As velhas liberdades e a nova Liberdade
Adriano Xavier Cordeiro
Pois a hora angustiosa que atravessamos não é, como superficialmente pode parecer, determinada pela crise de um regime, mas sim pela crise da própria Nacionalidade. Só poderemos resolvê-la, se ainda é tempo, nacionalizando-nos.
...
... é a essência, a fecunda essência dessa instituição tão nossa [o município], que é preciso ir buscar à Tradição, para a adaptar, embora por um processo evolutivo e lento, às exigências da vida atual.
"Reformar para conservar", — era a lúcida fórmula de um homem lúcido.
- Xavier Cordeiro
...
... é a essência, a fecunda essência dessa instituição tão nossa [o município], que é preciso ir buscar à Tradição, para a adaptar, embora por um processo evolutivo e lento, às exigências da vida atual.
"Reformar para conservar", — era a lúcida fórmula de um homem lúcido.
- Xavier Cordeiro
Vai já decorrido um século depois que um vento malfazejo trouxe até nós os ecos sinistros da Revolução.
As hostes napoleónicas, na sua marcha devastadora, tudo destruíram ou profanaram: - os campos, as cidades, os templos, os túmulos e até uns restos, que ainda por cá havia, de uma já apagada e incerta Tradição Nacional.
Dir-se-ia que a horda brutal, violando e profanando os túmulos, deles arrancou e dispersou, não só as cinzas dos nossos maiores, mas também o Espírito do Passado, que nesses sepulcros se continha.
Desde então, a única aspiração nacional dos portugueses passou a ser... imitar os franceses.
Foi assim, que logo no nefasto ano de 20, fizemos também a nossa revolução e, de seguida, importámos da França uma constituição que, na frase de Herculano, "era pouco mais ou menos republicana, mas inteiramente inadequada ao país."
Atacou-nos a febre do galicismo: — desde as leis até ao corte do fato, desde os costumes até ao feitio das botas e à forma do chapéu (foi então que começou a usar-se o chapéu alto revolucionário) — tudo passou a fazer-se pelo modelo francês.
E tanto assim, que a única coisa verdadeiramente portuguesa que se fez, durante todo o agitado período de gestação intermitente do Constitucionalismo — as Cortes de Lisboa, convocadas por D. Miguel - foram banidas da historia das escolas, como banido foi o Rei que as convocou, procurando assim, riscar-se da Historia, aquele facto e este Rei, como se realmente não existissem !
Passámos, pois, a ser um povo traduzido.
Todo o elemento tradicional se desprezou e desde então, jamais as nossas leis, a nossa organização político-administrativa, deixaram de andar em guerra aberta com a Tradição, com a Historia, com as condições do meio e tendências étnicas.
Ignorantes do Passado Nacional, revelado à mocidade escolar, através de uma historia vilmente falsificada, os portugueses, desde a definitiva invasão da Filosofia Revolucionária passaram a agitar toda a sua vida e atividade em torno de uma ideia fixa e obsidiante: — saber o que se passa em França.
De lá importámos a organização política e administrativa, com todos os seus defeitos de origem, agravados entre nós pelo inadequado da transplantação; e nas nossas assembleias parlamentares ou populares, não mais deixou de se reproduzir, com uma inconsciente subserviência, tudo quanto se declamou na França revolucionaria de 93.
Com o património de abstrações legado pela Revolução, julgam-se os homens do nosso tempo definitivamente couraçados contra todas as prepotências.
Proclamados os Direitos do Homem, outorgado o Contracto Social, imposta dogmaticamente a trilogia "Liberdade, Fraternidade e Igualdade", substituída a velha formula do Direito Divino dos reis, pela da Soberania Popular, aniquilado o poder real, ou pela superveniência das repúblicas, ou ainda, dentro das monarquias constitucionais, pela máxima "o Rei reina mas não governa" — supôs o homem de hoje ter atingido as culminâncias da felicidade social.
E desta série de ficções não o demovem nem a dura lição da História, nem as inexoráveis demonstrações da experiência, nem a análise crítica de todas essas mentiras convencionais.
O facto explica-se por um cómodo misoneísmo, pela repulsa por tudo quanto é novo e importe a substituição de uma ideia preconcebida e tornada maquinal, por outra que tenha de ser gerada por um esforço consciente. Todo o esforço é doloroso e o egoísmo humano afasta, instintivamente, a dor.
E é assim que muitos ainda (felizmente já não são todos) se agarram a essas vagas concepções que lhes foram incutidas desde o berço e em cuja análise nunca puseram mais esforço inteligente, do que nas palavras de qualquer oração decorada desde a infância, ou nas redondilhas da canção familiar com que lhes embalaram os primeiros sonos.
As hostes napoleónicas, na sua marcha devastadora, tudo destruíram ou profanaram: - os campos, as cidades, os templos, os túmulos e até uns restos, que ainda por cá havia, de uma já apagada e incerta Tradição Nacional.
Dir-se-ia que a horda brutal, violando e profanando os túmulos, deles arrancou e dispersou, não só as cinzas dos nossos maiores, mas também o Espírito do Passado, que nesses sepulcros se continha.
Desde então, a única aspiração nacional dos portugueses passou a ser... imitar os franceses.
Foi assim, que logo no nefasto ano de 20, fizemos também a nossa revolução e, de seguida, importámos da França uma constituição que, na frase de Herculano, "era pouco mais ou menos republicana, mas inteiramente inadequada ao país."
Atacou-nos a febre do galicismo: — desde as leis até ao corte do fato, desde os costumes até ao feitio das botas e à forma do chapéu (foi então que começou a usar-se o chapéu alto revolucionário) — tudo passou a fazer-se pelo modelo francês.
E tanto assim, que a única coisa verdadeiramente portuguesa que se fez, durante todo o agitado período de gestação intermitente do Constitucionalismo — as Cortes de Lisboa, convocadas por D. Miguel - foram banidas da historia das escolas, como banido foi o Rei que as convocou, procurando assim, riscar-se da Historia, aquele facto e este Rei, como se realmente não existissem !
Passámos, pois, a ser um povo traduzido.
Todo o elemento tradicional se desprezou e desde então, jamais as nossas leis, a nossa organização político-administrativa, deixaram de andar em guerra aberta com a Tradição, com a Historia, com as condições do meio e tendências étnicas.
Ignorantes do Passado Nacional, revelado à mocidade escolar, através de uma historia vilmente falsificada, os portugueses, desde a definitiva invasão da Filosofia Revolucionária passaram a agitar toda a sua vida e atividade em torno de uma ideia fixa e obsidiante: — saber o que se passa em França.
De lá importámos a organização política e administrativa, com todos os seus defeitos de origem, agravados entre nós pelo inadequado da transplantação; e nas nossas assembleias parlamentares ou populares, não mais deixou de se reproduzir, com uma inconsciente subserviência, tudo quanto se declamou na França revolucionaria de 93.
Com o património de abstrações legado pela Revolução, julgam-se os homens do nosso tempo definitivamente couraçados contra todas as prepotências.
Proclamados os Direitos do Homem, outorgado o Contracto Social, imposta dogmaticamente a trilogia "Liberdade, Fraternidade e Igualdade", substituída a velha formula do Direito Divino dos reis, pela da Soberania Popular, aniquilado o poder real, ou pela superveniência das repúblicas, ou ainda, dentro das monarquias constitucionais, pela máxima "o Rei reina mas não governa" — supôs o homem de hoje ter atingido as culminâncias da felicidade social.
E desta série de ficções não o demovem nem a dura lição da História, nem as inexoráveis demonstrações da experiência, nem a análise crítica de todas essas mentiras convencionais.
O facto explica-se por um cómodo misoneísmo, pela repulsa por tudo quanto é novo e importe a substituição de uma ideia preconcebida e tornada maquinal, por outra que tenha de ser gerada por um esforço consciente. Todo o esforço é doloroso e o egoísmo humano afasta, instintivamente, a dor.
E é assim que muitos ainda (felizmente já não são todos) se agarram a essas vagas concepções que lhes foram incutidas desde o berço e em cuja análise nunca puseram mais esforço inteligente, do que nas palavras de qualquer oração decorada desde a infância, ou nas redondilhas da canção familiar com que lhes embalaram os primeiros sonos.
*
O grande poeta Afonso Lopes Vieira, definiu o carácter do povo português, nestes versos admiráveis, que parecem destinados a servir-nos de lápide tumular:
Fui dado à luz em Terra Portuguesa,
Sou d'um Povo de Heróis que canta o Fado.
É este, realmente, todo o nosso bem e todo o nosso mal.
Desde que as naus saídas das praias do Restelo aproaram à Aventura, em demanda de Preste João, o Povo Português passou a ser um povo de heróis que canta o fado.
O sonho do Oriente foi o nosso primeiro messianismo.
E desde então, todo o esforço ingente dos fundadores da Nacionalidade, toda a memória do Passado se foi, pouco a pouco, afundando nas águas do Mar Tenebroso.
Pois a hora angustiosa que atravessamos não é, como superficialmente pode parecer, determinada pela crise de um regime, mas sim pela crise da própria Nacionalidade.
Só poderemos resolvê-la, se ainda é tempo, nacionalizando-nos.
Para isso, é preciso retroceder no caminho errado por que nos transviámos, e ir buscar ao Passado a lição que ele nos fornece.
Não é o Passado da Epopeia que precisamos de ressurgir, pois que hoje já nada temos a esperar do reino maravilhoso de Preste João: — é outro Passado mais remoto, mais esquecido, mas mais fecundo em obra construtiva.
É essa admirável era de bom-senso e de perseverança, que conduziu a Nação à plenitude de força e de coesão que tornou possíveis os grandes cometimentos fatais da Epopeia.
É essa época prodigiosa em que, ao passo que se conquistava a terra, palmo a palmo, a Nação se organizava tão fortemente, que pode resistir aos embates e aos desvarios de uns poucos de séculos.
É, enfim, essa época em que a organização municipal, atingiu a sus plena florescência e pureza.
O regresso à tradição municipalista não consiste - ninguém o poderá supor - em ir exumar dos amarelecidos pergaminhos do século XIII, os velhos forais, para os outorgar aos concelhos de hoje, tais como foram concebidos: — com o seu latim bárbaro, as suas bizarras noções de direito público, civil e penal e a sua diversidade de privilégios para ricos-homens, infanções, cavaleiros, peões, jugadeiros e homens de fóra-parte.
Alguns séculos decorreram já sobre esses ingénuos mas admiráveis códigos, e hoje as condições da vida social são muito diversas.
Mas é a essência, a fecunda essência dessa instituição tão nossa, que é preciso ir buscar à Tradição, para a adaptar, embora por um processo evolutivo e lento, às exigências da vida atual.
"Reformar para conservar", — era a lúcida fórmula de um homem lúcido.
Pois seja essa, também, a nossa fórmula.
Fui dado à luz em Terra Portuguesa,
Sou d'um Povo de Heróis que canta o Fado.
É este, realmente, todo o nosso bem e todo o nosso mal.
Desde que as naus saídas das praias do Restelo aproaram à Aventura, em demanda de Preste João, o Povo Português passou a ser um povo de heróis que canta o fado.
O sonho do Oriente foi o nosso primeiro messianismo.
E desde então, todo o esforço ingente dos fundadores da Nacionalidade, toda a memória do Passado se foi, pouco a pouco, afundando nas águas do Mar Tenebroso.
Pois a hora angustiosa que atravessamos não é, como superficialmente pode parecer, determinada pela crise de um regime, mas sim pela crise da própria Nacionalidade.
Só poderemos resolvê-la, se ainda é tempo, nacionalizando-nos.
Para isso, é preciso retroceder no caminho errado por que nos transviámos, e ir buscar ao Passado a lição que ele nos fornece.
Não é o Passado da Epopeia que precisamos de ressurgir, pois que hoje já nada temos a esperar do reino maravilhoso de Preste João: — é outro Passado mais remoto, mais esquecido, mas mais fecundo em obra construtiva.
É essa admirável era de bom-senso e de perseverança, que conduziu a Nação à plenitude de força e de coesão que tornou possíveis os grandes cometimentos fatais da Epopeia.
É essa época prodigiosa em que, ao passo que se conquistava a terra, palmo a palmo, a Nação se organizava tão fortemente, que pode resistir aos embates e aos desvarios de uns poucos de séculos.
É, enfim, essa época em que a organização municipal, atingiu a sus plena florescência e pureza.
O regresso à tradição municipalista não consiste - ninguém o poderá supor - em ir exumar dos amarelecidos pergaminhos do século XIII, os velhos forais, para os outorgar aos concelhos de hoje, tais como foram concebidos: — com o seu latim bárbaro, as suas bizarras noções de direito público, civil e penal e a sua diversidade de privilégios para ricos-homens, infanções, cavaleiros, peões, jugadeiros e homens de fóra-parte.
Alguns séculos decorreram já sobre esses ingénuos mas admiráveis códigos, e hoje as condições da vida social são muito diversas.
Mas é a essência, a fecunda essência dessa instituição tão nossa, que é preciso ir buscar à Tradição, para a adaptar, embora por um processo evolutivo e lento, às exigências da vida atual.
"Reformar para conservar", — era a lúcida fórmula de um homem lúcido.
Pois seja essa, também, a nossa fórmula.
* * *
Quem nunca se deu ao aliás grato trabalho de volver os olhos ao Passado e de colher os ensinamentos que ele nos oferece supõe que as garantias individuais e coletivas consignadas nos modernos códigos são conquista da Revolução Francesa, a cujos princípios filosóficos, muitos julgam, ainda, dever a alforria da escravidão que pegulava [atava / prendia] os povos à tirania dos reis e dos poderosos.
É um erro crasso.
"Nos concelhos primitivos, diz Herculano, estão em gérmen ou desenvolvidas até certo ponto, mas efectivas e aplicadas na prática, boa parte das instituições modernamente obtidas à custa de torrentes de sangue e de sacrifícios custosos. Ainda mal que, frequentemente, a conquista não passa de uma ilusão seguida de cruéis desenganos."
A diferença está em que, como nota o Historiador, na instituição municipal, as liberdades individuais e coletivas são efectivas e aplicadas na prática, ao passo que a hipocrisia ou a inconsciência dos tempos modernos as confiou a meras abstrações.
No município, essas liberdades eram eficazmente garantidas pela irradiação da vida política, pela diferenciação regionalista, pela força organizada dos grémios de vilãos, pela ação coordenadora e permanente do Rei, que a própria organização tornava inacessível às influencias ou às pressões das clientelas políticas: — enquanto que, nos tempos modernos, à irradiação da vida política e administrativa substituiu-se a centralização; à diferenciação regionalista contrapôs-se a igualdade, a absoluta sujeição às regras gerais; à agremiação organizada e forte dos cidadãos sucedeu, como unidade política, o indivíduo isolado, defendido apenas pela força teórica dos seus direitos originários e imanentes; e a ação coordenadora e permanente do Rei foi substituída pela influencia desordenada e variável dos partidos políticos.
Onde havia fórmulas práticas e positivas, erigiram-se ficções. E assim, as velhas liberdades coletivas, cedendo lugar ao abstrato princípio da Liberdade individual, de todo acabaram de se perder.
Não eram uniformes, mas suas disposições, os forais e costumes por que se regiam os concelhos, nos primeiros séculos da Monarquia; bem ao contrario — e nisso reside uma das grandes vantagens da instituição - era imensa a sua diversidade.
A Idade Média, com uma visão prática que hoje nos falta, foi uma época essencialmente avessa às regras gerais.
Os vilãos de cada concelho trataram de se organizar do modo mais acomodado às condições locais e de aí tiravam principalmente a sua força.
No entanto, há certos princípios, determinadas instituições que, embora expressas por formas variáveis, eram, fundamentalmente, comuns à maioria dos concelhos, sobretudo daqueles que haviam atingido a plenitude da vida municipal.
É desses princípios, que constituíam, por assim dizer, o núcleo do direito publico municipal, que este artigo procurará dar uma sucinta ideia. E se esta rápida digressão pelo Passado conseguir despertar a curiosidade dos que, porventura, o não conheçam, para um mais detido estudo da nossa velha organização municipal, terá conseguido o único fim que se propõe.
É um erro crasso.
"Nos concelhos primitivos, diz Herculano, estão em gérmen ou desenvolvidas até certo ponto, mas efectivas e aplicadas na prática, boa parte das instituições modernamente obtidas à custa de torrentes de sangue e de sacrifícios custosos. Ainda mal que, frequentemente, a conquista não passa de uma ilusão seguida de cruéis desenganos."
A diferença está em que, como nota o Historiador, na instituição municipal, as liberdades individuais e coletivas são efectivas e aplicadas na prática, ao passo que a hipocrisia ou a inconsciência dos tempos modernos as confiou a meras abstrações.
No município, essas liberdades eram eficazmente garantidas pela irradiação da vida política, pela diferenciação regionalista, pela força organizada dos grémios de vilãos, pela ação coordenadora e permanente do Rei, que a própria organização tornava inacessível às influencias ou às pressões das clientelas políticas: — enquanto que, nos tempos modernos, à irradiação da vida política e administrativa substituiu-se a centralização; à diferenciação regionalista contrapôs-se a igualdade, a absoluta sujeição às regras gerais; à agremiação organizada e forte dos cidadãos sucedeu, como unidade política, o indivíduo isolado, defendido apenas pela força teórica dos seus direitos originários e imanentes; e a ação coordenadora e permanente do Rei foi substituída pela influencia desordenada e variável dos partidos políticos.
Onde havia fórmulas práticas e positivas, erigiram-se ficções. E assim, as velhas liberdades coletivas, cedendo lugar ao abstrato princípio da Liberdade individual, de todo acabaram de se perder.
Não eram uniformes, mas suas disposições, os forais e costumes por que se regiam os concelhos, nos primeiros séculos da Monarquia; bem ao contrario — e nisso reside uma das grandes vantagens da instituição - era imensa a sua diversidade.
A Idade Média, com uma visão prática que hoje nos falta, foi uma época essencialmente avessa às regras gerais.
Os vilãos de cada concelho trataram de se organizar do modo mais acomodado às condições locais e de aí tiravam principalmente a sua força.
No entanto, há certos princípios, determinadas instituições que, embora expressas por formas variáveis, eram, fundamentalmente, comuns à maioria dos concelhos, sobretudo daqueles que haviam atingido a plenitude da vida municipal.
É desses princípios, que constituíam, por assim dizer, o núcleo do direito publico municipal, que este artigo procurará dar uma sucinta ideia. E se esta rápida digressão pelo Passado conseguir despertar a curiosidade dos que, porventura, o não conheçam, para um mais detido estudo da nossa velha organização municipal, terá conseguido o único fim que se propõe.
A independência do poder judicial é hoje uma das mentiras convencionais em que fingimos acreditar e que tem sido sucessivamente consignada em todas as constituições que em Portugal se têm promulgado.
No entanto, jamais essa independência foi garantida, no período constitucional, pela forma prática que os forais procuravam assegurar-lhe.
Aí, apesar da fase semi-barbara da ciência do direito e das fórmulas judiciais, a independência da justiça era assegurada por um conjunto de disposições de carácter positivo e eficaz, e não pela simples enunciação do princípio, como se faz modernamente.
A magistratura era exercida, em cada concelho, por dois juizes (alvasis ou alcaides) eleitos pelos homens-bons ou os chefes de família. Estes magistrados tendo em certos casos, como acessores, os próprios homens-bons que os elegiam, distribuíam a justiça, julgando ospleitos de todos os vizinhos, fosse qual fosse a condição social dos litigantes.
Nem os nobres orgulhosos, nem os arrogantes infanções podiam eximir-se à ação da justiça municipal.
A seguinte disposição do foral de Lisboa era frequente na maioria dos forais e costumes dos outros concelhos:
«Não haja na vossa vila pessoa tão privilegiada que possa sustentar o mal que tiver feito a qualquer dos seus vizinhos e eximir-se de lhe dar reparação pelo alcaide e pelos alvazis.»
[Este e os demais textos de forais e documentos são transcritos da História de Portugal de Alexandre Herculano]
Algumas vezes, é certo, pretenderam os reis intervir na escolha dos alvazis, mas logo o concelho levantava o seu protesto, e a prorrogativa municipal era acatada e mantida.
Foi o que sucedia, por exemplo, com os vizinhos de Coimbra, que tendo levado às Cortes o seu agravo contra a usurpação que o poder real pretendia fazer-lhes, obtiveram esta resposta:
«Quanto às queixas relativas aos alvazis, que El-Rei pretende nomear só por si, responde ele que o concelho elege os seus alvazis, como era de uso em tempo de seu pai e de seu avô.»
Em alguns concelhos intervinham na administração da justiça, com os juízes municipais e os homens-bons, o alcaide ou o judex, funcionários de nomeação regia; mas essa intervenção era muito limitada, como não podia deixar de ser, a de um individuo isolado no meio de um grémio de homens ligados pelo interesse comum e pelos fortes laços da solidariedade municipal. E esta influência dos delegados do poder central, na administração da justiça, é muitas vezes restringida por disposições como esta:
"o alcaide não é juiz e os alvazis sentenciarão o pleito"
A jurisdição da magistratura duunviral dos alvazis era tão ampla que a ela estavam subordinadas as causas do fisco, o que oferecia aos vizinhos do município uma forte garantia, contra a violência dos exatores.
Os ovençais (designação genérica dos funcionários fiscais) não podiam efetuar qualquer penhora, sem prévio mandado dos alvazis.
Eram estes quem resolvia sobre a procedência ou improcedência da execução, e das suas sentenças não tinham recurso algum os agentes do fisco.
Em matéria tributária, eram tão grandes as regalias concedidas aos povos, contra as exações fiscais, que era vulgar a disposição-de que, quando as jugadas (espécie de contribuição predial) não fossem exigidas até ao fim do ano, prescrevia a responsabilidade do contribuinte, quanto ao tributo que, dentro do prazo improrrogável, não havia sido cobrado.
A estas salutares disposições substituíram os liberais tempos modernos os juízos de execução fiscal, com as suas leis e regulamentos ferinos, e em que a Fazenda é, simultaneamente, juiz e parte, contra o mísero contribuinte.
A independência, digamos mesmo, a majestade da justiça era assegurada por um conjunto de disposições de efeito pratico, embora de forma por vezes rude, como era próprio daqueles tempos.
Assim, por exemplo, quem ousasse bater em um magistrado municipal, em razão dos seus atos judiciais, sofria duras penas que variavam, segundo os diversos forais, de uma pesada multa até à mão-cortada e até, em certos casos, à pena capital.
E as simples demonstrações de malevolência e desrespeito aos alvazis importavam, em diversos concelhos, a obrigação de fazer o protesto publico e solene de nunca os ofender, sendo os que se recusavam a esta reparação, multados todos os domingos em dez morabitinos, até ceder.
Era ao concelho — alcaide, alvazis e homens-bons — que pertencia o exercício da função legislativa e a decisão das questões de interesse municipal.
Promulgava as posturas ou degredos, como então se dizia, e modificava-as conforme as necessidades do concelho; e todos os assuntos de interesse vital para o município eram submetidos à decisão da assembleia municipal.
Seria longo exemplificar aqui todas as liberdades de que gozavam os vizinhos dos primitivos concelhos e demonstrar, pela transcrição dos textos, a forma por que eram consignadas nos forais.
A imunidade das pessoas, a rigorosa proibição do sequestro sem precedência de mandado judicial, a admissão obrigatória de fiança, salvo em casos muito excecionais, a inviolabilidade do lar domestico, o respeito da família e da propriedade, todas as garantias, enfim, que hoje consideramos atributo irrefragável da dignidade humana, já no alvorecer do século XIII se encontravam expressas e garantidas nesses ingénuos mas admiráveis códigos de direito público... que os Imortais Princípios ainda não tinham iluminado.
Com uma tal construção político-administrativa, com uma tão forte coesão de interesses que ligava os vizinhos de cada concelho pelos laços de uma inexpugnável solidariedade municipal, todas as investidas do despotismo, mesmo nessas eras semi-bárbaras, se quebravam, como um ferro frágil contra uma forte armadura.
Era a enorme resistência do grémio organizado, cioso dos seus direitos coletivos, e não a solene mentira dos direitos individuais e imanentes, eram as liberdades e não a Liberdade, que constituíam o sólido baluarte de defesa comum.
Pois era o Rei absoluto, esse espetro, que os homens de hoje tanto temem, na sua inconsciência, quem assim organizava o Povo e o habilitava a resistir às violências das classes privilegiadas.
E eram esses reis tiranos os primeiros a
[continua]
No entanto, jamais essa independência foi garantida, no período constitucional, pela forma prática que os forais procuravam assegurar-lhe.
Aí, apesar da fase semi-barbara da ciência do direito e das fórmulas judiciais, a independência da justiça era assegurada por um conjunto de disposições de carácter positivo e eficaz, e não pela simples enunciação do princípio, como se faz modernamente.
A magistratura era exercida, em cada concelho, por dois juizes (alvasis ou alcaides) eleitos pelos homens-bons ou os chefes de família. Estes magistrados tendo em certos casos, como acessores, os próprios homens-bons que os elegiam, distribuíam a justiça, julgando ospleitos de todos os vizinhos, fosse qual fosse a condição social dos litigantes.
Nem os nobres orgulhosos, nem os arrogantes infanções podiam eximir-se à ação da justiça municipal.
A seguinte disposição do foral de Lisboa era frequente na maioria dos forais e costumes dos outros concelhos:
«Não haja na vossa vila pessoa tão privilegiada que possa sustentar o mal que tiver feito a qualquer dos seus vizinhos e eximir-se de lhe dar reparação pelo alcaide e pelos alvazis.»
[Este e os demais textos de forais e documentos são transcritos da História de Portugal de Alexandre Herculano]
Algumas vezes, é certo, pretenderam os reis intervir na escolha dos alvazis, mas logo o concelho levantava o seu protesto, e a prorrogativa municipal era acatada e mantida.
Foi o que sucedia, por exemplo, com os vizinhos de Coimbra, que tendo levado às Cortes o seu agravo contra a usurpação que o poder real pretendia fazer-lhes, obtiveram esta resposta:
«Quanto às queixas relativas aos alvazis, que El-Rei pretende nomear só por si, responde ele que o concelho elege os seus alvazis, como era de uso em tempo de seu pai e de seu avô.»
Em alguns concelhos intervinham na administração da justiça, com os juízes municipais e os homens-bons, o alcaide ou o judex, funcionários de nomeação regia; mas essa intervenção era muito limitada, como não podia deixar de ser, a de um individuo isolado no meio de um grémio de homens ligados pelo interesse comum e pelos fortes laços da solidariedade municipal. E esta influência dos delegados do poder central, na administração da justiça, é muitas vezes restringida por disposições como esta:
"o alcaide não é juiz e os alvazis sentenciarão o pleito"
A jurisdição da magistratura duunviral dos alvazis era tão ampla que a ela estavam subordinadas as causas do fisco, o que oferecia aos vizinhos do município uma forte garantia, contra a violência dos exatores.
Os ovençais (designação genérica dos funcionários fiscais) não podiam efetuar qualquer penhora, sem prévio mandado dos alvazis.
Eram estes quem resolvia sobre a procedência ou improcedência da execução, e das suas sentenças não tinham recurso algum os agentes do fisco.
Em matéria tributária, eram tão grandes as regalias concedidas aos povos, contra as exações fiscais, que era vulgar a disposição-de que, quando as jugadas (espécie de contribuição predial) não fossem exigidas até ao fim do ano, prescrevia a responsabilidade do contribuinte, quanto ao tributo que, dentro do prazo improrrogável, não havia sido cobrado.
A estas salutares disposições substituíram os liberais tempos modernos os juízos de execução fiscal, com as suas leis e regulamentos ferinos, e em que a Fazenda é, simultaneamente, juiz e parte, contra o mísero contribuinte.
A independência, digamos mesmo, a majestade da justiça era assegurada por um conjunto de disposições de efeito pratico, embora de forma por vezes rude, como era próprio daqueles tempos.
Assim, por exemplo, quem ousasse bater em um magistrado municipal, em razão dos seus atos judiciais, sofria duras penas que variavam, segundo os diversos forais, de uma pesada multa até à mão-cortada e até, em certos casos, à pena capital.
E as simples demonstrações de malevolência e desrespeito aos alvazis importavam, em diversos concelhos, a obrigação de fazer o protesto publico e solene de nunca os ofender, sendo os que se recusavam a esta reparação, multados todos os domingos em dez morabitinos, até ceder.
Era ao concelho — alcaide, alvazis e homens-bons — que pertencia o exercício da função legislativa e a decisão das questões de interesse municipal.
Promulgava as posturas ou degredos, como então se dizia, e modificava-as conforme as necessidades do concelho; e todos os assuntos de interesse vital para o município eram submetidos à decisão da assembleia municipal.
Seria longo exemplificar aqui todas as liberdades de que gozavam os vizinhos dos primitivos concelhos e demonstrar, pela transcrição dos textos, a forma por que eram consignadas nos forais.
A imunidade das pessoas, a rigorosa proibição do sequestro sem precedência de mandado judicial, a admissão obrigatória de fiança, salvo em casos muito excecionais, a inviolabilidade do lar domestico, o respeito da família e da propriedade, todas as garantias, enfim, que hoje consideramos atributo irrefragável da dignidade humana, já no alvorecer do século XIII se encontravam expressas e garantidas nesses ingénuos mas admiráveis códigos de direito público... que os Imortais Princípios ainda não tinham iluminado.
Com uma tal construção político-administrativa, com uma tão forte coesão de interesses que ligava os vizinhos de cada concelho pelos laços de uma inexpugnável solidariedade municipal, todas as investidas do despotismo, mesmo nessas eras semi-bárbaras, se quebravam, como um ferro frágil contra uma forte armadura.
Era a enorme resistência do grémio organizado, cioso dos seus direitos coletivos, e não a solene mentira dos direitos individuais e imanentes, eram as liberdades e não a Liberdade, que constituíam o sólido baluarte de defesa comum.
Pois era o Rei absoluto, esse espetro, que os homens de hoje tanto temem, na sua inconsciência, quem assim organizava o Povo e o habilitava a resistir às violências das classes privilegiadas.
E eram esses reis tiranos os primeiros a
[continua]
"As velhas liberdades e a nova Liberdade", Nação Portuguesa, nº 3, Junho de 1914, pp. 86-91.