Natureza da Representação
Hipólito Raposo
Hipólito Raposo defende aqui uma representação integral, isto é, que abranja todos os interesses e exprima os direitos e aspirações de todos os trabalhadores. Critica a representação política da época, muito semelhante à actual, baseada em partidos ideológicos e no sufrágio universal. Raposo considera-a uma mentira ou, na melhor das hipóteses, uma utopia - os incompetentes não podem escolher os competentes. A função legislativa geral deveria ser atribuída a uma estrutura de representação baseada em classes e interesses, onde cada grupo elegeria seus próprios representantes técnicos e idóneos. Segundo Raposo, a função de direcção política deveria pertencer ao rei e ao seu governo, assistido pelo Conselho de Estado e pelos agentes diplomáticos. Em busca da referida representação integral dos interesses, de base municipal e sindical, os integralistas colaboraram depois com Sidónio Pais no seu projecto de "República Nova" (1918) e no projecto republicano do general da Gomes da Costa (1926). De 1932-33 em diante, exprimiram forte oposição ao regime de partido único e corporativismo de Estado instalado sob a direcção de Oliveira Salazar. - J. M. Q.
A moderna representação tem de ser integral, abranger todos os interesses, exprimir os direitos e aspirações de quantos trabalham em qualquer ramo de produção ou actividade.
Aqui está em poucas palavras, o que nós pretendemos substituir e opor à mentira da representação política de agora; bastando este simples enunciado para demonstrar aos amigos do progresso, que nós não queremos o regresso ao passado: muito ao contrário, pedimos à experiência do que foi, as normas seguras do que deve ser.
Aqui está em poucas palavras, o que nós pretendemos substituir e opor à mentira da representação política de agora; bastando este simples enunciado para demonstrar aos amigos do progresso, que nós não queremos o regresso ao passado: muito ao contrário, pedimos à experiência do que foi, as normas seguras do que deve ser.
Um dos maiores perigos a prevenir na exposição e defesa da Monarquia Integralista, é a confusão desta forma política com o aspeto, odiosamente exagerado, dos velhos despotismos reais.
O Liberalismo de vinte, imposto à Nação contra sua vontade expressa (nas Cortes de 28), procurou no descredito do antigo Regime, à falta de melhor razão, o mais seguro ponto de apoio para o seu triunfo.
Engrandecer alguns defeitos do sistema, inventar outros, era na verdade tarefa mais fácil do que defender à face da razão, a mentira, então ingénua e hoje cínica, da soberania do povo, manifestada no milagre de alguns milhares de listas de eleitores analfabetos.
Através de oitenta anos de Constitucionalismo, raras vezes se procurou fazer justiça ao Regime anterior, e toda a visão das épocas históricas aparecia eriçada de forcas e punhais, reis tiranos matando a capricho, ou monarcas foliões mandando açoitar a plebe nas praças, para gaudio do séquito e da arraia miúda em delírio.
Ainda hoje, a maior parte dos homens cultos de Portugal, cujo espírito se formou no parcialismo já inconsciente das gazetas e das escolas, falam dos períodos absolutistas da Monarquia Portuguesa, como de eras abomináveis, de crueldade e despotismo!
Para além de 34 — a forca e o cacete!
E toda a ciência da doutrina política anterior à Carta, em duas palavras usualmente se resume a crítica definitiva à ordem social, mantida com firmeza pela autoridade regia, ordem agora entregue à instabilidade da Democracia, por sua natureza indisciplinada e tumultuária.
Com o mesmo espírito de tolerância e verdade com que o Liberalismo excluiu dos compêndios de história das escolas, na série dos soberanos de Portugal, o nome de El-Rei Dom Miguel I que as Cortes Gerais da Nação legitimamente aclamaram e neste país reinou cinco anos, pretendem os monárquicos que ainda hoje se dizem liberais (À espera de que o povo se instrua para poder entrar no paraíso da República), que só na base democrática a liberdade, a justiça e o bem-comum podem encontrar inteira realização.
Quando esta Revista [ Nação Portuguesa - Revista de filosofia política ] apareceu, de entre os artigos de apreciação ou simples referencia que lhe foram consagrados, em raríssimos pudemos ler a compreensão da nossa doutrina, ainda mesmo por parte dos jornais monárquicos que mais simpatia nos declararam.
Na imprensa republicana, escreveram-se repetidas larachas que não trouxeram surpresa a ninguém, pois de algum modo se havia de disfarçar a incompetência intelectual e a falência doutrinaria desses órgãos, diariamente reduzidos a vocabulários de injúrias, por uns quantos indivíduos, sem profissão conhecida, e que de ciências e letras saberão o suficiente para não serem considerados inofensivos analfabetos.
Assim se compreende e explica claramente que seja mais cómodo desacreditar uma doutrina do que trabalhar por combatê-la, com honestidade e competência.
E porque muito bem conhecemos até onde podem ir os adversários, nós dispensamo-nos de fazer aqui apologética, dando maior atenção e cuidado à parte expositiva da doutrina que, em verdade, ninguém dignamente atacou para que necessitemos defendê-la.
O processo e a natureza da representação na Monarquia Integralista é, sem dúvida, o aspeto que mais facilmente a acreditará na convicção de quem nos lê.
Que pretendemos nós com a especialização e consequente restrição do sufrágio?
Combater apenas em abstrato a utopia da soberania política, pelo sufrágio universal?
Seria ainda pouco. O que nós temos em vista é diferenciar funções, atribuindo-as exclusivamente aos órgãos idóneos. A nossa razão não aceita que se atribuam os mais altos direitos políticos a indivíduos que nem os mais elementares deveres cívicos podem compreender.
O corpo eleitoral, pela sua própria constituição, agora e sempre, em Portugal e na Noruega, é incompetente para se pronunciar uma, duas ou mais vezes por ano, sobre as conveniências e interesses políticos do Estado.
Aqui está o que nós combatemos com firmeza e com fé, porque julgamos uma irrisória invenção a teoria da soberania nacional declarada pelo sufrágio da multidão eleitora; o que nós nos recusamos a admitir, em nome da ciência, da verdade e do bom-senso, é a dogmática declaração dos direitos do homem que a Revolução inscreveu a vermelho de sangue no seu pendão de guerra, rompendo os liames da disciplina e subvertendo o princípio da autoridade que assim ficava à mercê dos que lhe deviam teoricamente obediência e respeito.
A deslocação deste eixo estrutural, invertendo a origem da autoridade, contribuiu na maior parte, para a desconfiança pelos agentes da ordem e favoreceu o espírito de rebeldia que caracteriza os períodos parlamentares.
Se o cidadão fez a lei com o assentimento mínimo do seu voto, ele quase se julga desobrigado de lhe obedecer pela esperança de que amanhã, apenas a seu capricho, a poderá revogar ou alterar.
Daqui à anarquia legislativa e à perturbação de todos os interesses, nem vai um passo.
Esta consequência do regime parlamentar, hoje erguida com honras de postulado sociológico em brochuras francesas, à conta de sábios ilustres, já velhos tratadistas nossos a tinham previsto e anunciado com clareza.
Um dos preceptores do Legitimismo, Faustino José da Madre de Deus, no seu recomendável opúsculo - Os Povos e os Reis, pág. 61, tinha a seguinte opinião acerca do respeito à lei que o Liberalismo inteiramente obliterou: “todos sabem que o desprezo das leis é o cunho da decadência das nações; sejam as leis quais forem, povo algum é mal governado enquanto elas se respeitam e cumprem.”
Todos os senhores que por acaso lerem estas linhas, sabem tão bem como eu, o que significa, como se maquina, de que forma é feita uma eleição.
Ninguém conhece mais descarada burla, maior desmentido à ingenuidade primitiva dos princípios.
É um rebanho, de faces duras, inerte, conduzido pelas imposições da amizade e do interesse oculto, através dos alçapões da corrupção até à boca das urnas, na nave de uma igreja.
Isso que a imprensa liberalista (republicana ou monárquica que seja) em artigos de grande efeito persuasivo, denomina a consulta ao país, como último argumento para lançar por terra uma situação política que muitas vezes não seria inteiramente má toda casa agitação de braços, esse bradar de bocas famintas que fazem tremer os ministros, tudo se reduz é repetição aperfeiçoada de idênticos processos de suborno, ora preso, ora transigência do poder com as pretensões dos influentes, ou seja a completa negação do prestigio do Governo que, por fim, sempre ganha as eleições e promete salvar a nação e o partido...
Depois de tantas provas desilusórias que o sistema tem multiplicado em toda a Europa latina e até na mais próspera democracia do mundo, os Estados Unidos da América, onde por anúncios de jornais se negociam as consciências políticas dos cidadãos (que sabem ler e têm dinheiro), custa crer que ainda defensores se atrevam a justificar tal mistificação que, não iludindo já o menos esclarecido raciocínio, ainda ofende o senso-comum pela insistência do apostolado.
Sabe-se como antigamente se dava a representação nacional em Cortes: eram as três classes, clero, nobreza e povo, que compareciam ante o Soberano para tratar dos negócios de interesse geral.
Antes da mudança de condições económicas que o progresso material das comunicações e transportes necessariamente determinou, os mais altos interesses nacionais encontravam expressão e defesa, nesses três grupos de representantes.
Era o Clero a classe preponderante, pelo prestígio da sua função religiosa e moral e pela maior cultura dos seus membros; vinha a Nobreza, portadora de privilégios conferidos diretamente ao merecimento individual ou titular de situações e foros que a tornavam o elemento coordenador na hierarquia das províncias, tanto no ponto de vista do domínio rural, como no exercício, quase exclusivo, dos cargos da autoridade civil e militar; apresentava-se o Povo dos concelhos, homens bons da campina, da serra e do mar, para zelarem diante do Rei os direitos e privilégios do seu agregado e em nome dele falarem na assembleia nacional.
A estes três aspetos, espiritual, guerreiro e económico, se reduzia, nas linhas gerais, a velha representação em Cortes. É manifesto que às condições atuais não satisfaz, nem de longe, o velho sistema representativo, nos três elementos que ficam enunciados.
Outros agrupamentos se constituíram, surgiram diversos e novos interesses e classes, funções diferentes em natureza e sentido que atualmente exigem representação nacional.
Como aconteceu em períodos sucessivos da História, modificaram-se as condições materiais, aumentando simultaneamente a população.
Alterou-se a tendência do Governo da Igreja, perdendo o aspeto político que durante séculos nela prevaleceu; a Nobreza que jamais foi uma casta cerrada, mas uma categoria social, acessível ao merecimento dos indivíduos, que a intervenção da justiça real consagrava por meio de distinções e títulos - há de aceitar, como reagentes renovadores, novos elementos de formação, estranhos à origem militar e hereditária; os concelhos, tendo completado a sua diferenciação económica, assistem à revivescência do princípio associativo, sob as epígrafes de Socialismo, Sindicalismo e diversas formas mutualistas, exprimindo a mesma necessidade que na Idade-Media determinou a constituição dos mesteres.
A moderna representação tem de ser integral, abranger todos os interesses, exprimir os direitos e aspirações de quantos trabalham em qualquer ramo de produção ou atividade.
Aqui está em poucas palavras, o que nos pretendemos substituir e opor à mentira de representação política de agora; bastando este simples enunciado para demonstrar aos amigos do progresso, que nós não queremos o regresso ao passado: muito ao contrário, pedimos à experiência do que foi, as normas seguras do que deve ser.
Não renunciamos ao presente, senão no que ele tiver de provadamente nocivo e trazemos do passado para nós, aqueles elementos orgânicos permanentes, que a miragem revolucionária deixou esquecidos e desacreditados.
Não somos nós quem recua, é o Passado que caminha até ao Presente para salvar o Futuro.
Que de uma vez para sempre fiquem esclarecidas as nossas intenções que tanta gente levianamente se entretêm a deturpar!
O Município reparte-se hoje pelos agregados administrativos das Paróquias ou Freguesias, com interesses concorrentes e às vezes divergentes na aparência. Neles tem de se assentar a base inicial da representação, porque neles aparecem diferenciados dos das famílias singulares, os primeiros interesses coletivos a reger e coordenar.
Suponhamos (e em hipóteses vai assentar a essência da restante exposição), que se trata de fazer a eleição municipal. O eleitorado da freguesia A ficou reduzido a 30 ou 40 nomes — únicos que têm capacidade económica ou intelectual para deixar presumir independência no exercício do voto. Como não há possibilidade de esses eleitores se iludirem sobre a competência dos que elegem, vista a estreiteza do lugar, na lista tripla ou quíntupla de que há de sair a Junta de Paroquia, vai também o nome do delegado da Freguesia ao Município, evitando assim outra eleição.
A Camara Municipal eleita fica constituída por tantos vereadores como são as freguesias do concelho e pelos seus melhores homens eleitos.
Se numa ou mais freguesias se tiverem constituído associações de classe, de operários, de patrões, sindicatos agrícolas ou outros quaisquer núcleos económicos de importância deverão eles ter representação na Camara respetiva, ao lado dos vereadores eleitos pelas freguesias.
Assim fica dada satisfação aos interesses do trabalho e da indústria, e garantida a defesa dos operários e trabalhadores rurais que não foram chamados a votar diretamente no delegado da Freguesia, por lhes faltar a competência e a independência para a escolha.
A Assembleia Provincial é composta de um delegado de cada Município da circunscrição; dos representantes, em número variável, das diversas associações de classe e sindicais, do clero, da instrução pública e belas-artes e dos de outras instituições a quem deva atribuir-se esse direito, de forma que todas as atividades de qualquer espécie, encontrem expressão e defesa nos seus naturais e legítimos representantes.
Da especialização já traduzida na Assembleia Provincial, nascem os delegados de cada classe ou grupo de interesses, que da Província subiriam à Assembleia Nacional ou Cortes.
Ficariam estas constituídas pelos delegados técnicos e administrativos de cada uma das Províncias e pelos representantes de interesses especiais que apenas nos grandes centros se verificam, como finanças, câmbios, empresas de navegação, alto comercio, explorações ultramarinas, etc.
Acrescentem-se a estes os delegados das associações de classe, da justiça, do exército, das camaras do trabalho e de comercio, da Universidade de Coimbra, das várias escolas superiores, dos institutos técnicos e de belas-artes, e teremos formado uma assembleia de competentes onde o Governo necessariamente encontraria os mais idóneos e interessados colaboradores para as medidas que resolvesse adotar.
Deste modo, a Assembleia Nacional, se não ficava absolutamente perfeita, deveria ser seguramente a melhor possível.
A determinação das suas atribuições não cabe na discussão deste artigo, mas elas seriam especialmente consultivas e de cooperação com o governo, por intermedio de comissões técnicas, temporárias ou permanentes.
A função deliberativa limitar-se-ia à aprovação do Orçamento e ao lançamento dos impostos gerais, quando assim fosse julgado conveniente.
Em momento algum a Assembleia Nacional tomaria decisões de caracter político, salvo nos casos duvidosos de sucessão ao Trono, de alienação de território, de declaração de guerra, se não se preferisse substituí-la por outra, com diversa organização e poderes especiais.
Como facilmente se depreende desta ligeira e incompleta exposição, pretendemos substituir a representação política, saída da inconsciência tumultuária das urnas em que os incompetentes escolhem os presumidos competentes, pela delegação das classes e dos interesses, por elementos técnicos e aptos ao bom desempenho do encargo.
Dentro de cada classe, os associados são aptos a eleger e os eleitores, em nome do seu próprio interesse, coagidos a escolher o melhor que possam e a fiscalizar a ação dos delegados a quem se confiaram.
Nestas condições, as entidades que se julgassem mal representadas, só á sua imprevidência ou precipitação poderiam atribuir a responsabilidade de tal erro.
A função política pertenceria ao Rei e ao Governo, aos agentes diplomáticos e ao Conselho de Estado, únicas entidades a quem naturalmente tal exercício deve pertencer, por terem para ele a necessária competência.
A atribuição ao Governo da função legislativa geral corresponde a uma verdade de conveniência, teórica e prática, e deriva forçosamente do descredito em que há muito caiu o regime parlamentar.
Todos sabem que a quase totalidade das medidas legislativas promulgadas nos países representativos, provieram de propostas governamentais e que a discussão, apaixonada e parcial, não faz senão tornar péssimo em lei o que era bom ou, ao menos, razoável na proposta inicial.
O parlamento sempre foi em toda a parte, um absurdo e caro instrumento de embaraçar a ação dos governos e de inutilizar competências de ministros que se vêm forçados a demissões repetidas, em nome da solidariedade política do gabinete.
A escola de todas as corrupções e ao campo de triunfo dos mais nulos ou dos mais habilidosos que tem sido o nosso parlamento, pretendemos opor uma assembleia onde não seja possível a existência do simples aventureiro político, visto que todos os que nela tivessem assento ali estariam em nome de interesses e por intermédio dos respetivos interessados.
Muito resumidamente, é esta a teoria da representação que julgamos preferível ao preconceito numérico do sufrágio universal, em que a boa Democracia se baseia.
Quem deve ser o titular da soberania nacional, isto é, em que órgão reside a personalidade da Nação para a declaração e guarda dos mais altos interesses públicos, será objeto de outro artigo, por ser assunto que merece estudo especial.
Setembro 1914.
Hipólito Raposo.
[negritos acrescentados]
O Liberalismo de vinte, imposto à Nação contra sua vontade expressa (nas Cortes de 28), procurou no descredito do antigo Regime, à falta de melhor razão, o mais seguro ponto de apoio para o seu triunfo.
Engrandecer alguns defeitos do sistema, inventar outros, era na verdade tarefa mais fácil do que defender à face da razão, a mentira, então ingénua e hoje cínica, da soberania do povo, manifestada no milagre de alguns milhares de listas de eleitores analfabetos.
Através de oitenta anos de Constitucionalismo, raras vezes se procurou fazer justiça ao Regime anterior, e toda a visão das épocas históricas aparecia eriçada de forcas e punhais, reis tiranos matando a capricho, ou monarcas foliões mandando açoitar a plebe nas praças, para gaudio do séquito e da arraia miúda em delírio.
Ainda hoje, a maior parte dos homens cultos de Portugal, cujo espírito se formou no parcialismo já inconsciente das gazetas e das escolas, falam dos períodos absolutistas da Monarquia Portuguesa, como de eras abomináveis, de crueldade e despotismo!
Para além de 34 — a forca e o cacete!
E toda a ciência da doutrina política anterior à Carta, em duas palavras usualmente se resume a crítica definitiva à ordem social, mantida com firmeza pela autoridade regia, ordem agora entregue à instabilidade da Democracia, por sua natureza indisciplinada e tumultuária.
Com o mesmo espírito de tolerância e verdade com que o Liberalismo excluiu dos compêndios de história das escolas, na série dos soberanos de Portugal, o nome de El-Rei Dom Miguel I que as Cortes Gerais da Nação legitimamente aclamaram e neste país reinou cinco anos, pretendem os monárquicos que ainda hoje se dizem liberais (À espera de que o povo se instrua para poder entrar no paraíso da República), que só na base democrática a liberdade, a justiça e o bem-comum podem encontrar inteira realização.
Quando esta Revista [ Nação Portuguesa - Revista de filosofia política ] apareceu, de entre os artigos de apreciação ou simples referencia que lhe foram consagrados, em raríssimos pudemos ler a compreensão da nossa doutrina, ainda mesmo por parte dos jornais monárquicos que mais simpatia nos declararam.
Na imprensa republicana, escreveram-se repetidas larachas que não trouxeram surpresa a ninguém, pois de algum modo se havia de disfarçar a incompetência intelectual e a falência doutrinaria desses órgãos, diariamente reduzidos a vocabulários de injúrias, por uns quantos indivíduos, sem profissão conhecida, e que de ciências e letras saberão o suficiente para não serem considerados inofensivos analfabetos.
Assim se compreende e explica claramente que seja mais cómodo desacreditar uma doutrina do que trabalhar por combatê-la, com honestidade e competência.
E porque muito bem conhecemos até onde podem ir os adversários, nós dispensamo-nos de fazer aqui apologética, dando maior atenção e cuidado à parte expositiva da doutrina que, em verdade, ninguém dignamente atacou para que necessitemos defendê-la.
O processo e a natureza da representação na Monarquia Integralista é, sem dúvida, o aspeto que mais facilmente a acreditará na convicção de quem nos lê.
Que pretendemos nós com a especialização e consequente restrição do sufrágio?
Combater apenas em abstrato a utopia da soberania política, pelo sufrágio universal?
Seria ainda pouco. O que nós temos em vista é diferenciar funções, atribuindo-as exclusivamente aos órgãos idóneos. A nossa razão não aceita que se atribuam os mais altos direitos políticos a indivíduos que nem os mais elementares deveres cívicos podem compreender.
O corpo eleitoral, pela sua própria constituição, agora e sempre, em Portugal e na Noruega, é incompetente para se pronunciar uma, duas ou mais vezes por ano, sobre as conveniências e interesses políticos do Estado.
Aqui está o que nós combatemos com firmeza e com fé, porque julgamos uma irrisória invenção a teoria da soberania nacional declarada pelo sufrágio da multidão eleitora; o que nós nos recusamos a admitir, em nome da ciência, da verdade e do bom-senso, é a dogmática declaração dos direitos do homem que a Revolução inscreveu a vermelho de sangue no seu pendão de guerra, rompendo os liames da disciplina e subvertendo o princípio da autoridade que assim ficava à mercê dos que lhe deviam teoricamente obediência e respeito.
A deslocação deste eixo estrutural, invertendo a origem da autoridade, contribuiu na maior parte, para a desconfiança pelos agentes da ordem e favoreceu o espírito de rebeldia que caracteriza os períodos parlamentares.
Se o cidadão fez a lei com o assentimento mínimo do seu voto, ele quase se julga desobrigado de lhe obedecer pela esperança de que amanhã, apenas a seu capricho, a poderá revogar ou alterar.
Daqui à anarquia legislativa e à perturbação de todos os interesses, nem vai um passo.
Esta consequência do regime parlamentar, hoje erguida com honras de postulado sociológico em brochuras francesas, à conta de sábios ilustres, já velhos tratadistas nossos a tinham previsto e anunciado com clareza.
Um dos preceptores do Legitimismo, Faustino José da Madre de Deus, no seu recomendável opúsculo - Os Povos e os Reis, pág. 61, tinha a seguinte opinião acerca do respeito à lei que o Liberalismo inteiramente obliterou: “todos sabem que o desprezo das leis é o cunho da decadência das nações; sejam as leis quais forem, povo algum é mal governado enquanto elas se respeitam e cumprem.”
Todos os senhores que por acaso lerem estas linhas, sabem tão bem como eu, o que significa, como se maquina, de que forma é feita uma eleição.
Ninguém conhece mais descarada burla, maior desmentido à ingenuidade primitiva dos princípios.
É um rebanho, de faces duras, inerte, conduzido pelas imposições da amizade e do interesse oculto, através dos alçapões da corrupção até à boca das urnas, na nave de uma igreja.
Isso que a imprensa liberalista (republicana ou monárquica que seja) em artigos de grande efeito persuasivo, denomina a consulta ao país, como último argumento para lançar por terra uma situação política que muitas vezes não seria inteiramente má toda casa agitação de braços, esse bradar de bocas famintas que fazem tremer os ministros, tudo se reduz é repetição aperfeiçoada de idênticos processos de suborno, ora preso, ora transigência do poder com as pretensões dos influentes, ou seja a completa negação do prestigio do Governo que, por fim, sempre ganha as eleições e promete salvar a nação e o partido...
Depois de tantas provas desilusórias que o sistema tem multiplicado em toda a Europa latina e até na mais próspera democracia do mundo, os Estados Unidos da América, onde por anúncios de jornais se negociam as consciências políticas dos cidadãos (que sabem ler e têm dinheiro), custa crer que ainda defensores se atrevam a justificar tal mistificação que, não iludindo já o menos esclarecido raciocínio, ainda ofende o senso-comum pela insistência do apostolado.
Sabe-se como antigamente se dava a representação nacional em Cortes: eram as três classes, clero, nobreza e povo, que compareciam ante o Soberano para tratar dos negócios de interesse geral.
Antes da mudança de condições económicas que o progresso material das comunicações e transportes necessariamente determinou, os mais altos interesses nacionais encontravam expressão e defesa, nesses três grupos de representantes.
Era o Clero a classe preponderante, pelo prestígio da sua função religiosa e moral e pela maior cultura dos seus membros; vinha a Nobreza, portadora de privilégios conferidos diretamente ao merecimento individual ou titular de situações e foros que a tornavam o elemento coordenador na hierarquia das províncias, tanto no ponto de vista do domínio rural, como no exercício, quase exclusivo, dos cargos da autoridade civil e militar; apresentava-se o Povo dos concelhos, homens bons da campina, da serra e do mar, para zelarem diante do Rei os direitos e privilégios do seu agregado e em nome dele falarem na assembleia nacional.
A estes três aspetos, espiritual, guerreiro e económico, se reduzia, nas linhas gerais, a velha representação em Cortes. É manifesto que às condições atuais não satisfaz, nem de longe, o velho sistema representativo, nos três elementos que ficam enunciados.
Outros agrupamentos se constituíram, surgiram diversos e novos interesses e classes, funções diferentes em natureza e sentido que atualmente exigem representação nacional.
Como aconteceu em períodos sucessivos da História, modificaram-se as condições materiais, aumentando simultaneamente a população.
Alterou-se a tendência do Governo da Igreja, perdendo o aspeto político que durante séculos nela prevaleceu; a Nobreza que jamais foi uma casta cerrada, mas uma categoria social, acessível ao merecimento dos indivíduos, que a intervenção da justiça real consagrava por meio de distinções e títulos - há de aceitar, como reagentes renovadores, novos elementos de formação, estranhos à origem militar e hereditária; os concelhos, tendo completado a sua diferenciação económica, assistem à revivescência do princípio associativo, sob as epígrafes de Socialismo, Sindicalismo e diversas formas mutualistas, exprimindo a mesma necessidade que na Idade-Media determinou a constituição dos mesteres.
A moderna representação tem de ser integral, abranger todos os interesses, exprimir os direitos e aspirações de quantos trabalham em qualquer ramo de produção ou atividade.
Aqui está em poucas palavras, o que nos pretendemos substituir e opor à mentira de representação política de agora; bastando este simples enunciado para demonstrar aos amigos do progresso, que nós não queremos o regresso ao passado: muito ao contrário, pedimos à experiência do que foi, as normas seguras do que deve ser.
Não renunciamos ao presente, senão no que ele tiver de provadamente nocivo e trazemos do passado para nós, aqueles elementos orgânicos permanentes, que a miragem revolucionária deixou esquecidos e desacreditados.
Não somos nós quem recua, é o Passado que caminha até ao Presente para salvar o Futuro.
Que de uma vez para sempre fiquem esclarecidas as nossas intenções que tanta gente levianamente se entretêm a deturpar!
O Município reparte-se hoje pelos agregados administrativos das Paróquias ou Freguesias, com interesses concorrentes e às vezes divergentes na aparência. Neles tem de se assentar a base inicial da representação, porque neles aparecem diferenciados dos das famílias singulares, os primeiros interesses coletivos a reger e coordenar.
Suponhamos (e em hipóteses vai assentar a essência da restante exposição), que se trata de fazer a eleição municipal. O eleitorado da freguesia A ficou reduzido a 30 ou 40 nomes — únicos que têm capacidade económica ou intelectual para deixar presumir independência no exercício do voto. Como não há possibilidade de esses eleitores se iludirem sobre a competência dos que elegem, vista a estreiteza do lugar, na lista tripla ou quíntupla de que há de sair a Junta de Paroquia, vai também o nome do delegado da Freguesia ao Município, evitando assim outra eleição.
A Camara Municipal eleita fica constituída por tantos vereadores como são as freguesias do concelho e pelos seus melhores homens eleitos.
Se numa ou mais freguesias se tiverem constituído associações de classe, de operários, de patrões, sindicatos agrícolas ou outros quaisquer núcleos económicos de importância deverão eles ter representação na Camara respetiva, ao lado dos vereadores eleitos pelas freguesias.
Assim fica dada satisfação aos interesses do trabalho e da indústria, e garantida a defesa dos operários e trabalhadores rurais que não foram chamados a votar diretamente no delegado da Freguesia, por lhes faltar a competência e a independência para a escolha.
A Assembleia Provincial é composta de um delegado de cada Município da circunscrição; dos representantes, em número variável, das diversas associações de classe e sindicais, do clero, da instrução pública e belas-artes e dos de outras instituições a quem deva atribuir-se esse direito, de forma que todas as atividades de qualquer espécie, encontrem expressão e defesa nos seus naturais e legítimos representantes.
Da especialização já traduzida na Assembleia Provincial, nascem os delegados de cada classe ou grupo de interesses, que da Província subiriam à Assembleia Nacional ou Cortes.
Ficariam estas constituídas pelos delegados técnicos e administrativos de cada uma das Províncias e pelos representantes de interesses especiais que apenas nos grandes centros se verificam, como finanças, câmbios, empresas de navegação, alto comercio, explorações ultramarinas, etc.
Acrescentem-se a estes os delegados das associações de classe, da justiça, do exército, das camaras do trabalho e de comercio, da Universidade de Coimbra, das várias escolas superiores, dos institutos técnicos e de belas-artes, e teremos formado uma assembleia de competentes onde o Governo necessariamente encontraria os mais idóneos e interessados colaboradores para as medidas que resolvesse adotar.
Deste modo, a Assembleia Nacional, se não ficava absolutamente perfeita, deveria ser seguramente a melhor possível.
A determinação das suas atribuições não cabe na discussão deste artigo, mas elas seriam especialmente consultivas e de cooperação com o governo, por intermedio de comissões técnicas, temporárias ou permanentes.
A função deliberativa limitar-se-ia à aprovação do Orçamento e ao lançamento dos impostos gerais, quando assim fosse julgado conveniente.
Em momento algum a Assembleia Nacional tomaria decisões de caracter político, salvo nos casos duvidosos de sucessão ao Trono, de alienação de território, de declaração de guerra, se não se preferisse substituí-la por outra, com diversa organização e poderes especiais.
Como facilmente se depreende desta ligeira e incompleta exposição, pretendemos substituir a representação política, saída da inconsciência tumultuária das urnas em que os incompetentes escolhem os presumidos competentes, pela delegação das classes e dos interesses, por elementos técnicos e aptos ao bom desempenho do encargo.
Dentro de cada classe, os associados são aptos a eleger e os eleitores, em nome do seu próprio interesse, coagidos a escolher o melhor que possam e a fiscalizar a ação dos delegados a quem se confiaram.
Nestas condições, as entidades que se julgassem mal representadas, só á sua imprevidência ou precipitação poderiam atribuir a responsabilidade de tal erro.
A função política pertenceria ao Rei e ao Governo, aos agentes diplomáticos e ao Conselho de Estado, únicas entidades a quem naturalmente tal exercício deve pertencer, por terem para ele a necessária competência.
A atribuição ao Governo da função legislativa geral corresponde a uma verdade de conveniência, teórica e prática, e deriva forçosamente do descredito em que há muito caiu o regime parlamentar.
Todos sabem que a quase totalidade das medidas legislativas promulgadas nos países representativos, provieram de propostas governamentais e que a discussão, apaixonada e parcial, não faz senão tornar péssimo em lei o que era bom ou, ao menos, razoável na proposta inicial.
O parlamento sempre foi em toda a parte, um absurdo e caro instrumento de embaraçar a ação dos governos e de inutilizar competências de ministros que se vêm forçados a demissões repetidas, em nome da solidariedade política do gabinete.
A escola de todas as corrupções e ao campo de triunfo dos mais nulos ou dos mais habilidosos que tem sido o nosso parlamento, pretendemos opor uma assembleia onde não seja possível a existência do simples aventureiro político, visto que todos os que nela tivessem assento ali estariam em nome de interesses e por intermédio dos respetivos interessados.
Muito resumidamente, é esta a teoria da representação que julgamos preferível ao preconceito numérico do sufrágio universal, em que a boa Democracia se baseia.
Quem deve ser o titular da soberania nacional, isto é, em que órgão reside a personalidade da Nação para a declaração e guarda dos mais altos interesses públicos, será objeto de outro artigo, por ser assunto que merece estudo especial.
Setembro 1914.
Hipólito Raposo.
[negritos acrescentados]
"Natureza da Representação", Nação Portuguesa, nº 5, Novembro de 1914, pp. 133-137.
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