Teófilo, Mestre da Contra-Revolução
António Sardinha
António Sardinha, "Teófilo, Mestre da Contra-Revolução", in Nação Portuguesa - Revista de filosofia política, ano I, nº 1, 8 de Abril de 1914, pp. 7-15 (I); nº 2, 8 de Maio de 1914, pp. 38-52 (II); nº 3, Junho de 1914, pp. 92-100 (III). (Reed. in Glossário dos Tempos, Lisboa, Edições Gama, 1942, pp. 123-214)
Ver também de António Sardinha, "O velho Teófilo"
Ver também de António Sardinha, "O velho Teófilo"
[Neste artigo de abertura da revista Nação Portuguesa, de Abril a Junho de 1914, António Sardinha aborda a visão de Teófilo Braga sobre a formação da identidade e da consciência nacional portuguesa, em oposição ao negativismo de Oliveira Martins. Teófilo defendera o papel da população e das comunidades locais na construção da nação portuguesa, com os olhos postos no federalismo municipal. As suas convicções e preconceitos republicanos, porém, não lhe permitiram subir até à compreensão do papel da Realeza na construção do Estado português - do papel do rei como aglutinador e federador dos municípios, bem como do sentido de duração conferido pela continuidade dinástica. Na perspectiva de Sardinha, sem a Instituição Real, o Estado-Nação português não teria sido criado e, no século XIV, teria sido incapaz de resistir nas lutas pela sua independência no quadro peninsular e europeu.
António Sardinha situou-se como herdeiro das doutrinas do tradicionalismo português, de "toda uma filosofia orgânica de reparação social", cujo último afloramento se dera em reacção ao "atomismo atrabiliário dos agitadores vintistas" [da Revolução de 1820]. Referindo-se a Charles Maurras e ao pensamento político do movimento neo-monárquico da Action française, considerou-o como um "exotismo de contrabando", introduzindo entre nós categorias mentais "hostis por índole e meio" às tendências do pensamento português, lamentando que uma "farmacopeia gaulesa" estivesse, uma vez mais, a exercer fascínio sobre os jovens das elites portuguesas. Em Julho, em "Poder Pessoal e Poder Absoluto", Sardinha insistia: "Não precisamos de aprender em Charles Maurras o que os nossos mestres da Contra-Revolução nos ensinam em estilo soante e bem castiço." - J. M. Q. ]
António Sardinha situou-se como herdeiro das doutrinas do tradicionalismo português, de "toda uma filosofia orgânica de reparação social", cujo último afloramento se dera em reacção ao "atomismo atrabiliário dos agitadores vintistas" [da Revolução de 1820]. Referindo-se a Charles Maurras e ao pensamento político do movimento neo-monárquico da Action française, considerou-o como um "exotismo de contrabando", introduzindo entre nós categorias mentais "hostis por índole e meio" às tendências do pensamento português, lamentando que uma "farmacopeia gaulesa" estivesse, uma vez mais, a exercer fascínio sobre os jovens das elites portuguesas. Em Julho, em "Poder Pessoal e Poder Absoluto", Sardinha insistia: "Não precisamos de aprender em Charles Maurras o que os nossos mestres da Contra-Revolução nos ensinam em estilo soante e bem castiço." - J. M. Q. ]
Aqui d'El-Rei ! — hão-de gritar no futuro já desimaginadas da mentira igualitária com que as entretêm e exploram, as sofredoras legiões proletárias, em busca dum sustentáculo incorruptível que não se firme na confusão das classes, mas na manutenção mesurada delas, de um sustentáculo que não careça de custosas montagens eleitorais nem de chorudas encarvas apetitosas, para prevalecer especado pelos ricaços que lhe assegurem os votos a troco de concessões e monopólios, mas que extraia o seu direito do direito santíssimo do Sangue, - que promova o próprio interesse, promovendo a felicidade e a alegria comum, desembaraçando o organismo das cobiças vorazes dos corretores de câmbios, colocando à distância e em comedimento os barões ventrudos do feudalismo bolsista.
O egoísmo do Rei empenhava-se em promover o interesse geral para proveito próprio. É a qualidade específica da Realeza, - o profundo condão imunizador por via do qual a duração e a continuidade se viabilizam, servidas pela força fisiológica da hereditariedade, obtendo, como agente duma conservação meticulosa, o afinco instintivo que impele os pais a acumular para os filhos. Foi de ontem e há-de ser de sempre, porque se fundamenta nas leis inalienáveis da Vida, na eterna e misteriosa razão que nos encadeia e subordina ao preceito do sangue, como a única realidade sensível que nos explica e imortaliza.
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É que nós possuímos toda uma vigorosa doutrina tradicionalista, toda uma filosofia orgânica de reparação social. Erguida contra o atomismo atrabiliário dos agitadores vintistas, depressa se soterrou nas vaias incompadecidas em que a difamaram as ideologias triunfantes dos homens do «Coração-sensível».
(...)
...o nosso movimento de ampla restituição localista e de correspondente equivalência autoritária vai entroncar as legítimas e bem castiças precedências teóricas, nós os reconhecendo por preceptores e conselheiros avisados, subindo-os ao destaque merecido na hora em que exotismos de contrabando pretendem socorrer o colapso da Raça com as misturas desconexas dum empirismo organizador, aprendido de galope em Charles Maurras, quando de passagem pelo boulevard. É a excomungada farmacopeia gaulesa a prevalecer nas direcções que se tentam impor ao belo renovo que já se manifesta na nossa mocidade, é o vício de sempre a desvirtuar-nos as possibilidades nativas mais uma vez com a intrusão de categorias mentais, hostis por índole e meio às tendências espontâneas do agregado que, senhor dum génio autónomo e duma esplendida capacidade criadora, se viu traído, depois da Era de Quatrocentos, pelas simpatias estrangeiristas dos elementos dirigentes.
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...o nosso movimento de ampla restituição localista e de correspondente equivalência autoritária vai entroncar as legítimas e bem castiças precedências teóricas, nós os reconhecendo por preceptores e conselheiros avisados, subindo-os ao destaque merecido na hora em que exotismos de contrabando pretendem socorrer o colapso da Raça com as misturas desconexas dum empirismo organizador, aprendido de galope em Charles Maurras, quando de passagem pelo boulevard. É a excomungada farmacopeia gaulesa a prevalecer nas direcções que se tentam impor ao belo renovo que já se manifesta na nossa mocidade, é o vício de sempre a desvirtuar-nos as possibilidades nativas mais uma vez com a intrusão de categorias mentais, hostis por índole e meio às tendências espontâneas do agregado que, senhor dum génio autónomo e duma esplendida capacidade criadora, se viu traído, depois da Era de Quatrocentos, pelas simpatias estrangeiristas dos elementos dirigentes.
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Corresponde ... a forma republicana a um hermético sistema de casta onde a concentração do domínio se reparte por um clã reduzido, abastecendo-se do privilégio e da isenção. Ontem as composições aristocráticas, monopolizando os meios e os fins, dispondo em absoluto da terra, da numária, dos cargos, do sacerdócio, - como na Roma consular - hoje as supostas democracias devoradas pelo plutocratismo, com o capitalista a aprisioná-las nos tentáculos sôfregos
ESTÁ sabido o negativismo rácico de Oliveira Martins, - a sua tão querida teoria do Acaso prevalecendo como um signo inexorável na determinação das nossas qualidades históricas, na destrinça da nossa evidência nacional. Em repulsa incontida e comum ardor iluminado de profeta opõe-lhe Teófilo Braga uma apologética cerradíssima do entranhado substractum aborígene, servindo-se para isso dos materiais produzidos pelas inculcas da antropologia mais por valiosas reconstituições arqueológicas. De facto, o nosso costado ligúrico, é com a máxima individuação que se corporiza nas indagações ungidas do eminente professor que, concrecionando certas diferenças etnogénicas, certos resíduos consuetudinários, se excede a uma paciente coletânea de episódios avulsos para os vivificar adentro duma visão unitária da nossa curva ascensional, donde sai bem vingada a tão combatida maioridade do génio lusitanista, a opulenta aptidão original que depressa o vazou nos moldes próprios de um povo livre.
Sectarismos transitórios, como é uma manifesta atitude hostil para com o Catolicismo, bem inexplicável num cérebro que deve os arcobotantes da contextura nos preceitos filosóficos da concepção comteana, - como é um inferior azedume jacobino pela dinastia de Bragança, como são umas dogmáticas convicções republicana que não se combinam com os princípios de hierarquia e ordem preconizados pelo Positivismo, - sectarismos transitórios interceptam a plenitude reconstrutora do infatigável operário, falseando-lhe as direções e os juízos com critérios antecipados, com subjectividades deletérias que cedo lhe abastardaram as preferências conservadoras, implicitamente reveladas na escolha decisiva de Augusto Comte para monitor de um indispensável método de trabalho e crítica, - para padrinho possante da demandada disciplina mental. Entretanto o esforço inescurecível de Teófilo (oh, eu falo do Teófilo da História da Literatura Portuguesa, não desse Teófilo póstumo que se soldou para sempre à renuncia da sua obra inteira!) salva-se na arrancada confiança que os destinos da Raça lhe merecem, - para lá dos desfalecimentos assassinos, dos abandonos mortíferos que nos atraiçoaram a caminhada, possui-se da contemplação radiosa de um Portugal maior, levado ao triunfo pela revivescência dos nossos magníficos dotes ancestrais, pela riqueza dinâmica do nosso incompreendido etos, pelo frémito sagrado que agita os reservatórios subjacentes da alma coletiva, em desejos viris de criação e resgate. Ele repõe na justa medida as obliteradas virtudes da consciência pátria e extrai das genealogias anónimas do Luso, do primevo e obscuro humo em que a Grei enterroa as centenárias raízes carnudas, a alta promessa de maravilha, a indebelável protestação de persistência e vida que ganhou linhas imorredoiras no irredentismo fremente do mito sebástico e se reveste agora das possíveis feições humanas, dos atributos palpáveis da verdade nos depoimentos que Teófilo convoca a testemunho no longo dos seus inventários enternecidos, das suas auscultações divinatórias em que um admirável sexto-sentido o conduz por entre sombras mergulhado em claridade, tal como Tirésias, o cego vidente. Por isso Teófilo é bem um preletor de mística nacional, como que um guardião inspirado dos tesouros encantados da Raça!
No reconhecimento reabilitador das influências hereditárias, na desvencilhação do nosso atavismo ligúrico reside, pois, o sinal inconfundível, o ar familiar que distingue a ampla faina de Teófilo em seu duplo aspeto social e histórico. Teófilo animou a pequena Psyché, de quem nem sequer suspeitavam os letrados e os pedantocratas, - dos destroços institucionais da Nacionalidade soube apurar a nossa inconversível índole foraleira, e aqueles condicionalismos inalienáveis que, desfibrados embora pela intromissão desabusada de categorias adversas, mantinham ainda consigo os fundamentos genésicos duma regenerescência futura.
Tamanho significado, um alcance tão profundo Teófilo ligava no fator populacional que, como base sociológica, não hesitou em o sobrepor ao elemento Autoridade, estatuído por Comte. Foi da interpretação unilateralista de um tal valor, entregando-se-lhe exclusivamente, donde o ir de desvio em desvio, de apriorismo em apriorismo, que resultou à obra de Teófilo o ser como uma gigantesca pirâmide truncada. Falta-lhe o vértice, o remate - a síntese precisa e esclarecedora. Tentou Teófilo delineá-la, sim, mas apenas à força de conceitualismos em que só barulhavam inteiriçadas fórmulas universitárias, áridas relembranças nominalistas, - toda a aparatosa ideologia do grosso ludibrio sofolátrico em que Teófilo se enredara, sacrificando à crendice racionalista dos tempos. Assim Teófilo, que partira afirmando, se quedava a certa altura impotente para uma verdade final, pelo vício deformador do intelectualismo que o enquadrava na secura esquemática das classificações, na subjugação indiscutível da realidade borbulhante e colorida aos enregelados conjuntos retilíneos em que se traduzia para ele o imaginário primado dos Princípios.
A convivência com o nosso mergulhado temperamento fueirista [relativo aos forais] deu-lhe entusiasmo pela necessidade descentralizadora. A falência irremediável dos sofismas constitucionais, colocou-o em guerra aberta com a monarquia partidária e burocrática. Mas em Teófilo, pelo exposto, o Positivismo não penetraria completo, integral; penetrara envolto nas deliquescências sentimentais de um Michelet, nos cosmopolitismos desarreigantes de Quinet & Cª. [Victor] Hugo comunicara-lhe o ódio declamatório contra a Tiara e contra o Cetro, - a utopia infantil do progresso indefinido perturbava-lhe a apreensão realista da multiplicidade ondulante dos acontecimentos e das coisas. É que o catecismo positivista por que Teófilo se regia derivava em sucessão direta do Positivismo falsificado por Littré o Laffitte para uso dos senhores da Terceira República (1 - Comte Léon de Montesquiou: - Le système politique d'Auguste Comte. Paris, Nouvelle Librairie Nationale [1906].). O pensamento político de Augusto Comte, alevantando-se numa excomunhão plenária perante o património desviscerante da Revolução, substituindo ao revolto atomismo individualista a complexidade irreduzível dos compostos sociais, - o pensamento político de Augusto Comte, um dos doutores da Reação filosófica, o mestre venerado da ditadura sociocrática, do "poder espiritual ou religioso" entretecendo a solidariedade das gerações e ainda do tão extraordinário convite ao Geral do Gesú para entrar com a sua Ordem numa aliança que defendesse a civilização ocidental do alastramento corrosivo do morbo gregário, não é esse o pensamento robusto e experimentado a regra que Teófilo utiliza nos seus ensaios de solução governativa; Teófilo não o consulta como um preceptor a escutar-se. Pois se Teófilo, dominado pela superstição democrática, acreditava, - ai de nós! - na soberania do povo, na eficácia dos parlamentos, na virtude reparadora do sufrágio universal, na superioridade indefetível da forma eletiva!
Não se eximira Teófilo aos prejuízos da época em que se constituíra mentalmente, em que a inteligência moça, tenteando um norte, uma firmeza guiadora, se preparava para receber a impulsão medular, o feitio definitivo. Não nos espanta, por conseguinte, que o federalismo municipal, interessando Teófilo ao máximo, o empurrasse sem rodeios nem branduras para a franca opção do sistema republicano, como o mais consentâneo com os instintos vivazes, com as solicitações imediatas dum agregado nacional que irrompera estruturalmente da concordância espontânea das beetrias do Norte com os ópidos do Sul. Escapava-lhe a incapacidade fisiológica das democracias para equilibrarem a existência pública, por defeito inato delas, congestionadas no cérebro, paralíticas nas extremidades. Não se prevenia de que num regime todo polarizado em torno do boletim de voto, a devolução autonómica às autarquias locais, implicava duas vezes a condenação desse mesmo regime. Duas vezes, - à uma, porque não haveria governo que largasse das mãos a dependência absoluta para com os órgãos centrais, como fiança mais que bastante de uma maioria eleitoral que o sustivesse, à outra, porque a restituição de vontade e fins aos enraizados núcleos concelhios, como agentes jurídicos dum concurso de diversidades demográficas e mesológicas, importando a consagração esmiuçada do pluralismo costumeiro e etnográfico, implicava pelo cultivo de atividades divergentes em contacto quotidiano, a carência de um hífen imóvel e contínuo, que ao alto assegurasse a euforia do organismo, a inalterabilidade do seu bom estado sinergético.
É que no estudo morfológico das géneses sociais, Teófilo não abrangera a função mantenedora da Realeza, surgindo sempre como uma causa de estabilidade, como um penhor de equivalência das partes competentes, sem preponderância duma sobre as outras, como senão essencial à imprescindível reciprocidade harmónica das relações coletivas. Com efeito, o princípio monárquico vale por si, independentemente da pessoa que o representa, porque, sendo a vida um deflagrar incessante de egoísmos, na monarquia o egoísmo de um só satisfaz-se promovendo o bem geral em proveito próprio. A Realeza não é, consequentemente, o privilégio, o contra-senso, o absurdo de um ventre realçado na sua primogenitura, - como o apregoam as hipérboles populistas dos declamadores e dos primários. É sim a economia, a duração, - a força estática da família, como célula da sociedade, transmitindo-se à magistratura suprema, tornando-se o eixo vigoroso da viabilidade do Estado. Não nos esqueçamos das grandes palavras de Pascal. «Les choses du monde les plus déraisonnables deviennent les plus raisonnables, à cause du dérèglement des hommes, - escreve ele. Qu'y a-t-il de moins raisonnable, que de choisir pour gouverner un Etat le premier fils d'une reine? On ne choisit pas pour gouverner un bateau celui des voyageurs qui est de meilleure maison ; cette loi serait ridicule et injuste : Mais parce qu'ils le sont et le seront toujours (ridicules et injustes), elle devient raisonnable et juste. Car qui choisira-t-on? Le plus vertueux et le plus habile. Nous voilà incontinent aux mains, chacun prétend être le plus vertueux et le plus habile. Attachons donc cette qualité́ à quelque chose d'incontestable. C'est le fils aîné du roi; cela est net, il n'y a pas point de dispute. La raison ne peut mieux faire, car la guerre civile est le plus grand des maux» (1 - La Revue Antimaçonnique. Ano1, nº 5. L. C. Herberd, Les idées politiques de Pascal).
[“As coisas mais irracionais do mundo tornam-se as mais razoáveis, por causa da desordem dos homens, - escreve ele. O que pode ser menos razoável do que escolher o primeiro filho de uma rainha para governar um Estado? Não se escolhe para dirigir um navio aquele dos viajantes que é da melhor casa; esta lei seria ridícula e injusta: Mas porque são e sempre serão (ridículas e injustas), torna-se razoável e justa. Então quem vamos escolher? O mais virtuoso e o mais hábil. Aqui estamos imediatamente a lutar uns com os outros, cada um afirmando ser o mais virtuoso e o mais habilidoso. Liguemos, pois, esta qualidade a algo incontestável. É o filho mais velho do rei; isso é claro, não há ponto de disputa. A razão não pode fazer melhor, porque a guerra civil é o maior dos males."]
Vê-se que Pascal teve a intuição do processus lentíssimo pelo qual através de tentativas crescentes, de tateamentos consecutivos, a experiência dos povos acabou por entregar à lei humaníssima da hereditariedade a neutralização dos relativismos antagónicos, das oscilações intestinas, o salutar afastamento dos hiatos e das reticências, das ambições e das rivalidades. A índole inconsistente e amotinadora da chefia electiva, ainda quando acompanhada de atributos reais, demonstra-se em consequências terríveis na partilha da Polónia, nas lutas fratricidas do Santo Império, que por tantos séculos impediram a unidade nacional da Germânia, mal-amanhada ainda agora. O carácter intermediário dessa imperfeita forma estadual e o seu remate inevitável numa situação vitalícia, transmissível e fixa, encontram a prova melhor no caso das repúblicas americanas que saídas há pouco do colonato, sem uma aturada diferenciação tradicional a escaloná-las em destaques seletivos, não podiam inserir-se em regime diverso, em moldura mais concorde com uma disparatada composição alogénica como é a sua, mas que, homogeneizando-se cada vez mais na conquista de um tipo uniforme, de uma uniforme expressão coletiva, enunciam já as mais insofismáveis tendências imperialistas. O perigo divisionista que não obstante as rói apressa-lhes a jornada, - dentro de breve pô-las-á no dilema cerrado de se segmentarem numa disputa tremenda de irmãos com irmãos, ou de irem pedir a uma indiscutível integração autoritarista a equipolência orgânica, a justa norma ponderadora dos vários particularismos federativos, manobrando por coexistirem, contudo fisiologicamente impossibilitadas da necessária síntese política, enquanto o chefe surgir duma barafunda eleitoral em que as energias se divorciam do consenso aglutinador de nação, para se desgarrarem nas paixões da refrega, no partidarismo fragmentador, na insanável contenda dos grupos digladiando-se. Luís Alberto de Herrera, encarregado de negócios do Uruguai junto da Casa Branca, sem redundâncias o deixa transparecer num livro seu, que obteve na América um sucesso bem significativo. Em referências às repúblicas do Sul, lá se diagnostica a falha ingénita que atrofiou o desenvolvimento coerente desses países na adolescência. Houvesse-se procurado antes uma continuidade dinástica, a detenção da magistratura suprema na posse exclusiva de uma família, sucedendo-se ininterruptamente, e já as desbocadas aventuras presidencialistas, os pronunciamentos de todos os dias se teriam evitado ao fácil humor explosivo das zonas tropicais, - nem a anarquia das tropas se convidava com as pretensões dos cabecilhas, nem a vindita dos bandos se exercera à sombra dos direitos atrabiliários da soberania popular. O Chile e o Brasil é que se resguardaram de desmandos ditatoriais e de retalhantes convulsões civis, - o Chile mercê da sua estrutura apertadamente aristocrática, o Brasil, graças à monárquica a que primeiro se acolheu. - Luís Alberto de Herrera o acentua com abundância de dados elucidativos.
Já as repúblicas citadinas da Itália se não elevaram outrora à participação dum ideal comum, à soberana unidade nacional para que tendiam, ficando-se o embrião numa fase incompleta, porque para além dos seus podestás ou tiranos locais, partilhados entre guelfos e gibelinos, não conseguiram interpenetrar-se sob a acção superior e homologadora duma força centrípeta que seria o Rei. Um César com fueros, tal é a fórmula atirada a Maurras por um camelot: - a garantia, a segurança, a firmeza ao cimo, regulando o equilíbrio e a conjunção das pequenas independências regionais e comunalistas, agindo adentro da órbita própria, numa tonicidade magnífica das células constituintes do agregado. Rei das Províncias Unidas, - assim um félibre saudou o Duque de Orleães, - Protector das Repúblicas Francesas é a designação querida da Action française em que, a par da natureza descentralizadora da Monarquia, se define o condão unificador que a distingue.
De facto, documentando por um lado as vistas da Action française, por outro o desfecho lógico das repúblicas americanas numa solução hereditária, servem-nos de exemplo persuasivo as democracias neerlandesas, que subsistiram sujeitas a um stathouder, cujas funções terminaram por se tornar sucessoriais. Manifestação de persistência republicana só em Estados de área limitada, circunscritos quase à Polis dos filósofos gregos, - ou com uma intensa coordenação religiosa, como a Genebra huguenote do andador da Bondade Natural, ou como Veneza, jugulada por uma Senhoria oligárquica que pela hereditariedade a imunizou do parcelamento, furtando-a ao desencadear incendido dos apetites e das represálias, das oratórias do forum e das batalhas do sufrágio. Mesmo o homem do Contrato Social entendia que a organização política, baseada na soberania do povo, não era viável senão numa modesta cidade; e quando os polacos lhe pediram um projecto de constituição, deu-lhes em resposta que arranjassem uma monarquia hereditária. Portanto a aptidão democrática da Polis abstracta, que Jean-Jacques reconhecia única realidade consentidora dos seus idílicos igualitarismos governativos, corresponde em génese às instituições comunais, ao espírito cantonal, à riba patrum, que é germe do sentimento de Pátria, alçando-se de uma aglomeração de fogos, com as relações de vizinhança por estatuto primitivo, a um já hierarquizado corpo rural ou urbano em que os «homens bons» aplicam os usos e dirimem as questões.
Consagrando a teoria pactual de Rousseau, inscreve-se o referendum como a aspiração maior das democracias modernas, como o directo e legítimo exercício da soberania popular. Oh, que arcaicos os declamadores do Progresso indefinido! O referendum é uma esparsa reminiscência da recuada e restrita vida comunitária, tal como no-lo mostram as landsgemeinde suíças nos enterrados cantões das montanhas; tal como em algum dia nos concelhos de todo o Reino quando, ao som de campa tangida, se convocavam Nobreza, Clero e Povo para se decidir em vereação o que mais convinha ao bem geral; tal como se observa ainda nos curiosíssimos chamados trasmontanos, de que nos fala o malogrado Rocha Peixoto (Formas da vida comunalista em Portugal, in Notas sobre Portugal. Exposição Nacional do Rio-de-Janeiro em 1908, vol. I.).
Excedida vila e têrmo, esvai-se para a maioria a noção precisa da utilidade colectiva, que o interesse local concretizava porque se confundia com os interesses privados. E então para que esses núcleos de enraizamento e elaboração subsistissem, diligentes e prósperos, à maneira que a amplitude social se ia alargando em outros organismos mais complexos até se exprimir histórica e etnicamente numa grande individuação nacional, um fulcro se impunha, resistente e pertinaz, que anulasse as inclinações centrífugas das várias mancomunidades particularistas, guiando-as, como traço de união, a uma permanente equação solidária, contrabalançando-lhes as diferenças inconversíveis, inibindo-as de se aniquilarem em brigas de limites ou em exorbitâncias de alcance, nos quais o adormecido ódio de tribo para tribo reverdecia pelo poder das recorrências atávicas. Como ponderador dos egoísmos específicos de cada grupo, eis que nos achamos de novo em face do Rei. Por isso Fustel de Coulanges, possuído de que a política é uma ciência experimental que sobre os ensinamentos do passado deve dirigir o presente e preparar o futuro, - por isso Fustel de Coulanges identificava a democracia com a solução monárquica, deixando para as aristocracias a república.
Nutridos de idéias feitas, bem paradoxal se nos afigura a doutrina do ilustre pensador. Se, porém, nos quedarmos no exame aprofundado dos conceitos que ela envolve, um extraordinário mundo imprevisto, uma reveladora luz desconhecida nos porá em contacto com o sentido exacto das coisas. Diga-se, para inteira clareza, que Monarquia em Fustel de Coulanges toma-se como sinónimo de cesarismo (Paul Guiraud, Fustel de Coulanges, Paris. Hachette; Edouard Champion, Les idées politiques et religieuses de Fustel de Coulanges. Paris, Honoré Champion). Um cesarismo, a preponderância absoluta de um apenas, foi nas dobras do Tempo o princípio rudimentar da função monárquica. E Fustel de Coulanges, irmanando-a com a interferência da multidão na escolha do dirigente como portador das esperanças que a sobreexcitavam, das reivindicações que a enfureciam contra a primazia e contra os abusos dos poderosos, ou pela exclusiva da terra, como nas sociedades antigas, ou pelo prestígio feudal, como no mundo medievo, não destrinçava senão em historiador a natividade ignorada dum fenómeno de verificação constante, cujo estudo nos oferece inéditas perspectivas, regras de conduta bem prestáveis na turba-multa de prejuízos e falsificações intencionais que nos envenenam a percepção.
De feito, as repúblicas clássicas apresentam-se-nos poliárquicas, - como os Eupátridas e o Areópago nos informam em relação a Atenas. Ferrenhamente aristocráticas, eram uma casta fechada, impermeável, apoiando-se na escravatura, com o ilota suando e trabalhando sempre para que os retóricos se pavoneassem no agoras e o cidadão interviesse, como cumpria, na marcha da governança. "Dans la Grèce antique, celle des sages et des philosophes, on ne pouvait être citoyen si l'on travaillait, attendu que le travail ne laisse pas de temps pour les affaires publiques et l'on ne pouvait être citoyen qu'en prenant part à la conduite de ces affaires. Comme il fallait pourtant vivre, l'esclavage s'imposait comme une nécessité corrélative à l'existence d'une caste de politiciens. Il en allait de même dans la cité romaine où la parole était le seul instrument de régne. Elle menait à tous les emplois de l'Etat et la jeunesse qui voulait arriver, n'apprenait que l'éloquence. Aux esclaves le travail. Immorale absurdité, mais la seule voie pour échapper dans une republique à cette autre absurdité de faire gouverner l'Etat par une majorité d'hommes incapables d'en étudier les ressorts et les besoins" (Dom l'Huillier, na Vida do Patriarca S. Bento. Transcrição do abade Pedro Descoqs no livro A travers l'Oeuvre de M. Maurras. Paris, Beauchesne, 1913).
[Na Grécia antiga, a dos sábios e dos filósofos, não se podia ser cidadão se se trabalhasse, pois o trabalho não deixava tempo para os assuntos públicos e só se podia ser cidadão participando na condução desses assuntos. Porém, como era necessária para viver, a escravatura impôs-se como uma necessidade correlata à existência de uma casta de políticos. O mesmo acontecia na cidade romana, onde a palavra era o único instrumento de governo. Isto levou a todos os empregos estatais e os jovens que aí queriam chegar aprendiam apenas a eloquência. Aos escravos o trabalho. Absurdo imoral, mas única forma de escapar numa república a este outro absurdo de ter o Estado governado por uma maioria de homens incapazes de estudar os seus mecanismos e necessidades.]
Fustel de Coulanges tinha, pelo visto, razão. Mais tarde, as revoltas populares, esbarrondando o patriciado dominante, acabaram inevitavelmente por engendrar a ditadura. A ditadura, abarcando a ingerência dos negócios públicos, estabilizando-se como um apanágio pessoal, detendo-se enfim e fixando-se numa família, marca bem depressa a normalidade de um facto, concrecionado pelo aprazimento unânime nas linhas definidas duma instituição. Como paradigma, - o império romano nasceu dos votos da rua. César incarna o homem, esperado com ânsia pela plebe, desde os Gracos a Mário e Pompeu e sempre, demorado pela falência inconjurável em que os tribunos se aluíam. E assim, "quand la noblesse l'eut assassiné, elle (a plebe) le vengea; quand le Sénat essaya de ressusciter la république, elle aida Octave et Antoine a rétablir la monarchie" [quando a nobreza o assassinou, eles (a plebe) vingaram-no; quando o Senado tentou ressuscitar a república, esta ajudou Octavio e António a restabelecer a monarquia.] Paul Guiraud, Op cit.). Entendido, repito, que Monarquia vale para Fustel de Coulanges como um cesarismo, como a fase transitória, de um embrião desenvolvendo-se, hoje em dia expresso esse estádio intermédio no bonapartismo plebiscitário, reclamando-se da vontade do povo, brotado ele também dos desvarios oclocráticos [da multidão], aquietando-se sob um órgão representativo, sob uma autoridade improvisada pelo concurso fortuito das circunstâncias, em que o mando disperso na massa, feminina por condição, se delegava na primeira energia que a fascinou, submetendo-a. Em barreira contrária, a defensiva orleanista, invocando tão somente o direito da tradição e do sangue, acentua e assevera o lógico remate de um agente social, já individualizado no espaço e no tempo, regularizado já por um longo funcionamento, por um exercício constante e minucioso, com a duração mais a continuidade a torná-lo aptidão fisiológica numa família.
Corresponde, pois, pelo que fica expendido, a forma republicana a um hermético sistema de casta onde a concentração do domínio se reparte por um clã reduzido, abastecendo-se do privilégio e da isenção. Ontem as composições aristocráticas, monopolizando os meios e os fins, dispondo em absoluto da terra, da numária, dos cargos, do sacerdócio, - como na Roma consular - hoje as supostas democracias devoradas pelo plutocratismo, com o capitalista a aprisioná-las nos tentáculos sôfregos, são a prova de toda a hora, prova cheia de prevenção e vigor, que não há dialéctica que a desmorone, nem sofisma que a entorte e entenebreça. Eis porque os escritores da economia radical qualificam as situações electivas, em que o agregado se confrange na luta cúpida das clientelas, como governos de classe contra as classes, - como o império da burguesia financeira, desnorteando pelos ergotismos anfigúricos dos doutores, pela falácia enredadora dos verborreicos, as reparações exigidas pelo operário, quase esmagado na rudeza brônzea da Oferta-e-Procura. É o que sucede com as fortunas médias, comidas pela agiotagem desaforada, com toda a iniciativa modesta e agenciadora imolando-se pela opressão burocrática e pela demanda do capital impulsionado ao culto execrável do execrável Bezerro de Oiro, - à gula nunca farta do cosmopolitismo bancário. Não é outra a derivação do anti-semitismo francês, não se inspirou em outros ditames o leader socialista Bebel quando no congresso de Amesterdão em 1904, intitulando-se de certo modo o defensor das Monarquias, fulminava as hipérboles laudatórias do inflado Jaurès à terceira República, à República de Bismarck e da Traição, vendida a Israel e à renúncia covarde do Território.
A Monarchie Ouvrière se desprende, concomitantemente, do doutrinarismo incisivo de um economista e de um filósofo como Georges Sorel, e robustecida pelo pensamento do áspero Proudhon, congrega à sua volta, para uma realização não distante, o apuro melhor das coortes sindicalistas em França. Como outrora em Roma a prolongada crise económica se veio a resolver pelo advento do Príncipe que coibisse os atropelos da nobilitas, também nos desregramentos brutos da Concorrência o Príncipe despontará, como o fiel da balança, como o penhor altíssimo do equilíbrio das classes, à orla do ciclo que se adivinha já nos enunciados másculos deste admirável século em avanço. Em eras idas a Realeza, despojando-se dos predicados contingentes de uma chefia militar, sancionou-se para o consenso tácito dos povos como uma magistratura suprema e inviolável, que do grosso feudalismo absorvente resguardava as comunas rumorosas e trabalhadeiras. É ainda Fustel de Coulanges quem nos conta que nos Estados Gerais de Tours em 1481, só um orador da nobreza, Philippe Pot de la Roche, sustentou que a Monarquia proviera dos sufrágios do povo e que o Príncipe não havia direito ao poder absoluto, porque o Estado era pertença de todos e não de um apenas. Pois o cónego Jean de Rely, interpretando o sentir da nação, ampara a vontade pessoal do monarca, incita-o a governar livremente, porque o ofício da Realeza consiste em relever les pauvres de l'oppression. «Parmi les assemblées de l'ancien régime, aucune êut une composition aussi démocratique ni des tendances plus monarchiques qu les Etats de Tours», [tirar os pobres da opressão.“Entre as assembleias do antigo regime, nenhuma tinha uma composição tão democrática ou tendências mais monárquicas do que os Estados de Tours”], acrescenta Paul Guiraud (Obr. cit.).
Os fundamentos populares da Monarquia, mais uma vez se constatam. Para salvaguardar das violências dos Barões e do Clero os humildes mesteirais, os vilões espezinhados dos concelhos, Afonso III consolidava a coroa que uma intriga de palácio lhe entregara, volvendo-a de simples insígnia decorativa de maioral entre os da banda ocupadora, em símbolo respeitado d u m a elevada judicatura vigilante em que encontrariam eco os clamores contra os vexames dos fortes, as queixas contra à venalidade das gentes da lei, as lástimas contra a fraqueza das justiças timoratas. D. João II define a fórmula absoluta do Estado, encostando-se em Côrtes ao braço do Povo, restringindo as regalias jurisdicionais dos donatários, com motivo nos capítulos apresentados pelos procuradores das vilas. Lá proclamava o bom cónego de Tours que o ofício da Realeza é relever les pauvres de l'oppression. De facto, Aqui d'El-Rei! - foi o grito da Raça, perpetuado numa exclamação a que o uso desgastou o rigor do sentido, mas que, sem embargo, reçuma bem a natureza arrancada dum apêlo que se atira, certíssimo da garantia que o recolha e atenda. De facto, Aqui d'El-Rei ! — hão-de gritar no futuro já desimaginadas da mentira igualitária com que as entretêm e exploram, as sofredoras legiões proletárias, em busca dum sustentáculo incorruptível que não se firme na confusão das classes, mas na manutenção mesurada delas, de um sustentáculo que não careça de custosas montagens eleitorais nem de chorudas encarvas apetitosas, para prevalecer especado pelos ricaços que lhe assegurem os votos a troco de concessões e monopólios, mas que extraia o seu direito do direito santíssimo do Sangue, - que promova o próprio interesse, promovendo a felicidade e a alegria comum, desembaraçando o organismo das cobiças vorazes dos corretores de câmbios, colocando à distância e em comedimento os barões ventrudos do feudalismo bolsista.
Em presença dos colossos da judiaria argentária campando como senhores e donos das sete partidas do mundo, pela periodicidade infalível dos acontecimentos, pela rítmica repercussão dos fenómenos, não demora que o Quarto Estado convencido, afinal, do ilusionismo rubro que o traz enganado pelos carreiros catastróficos d a Revolução Social, procure endireitar-se com competência técnica e capacidade jurídica à altura duma força de ordem, como deve ser a da Produção. O Rei se lhe imporá como fecho indispensável da abóbada, como artesão de remate, como ponto nodal aonde todas as linhas e todos os segredos da fábrica convergem. Já Veuillot opinava que sendo a democracia os interesses do povo, organizá-los era atribuir-lhes um órgão que os incarnasse e viabilizasse. Esse órgão não podia ser senão o Rei; e Henrique V, que em Conde de Chambord tanto se preocupava com a condição dos operários, levaria à terra de França a extirpação do cancro industrial, sacrificando o homem à máquina, abandonando-o ao arbitrio endurecido dos patrões. Também o ideal germanista de Bismarck, bebido em Mommsen, se corporizava na necessidade reformadora da economia obreira, operando um rápido movimento de coesão nacional por via do fôlego que lhe prestasse o concurso animoso das hostes do trabalho, assim atraídas. Na evolução que à crise pátria Oliveira Martins pretendeu trazer nas suas tentativas de cesarismo, não escapava igualmente ao nosso historiador a génese do facto monárquico, produzindo-se como uma consequência legítima da emancipação das camadas proletárias. Curioso é consignar aqui o depoimento de Oliveira Martins que se afasta de nós, os que hoje nos levantamos pelo Portugal-Maior, no niilismo espesso em que nos negou a frescura revivalista das origens, connosco se encontra na penetração com que, a determinados respeitos, soube ler no futuro.
«Pode afirmar-se com tanta segurança, escreve ele, como a de que a um dia tem de suceder uma noite e a uma estação outra estação, com aquela segurança matemática com que se afirma que a linha recta é a menor distância entre dois pontos ... - que, se a democracia francesa não extirpar de si as oligarquias capitalistas... é fatal uma terceira restauração... dum principado que cesaristamente, à maneira do alemão, tome em suas mãos os interesses materiais dos pobres. A república ciceroniana dos ricos terá provocado, antes da hora dessa restauração, as revoluções e reacções preparadoras do advento de César. Eis aí o que todas as histórias de todos os povos em todos os tempos nos autorizam a prever». Eu não me enredo a desfiar agora episódios subsequentes que revestem, quanto à França, as palavras de Oliveira Martins de um impressionante acento profético. Basta recordar que as tendências anarquistas do sindicalismo francês são já singularmente acentuadas. Comprovam-se pelos alistamentos operários que de dia para dia engrossam as fileiras vistosas do Prince Gamelle. E não nos esqueçamos da hipótese positivista da Monarchie Ouvrière, servida com denodo e galhardia por George Valois, discípulo brilhante de Sorel, de cujos ditames traduz a primeira aplicação construtiva.
A lei sociológica que em plena oligarquia aristocrática, vazada em gravame económico pela detenção exclusiva do ager no disfruto do patriciado, arrastou a plebe romana a reconhecer-se numa cabeça a quem decorou de púrpura, adorando-o como a um deus, do mesmo modo se verificará nos países de intrincado trama utilitarista como struggleforlifismo duma concorrência desencabrestada a hipertrofiar-lhe a actividade e os recursos, como os Estados-Unidos. Aos Estados-Unidos augurou-lhe Oliveira Martins, com base na deficiência federal, uma ulterior conclusão autoritarista. Se esse não fôr o caminho, não será o pan-americanismo febricitante do presidente Roosevelt e do capitão Mahan, incitando o Yankee ao comando do Orbe, a estrada mais curta e mais trilhável para a infalível integração cesarista, em que se lhe há-de encimar a subida diferenciadora para a unidade. Não! O regime que se apoia num mercantilismo desabusado, que os trusts tumefazem como órgãos insaciáveis nutrindo-se das reservas dos outros, engendra consigo o Monarca que, alçado pela massa que sofre e rumoreja na sombra, terá que orbitar numa fiscalização minuciosa e quase draconiana as potências cosmopolitas do Capital, para se não ver aprisionado por elas, como as democracias políticas que lhes recebem as imposições pela debilidade inata que as entrega à mercê do sufrágio. O carácter popular apontado por Fustel de Coulanges às monarquias esclarece-se, portanto. E Teófilo, assinalando à Sociologia como dado imediato o elemento populacional, em substituição do factor Autoridade, proposto por Comte, concorda agora decerto que ambos os valores se presumem e identificam , como pertencentes a fases distintas, uma inicial, a segunda definitiva do mesmo embrião desenvolvendo-se.
[Fevereiro de 1914]
*
Mais detalhadamente eu demonstrarei agora, adentro da nossa história, essa completa identificação do fator populacional com o elemento Autoridade.
Disse-se já que D. Afonso III para neutralizar a gestão abusiva em que Nobreza e Clero, como ordens possantes do Estado, dificultavam o franco desenvolvimento da política régia, imprimira ao poder central a necessária consistência pelo apoio recebido da parte dos povos concelhios, a quem logo no seu juramento de Paris prometera liberdades e justiças seguras, e de cuja dignidade civil se volveu de seguida em campeão incansável.
O terceiro-braço, ou braço-popular, criava assim consciência jurídica. E, alteando-se desimpedidamente pelo estímulo que lhe advinha da atitude do Rei, ajudava-o a deter em respeito e limites os roncantes senhores de honras e coutos, os quais levavam a truculência insubmissa ao ponto de enforcarem os mordomos da curia quando em serviço lhes transpusessem as lindes. «Aqui é honra, aqui é honra!» gritara aquele Estêvão Pires de Molny, arrastando pelo julgado de Faria um magistrado da Coroa que lá se fora numa penhora. Domando por isso as arrogâncias jurisdicionais dos privilegiados, o Rei encontrava-se com a revolta latente das camadas miúdas que o saudavam como um justo juiz, satisfazendo os apelos constantes das póvoas vexadas ao tempo que, homologando sob uma fiscalização permanente as rebeldias centrífugas do agregado, era para si mesmo que trabalhava, não fazia senão consolidar o património oneroso de que se via administrador.
Confirmava-se por uma banda a tese querida de Fustel de Coulanges, enquanto por outra os acontecimentos produziam uma prova magnífica do que seja com efeito a pasmosa essência mantenedora da Monarquia. O egoísmo do Rei empenhava-se em promover o interesse geral para proveito próprio. É a qualidade específica da Realeza, - o profundo condão imunizador por via do qual a duração e a continuidade se viabilizam, servidas pela força fisiológica da hereditariedade, obtendo, como agente duma conservação meticulosa, o afinco instintivo que impele os pais a acumular para os filhos. Foi de ontem e há-de ser de sempre, porque se fundamenta nas leis inalienáveis da Vida, na eterna e misteriosa razão que nos encadeia e subordina ao preceito do sangue, como a única realidade sensível que nos explica e imortaliza. E, pois, que a propósito me acode, é bom ficar-se sabendo que muito antes da observação de semelhante facto, como valorizador insofismável das instituições monárquicas, se consagrar em argumento escolhido nos escritores da Action Française, já por 1825 o formulava com nítido recorte um modesto soldado do nosso Legitimismo. «Tão intima, tão ligada é a ventura dos Reis com a prosperidade dos povos, — escreve Faustino José da Madre de Deus no notável opúsculo "Os Povos e os Reis" - "que não pode um Soberano diligenciar a sua boa reputação, sem trabalhar para o bem comum de seus vassalos, nem pode conseguir o bem comum de seus vassalos, sem alcançar para si boa reputação".
É que nós possuímos toda uma vigorosa doutrina tradicionalista, toda uma filosofia orgânica de reparação social. Erguida contra o atomismo atrabiliário dos agitadores vintistas, depressa se soterrou nas vaias incompadecidas em que a difamaram as ideologias triunfantes dos homens do «Coração-sensível». Dimanava sem dúvida de uma longa e ponderada experiência que, já pressentida às bocadas do século XVII, fazia dizer a Luís Mendes de Vasconcelos nos nomeadíssimos diálogos do livro Do sítio de Lisboa [1608] que o Rei que acrescenta a República, a si mesmo acrescenta reputação e grandeza, tornando-se pobre desde que aumentasse os tributos na mira de se enriquecer.
Não cabe na índole do estudo em alvo a análise computada do nosso profundo pensamento político que, afilhando-se em alguns eruditos do classicismo indígena, veio a ganhar significação acabada nos publicistas adversos à importação liberalenga.
Antecipavam-se eles em juízos memorandos a muitos ditames da demopsicologia contemporânea.
A noção de Soberania, professaram-na através dum conceito inteiramente positivo. Manobrando com altos dons de destrinça e exame, são dignos de enfileirar no largo quadro dos mestres da Contra-Revolução universal. Não lhes escapou nem o resultado nulo dos parlamentos, engendrando a tirania anónima das clientelas, nem o perigo divisionista dos partidos nunca fartos. Mediram os efeitos perturbadores do repentismo legislativo mais a origem artificial e morbosa do sufrágio, oprimindo o cidadão em lugar de o garantir para o pleno exercício dos seus direitos concretos. E na balbúrdia retórica das apóstrofes sentimentais em que a moda constitucionalista submergia inconsideradamente as aquisições hereditárias da Nacionalidade, jamais cessaram de acentuar os relativismos inalienáveis que presidem de estrutura à existência dos povos, afiançando-se como detentores de uma visão unitária da nossa história, de um sentido realista do nosso temperamento colectivo, das nossas predilecções institucionais, em nenhuma conta assinaladas nos hirtos simplismos algébricos que de França nos chegavam com os entusiasmos enfáticos do Senhor de Chateaubriand.
Tão longe se projectavam no julgamento implacável à demência em que Portugal abalava perdido, que até predisseram o desfecho lógico de uma monarquia que abdicava dela própria nessa república trágico-cómica que para aí estrebucha, mordida de esgares epilépticos, já convulsionada nas vascas da morte. Grandes caracteres, grandes inteligências, com rendida homenagem, na verdade! Caluniados embora pelas partidas vitoriosas, relegados para uma sombra espessa em que as feições se lhes diminuíram e a voz se lhes suspendeu no ostracismo duro de quase um século, como avultam hoje aos nossos olhos doídos de tanto espetáculo demolidor, como se corporizam e elevam diante de nós em fiéis pioneiros da boa integridade da alma-pátria, de que bem cedo adivinharam o envilecimento e a desagregação ao hálito mortífero das quimeras despaísadas que o tumulto romântico procurava aclimatar!
Sem nos enredarmos em estéreis querelas sucessoriais, é lá que o nosso movimento de ampla restituição localista e de correspondente equivalência autoritária [1914 - Nação Portuguesa, O que nós queremos] vai entroncar as legítimas e bem castiças precedências teóricas, nós os reconhecendo por preceptores e conselheiros avisados, subindo-os ao destaque merecido na hora em que exotismos de contrabando pretendem socorrer o colapso da Raça com as misturas desconexas dum empirismo organizador, aprendido de galope em Charles Maurras, quando de passagem pelo boulevard. É a excomungada farmacopeia gaulesa a prevalecer nas direcções que se tentam impor ao belo renovo que já se manifesta na nossa mocidade, é o vício de sempre a desvirtuar-nos as possibilidades nativas mais uma vez com a intrusão de categorias mentais, hostis por índole e meio às tendências espontâneas do agregado que, senhor de um génio autónomo e de uma esplendida capacidade criadora, se viu traído, depois da Era de Quatrocentos, pelas simpatias estrangeiristas dos elementos dirigentes.
Eu já não falo no mal da Renascença, nem na absorção centralista da ditadura pombalina, - aquele dimanado do cosmopolitismo pedante dos humanistas e da utopia desordenadora do uomo universale, a segunda compondo-se aos modelos de Catarina da Rússia e de José de Austria, os quais, lendo ambos por igual cartilha de imperantes de bota-abaixo, andaram preparando a maioridade do Estado Todo-Poderoso. Basta que me refira às declamações pactuais do Contrato que, mascaradas no recorte britânico do figurino cartista, surgiram a transtornar o florescimento vagaroso que, conduzido em primeira mão pelos fisiocratas da Academia, conseguira resistir ao açoite das invasões napoleónicas e, em reacção instintiva contra o estadismo garrotante montado pelo Marquês, se propunha reanimar a enregelada vida provincialista de envolta com as fontes dormentes da economia pública.
Coroa-se a admirável actividade com o ressurgimento do espírito municipal que se opera à roda das Côrtes Gerais de 28. Porém, os critérios individualistas da representação, infecionados pelo gregarismo patológico dos Imortais Princípios, alteraram por completo o ensaio de lenta regenerescência que, apesar das discórdias intestinas, se ia adiantando em crescentes afirmações de vitalidade, servido por estaturas do porte de um Visconde de Santarém, de um D. Francisco Alexandre Lobo, de um José Acúrcio das Neves. Triunfaram pelo acaso das armas os simetrismos inertes de Mousinho da Silveira, retaçou-se o país de norte a sul por generalizações desapiedadas e, filho da Liberdade que D. Pedro nos constrangeria a aceitar, se a bem a não recebessemos, conforme a célebre proclamação do Porto, Portugal perante o Terreiro do Paço viu-se de súbito demitido da mais leve iniciativa, voltado de independente e agenciador em mero tutelado, - num triste parasita que por causa do voto se vendia a qualquer que lho quisesse mercadejar.
Estrangularam-se os particularismos regionais, introduziu-se como desaforo patronal a arbitrariedade inexorável da Oferta-e-Procura, esfiampou-se o sistema nervoso da Raça, não demorou o total desbarato das afinidades coesivas. E à Monarquia centrípeta, de intervenção pessoal e idoneidade governativa, efectuando ao cimo a sinergia das várias mancomunidades demográficas, com os Concelhos e as Corporações à base num afanoso equilíbrio dos irreduzíveis egoísmos populacionais, à Monarquia que se intitulava absoluta, por não se poder qualificar ainda de anti-parlamentarista, assegurando a duração e a continuidade pela coincidência do interesse familiar do dinasta com o interesse permanente da coletividade, enquanto protegia e cultivava a diferenciação cantonalista e a metodização profissional, substitui-se a monarquia bastarda dos programas ministeriais e da corrupção eleiçoeira, - а monarquia inorgânica, invertebrada, sem aprumo dorsal nem suficiência fisiológica, espécie de aborto que se inventa para se explorar com ele, capa-parda que se tolera para a incompetência se proteger e a irresponsabilidade ter aonde se embrulhar nos momentos de aperto.
O anonimato predomina no Estado. E com o arranjismo por única norma de recrutamento, eis que tudo é instável, eis que tudo é medíocre. Só se avoluma a omnipotência desmesurada da concentração burocrática, que sequestra e anula o fecundo concurso das pequenas energias sociais, - não há impulsos que desbravem e incitem, há somente administrações tidas e mantidas em benefício dos bandos. O hífen governativo vira-se num pretexto rendoso, é um órgão insaciável hipertrofiando-se à custa das reservas vitais do agregado. E, esvaída uma concepção doutrinária que aglutine e revista de finalidade, não tarda que o corpo se desmembre e que o esfacêlo irrompa imediato.
Em Portugal quem proclamou a República, — já se não consentem dúvidas a tal respeito, foram os monárquicos e só os monárquicos. Instalara-se nos cérebros como certeza dogmática a superioridade supersticiosa do princípio electivo, um prejuízo de baixa crendice intelectualista nos apetecera para serventuários reverentes e obsequiosos, enredando-nos a percepção nas fantasias anacrónicas do Progresso Indefinido. Os mais esclarecidos partiam de uma serena indiferença pelas formas de governo, cheios de que os homens, e não os regimes, é que fomentam a prosperidade dos povos.
De maneira que os descalabros sucessivos que nos provinham da adaptação altanada do sofisma constitucional atribuíam-se em coro às instituições tradicionais que, manietadas pelas liaças liberalistas, se volveram no agente do próprio descrédito, impossibilitadas de avançar um gesto de defesa ou de saneação sem que saltassem logo do lado os molossos da Carta a gritarem o perjúrio. El-Rei D. Carlos tentou a operação decisiva, mas, espingardeado à luz do dia, deixa-nos ver quanto no cachão bravio dos espíritos a mentira democrática se enraizara, materializada em prestígios fetichistas.
Não tinha, pois, a Monarquia por si nenhuma razão de pensamento ou de sensibilidade que ainda a sustivesse. A ofensiva republicana, portadora das místicas arrebatantes do romantismo gregário, atraía, incendiava, por sua parte. Expiando a gafa exótica que o contaminara até à medula e que lhe roera as melhores possibilidades, estava na fatalidade das coisas, como remate inevitável, a queda de um trono sete vezes secular. Bem o futurara na abertura dos Estados-Gerais de 28 o desembargador José Acúrcio das Neves!
Desnuda-se agora o imenso ludibrio, que se encapotara habilidosamente nas aparências convidativas do abuso liberalengo. E quando no desencantamento subitâneo, nós nos tornamos para a casa em ruínas a perscrutar se alguma faúlha persiste entre os escombros que aterram a lareira, - e quando ao nosso inquérito ansioso responde um lampejo magnífico de esperança, de novo a quimera exótica nos bate à porta a inquinar com loquelas enredadoras o tateante ressarcimento em que vamos alevantando cabeça. A troca da solução que o génio da raça trouxera à crise profunda de 1820, pelas avarioses subjetivistas que da riba francesa se exportavam com os solilóquios extáticos do Ermo, arrastaram-nos à diluição do carácter coletivo, ao quietismo podre em que se reduziram a um movimento automático de sonâmbulos dos opulentos recursos criacionistas do nosso povo tão malfadado.
O turbilhonar de catástrofe que sobre nós redemoinha é de onde descende, - mais que os ridículos primários que hoje nos marcam os dias santos, mais que os palhaços de circo que entretêm a credulidade pueril das ruas com tiradas grandiloquentes, com prestidigitações de verborreicos grotescos, os apriorismos de tanto reformista de improviso, agravando o divórcio insanável da Nação com o Estado, é que nos colocaram à orla do precipício: - não confundamos a autoria do crime com as suas consequências naturais.
É a esse desvio, cuja amplitude se calcula pela largueza funesta dos resultados, que se devem agradecer os desatinos presentes. Ele nos previne de que é tempo de olharmos muito a sério para nós, lançando fora quantos cerebralismos nos hajam de enfeitiçar em leituras desajudadas de toda a rectificação ambiente, acolhendo os exemplos que a Action Française nos oferece, tomemos-lhe as lições e o desenvolvimento mais como um estímulo e como um reforço, que como um cânon de infalibilidade indiscutível que nos parcialize numa estreita opinião preconcebida.
Já não reparo que Maurras confere à Inteligência um papel excessivo, quando o Intuitivismo é que se acentua no destramar das relações sociais quase como única actividade propulsora, quando a formação psíquica de um povo dimana menos de isolados actos reflectidos que de uma longa experiência acumulada. O preceito mental surge ao depois, disciplinando, depurando. Não quero, porém, deixar de estabelecer que cada país se concretiza na individualidade incomunicável do seu determinismo, não se sobrepõe ao passado de uma raça o passado de outra raça. Aforismo primacial de psicologia histórica, é a regra que eu emito como monitora da campanha sagrada em que ora rompemos. A Verdade portuguesa, existe bem vasada, bem definida, na doutrina integralista de que este mensário vai ser voz. O processo indutivo, comezinho, experimental, nos encaminhou, não nos demoveram à conclusão monárquica nem aritméticas sociológicas, nem exclusivas ponderações intelectivas. Foi antes a observação do facto em si, que nos elevou à síntese final.
Quando não nos contentássemos com uma filosofia tradicionalista, seria fácil delineá-la assim em harmonia com as solicitações da alma coletiva. Mas essa filosofia possui-se, é só autenticá-la por meio dos subsídios montantes de quase um século de falências consecutivas. Eis como Maurras traçou a ossatura do seu empirismo organizador, reabilitando pelos testemunhos da ciência, a que se aliava o comentário incisivo dos acontecimentos, a apologética sólida de um Maistre e de um de Bonald. Não é diversa a missão que nos cabe a nós, criaturas de Boa Vontade. O irredentismo pátrio apenas se sarará com as qualidades possíveis do nosso génio, - com uma floração seivosa dos dons de maravilha que jazem adormecidos no subconsciente marasmado da Raça. A grande obra reparadora nos solicita, nos demanda irresistivelmente. Ao terreiro contra o estrangeirismo invasor, - ou paranoia populista com os momos que nos cavalgam, ou psicoterapia de torna-viagem, com as curandeirices marca Rua de Médicis que é preciso sujeitar à fiscalização alfandegária e seja Pola grey! como na tensão formosa do Principe Perfeito.
Disse-se já que D. Afonso III para neutralizar a gestão abusiva em que Nobreza e Clero, como ordens possantes do Estado, dificultavam o franco desenvolvimento da política régia, imprimira ao poder central a necessária consistência pelo apoio recebido da parte dos povos concelhios, a quem logo no seu juramento de Paris prometera liberdades e justiças seguras, e de cuja dignidade civil se volveu de seguida em campeão incansável.
O terceiro-braço, ou braço-popular, criava assim consciência jurídica. E, alteando-se desimpedidamente pelo estímulo que lhe advinha da atitude do Rei, ajudava-o a deter em respeito e limites os roncantes senhores de honras e coutos, os quais levavam a truculência insubmissa ao ponto de enforcarem os mordomos da curia quando em serviço lhes transpusessem as lindes. «Aqui é honra, aqui é honra!» gritara aquele Estêvão Pires de Molny, arrastando pelo julgado de Faria um magistrado da Coroa que lá se fora numa penhora. Domando por isso as arrogâncias jurisdicionais dos privilegiados, o Rei encontrava-se com a revolta latente das camadas miúdas que o saudavam como um justo juiz, satisfazendo os apelos constantes das póvoas vexadas ao tempo que, homologando sob uma fiscalização permanente as rebeldias centrífugas do agregado, era para si mesmo que trabalhava, não fazia senão consolidar o património oneroso de que se via administrador.
Confirmava-se por uma banda a tese querida de Fustel de Coulanges, enquanto por outra os acontecimentos produziam uma prova magnífica do que seja com efeito a pasmosa essência mantenedora da Monarquia. O egoísmo do Rei empenhava-se em promover o interesse geral para proveito próprio. É a qualidade específica da Realeza, - o profundo condão imunizador por via do qual a duração e a continuidade se viabilizam, servidas pela força fisiológica da hereditariedade, obtendo, como agente duma conservação meticulosa, o afinco instintivo que impele os pais a acumular para os filhos. Foi de ontem e há-de ser de sempre, porque se fundamenta nas leis inalienáveis da Vida, na eterna e misteriosa razão que nos encadeia e subordina ao preceito do sangue, como a única realidade sensível que nos explica e imortaliza. E, pois, que a propósito me acode, é bom ficar-se sabendo que muito antes da observação de semelhante facto, como valorizador insofismável das instituições monárquicas, se consagrar em argumento escolhido nos escritores da Action Française, já por 1825 o formulava com nítido recorte um modesto soldado do nosso Legitimismo. «Tão intima, tão ligada é a ventura dos Reis com a prosperidade dos povos, — escreve Faustino José da Madre de Deus no notável opúsculo "Os Povos e os Reis" - "que não pode um Soberano diligenciar a sua boa reputação, sem trabalhar para o bem comum de seus vassalos, nem pode conseguir o bem comum de seus vassalos, sem alcançar para si boa reputação".
É que nós possuímos toda uma vigorosa doutrina tradicionalista, toda uma filosofia orgânica de reparação social. Erguida contra o atomismo atrabiliário dos agitadores vintistas, depressa se soterrou nas vaias incompadecidas em que a difamaram as ideologias triunfantes dos homens do «Coração-sensível». Dimanava sem dúvida de uma longa e ponderada experiência que, já pressentida às bocadas do século XVII, fazia dizer a Luís Mendes de Vasconcelos nos nomeadíssimos diálogos do livro Do sítio de Lisboa [1608] que o Rei que acrescenta a República, a si mesmo acrescenta reputação e grandeza, tornando-se pobre desde que aumentasse os tributos na mira de se enriquecer.
Não cabe na índole do estudo em alvo a análise computada do nosso profundo pensamento político que, afilhando-se em alguns eruditos do classicismo indígena, veio a ganhar significação acabada nos publicistas adversos à importação liberalenga.
Antecipavam-se eles em juízos memorandos a muitos ditames da demopsicologia contemporânea.
A noção de Soberania, professaram-na através dum conceito inteiramente positivo. Manobrando com altos dons de destrinça e exame, são dignos de enfileirar no largo quadro dos mestres da Contra-Revolução universal. Não lhes escapou nem o resultado nulo dos parlamentos, engendrando a tirania anónima das clientelas, nem o perigo divisionista dos partidos nunca fartos. Mediram os efeitos perturbadores do repentismo legislativo mais a origem artificial e morbosa do sufrágio, oprimindo o cidadão em lugar de o garantir para o pleno exercício dos seus direitos concretos. E na balbúrdia retórica das apóstrofes sentimentais em que a moda constitucionalista submergia inconsideradamente as aquisições hereditárias da Nacionalidade, jamais cessaram de acentuar os relativismos inalienáveis que presidem de estrutura à existência dos povos, afiançando-se como detentores de uma visão unitária da nossa história, de um sentido realista do nosso temperamento colectivo, das nossas predilecções institucionais, em nenhuma conta assinaladas nos hirtos simplismos algébricos que de França nos chegavam com os entusiasmos enfáticos do Senhor de Chateaubriand.
Tão longe se projectavam no julgamento implacável à demência em que Portugal abalava perdido, que até predisseram o desfecho lógico de uma monarquia que abdicava dela própria nessa república trágico-cómica que para aí estrebucha, mordida de esgares epilépticos, já convulsionada nas vascas da morte. Grandes caracteres, grandes inteligências, com rendida homenagem, na verdade! Caluniados embora pelas partidas vitoriosas, relegados para uma sombra espessa em que as feições se lhes diminuíram e a voz se lhes suspendeu no ostracismo duro de quase um século, como avultam hoje aos nossos olhos doídos de tanto espetáculo demolidor, como se corporizam e elevam diante de nós em fiéis pioneiros da boa integridade da alma-pátria, de que bem cedo adivinharam o envilecimento e a desagregação ao hálito mortífero das quimeras despaísadas que o tumulto romântico procurava aclimatar!
Sem nos enredarmos em estéreis querelas sucessoriais, é lá que o nosso movimento de ampla restituição localista e de correspondente equivalência autoritária [1914 - Nação Portuguesa, O que nós queremos] vai entroncar as legítimas e bem castiças precedências teóricas, nós os reconhecendo por preceptores e conselheiros avisados, subindo-os ao destaque merecido na hora em que exotismos de contrabando pretendem socorrer o colapso da Raça com as misturas desconexas dum empirismo organizador, aprendido de galope em Charles Maurras, quando de passagem pelo boulevard. É a excomungada farmacopeia gaulesa a prevalecer nas direcções que se tentam impor ao belo renovo que já se manifesta na nossa mocidade, é o vício de sempre a desvirtuar-nos as possibilidades nativas mais uma vez com a intrusão de categorias mentais, hostis por índole e meio às tendências espontâneas do agregado que, senhor de um génio autónomo e de uma esplendida capacidade criadora, se viu traído, depois da Era de Quatrocentos, pelas simpatias estrangeiristas dos elementos dirigentes.
Eu já não falo no mal da Renascença, nem na absorção centralista da ditadura pombalina, - aquele dimanado do cosmopolitismo pedante dos humanistas e da utopia desordenadora do uomo universale, a segunda compondo-se aos modelos de Catarina da Rússia e de José de Austria, os quais, lendo ambos por igual cartilha de imperantes de bota-abaixo, andaram preparando a maioridade do Estado Todo-Poderoso. Basta que me refira às declamações pactuais do Contrato que, mascaradas no recorte britânico do figurino cartista, surgiram a transtornar o florescimento vagaroso que, conduzido em primeira mão pelos fisiocratas da Academia, conseguira resistir ao açoite das invasões napoleónicas e, em reacção instintiva contra o estadismo garrotante montado pelo Marquês, se propunha reanimar a enregelada vida provincialista de envolta com as fontes dormentes da economia pública.
Coroa-se a admirável actividade com o ressurgimento do espírito municipal que se opera à roda das Côrtes Gerais de 28. Porém, os critérios individualistas da representação, infecionados pelo gregarismo patológico dos Imortais Princípios, alteraram por completo o ensaio de lenta regenerescência que, apesar das discórdias intestinas, se ia adiantando em crescentes afirmações de vitalidade, servido por estaturas do porte de um Visconde de Santarém, de um D. Francisco Alexandre Lobo, de um José Acúrcio das Neves. Triunfaram pelo acaso das armas os simetrismos inertes de Mousinho da Silveira, retaçou-se o país de norte a sul por generalizações desapiedadas e, filho da Liberdade que D. Pedro nos constrangeria a aceitar, se a bem a não recebessemos, conforme a célebre proclamação do Porto, Portugal perante o Terreiro do Paço viu-se de súbito demitido da mais leve iniciativa, voltado de independente e agenciador em mero tutelado, - num triste parasita que por causa do voto se vendia a qualquer que lho quisesse mercadejar.
Estrangularam-se os particularismos regionais, introduziu-se como desaforo patronal a arbitrariedade inexorável da Oferta-e-Procura, esfiampou-se o sistema nervoso da Raça, não demorou o total desbarato das afinidades coesivas. E à Monarquia centrípeta, de intervenção pessoal e idoneidade governativa, efectuando ao cimo a sinergia das várias mancomunidades demográficas, com os Concelhos e as Corporações à base num afanoso equilíbrio dos irreduzíveis egoísmos populacionais, à Monarquia que se intitulava absoluta, por não se poder qualificar ainda de anti-parlamentarista, assegurando a duração e a continuidade pela coincidência do interesse familiar do dinasta com o interesse permanente da coletividade, enquanto protegia e cultivava a diferenciação cantonalista e a metodização profissional, substitui-se a monarquia bastarda dos programas ministeriais e da corrupção eleiçoeira, - а monarquia inorgânica, invertebrada, sem aprumo dorsal nem suficiência fisiológica, espécie de aborto que se inventa para se explorar com ele, capa-parda que se tolera para a incompetência se proteger e a irresponsabilidade ter aonde se embrulhar nos momentos de aperto.
O anonimato predomina no Estado. E com o arranjismo por única norma de recrutamento, eis que tudo é instável, eis que tudo é medíocre. Só se avoluma a omnipotência desmesurada da concentração burocrática, que sequestra e anula o fecundo concurso das pequenas energias sociais, - não há impulsos que desbravem e incitem, há somente administrações tidas e mantidas em benefício dos bandos. O hífen governativo vira-se num pretexto rendoso, é um órgão insaciável hipertrofiando-se à custa das reservas vitais do agregado. E, esvaída uma concepção doutrinária que aglutine e revista de finalidade, não tarda que o corpo se desmembre e que o esfacêlo irrompa imediato.
Em Portugal quem proclamou a República, — já se não consentem dúvidas a tal respeito, foram os monárquicos e só os monárquicos. Instalara-se nos cérebros como certeza dogmática a superioridade supersticiosa do princípio electivo, um prejuízo de baixa crendice intelectualista nos apetecera para serventuários reverentes e obsequiosos, enredando-nos a percepção nas fantasias anacrónicas do Progresso Indefinido. Os mais esclarecidos partiam de uma serena indiferença pelas formas de governo, cheios de que os homens, e não os regimes, é que fomentam a prosperidade dos povos.
De maneira que os descalabros sucessivos que nos provinham da adaptação altanada do sofisma constitucional atribuíam-se em coro às instituições tradicionais que, manietadas pelas liaças liberalistas, se volveram no agente do próprio descrédito, impossibilitadas de avançar um gesto de defesa ou de saneação sem que saltassem logo do lado os molossos da Carta a gritarem o perjúrio. El-Rei D. Carlos tentou a operação decisiva, mas, espingardeado à luz do dia, deixa-nos ver quanto no cachão bravio dos espíritos a mentira democrática se enraizara, materializada em prestígios fetichistas.
Não tinha, pois, a Monarquia por si nenhuma razão de pensamento ou de sensibilidade que ainda a sustivesse. A ofensiva republicana, portadora das místicas arrebatantes do romantismo gregário, atraía, incendiava, por sua parte. Expiando a gafa exótica que o contaminara até à medula e que lhe roera as melhores possibilidades, estava na fatalidade das coisas, como remate inevitável, a queda de um trono sete vezes secular. Bem o futurara na abertura dos Estados-Gerais de 28 o desembargador José Acúrcio das Neves!
Desnuda-se agora o imenso ludibrio, que se encapotara habilidosamente nas aparências convidativas do abuso liberalengo. E quando no desencantamento subitâneo, nós nos tornamos para a casa em ruínas a perscrutar se alguma faúlha persiste entre os escombros que aterram a lareira, - e quando ao nosso inquérito ansioso responde um lampejo magnífico de esperança, de novo a quimera exótica nos bate à porta a inquinar com loquelas enredadoras o tateante ressarcimento em que vamos alevantando cabeça. A troca da solução que o génio da raça trouxera à crise profunda de 1820, pelas avarioses subjetivistas que da riba francesa se exportavam com os solilóquios extáticos do Ermo, arrastaram-nos à diluição do carácter coletivo, ao quietismo podre em que se reduziram a um movimento automático de sonâmbulos dos opulentos recursos criacionistas do nosso povo tão malfadado.
O turbilhonar de catástrofe que sobre nós redemoinha é de onde descende, - mais que os ridículos primários que hoje nos marcam os dias santos, mais que os palhaços de circo que entretêm a credulidade pueril das ruas com tiradas grandiloquentes, com prestidigitações de verborreicos grotescos, os apriorismos de tanto reformista de improviso, agravando o divórcio insanável da Nação com o Estado, é que nos colocaram à orla do precipício: - não confundamos a autoria do crime com as suas consequências naturais.
É a esse desvio, cuja amplitude se calcula pela largueza funesta dos resultados, que se devem agradecer os desatinos presentes. Ele nos previne de que é tempo de olharmos muito a sério para nós, lançando fora quantos cerebralismos nos hajam de enfeitiçar em leituras desajudadas de toda a rectificação ambiente, acolhendo os exemplos que a Action Française nos oferece, tomemos-lhe as lições e o desenvolvimento mais como um estímulo e como um reforço, que como um cânon de infalibilidade indiscutível que nos parcialize numa estreita opinião preconcebida.
Já não reparo que Maurras confere à Inteligência um papel excessivo, quando o Intuitivismo é que se acentua no destramar das relações sociais quase como única actividade propulsora, quando a formação psíquica de um povo dimana menos de isolados actos reflectidos que de uma longa experiência acumulada. O preceito mental surge ao depois, disciplinando, depurando. Não quero, porém, deixar de estabelecer que cada país se concretiza na individualidade incomunicável do seu determinismo, não se sobrepõe ao passado de uma raça o passado de outra raça. Aforismo primacial de psicologia histórica, é a regra que eu emito como monitora da campanha sagrada em que ora rompemos. A Verdade portuguesa, existe bem vasada, bem definida, na doutrina integralista de que este mensário vai ser voz. O processo indutivo, comezinho, experimental, nos encaminhou, não nos demoveram à conclusão monárquica nem aritméticas sociológicas, nem exclusivas ponderações intelectivas. Foi antes a observação do facto em si, que nos elevou à síntese final.
Quando não nos contentássemos com uma filosofia tradicionalista, seria fácil delineá-la assim em harmonia com as solicitações da alma coletiva. Mas essa filosofia possui-se, é só autenticá-la por meio dos subsídios montantes de quase um século de falências consecutivas. Eis como Maurras traçou a ossatura do seu empirismo organizador, reabilitando pelos testemunhos da ciência, a que se aliava o comentário incisivo dos acontecimentos, a apologética sólida de um Maistre e de um de Bonald. Não é diversa a missão que nos cabe a nós, criaturas de Boa Vontade. O irredentismo pátrio apenas se sarará com as qualidades possíveis do nosso génio, - com uma floração seivosa dos dons de maravilha que jazem adormecidos no subconsciente marasmado da Raça. A grande obra reparadora nos solicita, nos demanda irresistivelmente. Ao terreiro contra o estrangeirismo invasor, - ou paranoia populista com os momos que nos cavalgam, ou psicoterapia de torna-viagem, com as curandeirices marca Rua de Médicis que é preciso sujeitar à fiscalização alfandegária e seja Pola grey! como na tensão formosa do Principe Perfeito.
Pois da situação regalada dos ricos-homens e infanções, dispondo do direito de administrar justiça por magistraturas próprias, submetidas em tudo à sua jurisdição, é que nasceu a revolta popular que, auxiliando o Rei a concentrar as supremas funções judiciais, garantia com alicerces pétreos a investidura soberana da Coroa ao mesmo tempo que acobertava os jacques anónimos que moirejavam pela Gleba contra os vexames e as prepotências dos filhos de algo, de balsão erguido e fôrca hasteada. De resto, a ligação das camadas íntimas da Nacionalidade com a pessoa veneranda do Rei, manifestara-se de início, logo bem apertada e afectuosa. O Rei levantava pontes, ordenava barcas gratuitas, calçava caminhos, aforava terrenos, dotava albergarias. Na partida dos fossados o Rei, de morrião florido e cota radiosa, como cavalo escarvando em rinchos impacientes, era para os olhos de todos o defensor da terra portucalense,— aquele forte entre os fortes para quem os malados dirigiam os olhos súplices, a certeza permanente de que o leonês nos não esmagaria com o guante de ferro e de que lá em baixo o prasmado seria convertido a vil poeira de uma vez para sempre.
Nos liberi sumus, Rex noster liber est et manus nostræ nos liberaverunt, juraram os cavaleiros de Almacave, segundo o texto apócrifo. Esse sentimento de fera independência enlaçaria, de feito, o punhado aguerrido que, atirando-se de roldão para fronteiras hostis, pôde reavivar a formidável alma da Raça, que sofria aprisionada pelos estratos sobrepostos de tanta invasão, passando e repassando. Sem uma anterioridade étnica, cheia de recursos e de perdurabilidade, não se compreende que da espada aventureira de um príncipe em rebeldia surgisse, de jacto, como um grande corpo constituído, esta Pátria que recebeu a pranchada nobilitadora nas charnecas solenes do Alentejo em correrias doidas por território de infiéis. O génio reviviscente da Grei incarnara no filho do Borguinhão o essencial órgão de duração e continuidade que pela sequência hereditária lhe havia de estabilizar a autonomia tão entranhadamente vivida. As beetrias do norte, no uso do velho estatuto consuetudinário, o elegeram para chefe e governador, entregando-lhe, como um bem de família de religiosa observância, a guarda dos vizinhos agremiados.
Nos liberi sumus, Rex noster liber est... - e à minha evocação ocorre de súbito a oferenda com que os emissários da Albânia acabam de reverenciar o seu Monarca. Nos minúsculos torrões arrecadados com algumas gotas de água num cofre trabalhado a capricho, para além do lindo presente simbólico de que os jornais nos falam, eu revejo a espontaneidade rude dos nossos batalhadores antigos confiando ao desvelo de um só a manutenção do solo recobrado a palmo e palmo, o encosto firme da viúva, o amparo do órfão e dos humildes, o prémio dos bons e dos leais, a custódia e a segurança das vidas e das fazendas, dos altares e dos sepulcros.
Ora, num primitivo fundo sóbrio à sombra da azinheira sagrada da Raça, do quercus frondoso que eu fui achar bracejando na necrópole augustíssima de Briteiros, é que as mancomunidades agrícolas da Reconquista se identificariam com o Príncipe, escolhendo-o para regedor vitalício. Em contrato curial se consignariam as obrigações de ambas as partes com tamanho alcance e uma tão prolongada reminiscência que a razão mais repetida pelos jurisconsultos seiscentistas, e exarada até no assento das cortes de 1641 contra o domínio castelhano, fundamentava-se na quebra do pacto original, pela banda de um rei que punha os povos a saque e lhes não respeitava as regalias. As cartas foraleiras representam assim o acto jurídico, pelo qual os vários particularismos institucionais se alçaram a uma comunhão de interesses maiores, e, concomitantemente, a Realeza que as concedia, revela-se-nos como o agente elaborador do poderoso sentimento colectivo, que depressa aqueceu no ardor da mesma finalidade as populações aborígenes, que dos limites exíguos da sua actividade agrária se elevaram à meia consciência de um destino comum por obra e graça desse principio centrípeto.
Só no século XVI os nossos humanistas, importando do latim a palavra pátria, vazariam em expressão inteligente o recuado instinto de agnação social e étnica que nos concrecionara como uma individualidade inassimilável diante do unitarismo absorvente do planalto castelhano. No entanto, confuso muito embora, muito embora afectivo e apenas de ímpeto, já ele se asseverava em datas distantes, traduzido inclusivamente em constatações escritas. Tanto que no século XII, a Crónica dos Godos, em referência a nós, portugalenses, designava como alienigenas os raianos da Galiza, extremando-se bem a condição autónoma do pequeno condado que se desmembrara daquela dependência governativa do rei de Leão.
Certo é que uma estreita consanguinidade e os mais cerrados liames costumeiros, entrelaçavam entre si os moradores de aquém e de além do Minho. Ressalta muito mais, por isso mesmo, a diferença intencional que tão profundamente se cava, desdenhando parentesco e vizinhança, pelo único motivo da condição política que distinguia os dois habitantes. Trata-se, não o olvidemos, de uma afirmação erudita, que em diminuta conta se haveria, se a não robustecesse o inventário das preferências separatistas, que desde o começo assinalaram a minguada faixa marítima talhada ao longo da Ibéria, como o larário de uma família à parte, brotada de outras genealogias, parece que feita de barro diverso.
De facto, enquanto nos domínios da proto-história iberos e celtas se aliam e cruzam em seguida a embates mais ou menos sangrentos, o Luso acantonado nos arduos colles da orla atlântica aguenta-se, irreduzível, agrupado em núcleos de resistência nativa, que viriam a tornar-se o segredo das suas lutas exasperadas com Roma. A remanescência desse atavismo vivaz acidentaria por meio de insurreições frequentíssimas a ocupação muçulmana. O moiro Razis confessa preciosamente que os povos da encosta ocidental, eram os mais irrequietos e indebeláveis da Península. Mercê da sua índole bravia, o árabe não cresceu jamais para lá das margens do Douro, senão no domínio efémero de cavalgadas assoladoras. Como em frente das legiões rumorosas do Lácio, o Luso sustinha-se indissolúvel, pertinaz, barreirando o alastramento semita. A pasmosa inconversibilidade que o aguentara, uno e ensimesmado diante da migração ibérica, centralista e alófila, que o argamassara depois em guerrilhas cheias de fôlego, no duelo tremendo com as tropas regulares da república romana, e agora se opunha com denodo e rijeza inquebrantáveis ao espraiar da vaga sarracena, donde é que lhe vinha, que misteriosa energia preservadora lha alimentava, reparando o sem cessar das desfeitas em que caía quebrantado, como morto?!
Broca observa que o arreigamento ao solo garante, com a pureza étnica, a inalterabilidade do tipo antropológico, consoante se documenta pelos camponeses enraizados da França, nos quais se verifica a mais lídima descendência da velha familia galo-latina. Pois é precisamente na homogeneidade rácica do Luso que eu radico o vitalismo assombroso que o caracteriza no fluxo e refluxo das marés alogénicas que lhe passearam a confinada área, - o aferro de habitat em que se lhe exprimiam as ingénitas inclinações rurais o soube resguardar, pela razão discernida por Broca, das dosagens que perturbam e diluem, - de misturas contraditórias que lhe abatessem o aprumo natural, o formidável reaccionismo mantenedor.
Ainda hoje o português, na consubstanciação geral dos seus índices somáticos, se atesta como o dolicocéfalo mais limpo de toda a Europa. Afere-se pelo padrão hominal de Beaume-Chaudes,— as linhagens remotas desfia-as do chamado homo mediterranensis, o qual se evidenciou nos cortes de Muge, praticando o sedentarismo em pleno mesolítico, bem antes de conhecer a agricultura.
A aptidão afiançada no vale do Tejo pelo íncola primevo, para se afincar à terra e constituir agrupamento, quando nem ainda alvorecia o período cerealífero, pescador e caçador que ele era somente, - essa aptidão é um germe de incalculável valor.
É bom que se recorte e destaque desde já. A necolatria havia de vestir em breve de amanhecentes emoções religiosas as decididas predilecções sedentárias do nosso remontado autóctone. Entroncava ele numa espécie de humanidade pré-adâmica, cujos primórdios se confundem quese com os acidentes geológicos de que resultaram as composições terciárias das nossas bacias hidrográficas. Assim do húmus lodoso de que surgiu na consolidação dos sedimentos primários o terreno amorável da Pátria, surgia conjuntamente o estranho ser que a povoaria, rompendo das suas entranhas como um "produto nato"- na frase de um dos nossos mais ilustres paleo-etnólogos, Ricardo Severo (Origens da Nacionalidade Portuguesa. Lisboa, Livraria Clássica Editora [1911]). [Ricardo Severo - Origens da nacionalidade portuguesa, ed. 1912]
Com o perfilhar semelhante opinião, que os dados científicos não fazem senão confirmar, eu não me embrulho na emaranhada disputa monogénica, nem arrisco as teorias atraentes que tornam a Península, em virtude de um bondoso determinismo físico, um encantado viveiro de eleição, tal como o berço excepcional das primeiras gerações, marchando-se de cá à partilha da Esfera. Não desloco para aqui, - para o brumoso Ocidente do Mito, que Hércules, de clava ao ombro, se abalou a demandar ardendo - em cobiça pelos novilhos lustrosos de Geryon, para o etereal Jardim das Amendoeiras onde os dragões ignívomos da Fábula vigiavam, de olhos sonolentos, os apetecidos pomos de oiro, o interdito e místico resplendor que auroresce os majestáticos planaltos da Ásia com os quatro rios paradisíacos banhando-lhes as faldas augustas de altar. Detenho-me apenas a acentuar a aparição de uma grei primogénita que, nua e agarrada ao solo pelas tendências inatas que a prendiam ao rincão natalício, se enquadrou de nascença na posse duma forma social em rudimento que, definindo-se e afeiçoando-se à maneira que se desenvolviam as probabilidades contidas no embrião, havia de vir a ser no futuro a base inalienável de um povo de lavradores, ascendendo do estatuto restrito de vizinhança ao consenso aglutinador de Nação.
O indígena, que em Muge nos forneceu o paradigma do nosso homem primitivo, pertencendo ao estalão mediterrânico, filia-se, por conseguinte, no espesso fundo arcaico, ou pelásgico ou líbio-ligúrico, que na cultura micénica topa o apogeu de uma civilização que lhe é própria e que se nos desvenda isenta da menor sugestão turaniana ou indo-árica. [António Sardinha segue aqui na linha de Giuseppe Sergi, 1841-1936] Marca, antropologicamente, o ponto transitório do dólico-loiro, alvo, de alta estatura (Homo-europeus), para o braquicéfalo moreno, de porte mínimo (Homo-alpinus), aquele de extracção setentrional, o segundo supostamente acadiano, mas hoje já localizada a sua região de origem nas proximidades do abrupto relevo helvético.
Por muitos anos de miragens eruditas subalternizado à ficção oriental, que das ocultas fontes do Levante - Ex Oriente lux! - traziam com a carreta doirada do sol a procissão vagarosa das civilizações, o homo mediterranicus emancipa-se enfim de precedências exóticas e aquisições de favor, ganhando para deslumbre dos nossos olhos as mais independentes linhas fisionómicas, o mais vivo sinal de vasta actividade criadora no esplendor admirável da arte dita egeana. Na mesma árvore se insere sem dúvida o aborigene de Muge, que no declarado feitio sedentário, enraizando-se, insisto, antes de praticar a agricultura, nos revela o parentesco mais arrumado com os outros povos da concha mediterrânica, - líbios e pelasgos -, eles também tão conhecidos pela íntima pendência gremial, agrícola e construtora.
Todo esse rumoroso enxame, semi-ensombrado nas pregas densíssimas duma pesada noite etnogénica, - tão recuada, tão imperscrutável que, quanto a nós, a proveniência do homem coincide com os atormentados trabalhos geológicos de que dimanou em consolidação definitiva a parte ocidental da Península, todo esse rumoroso e enredado enxame, demorando para as paragens terríficas dos monstros marinhos, para os arredores da caverna lôbrega da Noite, se ajusta bem, se homologa, no cabo, com as enigmáticas Nações do Mar, de cujo formidável alevantamento ficou memória nos livros herméticos dos padres egípcios. Ou admitindo a hipótese cada vez mais fortalecida da legendária Atlântida, submersa, ou cingindo-nos apenas aos âmbitos geográficos em que o oeste-europeu se expressou depois das pavorosas convulsões geognósticas que antecederam o quaternário, a demonstração da velha raça que aflore a das catástrofes post-pliocenas excede em larga pristinidade os mais sumidos êxodos de que há rastos. Corresponde ao mítico império de Uranus, ocupando o Ocidente e o Norte para as bandas dos últimos cornos do Oceano.
Poupada à dilatação glaciária que aprisionou no alastramento dos invernos circumpolares a quase globalidade da Europa, a Península volveu-se então um dos retiros mais exuberantes da terra na adolescência. O homem paleolítico aqui se constata por claros documentos, crescendo sempre, - a aceitar-se a invenção romanesca do Precursor, os sílices intencionais recolhidos em Ota pelo general Carlos Ribeiro acusariam a presença de um antropóide, - Homo simius Ribeiroi, - o qual preparava a transição, obtendo já o fogo pelo atrito dos seixos e assistindo de simpatia ingénita à beira dos lagos piscosos. De onde berço duma humanidade inominada, pré-adâmica, que se tirara das profundezas terrestres e ao flanco materno se apegava, sem jamais deslaçar o cordão umbilical, o ser a Península uma das primeiras mansões da Espécie em desabrocho, a despeito das empertigadas presunções do monogenismo asiático, que a consideram como deserta, vaga, até à chegada das migrações iranistas.
O enraizamento notabilíssimo do indivíduo de Muge denuncia, pois, a tendência tónica, o psiquismo generativo, da nossa mergulhada autoctonia. No alvor do conhecimento e por essa sociabilidade pacífica que o sedentarismo facilmente engendrava, depressa o avô recuado enterrou os seus mortos. Enterrando-os, mais um vínculo o prendia, o fixava. É que a inumação antecede entre nós os ritos incineratórios, de proveniência estranha, e toma-se como um dos sinais específicos das arredadas gentes que para estas partes se insulavam. Sobre o depósito mortuário assentaria a lareira dos que ficavam, o fogo, que veio a consagrar-se como sinónimo de família e se acendia sobre o loguo em que os antepassados repousavam.
O encadeamento das gerações pela subordinação dos sobreviventes ao culto ancestral manifesta-se de entrada. A necrolatria, erigindo os dólmenes e tornando-se a regra espiritual de uma colectividade em início, ao tempo que gerava a coesão autoritária, dava simultaneamente o sentimento de uma mesma promanação. Pelo oculto poder do sangue, a unidade gentílica se entrançava. O direito de cidade e o equilíbrio comunitário vieram de seguida, por via do contacto quotidiano em que o elementar instinto de vizinhança se fora acordando.
Aferrada ao chão que lhe engolia os filhos depois de os haver gerado, a raça de Muge (assim etiquetada hoje nos recintos científicos), com o desenrolar das solicitações vitais, não se entregou à pastorícia, própria tão somente dos grupos turbulentos e erráticos. O atavismo que a acolchetava ao solo fecundo donde brotara, a aquecia na religiosidade branda das coisas naturais,
bem cedo lhe deu a pendência para a agricultura, para o ruralismo produtivo e amorável. Como derivante, as comunidades agrárias se entreteceram, originando o nódulo populacional que o romano nomeará vicus e que um modo de ser inerente ao homo mediterranensis, como se comprova, por exemplo, pela djemaa berbere, de aproximada organização igualitária, mas centralizada sob uma forte chefia religiosa. A nossa aldeia paleo-histórica, deduzida da longínqua faculdade sedentária que as camadas da bacia do Tejo nos comunicaram, apoiando-se na colectivização da Terra para os efeitos da cultura, possuía idêntico hífen hierárquico em virtude da norma teocrática que a necrolatria necessariamente lhe impunha.
O regulamento interno do grupo pode abonar-se, em referência à azáfama e à colheita, com a remembrança conservada nos viajantes clássicos acerca dos vaccei que habitavam a concha do Douro. Todos os anos se partilhava o solo arável, sendo distribuído em quinhões iguais o produto da racolta. É o processo certamente usado nos demais aglomerados agrícolas que na subida diferenciadora alcançam a forma urbana, continuando a acentuar a ingénita disposição particularista nas citânias ou cividades, que pegaram a erriçar os cómoros donorte ai pelos intróitos da proto-história.
Assim cada citânia constitui o centro duma mancomunidade agrária com o laço gentilico por fivelão. Assevera as predilecções localistas da estirpe autóctone e pela incisiva individuação que a exprimia cada citânia vertia uma unidade populacional, - um populus. Quantas cividades, quantos populi, contariam os romanos ao depois. A autoridade acabou por se resumir num maioral, o Camal das inscrições de Briteiros, assistido por uma ordem de anciãos ou notáveis, como se infere dos toscos assentos de pedra que lá se exumaram na casa-tipo. E desta maneira esboçada , a aptidão sedentária do nosso indígena primevo, acompanhando o desenvolvimento da agricultura, atingia as linhas rudimentares de um cantonalismo autonómico em que se adivinha já o embrião da Pátria vindoura.
No conselho dos magnates, deliberando sobre usos, repartição do agro, contendas pessoais, etc., etc., insere-se efectivamente o germe valiosíssimo de que proveio o Município e por uma ascensão maior, por uma mais larga esfera de actividade, vagando o desenvolver incontido das relações colectivas em círculos mais extensos e mais prestantes, essas antigas Cortes Gerais da Monarquia tradicional, cooperando com o Rei, já palpitado pela célula autoritária que é o Camal de Briteiros, - na marcha e na direcção dos graves negócios de utili-
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dade pública. É que o génio da Raça a si mesmo se bastou, dotando-se com um admirável sistema institucional, que nada deve a influências de obséquio nem a padrinhos de acaso. Na hora em que à Nação, já concretizada, se desviava a abundante energia criadora, em que o fio orgânico se lhe perdeu em meandros enfraquecedores e secundários, é que a decaída começa, é que as mestiçagens corrosivas lhe comprometem a salubridade e o equilíbrio com desviscerações criminosas. Repare-se no caminho andado, retenha-se ao limiar das idades o natal excepcionalíssimo do nosso homem primogénito, confundindo-se, irmanando-se com a própria formação do solo que habitara. Uma pátria se perscruta já na predisposição do íncola mesolítico de Muge, sem conhecer ainda a agricultura, — repito, - mas já arreigado, já ateando o fogo dos vivos sobre o descanso dos mortos. Ora é aí a ascendência remota do Município.
A comunidade rural, fundamentando um populus que se encabeçava numa citânia, delimita a circunscrição territorial de que o futuro concelho há-de provir. E tanto essa nossa instituição vetustissima enterroa os seus alicerces no primitivo comunismo agrário, que a filologia se apressa a ensinar-nos que a palavra vereador (de vareador) deriva de vara, terra comum, com uma raiz indo-ariana, guardada em sanscrito pelo termo vare com equivalentes nas várias línguas e dialectos afins, como whare em
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neerlandês, were e m alemão, vara em asturiano. «De maneira que, e em conclusão, na sua origem o vocábulo espanhol de que estou tratando, escreve D. Joaquim Costa, denotaria o campo em sentido de cercado, vedado, couto, porção de baldio comum que cada um toma ad libitum, como em Aragão, ou que lhe era designado, conforme um método regular, pelo conselho ou pelos seus delegados, como entre os Waceos». (Colectivismo agrário en España). [1898 - Joaquín Costa - Colectivismo agrario en España (ed 1915)]
Como em Briteiros, nós figuramos o Camal, rodeado dos próceres, presidindo à distribuição do agro, também nos concelhos de todo o Reino, a câmara partilhando em sortes os vastos logradouros colectivos, que a fúria desamortizadora a pouco e pouco foi esfarrapando, não fazia senão acudir na inconsciência de um acto consuetudinário à já diluída necessidade que muito ao longe, na dobra dos tempos, lhe ficara assinalando a génese obliterada.
A citânia, estádio anterior à agremiação concelhia, guardava, pois, consigo a lareira anónima da Pátria. O apego localista imprimira ao morador uma índole fera, independente: trux natura et ferox. Preferiam a morte à servidão,- refere o ilustre Alberto Sampaio. E quando o romano assomou, atalaiadas em cómoros inacessíveis, com um óptimo aparelho de castros a encerrá-las num aro impenetrável, a luta duraria décadas e décadas para se subjugarem, uma a uma, as cividades perdidas da Lusitânia, - células inalienáveis da Nacionalidade
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que adviria da sua revivescência nas beetrias do Norte e nos ópidos do Sul.
Porque, se até agora a citânia se manifesta apenas além do Douro, aonde a população já era densíssima, o Sul, menos povoado, coberto de charnecas embrenhadas em que o urso retouçava por entre medronheiros, possuía contudo aqui e ali sensíveis pontos habitados. O castro da Cola no campo de Ourique, já explorado pelo grande arcebispo Cenáculo, pode com efeito apresentar-se como o paradigma de tantos e tantos povoados proto-históricos, dispersos pelos sideiros da mesopotâmia de entre Tejo e Guadiana e ainda meio recordados na toponímia vulgar. Não há quase freguesia nenhuma em que não se indique um castelo velho, com alusões legendárias à ocupação mourisca. De modo que, de alto a baixo, o substractum, tanto étnico como institucional, preparava numa gestação de séculos a unidade formidável de que Portugal nasceria como uma federação de pequenos núcleos autonómicos.
Para consagrar a obscura elaboração que nos engendrava em trabalhosas avançadas para um consenso mais lato de sociabilidade, se dos particularismos populacionais recebera a vida, Portugal nascente dum castro receberia o baptismo. Gerado pela interpenetração dos vilares arcaicos nas germânias da liga contra Roma, um vilar, para lhe confirmar a filiação, lhe havia de impor o nome. Não olvide-
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Refs:
1608 - Luís Mendes de Vasconcelos - Do sítio de Lisboa
1825 - Faustino José da Madre de Deus - Os Povos e os Reis.
1896 - Paul Guiraud - Fustel de Coulanges, Paris, Hachette .
1898 - Joaquín Costa - Colectivismo agrario en España (ed 1915)
1906 - Comte Léon de Montesquiou: - Le systéme politique d'Auguste Comte. Paris, Nouvelle Librairie Nationale [1906].
1908 - Rocha Peixoto - Formas da vida comunalista em Portugal, in Notas sobre Portugal. Exposição Nacional do Rio-de-Janeiro em 1908, vol. I.)
1911 - Ricardo Severo - Origens da nacionalidade portuguesa, ed. 1912
1913 - Dom l'Huillier, na Vida do Patriarca S. Bento. Transcrição do abade Pedro Descoqs no livro A travers l'Oeuvre de M. Maurras. Paris, Beauchesne, 1913.
Edouard Champion, Les idées politiques et religieuses de Fustel de Coulanges. Paris, Honoré Champion