A Voz do profeta
Hipólito Raposo
"O estudo do município, nas origens dele, nas suas modificações, na sua significação como elemento político, deve ter para a geração atual subido valor histórico, e muito mais o terá algum dia, quando a experiência tiver demonstrado a necessidade de restaurar esse esquecido, mas indispensável elemento de toda a boa organização social."
Herculano indicou-nos o caminho e é tempo de seguir-lhe os conselhos.
- Hipólito Raposo
Herculano indicou-nos o caminho e é tempo de seguir-lhe os conselhos.
- Hipólito Raposo
O nome de Alexandre Herculano tem servido há quase meio século, às mais repulsivas especulações.
Desde que a falência do Constitucionalismo entrou de revelar-se, pode dizer-se que a chamada propaganda intelectual da Democracia não deixou de invocar a autoridade do Historiador para fundamentar aspirações e fulminar a inconsciência dos políticos, após a vitória de 34.
Se através da sua obra algum mais curioso não lograva descobrir afirmações democráticas que fizessem dele um percursor, não faltou quem não dissesse que Herculano, se fosse vivo, estaria com eles...
E como o autor da História de Portugal já desfeito em pó no cemitério de Azoia ou no sarcófago de Belém, não poderia vingar-se dos especuladores, a afirmação passou à categoria de verdade corrente, como todas as tolices que se põem a circular pelo primeiro audacioso de má-fé.
Neste alvorecer ou neste crepúsculo do presente em que é dever de honra dar balanço a todos os valores para solução da crise política nacional, nada mais oportuno do que chamar a depor Alexandre Herculano.
Para os que o estudaram e para os que com ele tem explorado sem o ler, o seu nome vale uma consagração.
As suas deduções estão ainda de pé na estrutura geral, e querer compreender a nacionalidade portuguesa nos seus elementos orgânicos, equivale a um ato de fé na sua obra.
O primeiro capítulo da sua História escreveu-o a geração seguinte — Alberto Sampaio e Martins Sarmento, mas certo é que Herculano não poderia com probidade remontar além do século XII. Faltavam-lhe subsídios que só posteriormente se adquiriram e que ainda agora se estão reunindo com esforço.
Os motivos da sua convicção sobre a índole das raças povoadoras do nosso território, sobre a natureza e funcionamento das instituições sociais da Espanha, sobre as relações do individuo social com a diferenciação regional, todos os elementos de ordem jurídica, religiosa ou política que informaram a vida dos primeiros séculos da Monarquia - ficaram escrupulosamente documentados nas tábuas de bronze em que a História de Portugal foi escrita.
Agora que algumas consciências honestas procuram salvar a nobreza do seu espírito, em nome da verdade histórica, tão ultrajada nos comícios da praça e nos compêndios das escolas, o testemunho de Herculano tem especial interesse.
Ele demonstrará por nós àqueles filisteus liberalistas que a nossa atitude, definida entre a cegueira coletiva da hora presente, tem outra justificação que a da pose intelectual ante a liquidação do princípio parlamentar.
Não tivéssemos para escudar-nos os maiores cultores da ciência política contemporânea, os factos de assombrosa eloquência desde a queda do regime absoluto em Portugal, as lições da história e da tradição a confirmar e a justificar a nossa aspiração - bastariam os juízos de Alexandre Herculano para nos advertir do perigo e da mentira democrática.
A desconfiança na redenção pelos princípios de 89 com que se tem embalado a credulidade popular nas nações latinas da Europa, tem entrado em Portugal por algumas brochuras francesas, de há poucos anos ainda.
Para Herculano que escrevia há mais de meio século, o princípio democrático-republicano não teve sequer o valor teórico, abstrato, de que a propaganda se prevaleceu para o acreditar na lógica simplista do povo.
Assim formulou ele a condenação do dogma da igualdade que alguns republicanos já não querem reconhecer atualmente:
«As ideias democrático-republicanas tendem, pela sua índole, a apoucar o indivíduo e a engrandecer a sociedade, se é que eu as compreendo.
É por isto que, nas trevas do seu pensar, a democracia estende constantemente os braços para o fantasma irrealizável da igualdade social entre os homens, blasfemando da natureza que, impassível, os vai eternamente gerando física e intelectualmente desiguais.»
Sobre o valor prático, efetivo, dos mesmos princípios, tendo em que deve dar-se importância predominante, quando não exclusiva, aos resultados da experiência nos domínios da Política — que pensava Alexandre Herculano?
Ele o diz com iniludível clareza:
«Além disso, morro sem acreditar que as instituições democrático-republicanas convenham à velha Europa, sobretudo a estas sociedades meio-romanas, meio-germânicas na índole, celto-romanas na raça estanciam ao ocidente. Digo mais: duvido de que convenham à América a meridional, à América da gente latina.» (Alexandre Herculano, Cartas, vol. I, Carta a Oliveira Martins, pp. 208-210.)
………………………………..
«São justamente considerações desta ordem que vêm justificar a minha persuasão de que, independente do seu mérito, ou demérito absoluto, a democracia repugna às nações ocidentais da Europa educadas pelo catolicismo que, na pureza da sua índole, é o tipo da monarquia representativa. Seria preciso ignorar a imensa influência que as religiões têm no desenvolvimento intelectual e moral das grandes famílias humanas, na formação lenta da sua índole particular, para não perceber quão difícil é dar um caracter, não só novo, mas até oposto, ao seu organismo social e político.» (Idem, ibidem, p. 212)
As palavras que ficam transcritas, reveladoras de uma convicção profunda, não deixam dúvidas a ninguém: Herculano condena os princípios democráticos, nas razões que mais determinaram a sua generalização, e afirma que a democracia repugna às nações ocidentais da Europa.
Nada mais claro e terminante.
Acerca dos municípios, cuja história ele começou logicamente na dominação Romana, mas cuja existência remonta mais alto e se filia talvez no instinto político dos primitivos povos peninsulares, a opinião de Alexandre Herculano é a resposta de um oráculo.
Nós bem sabemos, quando aqui reclamamos a restituição da autonomia aos concelhos, que esta expressão não pode ter um valor histórico rigoroso.
Cumpre ter em vista, na restauração dos foros locais, as causas que levaram os municípios à decadência: não se trata de uma reposição que seria absurda, ao fim de quinhentos anos passados; convém fazer uma liquidação, por assim dizer, dos elementos e condições em que a vida municipal decorreu e aproveitar os valores, em harmonia com a ilustração do século.
Os foros modernos não poderiam, por exemplo, ofender a universalidade da jurisdição civil e criminal dos tribunais que as relações sociais, mais rápidas e intensas, necessariamente impuseram.
A diferenciação de concelho para concelho assentaria, além da diversidade de índole económica, nas posturas, tributação, costumes tradicionais locais e outros caracteres próprios.
Na sua visão do nosso destino, assim era o pensamento de Herculano:
«Causas diversas prepararam, durante os seculos XIV e XV, o estabelecimento das monarquias absolutas, que impediram o desenvolvimento lógico daquelas instituições (municípios) na verdade barbaras e incompletas, mas que, apesar da sua imperfeição e rudeza, continham os elementos do equilíbrio entre a desigualdade e a liberdade.
Longe de negar ou condenar com cólera infantil as diferenças de inteligência, de forca material e de riqueza entre os homens ou de tentar inutilmente destruí-las, a democracia da idade media, representante do princípio de liberdade, confessava-as, aceitava-as plenamente, aceitava-as até em demasia; mas, por isso mesmo, mostrava instintos admiráveis em organizar-se e premunir-se contra as tendências antiliberais dessas superioridades. Foram semelhantes instintos que produziram os concelhos ou comunas; esses refúgios dos foros a essas fortes associações de homem trabalho contra os poderosos, contra a manifestação violenta e absoluta do princípio da desigualdade, contra a anulação da liberdade das maiorias.
Em nosso entender, a historia dos concelhos é em Portugal, bem como no resto da Espanha, um estudo importante, uma lição altamente profícua para o futuro; porque estamos a intimamente persuadidos de que, depois de longo combate e de dolorosas experiências políticas, a Europa há de chegar a reconhecer que o único meio de destruir as dificuldades de situação que a afligem, de remover a opressão do capital sobre o trabalho, questão suprema a que todos a as outras nos parecem atualmente subordinadas, é o restaurar, em harmonia com a ilustração do século, as instituições municipais, aperfeiçoadas sim, mas acordes na sua índole, nos seus elementos com as da Idade Média. Sem elas, o predomínio do despotismo unitário, do patriciado do capital e da força inteligente, que sob o manto da monarquia mista, ou da democracia exclusiva e odienta, expressão absoluta do sentimento exagerado de liberdade, que ameaça devorar momentaneamente tudo, não são a nossos olhos senão formulas diversas de tirania, mais ou menos toleráveis, mais ou menos duradouras, mas incapazes de conciliar definitivamente as legitimas aspirações da liberdade e dignidade do homem em geral com a e superioridade indubitável e indestrutível daqueles que, pela riqueza, pela atividade, pela inteligência, pela força, enfim, são os representantes da lei perpetua da desigualdade social.» (História de Portugal, vol. III, pp. 226-227).
No pensamento de Herculano, a questão social, cada vez mais agravada pela indisciplina das democracias, encontrava solução dentro do conceito amplo do municipalismo. Se bem que as reivindicações do operariado tenham assumido formas e aspetos que Alexandre Herculano não podia prever, a sistematização profissional que nós defendemos, integra-se na atividade económica do concelho ou, em mais ampla tendência, na circunscrição territorial da província. O sindicalismo agrário, fabril ou corporativo, sucedâneo lógico dos antigos mesteres da Idade-Média, as comissões de patronato, a assistência social, a beneficência das Misericórdias que o Constitucionalismo converteu em focos políticos, são elementos cujo dinamismo pode ser contido e disciplinado por normas de interesses locais ou regionais.
Aos que receiam pela nossa temeridade e que, ignorantes ou hipócritas, vão rejeitar as bases em que a nossa construção assenta com fundamento de que nenhum país a perfilhou - respondemos que em nenhum outro a instituição do município foi mais radicada do que na Espanha e que cada país deve procurar no seu passado os dados do seu problema.
Se o Constitucionalismo faliu tristemente e as tendências da República, na doutrina e nos factos, não fizeram senão agravar uma velha doença - que nos resta senão repudiar todas as importações de sistemas e ideias que contrariem a nossa índole ou favoreçam os nossos defeitos?
Se no passado alguma vez se manteve o equilíbrio entre o poder central e as organizações locais; se a equação dos interesses não permaneceu, procuremos as causas perturbadoras para lhes atribuir a anarquia e o tumulto que nos lançaram na presente crise.
Em poucas palavras pode enunciar-se a tendência do nosso intuito doutrinário: defesa da ditadura do poder central, reconhecimento da diferenciação regionalista e foros concelhios.
A Democracia, sob pena de se falsear, é a negação destes três elementos conjugados em que só é soberana a parte do povo que trabalha e chegou a adquirir a consciência do interesse da sua classe ou localidade.
Os condutores do povo sem profissão conhecida, os políticos de ofício, os aventureiros estariam na verdade deslocados e eram necessariamente repelidos por uma rigorosa eliminação.
O município e o poder pessoal de um Monarca - Caesar confueros, na conhecida expressão de um intelectual da monarquia francesa - são os elementos extremos de uma fórmula tradicional e progressiva. O valor de cada um deles e os dados subsidiários por que a fórmula se justifica e esclarece, serão deduzidos na doutrinação desta Revista [Nação Portuguesa - Revista de filosofia política], que a outro fim ela não vem a público.
E para terminar, peço ainda a Herculano algumas palavras que, se algum dia foram uma expansão de vidente, ja adquiriram hoje o valor de um lema de manifesta atualidade:
«Restaurada pelos instintos de liberdade e pelas conveniências da organização política, posto que alterada no meio das fases por que a Espanha passou, esta instituição, que, para nos servirmos da frase de um escritor moderno, parece ter saído diretamente das mãos de Deus, em parte nenhuma, talvez, durante a idade media, teve mais influencia no progresso da sociedade, foi mais enérgica e vivaz do que em Portugal.
Grandes destinos lhe estão porventura reservados no porvir: ao menos é dela que esperamos a regeneração do nosso país, quando de todo se rasgar o véu, já tão raro, das ilusões deste século. O estudo do município, nas origens dele, nas suas modificações, na sua significação como elemento político, deve ter para a geração atual subido valor histórico, e muito mais o terá algum dia, quando a experiência tiver demonstrado a necessidade de restaurar esse esquecido, mas indispensável elemento de toda a boa organização social.» (História de Portugal, vol. IV, p. 3-4)
Herculano indicou-nos o caminho e é tempo de seguir-lhe os conselhos.
Abril de 1914.
Hipólito Raposo.
[negritos acrescentados]
Desde que a falência do Constitucionalismo entrou de revelar-se, pode dizer-se que a chamada propaganda intelectual da Democracia não deixou de invocar a autoridade do Historiador para fundamentar aspirações e fulminar a inconsciência dos políticos, após a vitória de 34.
Se através da sua obra algum mais curioso não lograva descobrir afirmações democráticas que fizessem dele um percursor, não faltou quem não dissesse que Herculano, se fosse vivo, estaria com eles...
E como o autor da História de Portugal já desfeito em pó no cemitério de Azoia ou no sarcófago de Belém, não poderia vingar-se dos especuladores, a afirmação passou à categoria de verdade corrente, como todas as tolices que se põem a circular pelo primeiro audacioso de má-fé.
Neste alvorecer ou neste crepúsculo do presente em que é dever de honra dar balanço a todos os valores para solução da crise política nacional, nada mais oportuno do que chamar a depor Alexandre Herculano.
Para os que o estudaram e para os que com ele tem explorado sem o ler, o seu nome vale uma consagração.
As suas deduções estão ainda de pé na estrutura geral, e querer compreender a nacionalidade portuguesa nos seus elementos orgânicos, equivale a um ato de fé na sua obra.
O primeiro capítulo da sua História escreveu-o a geração seguinte — Alberto Sampaio e Martins Sarmento, mas certo é que Herculano não poderia com probidade remontar além do século XII. Faltavam-lhe subsídios que só posteriormente se adquiriram e que ainda agora se estão reunindo com esforço.
Os motivos da sua convicção sobre a índole das raças povoadoras do nosso território, sobre a natureza e funcionamento das instituições sociais da Espanha, sobre as relações do individuo social com a diferenciação regional, todos os elementos de ordem jurídica, religiosa ou política que informaram a vida dos primeiros séculos da Monarquia - ficaram escrupulosamente documentados nas tábuas de bronze em que a História de Portugal foi escrita.
Agora que algumas consciências honestas procuram salvar a nobreza do seu espírito, em nome da verdade histórica, tão ultrajada nos comícios da praça e nos compêndios das escolas, o testemunho de Herculano tem especial interesse.
Ele demonstrará por nós àqueles filisteus liberalistas que a nossa atitude, definida entre a cegueira coletiva da hora presente, tem outra justificação que a da pose intelectual ante a liquidação do princípio parlamentar.
Não tivéssemos para escudar-nos os maiores cultores da ciência política contemporânea, os factos de assombrosa eloquência desde a queda do regime absoluto em Portugal, as lições da história e da tradição a confirmar e a justificar a nossa aspiração - bastariam os juízos de Alexandre Herculano para nos advertir do perigo e da mentira democrática.
A desconfiança na redenção pelos princípios de 89 com que se tem embalado a credulidade popular nas nações latinas da Europa, tem entrado em Portugal por algumas brochuras francesas, de há poucos anos ainda.
Para Herculano que escrevia há mais de meio século, o princípio democrático-republicano não teve sequer o valor teórico, abstrato, de que a propaganda se prevaleceu para o acreditar na lógica simplista do povo.
Assim formulou ele a condenação do dogma da igualdade que alguns republicanos já não querem reconhecer atualmente:
«As ideias democrático-republicanas tendem, pela sua índole, a apoucar o indivíduo e a engrandecer a sociedade, se é que eu as compreendo.
É por isto que, nas trevas do seu pensar, a democracia estende constantemente os braços para o fantasma irrealizável da igualdade social entre os homens, blasfemando da natureza que, impassível, os vai eternamente gerando física e intelectualmente desiguais.»
Sobre o valor prático, efetivo, dos mesmos princípios, tendo em que deve dar-se importância predominante, quando não exclusiva, aos resultados da experiência nos domínios da Política — que pensava Alexandre Herculano?
Ele o diz com iniludível clareza:
«Além disso, morro sem acreditar que as instituições democrático-republicanas convenham à velha Europa, sobretudo a estas sociedades meio-romanas, meio-germânicas na índole, celto-romanas na raça estanciam ao ocidente. Digo mais: duvido de que convenham à América a meridional, à América da gente latina.» (Alexandre Herculano, Cartas, vol. I, Carta a Oliveira Martins, pp. 208-210.)
………………………………..
«São justamente considerações desta ordem que vêm justificar a minha persuasão de que, independente do seu mérito, ou demérito absoluto, a democracia repugna às nações ocidentais da Europa educadas pelo catolicismo que, na pureza da sua índole, é o tipo da monarquia representativa. Seria preciso ignorar a imensa influência que as religiões têm no desenvolvimento intelectual e moral das grandes famílias humanas, na formação lenta da sua índole particular, para não perceber quão difícil é dar um caracter, não só novo, mas até oposto, ao seu organismo social e político.» (Idem, ibidem, p. 212)
As palavras que ficam transcritas, reveladoras de uma convicção profunda, não deixam dúvidas a ninguém: Herculano condena os princípios democráticos, nas razões que mais determinaram a sua generalização, e afirma que a democracia repugna às nações ocidentais da Europa.
Nada mais claro e terminante.
Acerca dos municípios, cuja história ele começou logicamente na dominação Romana, mas cuja existência remonta mais alto e se filia talvez no instinto político dos primitivos povos peninsulares, a opinião de Alexandre Herculano é a resposta de um oráculo.
Nós bem sabemos, quando aqui reclamamos a restituição da autonomia aos concelhos, que esta expressão não pode ter um valor histórico rigoroso.
Cumpre ter em vista, na restauração dos foros locais, as causas que levaram os municípios à decadência: não se trata de uma reposição que seria absurda, ao fim de quinhentos anos passados; convém fazer uma liquidação, por assim dizer, dos elementos e condições em que a vida municipal decorreu e aproveitar os valores, em harmonia com a ilustração do século.
Os foros modernos não poderiam, por exemplo, ofender a universalidade da jurisdição civil e criminal dos tribunais que as relações sociais, mais rápidas e intensas, necessariamente impuseram.
A diferenciação de concelho para concelho assentaria, além da diversidade de índole económica, nas posturas, tributação, costumes tradicionais locais e outros caracteres próprios.
Na sua visão do nosso destino, assim era o pensamento de Herculano:
«Causas diversas prepararam, durante os seculos XIV e XV, o estabelecimento das monarquias absolutas, que impediram o desenvolvimento lógico daquelas instituições (municípios) na verdade barbaras e incompletas, mas que, apesar da sua imperfeição e rudeza, continham os elementos do equilíbrio entre a desigualdade e a liberdade.
Longe de negar ou condenar com cólera infantil as diferenças de inteligência, de forca material e de riqueza entre os homens ou de tentar inutilmente destruí-las, a democracia da idade media, representante do princípio de liberdade, confessava-as, aceitava-as plenamente, aceitava-as até em demasia; mas, por isso mesmo, mostrava instintos admiráveis em organizar-se e premunir-se contra as tendências antiliberais dessas superioridades. Foram semelhantes instintos que produziram os concelhos ou comunas; esses refúgios dos foros a essas fortes associações de homem trabalho contra os poderosos, contra a manifestação violenta e absoluta do princípio da desigualdade, contra a anulação da liberdade das maiorias.
Em nosso entender, a historia dos concelhos é em Portugal, bem como no resto da Espanha, um estudo importante, uma lição altamente profícua para o futuro; porque estamos a intimamente persuadidos de que, depois de longo combate e de dolorosas experiências políticas, a Europa há de chegar a reconhecer que o único meio de destruir as dificuldades de situação que a afligem, de remover a opressão do capital sobre o trabalho, questão suprema a que todos a as outras nos parecem atualmente subordinadas, é o restaurar, em harmonia com a ilustração do século, as instituições municipais, aperfeiçoadas sim, mas acordes na sua índole, nos seus elementos com as da Idade Média. Sem elas, o predomínio do despotismo unitário, do patriciado do capital e da força inteligente, que sob o manto da monarquia mista, ou da democracia exclusiva e odienta, expressão absoluta do sentimento exagerado de liberdade, que ameaça devorar momentaneamente tudo, não são a nossos olhos senão formulas diversas de tirania, mais ou menos toleráveis, mais ou menos duradouras, mas incapazes de conciliar definitivamente as legitimas aspirações da liberdade e dignidade do homem em geral com a e superioridade indubitável e indestrutível daqueles que, pela riqueza, pela atividade, pela inteligência, pela força, enfim, são os representantes da lei perpetua da desigualdade social.» (História de Portugal, vol. III, pp. 226-227).
No pensamento de Herculano, a questão social, cada vez mais agravada pela indisciplina das democracias, encontrava solução dentro do conceito amplo do municipalismo. Se bem que as reivindicações do operariado tenham assumido formas e aspetos que Alexandre Herculano não podia prever, a sistematização profissional que nós defendemos, integra-se na atividade económica do concelho ou, em mais ampla tendência, na circunscrição territorial da província. O sindicalismo agrário, fabril ou corporativo, sucedâneo lógico dos antigos mesteres da Idade-Média, as comissões de patronato, a assistência social, a beneficência das Misericórdias que o Constitucionalismo converteu em focos políticos, são elementos cujo dinamismo pode ser contido e disciplinado por normas de interesses locais ou regionais.
Aos que receiam pela nossa temeridade e que, ignorantes ou hipócritas, vão rejeitar as bases em que a nossa construção assenta com fundamento de que nenhum país a perfilhou - respondemos que em nenhum outro a instituição do município foi mais radicada do que na Espanha e que cada país deve procurar no seu passado os dados do seu problema.
Se o Constitucionalismo faliu tristemente e as tendências da República, na doutrina e nos factos, não fizeram senão agravar uma velha doença - que nos resta senão repudiar todas as importações de sistemas e ideias que contrariem a nossa índole ou favoreçam os nossos defeitos?
Se no passado alguma vez se manteve o equilíbrio entre o poder central e as organizações locais; se a equação dos interesses não permaneceu, procuremos as causas perturbadoras para lhes atribuir a anarquia e o tumulto que nos lançaram na presente crise.
Em poucas palavras pode enunciar-se a tendência do nosso intuito doutrinário: defesa da ditadura do poder central, reconhecimento da diferenciação regionalista e foros concelhios.
A Democracia, sob pena de se falsear, é a negação destes três elementos conjugados em que só é soberana a parte do povo que trabalha e chegou a adquirir a consciência do interesse da sua classe ou localidade.
Os condutores do povo sem profissão conhecida, os políticos de ofício, os aventureiros estariam na verdade deslocados e eram necessariamente repelidos por uma rigorosa eliminação.
O município e o poder pessoal de um Monarca - Caesar confueros, na conhecida expressão de um intelectual da monarquia francesa - são os elementos extremos de uma fórmula tradicional e progressiva. O valor de cada um deles e os dados subsidiários por que a fórmula se justifica e esclarece, serão deduzidos na doutrinação desta Revista [Nação Portuguesa - Revista de filosofia política], que a outro fim ela não vem a público.
E para terminar, peço ainda a Herculano algumas palavras que, se algum dia foram uma expansão de vidente, ja adquiriram hoje o valor de um lema de manifesta atualidade:
«Restaurada pelos instintos de liberdade e pelas conveniências da organização política, posto que alterada no meio das fases por que a Espanha passou, esta instituição, que, para nos servirmos da frase de um escritor moderno, parece ter saído diretamente das mãos de Deus, em parte nenhuma, talvez, durante a idade media, teve mais influencia no progresso da sociedade, foi mais enérgica e vivaz do que em Portugal.
Grandes destinos lhe estão porventura reservados no porvir: ao menos é dela que esperamos a regeneração do nosso país, quando de todo se rasgar o véu, já tão raro, das ilusões deste século. O estudo do município, nas origens dele, nas suas modificações, na sua significação como elemento político, deve ter para a geração atual subido valor histórico, e muito mais o terá algum dia, quando a experiência tiver demonstrado a necessidade de restaurar esse esquecido, mas indispensável elemento de toda a boa organização social.» (História de Portugal, vol. IV, p. 3-4)
Herculano indicou-nos o caminho e é tempo de seguir-lhe os conselhos.
Abril de 1914.
Hipólito Raposo.
[negritos acrescentados]
"A voz do profeta", Nação Portuguesa, nº 2, Maio de 1914, pp. 33-37.