divino efebo perante o Imperador. D’Annunzio parece ter conhecido o singelo «Auto» português, tanto o seu poema se combina com ele nos menores detalhes. Só ao cabo o Poeta se desvia da lição popular para servir uma alevantada ideação, símbolo de uma fé amanhecente, no Laurier blessé. É aí que Cristo, entre as lamentações adoniásticas, recolhe a Dioniso que as Formas haviam trucidado uma vez mais para o remergulhar no seio de Deméter criadora, - «le gouffre de la lumière ineffable». [o abismo da luz inefável]
A extraordinária concordância entre o nosso «Auto» e L’ystoire de Monseigneur Saint Sebastien» não se explica sem se admitir uma larga participação de Portugal no movimento das ideias e das crenças medievais. Essa participação existia, - e intensa, e impressiva. Prova-o um «milagre» francês, pertencente ao ciclo de «Notre-Dame», o qual se nomeia: - «Comment la femme au roi de Portugal tua le sénéschal du roy et sa propre cousine, tant elle fut condamné à ardoir, et Notre Dame l’engaranti.» (Emile Gebhart, De Panurge a Sancho Pança). [ 1911_-_Émile_gebhart_-__de_panurge_a_sancho_pança_.pdf ]
É um rei de Portugal que se vai à caça e se perde no bosque de Compiègne. Um castelão dá-lhe hospitalidade e o rei, para lha pagar, pede-lhe a filha em casamento. Aqui desencadeia-se uma história de arrepiar os cabelos, a Virgem intervém e tudo acaba pelo rei distribuir o reino «aux pauvres» [aos pobres] e funda com a rainha uma abadia.
Na redação corrente do Poema de Kudruis, uma das com-
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panheiras de Hagen na ilha dos Grifos (A. Bossert, La littérature allemande au moyen age) [ 1893 - Adolphe Bossert - La littérature allemande au moyen age pdf ] é uma princesa de Portugal, chamada Hildeburc. Sabe Deus por onde é que Portugal ainda andava! Mas ressalta claro das fantasias e dos anacronismos que ocupávamos um papel ativo na formidável elaboração medieval.
As colónias vindas ao aceno de Sancho I, as associações de maçons que o Povoador atraíra, o auxilio dos Cruzados na reconquista, a condessa Mahaut e o infante de Bouvines entregam-nos a chave da comunhão arraigada da nossa vida nacional no ondular vasto da maré medieva. Não ficou na crença dinamarquesa como o génio do mal a infanta Beringela, - essa moreninha que entre brumas se finou gritando com saudades do sol? Como se compreende a ida dela para um trono do Norte sem uma integração completa de Portugal na comunidade europeia?
Tão rigorosa permuta de interesses e de sentimentos, que o conceito moral da Republica-Christiana aguentava, documenta-se com uma revelação curiosíssima: - a princesa Magalona e o Pedro da Provença, do folheto popular, são as figuras de um conto que entreteve a Europa culta e que o próprio Tetrarca parece que retocara. E muito mais decisiva é a circunstância de existir ainda na minha província uma sobrevivência do Drama de Adão, duplamente curiosa por ser a velha efabulação desempenhada por bonifrates, fantoches ou marionnettes, que a Idade Média utilizou nas representações hieráticas com beneplácito da Igreja.
D. Quixote conheceu-os, - já então interditos pelos latins de Roma, cobertos de abominação pelos graves doutores conciliares. E na minha província – que Deus e o Papa nos perdoem a pouca ortodoxia! – a usança persistiu. Falem a alguém despaísado dela, nos «Bonecos de Santo Aleixo» - e logo os olhos se lhe alumiarão e a visão amorável da terra o enternecerá!
Veio-lhes aquele nome - diz-se -, por haverem irradiado da aldeia de Santo Aleixo, no Alto Alentejo. Sendo assim, trata-se sem dúvida de uma dinastia sucedendo a outra ou, com o dessuramento do uso, de uma célula resistindo. E apresentam tipos exclusivos, repletos de individualidade, como o «Mestre-Sala» e o «Padre-Chanca», que não entroncam na estirpe egrégia de Polichinelo, que não se deram nunca com Tuti li mundi, nem se arrogam nada da prosápia de D. Roberto. As Encolhas, os «bailicos» à nossa saúde «para que mais uns cobres caiam», O que vende alpiste para canário não refletem parentesco com as demais exibições de marionnettes. Com todo o seu regionalismo não escaparam, porém, às influências atávicas. A farsa que segue o «Auto» é um eco da «sotie» alternando o «milagre». E pelos serões eternos, ao pasmo simples das apanhadeiras de azeitona desfiam a história da Criação,
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Deus apartando as águas e ao Sétimo descansando, Adão expulso do Paraíso, depois da gulodice fatal, a seguir a morte de Abel e por fim, numa promessa esperançada, num sinal de Aleluia, a anunciação do Messias, que os Santos-Reis, perdidos na noite, vêm demandando do cabo do mundo. Ora a queda de Adão, o fratricídio de Caim e as profecias de uma redempção eram, segundo Gaston Paris (Esquisse historique de la littérature française au moyen-âge [ 1907_-_Gaston_Paris_-_Esquisse_historique....pdf ]), as partes em que a composição anglo-normanda se dividia.
Evidente que o texto se perdeu: - a esta hora, sumido nas poeiras eruditas, Topsius esgaravata nele para que grossas brochuras surjam em glória da Imperial Alemanha. Mas os marionnettes rudimentares da minha terra continuam a repetir, na inconsciência da hereditariedade, os gestos, as atitudes, os movimentos dos senhores seus ilustres avós...
ANTÓNIO DE MONFORTE
[negritos acrescentados]
Nota desta edição:
(*) - O Drama de Adão data do século XII e parece ter sido escrito em Inglaterra.
Referências
- 1893 - Adolphe Bossert - La littérature allemande au moyen age [ pdf ]
- 1898 - Teófilo Braga - Gil Vicente e as origens do teatro nacional [.pdf]
- 1907 - Gaston Paris - Esquisse historique.... [pdf ]
- 1908 - Guillaume Dubufe - La Valeur de L'Art [ pdf ]
- 1911 - Émile Gebhart - De Panurge à Sancho Pança [.pdf ]