Paulo Merêa, Apontamentos para a História das Nossas Doutrinas Políticas. Desenvolvimento da ideia de Soberania Popular nos Séculos XVI e XVII, In Revista da Universidade de Coimbra, vol. IV, Coimbra, 1915, pp. 43-49.
APONTAMENTOS PARA A HISTÓRIA DAS NOSSAS DOUTRINAS POLÍTICAS
Desenvolvimento da ideia de soberania popular nos séculos XVI e XVII
Na segunda metade do século XVI e princípios do XVII a Península viu florescer uma brilhantíssima literatura teológico-política, à qual pertencem os nomes gloriosos de VITÓRIA, SOTO, MOLINA, MARIANA, SUÁREZ, MÁRQUEZ, e do bispo português D. JERÓNIMO OSÓRIO. Esta literatura, cuja base inicial era a doutrina tomista, não interessa exclusivamente ao teólogo; interessa também, e sobremaneira, ao jurista, visto que então os teólogos abordavam constantemente os assuntos jurídicos (em especial o direito público), não hesitando em discorrer sobre os mais transcendentes capítulos da filosofia jurídica e política, e deixando aos jurisconsultos de profissão a tarefa menos brilhante do comentário e da exegese. De resto, a literatura em questão não tem um mero interesse teórico. Ela influiu deveras, conforme judiciosamente observa o professor HINOJOSA no governo e na legislação: os reis tinham, com efeito, os teólogos em grande conta, e com eles se aconselhavam em questões de política; os jurisconsultos citavam-nos nas suas obras e invocavam-nos como autoridades.
Se, de entre tantos assuntos referentes ao direito público, destacarmos um que aos teólogos deste período mereceu sempre especial desvelo - o da origem da sociedade e do poder político - reconheceremos sem dificuldade que também neste ponto eles seguiram o caminho apontado por S. Tomás. Esse caminho fora, de resto, o já anteriormente trilhado por todos os grandes doutores da Idade-Média: ALBERTO O GRANDE, DUNS SCOTT, GILLES DE ROME, PIERRE BERTRAND, JEAN BURIDAN, MARSÍLIO DE PÁDUA... fora também o preferido, adentro da Península, por tratadistas de vulto: o nosso D. Fr. ÁLVARO PAIS (+ 1353), franciscano, que foi discípulo de DUNS SCOTT, havia reproduzido e perfilhado a doutrina tomista no seu livro De planctu Ecclesiae.
A doutrina tomista cifra-se em poucas palavras:
Gerada a sociedade civil como produto necessário do espírito de sociabilidade inerente ao homem, ela necessita duma autoridade que a dirija na prossecução do fim comum. Esta autoridade emana de Deus (Omnis potestas a Deo, S. Paulo, Epist. ad Rom. xu, 1, 5), mas, por direito natural, radica-se originariamente na própria sociedade, a qual, não podendo exercê-la por si mesma, a confere a uma ou mais pessoas. Deste modo o poder público, considerado concretamente, não procede de Deus de um modo imediato: tem o seu fundamento no acordo do corpo social, e só é legítimo quando emanado do consentimento tácito ou expresso da sociedade (Omnis potestas a Deo per populum).
Em defesa desta opinião amontoavam-se argumentos de toda a ordem. O próprio direito justinianeu, à primeira vista inconciliável com a ideia de soberania popular, lhe fornecia um precioso argumento com a célebre lex regia (mais propriamente lex de imperio), lei que na realidade não era mais do que um débil vestígio duma antiga e concreta supremacia comicial, mas que os teólogos ajeitavam habilmente ao seu propósito, envolvendo a doutrina por eles sustentada na auréola prestigiante do direito romano.
A plêiade dos teólogos peninsulares, na sua maior parte jesuítas, manteve-se, como dissemos, fiel a esta tradição. Graças ao seu impulso, a doutrina tomista ganhou nova energia e atingiu o seu mais completo desenvolvimento. Salientaram-se alguns pontos fundamentais, especialmente a ideia de pacto anteposta à constituição da autoridade política, e, tirando das premissas tradicionais as conclusões extremas, sustentou-se, como é sabido, não só o direito de deposição dos reis, mas o próprio tiranicídio.
É interessante observar, a este propósito, que a ideia de um direito de insurreição não era de modo algum estranha a tradição política popular. Essa ideia aparece, de facto, com particular intensidade e significativa insistência, no romanceiro medieval - essa fonte preciosíssima onde, segundo a concepção genial de JOAQUIM COSTA, podemos de certo modo «surpreender e fixar o ideal político do povo espanhol».
Entretanto a doutrina contrária, segundo a qual o titular do poder deve ser considerado como determinado diretamente pela vontade de Deus, desenvolvia-se nos meios protestantes, donde passou para os meios galicanos. Este facto não nos deve admirar. A Reforma, contribuindo por toda a parte para o fortalecimento do poder dos príncipes conduzia logicamente à proclamação do direito divino da autoridade, ao passo que os católicos, desejosos de subordinar a esfera temporal à espiritual, tinham toda a vantagem em defender o conceito puramente racional do Estado contra o conceito teocrático dos protestantes. A própria doutrina do tiranicídio é perfeitamente explicável em face das circunstâncias da época, visto que, segundo observa CANOVAS, o que importava aos teólogos católicos não era então salvar a monarquia, mas sim conseguir que os súbditos permanecessem fieis ao catolicismo apesar dos seus reis.
Se, de entre tantos assuntos referentes ao direito público, destacarmos um que aos teólogos deste período mereceu sempre especial desvelo - o da origem da sociedade e do poder político - reconheceremos sem dificuldade que também neste ponto eles seguiram o caminho apontado por S. Tomás. Esse caminho fora, de resto, o já anteriormente trilhado por todos os grandes doutores da Idade-Média: ALBERTO O GRANDE, DUNS SCOTT, GILLES DE ROME, PIERRE BERTRAND, JEAN BURIDAN, MARSÍLIO DE PÁDUA... fora também o preferido, adentro da Península, por tratadistas de vulto: o nosso D. Fr. ÁLVARO PAIS (+ 1353), franciscano, que foi discípulo de DUNS SCOTT, havia reproduzido e perfilhado a doutrina tomista no seu livro De planctu Ecclesiae.
A doutrina tomista cifra-se em poucas palavras:
Gerada a sociedade civil como produto necessário do espírito de sociabilidade inerente ao homem, ela necessita duma autoridade que a dirija na prossecução do fim comum. Esta autoridade emana de Deus (Omnis potestas a Deo, S. Paulo, Epist. ad Rom. xu, 1, 5), mas, por direito natural, radica-se originariamente na própria sociedade, a qual, não podendo exercê-la por si mesma, a confere a uma ou mais pessoas. Deste modo o poder público, considerado concretamente, não procede de Deus de um modo imediato: tem o seu fundamento no acordo do corpo social, e só é legítimo quando emanado do consentimento tácito ou expresso da sociedade (Omnis potestas a Deo per populum).
Em defesa desta opinião amontoavam-se argumentos de toda a ordem. O próprio direito justinianeu, à primeira vista inconciliável com a ideia de soberania popular, lhe fornecia um precioso argumento com a célebre lex regia (mais propriamente lex de imperio), lei que na realidade não era mais do que um débil vestígio duma antiga e concreta supremacia comicial, mas que os teólogos ajeitavam habilmente ao seu propósito, envolvendo a doutrina por eles sustentada na auréola prestigiante do direito romano.
A plêiade dos teólogos peninsulares, na sua maior parte jesuítas, manteve-se, como dissemos, fiel a esta tradição. Graças ao seu impulso, a doutrina tomista ganhou nova energia e atingiu o seu mais completo desenvolvimento. Salientaram-se alguns pontos fundamentais, especialmente a ideia de pacto anteposta à constituição da autoridade política, e, tirando das premissas tradicionais as conclusões extremas, sustentou-se, como é sabido, não só o direito de deposição dos reis, mas o próprio tiranicídio.
É interessante observar, a este propósito, que a ideia de um direito de insurreição não era de modo algum estranha a tradição política popular. Essa ideia aparece, de facto, com particular intensidade e significativa insistência, no romanceiro medieval - essa fonte preciosíssima onde, segundo a concepção genial de JOAQUIM COSTA, podemos de certo modo «surpreender e fixar o ideal político do povo espanhol».
Entretanto a doutrina contrária, segundo a qual o titular do poder deve ser considerado como determinado diretamente pela vontade de Deus, desenvolvia-se nos meios protestantes, donde passou para os meios galicanos. Este facto não nos deve admirar. A Reforma, contribuindo por toda a parte para o fortalecimento do poder dos príncipes conduzia logicamente à proclamação do direito divino da autoridade, ao passo que os católicos, desejosos de subordinar a esfera temporal à espiritual, tinham toda a vantagem em defender o conceito puramente racional do Estado contra o conceito teocrático dos protestantes. A própria doutrina do tiranicídio é perfeitamente explicável em face das circunstâncias da época, visto que, segundo observa CANOVAS, o que importava aos teólogos católicos não era então salvar a monarquia, mas sim conseguir que os súbditos permanecessem fieis ao catolicismo apesar dos seus reis.
*
A escola de que estamos tratando teve representantes portugueses e exerceu larga influência em Portugal, cabendo nesse movimento um largo papel à Universidade de Coimbra.
Também isto não é para admirar. Com efeito, em Portugal, fácil era aos defensores destas doutrinas encontrar um fundamento para elas nas normas do direito público pátrio, tais como se inferiam de certos acontecimentos históricos; e, por outro lado, dadas as circunstâncias que o país atravessava, essas doutrinas forneciam um magnífico apoio às ideias de independência nacional. Estava ainda vivo o exemplo da eleição do mestre de Avis nas Cortes de Coimbra de 1385, e esse exemplo foi sistematicamente invocado para sustentar a doutrina de que, vagando o trono por morte de D. Henrique, ao reino pertencia a eleição do novo monarca; tanto que, por a Universidade de Coimbra sustentar este direito, foi alvo das acusações dos partidários de Felipe, os quais instavam pela sua extinção, apontando-a como um foco de doutrinas perigosas! Nas Allegações de direito, que se ofereceram ao muito alto, de muito poderoso Rei Dom Henrique... a 22 de Outubro de 1579, compostas pelo Doutor FÉLIX TEIXEIRA e pelo licenciado AFONSO DE LUCENA, desembargadores da Casa do Duque de Bragança, e pelos Doutores LUIS CORREIA, lente do Decreto, e ANTÓNIO VAZ CABAÇO, lente de véspera de Leis na Universidade de Coimbra, os autores insistem em que, enquanto houver parente que descenda do sangue real e legitimamente possa suceder ao rei último possuidor, os povos do reino de Portugal não podem eleger rei. Confessam, porém, que «à República pertence (considerando as cousas em sua natureza) escolher Rei que a governe e defenda, trespassando nele o poder que para isso teve», embora daqui se não siga que a república haja de fazer esta «trespassação» com nova eleição por falecimento de cada um dos reis, «porque basta que a principio por um só ato trespassasse absolutamente o dito poder em um Rei e sua geração, para que dela por seus graus sucedam os Reis sem mais outra eleição particular... E posto que os povos em muitos reinos não declararam especialmente que trespassavam o dito poder no primeiro rei que elegeram e em sua geração para vir a seus descendentes sem nova eleição, contudo, consentindo depois que lhe sucedesse pelo dito modo, bastantemente mostraram sua primeira tenção conforme ao costume que se depois continuou». E daqui concluíam que, «estando o Reino vago por não haver pessoa do sangue real que pudesse legitimamente suceder ao Rei ultimo possuidor, podiam os povos conforme o direito eleger novo Rei que os governasse, tornando a usar do poder que por direito natural lhe competia para elegerem seu Rei» [Fl. 8. No fim do livro encontram-se várias declarações de lentes da Universidade de Coimbra.
Independentemente destas razões oportunistas, e talvez sob a simples influência da corrente doutrinária dominante, também alguns teólogos portugueses sustentaram doutrinas favoráveis à soberania popular.
Assim, na segunda metade do século XVI o padre MANUEL DE SA († 1596), jesuíta, formulava em termos claros nos seus Aphorismi Confessariorum a doutrina da deposição e do tiranicídio, procedendo à costumada distinção entre o tirano quoad titulum e o tirano quoad administrationem: «Rex... potest per Rempublicam privari ob tyrannidem, et si non faciat officium suum, et cum est causa aliqua iusta, et eligi alius a maiore parte populi. Quidam tamen solum tyrannidem causam putant».
«Tyrannice gubernans juste acquisitum dominium non potest spoliari sine publico iudicio: lata vero sententia, potest quisque fieri executor: potest autem deponi a populo, etiam qui iurant ei obedientiam perpetuam, si monitus non vult corrigi. At ocupantem tyrannice potestatem, quisque de populo potest occidere, si aliud non sit remedium; est enim publicus hostis».
Poucos anos depois, o célebre jesuíta SUÁREZ expendia as suas doutrinas sobre a soberania do povo na Universidade de Coimbra, onde regia a cadeira de prima de Teologia. O seu livro De legibus foi elaborado nos anos escolares de 1601-1603 em que, a pedido do reitor FRANCISCO FURTADO DE MENDONÇA, tratou este assunto nas suas lições; e em Coimbra foi também composta a Defensio fidei catholicae, a pedido de Paulo V, como resposta ao livro de Tiago 1 de Inglaterra - Apologia ou defesa do juramento de fidelidade.
Não foi, de resto, FRANCISCO SUÁREZ o único teólogo espanhol dessa plêiade que exerceu o ensino em Portugal. O não menos notável LUIS DE MOLINA, que já anteriormente a Suárez tinha formulado doutrinas semelhantes, vestira em Coimbra a roupeta de jesuíta e, tendo estudado na Universidade desta cidade, veio mais tarde a ser, por espaço de vinte anos, lente de prima da Universidade de Évora. Outro seu companheiro de doutrina, MARTINHO DE AZPILCUETA NAVARRO, foi lente de prima de Cânones na Universidade de Coimbra.
Em 1625, o português Fr. SERAFIM DE FREITAS, doutor em Cânones pela mesma Universidade e lente de véspera de Cânones na de Valladolid, publicou o livro De justo imperio lusitanorum asiatico, onde desenvolve as doutrinas predilectas de SUÁREZ e MOLINA, como se vê dos seguintes extractos:
«Quanquam enim omnis potestas tam spiritualis, quam temporalis a Deo sit...›. «At vero potestas temporalis, seu politica regi, aut principi republicae a Deo tanquam naturae auctore mediante lumine naturali, republicae electione, seu translatione concessa fuit, ut cum republica non posset per se ipsam hane potestatem exercere; attento, et cogente naturae jure, in unum, vel plures conferre cam tenebatur, camque transtulit in principem ut ab illo tanquam a fonte in reliquos inferiores republicae magistratus dimanaret... et licet aliquando ex speciali privilegio non nulli reges in lege scripta a Deo immediate electi fuerint... hoc tamen privilegium aliis non convenit.... ‹... potest respublica Regem, si in tyrannidem evadat, regno et vita privare....
Mas foi sobretudo ao cabo dos sessenta anos de cativeiro, quando se pretendeu legitimar a deposição do rei castelhano, que a doutrina democrática entrou de ser invocada com ardor, surgindo-nos - quando não de uma maneira expressa, ao menos de um modo implícito - nas obras dos escritores da Restauração (JOÃO PINTO RIBEIRO, SOUSA DE MACEDO, VILA REAL, etc.). Em seu abono eram chamados não só os repisados argumentos de ordem geral, mais ainda, e mais que nunca, os precedentes da história nacional. Sob este aspeto, a tese fortalecia-se agora com o auto apócrifo das Cortes de Lamego - o qual, como é sabido, havia sido publicado por ANTÓNIO BRANDÃO em 1632 -; e, como se isso não bastasse, outras razões mais ou menos aventurosas se invocaram, mostrando-se por exemplo que ao tempo da aclamação de D. Afonso Henriques as povoações do reino eram, no geral, beetrias, com a faculdade de escolher livremente os seus governadores.
A doutrina da soberania popular, nos termos que ficam indicados, encontrou mesmo, como se sabe, uma consagração oficial nas Cortes de 1641 e uma semioficial no livro célebre do doutor FRANCISCO VAZ DE GOUVEIA, lente de Cânones na Universidade de Coimbra, intitulado Justa Acclamação do Serenissimo Rei de Portugal D. João IV.
Coimbra, Dezembro de 1914.
MANUEL PAULO MERÊA.
Também isto não é para admirar. Com efeito, em Portugal, fácil era aos defensores destas doutrinas encontrar um fundamento para elas nas normas do direito público pátrio, tais como se inferiam de certos acontecimentos históricos; e, por outro lado, dadas as circunstâncias que o país atravessava, essas doutrinas forneciam um magnífico apoio às ideias de independência nacional. Estava ainda vivo o exemplo da eleição do mestre de Avis nas Cortes de Coimbra de 1385, e esse exemplo foi sistematicamente invocado para sustentar a doutrina de que, vagando o trono por morte de D. Henrique, ao reino pertencia a eleição do novo monarca; tanto que, por a Universidade de Coimbra sustentar este direito, foi alvo das acusações dos partidários de Felipe, os quais instavam pela sua extinção, apontando-a como um foco de doutrinas perigosas! Nas Allegações de direito, que se ofereceram ao muito alto, de muito poderoso Rei Dom Henrique... a 22 de Outubro de 1579, compostas pelo Doutor FÉLIX TEIXEIRA e pelo licenciado AFONSO DE LUCENA, desembargadores da Casa do Duque de Bragança, e pelos Doutores LUIS CORREIA, lente do Decreto, e ANTÓNIO VAZ CABAÇO, lente de véspera de Leis na Universidade de Coimbra, os autores insistem em que, enquanto houver parente que descenda do sangue real e legitimamente possa suceder ao rei último possuidor, os povos do reino de Portugal não podem eleger rei. Confessam, porém, que «à República pertence (considerando as cousas em sua natureza) escolher Rei que a governe e defenda, trespassando nele o poder que para isso teve», embora daqui se não siga que a república haja de fazer esta «trespassação» com nova eleição por falecimento de cada um dos reis, «porque basta que a principio por um só ato trespassasse absolutamente o dito poder em um Rei e sua geração, para que dela por seus graus sucedam os Reis sem mais outra eleição particular... E posto que os povos em muitos reinos não declararam especialmente que trespassavam o dito poder no primeiro rei que elegeram e em sua geração para vir a seus descendentes sem nova eleição, contudo, consentindo depois que lhe sucedesse pelo dito modo, bastantemente mostraram sua primeira tenção conforme ao costume que se depois continuou». E daqui concluíam que, «estando o Reino vago por não haver pessoa do sangue real que pudesse legitimamente suceder ao Rei ultimo possuidor, podiam os povos conforme o direito eleger novo Rei que os governasse, tornando a usar do poder que por direito natural lhe competia para elegerem seu Rei» [Fl. 8. No fim do livro encontram-se várias declarações de lentes da Universidade de Coimbra.
Independentemente destas razões oportunistas, e talvez sob a simples influência da corrente doutrinária dominante, também alguns teólogos portugueses sustentaram doutrinas favoráveis à soberania popular.
Assim, na segunda metade do século XVI o padre MANUEL DE SA († 1596), jesuíta, formulava em termos claros nos seus Aphorismi Confessariorum a doutrina da deposição e do tiranicídio, procedendo à costumada distinção entre o tirano quoad titulum e o tirano quoad administrationem: «Rex... potest per Rempublicam privari ob tyrannidem, et si non faciat officium suum, et cum est causa aliqua iusta, et eligi alius a maiore parte populi. Quidam tamen solum tyrannidem causam putant».
«Tyrannice gubernans juste acquisitum dominium non potest spoliari sine publico iudicio: lata vero sententia, potest quisque fieri executor: potest autem deponi a populo, etiam qui iurant ei obedientiam perpetuam, si monitus non vult corrigi. At ocupantem tyrannice potestatem, quisque de populo potest occidere, si aliud non sit remedium; est enim publicus hostis».
Poucos anos depois, o célebre jesuíta SUÁREZ expendia as suas doutrinas sobre a soberania do povo na Universidade de Coimbra, onde regia a cadeira de prima de Teologia. O seu livro De legibus foi elaborado nos anos escolares de 1601-1603 em que, a pedido do reitor FRANCISCO FURTADO DE MENDONÇA, tratou este assunto nas suas lições; e em Coimbra foi também composta a Defensio fidei catholicae, a pedido de Paulo V, como resposta ao livro de Tiago 1 de Inglaterra - Apologia ou defesa do juramento de fidelidade.
Não foi, de resto, FRANCISCO SUÁREZ o único teólogo espanhol dessa plêiade que exerceu o ensino em Portugal. O não menos notável LUIS DE MOLINA, que já anteriormente a Suárez tinha formulado doutrinas semelhantes, vestira em Coimbra a roupeta de jesuíta e, tendo estudado na Universidade desta cidade, veio mais tarde a ser, por espaço de vinte anos, lente de prima da Universidade de Évora. Outro seu companheiro de doutrina, MARTINHO DE AZPILCUETA NAVARRO, foi lente de prima de Cânones na Universidade de Coimbra.
Em 1625, o português Fr. SERAFIM DE FREITAS, doutor em Cânones pela mesma Universidade e lente de véspera de Cânones na de Valladolid, publicou o livro De justo imperio lusitanorum asiatico, onde desenvolve as doutrinas predilectas de SUÁREZ e MOLINA, como se vê dos seguintes extractos:
«Quanquam enim omnis potestas tam spiritualis, quam temporalis a Deo sit...›. «At vero potestas temporalis, seu politica regi, aut principi republicae a Deo tanquam naturae auctore mediante lumine naturali, republicae electione, seu translatione concessa fuit, ut cum republica non posset per se ipsam hane potestatem exercere; attento, et cogente naturae jure, in unum, vel plures conferre cam tenebatur, camque transtulit in principem ut ab illo tanquam a fonte in reliquos inferiores republicae magistratus dimanaret... et licet aliquando ex speciali privilegio non nulli reges in lege scripta a Deo immediate electi fuerint... hoc tamen privilegium aliis non convenit.... ‹... potest respublica Regem, si in tyrannidem evadat, regno et vita privare....
Mas foi sobretudo ao cabo dos sessenta anos de cativeiro, quando se pretendeu legitimar a deposição do rei castelhano, que a doutrina democrática entrou de ser invocada com ardor, surgindo-nos - quando não de uma maneira expressa, ao menos de um modo implícito - nas obras dos escritores da Restauração (JOÃO PINTO RIBEIRO, SOUSA DE MACEDO, VILA REAL, etc.). Em seu abono eram chamados não só os repisados argumentos de ordem geral, mais ainda, e mais que nunca, os precedentes da história nacional. Sob este aspeto, a tese fortalecia-se agora com o auto apócrifo das Cortes de Lamego - o qual, como é sabido, havia sido publicado por ANTÓNIO BRANDÃO em 1632 -; e, como se isso não bastasse, outras razões mais ou menos aventurosas se invocaram, mostrando-se por exemplo que ao tempo da aclamação de D. Afonso Henriques as povoações do reino eram, no geral, beetrias, com a faculdade de escolher livremente os seus governadores.
A doutrina da soberania popular, nos termos que ficam indicados, encontrou mesmo, como se sabe, uma consagração oficial nas Cortes de 1641 e uma semioficial no livro célebre do doutor FRANCISCO VAZ DE GOUVEIA, lente de Cânones na Universidade de Coimbra, intitulado Justa Acclamação do Serenissimo Rei de Portugal D. João IV.
Coimbra, Dezembro de 1914.
MANUEL PAULO MERÊA.

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