Das razões do INtegralismo
António Sardinha
Em 1871, Antero de Quental apontou três fenómenos capitais, de três espécies - um moral, outro politico, outro económico - como causas da decadência portuguesa nos últimos três séculos, no quadro da decadência peninsular: "o primeiro é a transformação do Catolicismo, pelo concílio de Trento. O segundo, o estabelecimento do Absolutismo, pela ruína das liberdades locais. O terceiro, o desenvolvimento das Conquistas longínquas."
No primeiro parágrafo de "Razões do Integralismo", António Sardinha alinha com a segunda e a terceira causa apontadas por Antero: o Absolutismo, pela ruína das liberdades locais, que atribui às "importações absolutistas do marquês" de Pombal; e as "conquistas longínquas", que designa pelo "delírio dourado do Império do Mundo". Segundo Antero, no concílio de Trento (1545-1563) estaria uma causa moral. Sardinha não segue Antero por aí, contrapondo a "hipertrofia social da Renascença" e, a jusante, a legislação de Mouzinho da Silveira.
Para Sardinha, a decadência portuguesa resultou sobretudo da ação de elites estrangeiradas: "Anularam-se a golpes de pena as instituições seculares do País. E a golpes de pena, conforme o modelo gaulês..." Remontando ao marquês de Pombal, Sardinha destaca o crucial papel desempenhado pela Maçonaria na destruição das tradições políticas portuguesas e, em geral, dos povos latinos. Após a derrota portuguesa em Évora-Monte (1834), os principais adversários de Portugal são claramente identificados como os "banqueiros cúpidos" e os políticos do "partidarismo profissional".
Os portugueses foram derrotados por estrangeiros e estrangeirados, mas não sem lhes ter dado luta, e também pela pena. Sardinha identifica os autores que mais se destacaram na resistência às infiltrações e às manobras da Maçonaria, bem como à ação dos seus políticos profissionais, instruindo em minucioso exame "o processo da ficção parlamentar": José da Gama e Castro, José Acúrcio das Neves, José Agostinho de Macedo, Gouveia Pinto, Faustino José da Madre de Deus. Esta plêiade de escritores não deixou de se inspirar em autores estrangeiros, como Joseph de Maistre e Louis de Bonald, mas foi em portugueses que sobretudo se basearam, com destaque para os jurisconsultos do século XVII: "Na Justa Aclamação do arcediago Vaz de Gouveia, na Usurpação, retenção e restauração de Portugal de João Pinto Ribeiro, e na Arte de Reinar, do Padre António Carvalho de Parada, se encontram formuladas por uma elevada consciência jurídica as bases do nosso direito público tradicional. É a representação de interesses, exprimindo a natureza pluralista da sociedade, e reconhecendo no Monarca a garantia do equilíbrio do todo."
Os adversários dos Integralistas, ao considerar que o seu pensamento político era uma tradução ou cópia da Action française, recorreram ao que podemos designar por uma técnica de "corta-fogos", procurando manter os jovens estudiosos afastados das verdadeiras fontes e do cerne do seu pensamento político. Eis aqui mais um naco de prosa de António Sardinha, dando conta das fortes razões e substantivas fontes bibliográficas que estiveram na base do lançamento do movimento de ideias que designaram por "Integralismo Lusitano".
25.01.2025
J. M. Q.
No primeiro parágrafo de "Razões do Integralismo", António Sardinha alinha com a segunda e a terceira causa apontadas por Antero: o Absolutismo, pela ruína das liberdades locais, que atribui às "importações absolutistas do marquês" de Pombal; e as "conquistas longínquas", que designa pelo "delírio dourado do Império do Mundo". Segundo Antero, no concílio de Trento (1545-1563) estaria uma causa moral. Sardinha não segue Antero por aí, contrapondo a "hipertrofia social da Renascença" e, a jusante, a legislação de Mouzinho da Silveira.
Para Sardinha, a decadência portuguesa resultou sobretudo da ação de elites estrangeiradas: "Anularam-se a golpes de pena as instituições seculares do País. E a golpes de pena, conforme o modelo gaulês..." Remontando ao marquês de Pombal, Sardinha destaca o crucial papel desempenhado pela Maçonaria na destruição das tradições políticas portuguesas e, em geral, dos povos latinos. Após a derrota portuguesa em Évora-Monte (1834), os principais adversários de Portugal são claramente identificados como os "banqueiros cúpidos" e os políticos do "partidarismo profissional".
Os portugueses foram derrotados por estrangeiros e estrangeirados, mas não sem lhes ter dado luta, e também pela pena. Sardinha identifica os autores que mais se destacaram na resistência às infiltrações e às manobras da Maçonaria, bem como à ação dos seus políticos profissionais, instruindo em minucioso exame "o processo da ficção parlamentar": José da Gama e Castro, José Acúrcio das Neves, José Agostinho de Macedo, Gouveia Pinto, Faustino José da Madre de Deus. Esta plêiade de escritores não deixou de se inspirar em autores estrangeiros, como Joseph de Maistre e Louis de Bonald, mas foi em portugueses que sobretudo se basearam, com destaque para os jurisconsultos do século XVII: "Na Justa Aclamação do arcediago Vaz de Gouveia, na Usurpação, retenção e restauração de Portugal de João Pinto Ribeiro, e na Arte de Reinar, do Padre António Carvalho de Parada, se encontram formuladas por uma elevada consciência jurídica as bases do nosso direito público tradicional. É a representação de interesses, exprimindo a natureza pluralista da sociedade, e reconhecendo no Monarca a garantia do equilíbrio do todo."
Os adversários dos Integralistas, ao considerar que o seu pensamento político era uma tradução ou cópia da Action française, recorreram ao que podemos designar por uma técnica de "corta-fogos", procurando manter os jovens estudiosos afastados das verdadeiras fontes e do cerne do seu pensamento político. Eis aqui mais um naco de prosa de António Sardinha, dando conta das fortes razões e substantivas fontes bibliográficas que estiveram na base do lançamento do movimento de ideias que designaram por "Integralismo Lusitano".
25.01.2025
J. M. Q.
António Sardinha, Das razões do 'Integralismo', Nação Portuguesa, ano I, n.º 7, Janeiro de 1915, pp. 206-217.
Ora um dia a liberdade teórica dos códigos apareceu-nos a consagrar por meio das utopias do desembargador Mouzinho da Silveira o trabalho de aturada desnacionalização que as importações absolutistas do Marquês haviam empreendido já em terreno predisposto pela hipertrofia social da Renascença mais pelo delírio dourado do Império do Mundo. Anularam-se a golpes de pena as instituições seculares do País. E a golpes de pena, conforme o modelo gaulês, se imaginou redimir um povo chamado à comunhão de não sei que supostas ideias salvadoras por um exército em que os mercenários ocupavam os lugares de confiança e que banqueiros cúpidos tinham assoldado, cuidando só de arrecadar com crescido juro o capital em desembolso. Matamos o frade, mas inventamos o barão! - confessava Garrett, batendo a mãos ambas no peito. E com melancólicos e contratadores, com leões e homens do Pireu, o partidarismo profissional se inaugurava à sombra da Carta. Por via das ideações cosmopolitas do Noventa-e-Três, logo o divórcio entre a Nação e o Estado se agravou irreparavelmente. Não nos esqueça que, ao tocar as nossas costas, a expedição da Terceira, foram ingleses os primeiros que saltaram à praia. « Hurrah por Doni Marii! » - gritavam os marinheiros de Shaw e Hodges ao pisarem terra da boa terra portuguesa. O estrangeirismo tomava conta de nós. O pequeno episódio do desembarque não seria um aviso com que o acaso nos prevenia?
Com honestidade se tentara em França a experiência parlamentarista quando da Restauração. Sabe-se como abortou o bem-intencionado ensaio e de quantos benefícios se acompanhara a ditadura de Mr. de Villéle (1821-1828), criando à França um ótimo ambiente internacional e preparando-lhe a anexação da Argélia. O advento dos burgueses de Julho com um rei à bon marché - na ironia sangrenta de Balzac, colocou a sensibilidade romântica ao serviço de um mito despido de senso como era o da Vontade-Nacional. Rousseau ressuscitava, — diabo metido a monge, nas declamações faustosas de René. E Lafayette com a monarquia representativa, a que chamava a melhor das repúblicas, dedicava-se a descobrir o meio de conciliar o espírito montante da Revolução com o tradicionalismo ultra dos salões ancien-régime. Assim se inventava a perversão da Realeza. A anarquia legislativa, com tanta repulsa condenada por Comte, viu-se defendida pelas barricadas de Paris. Como um vento de peste e guerra, daí iria acender labaredas de catástrofe entre os povos qualificados de latinos, já debaixo da influência habilidosa das Lojas.
Encurralados no Porto, a alteração política que derrubou Carlos X, veio salvar da mais ignóbil das rendições os 7.500 bravos que de norte a sul tinham Portugal em peso contra eles. Venceu o figurino exótico por causa das voltas imprevistas em que a diplomacia se embrulhou nos gabinetes europeus. E com serenidade nós concordamos agora que Évora-Monte marca, não a entrada de uma era próspera, mas o epílogo prematuro e violento de uma sentida renovação coletiva. Retalhado primeiro pelo flagelo de três invasões, o País não conseguira recolher os frutos desse movimento modesto, mas persistente, que desde os derradeiros anos do século anterior aquecia pelo esforço carinhoso dos eruditos e de alguns governantes bem inspirados as seivas entorpecidas da Grei. A uma desgraça outra desgraça se sucedia, porque o mal não anda nunca sozinho. E acabava de levar o resto a questão aberta pelo falecimento de D. João VI, com a moda liberalista emprestando-lhe atributos teatrais de despotismo.
Não fugiram os escritores legitimistas ao prenúncio dos desastres que nos aguardavam. Alto ergueram a prevenção que se desprezou. E ei-los que estão ainda no pó das livrarias ensinando-nos as incapacidades e os vícios do abominável neologismo que se contrabandeava para cá, de envolta com as contemplações do Ermo. No doutor José da Cama e Castro, no desembargador José Acúrcio das Neves, em José Agostinho de Macedo, em Gouveia Pinto, em Faustino José da Madre de Deus, nós deparamos, com efeito, o processo de ficção parlamentar instruído por exame tão minucioso, por uma tão extraordinária amplitude de correlações e detalhes, como se o desencantamento desse exercício largamente provado lhes deferisse a lógica persuasiva e certeira que distingue, por exemplo, um Charles Maurras.
Encontra-se este bem antecipado na determinação dos caracteres mórbidos das democracias, desde a falha ingénita para manterem o prestígio exterior até ao enfraquecimento dos liames sociais, pelo abuso do partidarismo e da consequente tirania burocrática do Estado. A diferença vai apenas na terminologia mais hesitante dos nossos preceptores e na posição cronológica que fornece a Charles Maurras o reforço demonstrativo dos acontecimentos que se encarregaram de justificar as apreensões daqueles nobilíssimos amigos da Ordem.
Formados ao contacto do soberbo pensamento reacionário do conde Joseph de Maistre e do senhor de Bonald, em páginas que são um monumento observação positiva, eles diagnosticaram a falência insanável da mentira que nos ganhara. Nós éramos senhores de uma notável doutrina monárquica que, apoiada nos princípios do De regimine principum, se vira exposta com superior reflexão pelos jurisconsultos de Seiscentos. Na Justa Aclamação do arcediago Vaz de Gouveia, na Usurpação, retenção e restauração de Portugal de João Pinto Ribeiro, e na Arte de Reinar, do Padre António Carvalho de Parada, se encontram formuladas por uma elevada consciência jurídica as bases do nosso direito público tradicional. É a representação de interesses, exprimindo a natureza pluralista da sociedade, e reconhecendo no Monarca a garantia do equilíbrio do todo. Pois foi a filosofia política que ressurgiu com as batalhas do Portugal-Corcunda contra a liberdade dos conluios maçónicos que punha ao sol as raízes ancestrais da Pátria.
Esclarecia-a a mais perfeita concordância com a mentalidade do tempo. Nós não ficáramos estranhos ao impulso do século. Se Pombal se fez introdutor do estadismo abstrato dos tratadistas protestantes, indo à conceção germânica da Realeza e expulsando por "republicanos" os jesuítas que se mantinham fieis aos ditames de São Tomás, não se imagine que nos amoldamos sem resistência a essas inovações adversas à conformação histórica da Nacionalidade. Com o advento do Estado Todo-Poderoso preludiavam-se os introitos da epilepsia revolucionária. Por muito que a ditadura do Marquês nos desorganizasse até à medula, sabíamos ainda distinguir o que vinha de nós e nos pertencia, tendo para com as ideologias remetidas de França as necessárias precauções sanitárias. A defesa não se limitou ao zelo policial de Pina Manique. Não desmaiara ainda dentro de nós o instinto do bem geral, definido nas linhas vigorosas de uma finalidade. E é por isso que a lição deixada aos vindoiros pelos doutores da Feliz-Aclamação se reaviva e atualiza às luzes da inteligência portuguesa, alarmada com o espraiar da onda que transbordava de Paris...
Não bastavam as medidas da Intendência, — no fundo — mais um convite à leitura proibida, que uma interdição que se houvesse de respeitar. Urgia combater facto com facto, argumento com argumento. Fazer calar e calar-se denunciava uma debilidade que se esgotava toda em roncar de forte. E então, na escolhida roda do duque de Lafões, destacam-se atitudes de contradita. Convive-se Jean-Jacques, — refutam-se-lhe os artigos da nova fé com singular energia.
Portugal não era, pelos modos, a dianteira de Marrocos, com a rainha-mãe entretendo a loucura nos brinquedos de Dona Rosa, o Príncipe-Regente cosido pelas paredes, a tremer de pavor, e Diogo Inácio, sempre vigilante, arrecadando-nos a sete-chaves dentro de uma muralha cerrada de quadrilheiros e denunciantes.
A chapa é esta, com todas as tintas fortes do ultrarromantismo, pedidas a Pinheiro Chagas. Mas a verdade é outra — e tão outra que já em 1798 o académico António Caetano do Amaral traduzia para vernáculo A Monarquia, de D. Clemente de Peñalosa y Zuniga, em que os caracteres permanentes e hereditários da função real se destacavam como o mais seguro penhor do sossego e da prosperidade comuns.
À tradução de António Caetano do Amaral segue-se imediatamente o marquês de Penalva com a sua Dissertação a favor da Monarquia, onde se prova pela razão, autoridade, e experiência ser este o melhor, e mais justo de todos os governos... (1799). Não nos apanhavam desprecavidos as seduções do misticismo gregário em que a Europa ardia, como contorcionada em desvario alto. Com tão belos anúncios, a defensiva integralista tomou corpo, alentando-se depressa numa vistosa fileira. Entrementes, vulgarizavam-se os escritos contrarrevolucionários de Maistre e Bonald. Em 1814 o agostinho calçado Joaquim de S. Agostinho Brito França Galvão adapta do francês a valiosa apologética que é A voz da natureza sobre a origem dos governos. Transcrevo de páginas 101, do 1.º volume, uma nota do tradutor que se deve decorar como um aforismo político insofismável. "Povo-Soberano, considerado os termos no seu complexo, — escreve França Galvão—, equivale a primeiro - último, superior - inferior, etc., etc. É uma noção monstruosa e contraditória, como v. g. lupus - homo, Deus - criatura, sempiterno - temporal, curva -recta, sim - não. E, todavia, não deixaremos de ouvir tão cedo: — O Povo-Soberano!"
Não deixámos, não! E são os conservadores portugueses que se empenham em alimentar o equívoco, aceitando com diletantismo a indiferença em formas de regime, quando não concordam com a superioridade teórica da república.
Doloroso é confessar que de então para hoje houve um recuo, — e que recuo sensível! Em frente de uma ideia nova, rompendo toda cheia de viço e seduções, não se desconcertaram os nossos e opuseram-lhe o que existia de mais sólido em matéria de embargos. Aclimata-se o erro, padecem-se-lhe as consequências e quando já não passa de um arcaísmo sem nome, só por senilidade é que se ateima em lhe perpetuar o prestígio. O ludíbrio liberalista desnacionalizou-nos. E não satisfeito ainda, é na descerebração da Raça que mais afadigosamente se cansa, enchendo-nos o conhecimento de juízos oblíquos e de inclinações sectárias desde que toma conta de nós, nas bancadas da escola.
É com tais antecedentes que a prova que sofrêramos por mão dos regeneradores de 20 leva ao golpe de mestre que foi a Vila-Francada. Portugal decididamente não queria um rei com alcunha, como o povo chamava ao rei constitucional. A vivo custo lho procuraram impor as baiucas de triângulo e trolha que anos atrás reclamavam Junot, como um dom do céu para o trono glorioso de Afonso Henriques.
É o costume velho do estrangeiro do interior. E mais que ninguém nós lhe sabemos a manha que traja de patriota com Gomes Freire e finge de governamental com Cândido José Xavier, ambos às ordens do inimigo que em som de guerra invadiram o seu torrão natal!
Filha de traidores, condenados por esse crime à pena extrema, a liberdade estreou-se entre nós em dia de S. Bartolomeu, quando anda o diabo à solta. E o erário viu-se roubado — o clubismo enredou o país nas malhas de mil e uma associações secretas. O descrédito choveu em cima do descrédito, — não demorou que nos achássemos quase a pedir por portas com esbanjamentos e latrocínios pesando na bolsa esvaída do contribuinte. As reflexões da véspera, com Penalva, França Galvão e Caetano do Amaral por doutrinários, alargaram-se em motivos de ação pelo estado unanime dos espíritos.
O infante D. Miguel espanta das Necessidades a ninhada de arengadores que lá se amesendava a 4$800 réis diários por cabeça. Coroa-lhe a obra a formidável carta de lei de 4 de Junho de 1824, na qual se formulava para as exigências da época uma solução em harmonia com o determinismo orgânico da Nacionalidade. Chegava tarde, porém. O morbo gaulês sifilizara-nos demais para um rápido remédio. E tanto assim é que não deixamos de ouvir ainda falar no Povo-Soberano, — como França Galvão receava, por impossível que seja ser-se ao mesmo tempo Deus e criatura, finito e infinito!
Preparada, ou não, nos recessos de antecâmara palatina, a morte de Dom João VI acarreta o ponto agudo da crise. Repelidos pelo instinto da coletividade, os de 20 tornam debaixo do pretexto da sucessão com o ir .•. Sub-Serra colaborando, de meias com Palmela, tramas inconfessáveis da seita. D. Pedro é a desculpa, — D. Pedro que por si próprio se excluíra da herança dinástica e que não hesitara em afirmar a seu pai que fazia parte da Maçonaria.
Intriga-se. Canning manda em Portugal e é Stuart quem nos traz do Rio a Carta que Francisco Alves, um brasileiro, redigira. Apanhada de surpresa, a Nação jura, — jura com as luminárias da praxe e os tropos aprendidos ao padre-mestre, na aula sorumbática de retórica. Há uma pausa, — um momento em que tudo se suspende, como os que vão de caminho e param de súbito a escolher o rumo que mais lhes convenha. É a hora em que o Apostolismo de 28, gerado com amor na alma da Raça, se apresta para a rijeza e para os sacrifícios de uma campanha em que só a insídia o poderia amordaçar, que não vencer.
Não o amordaçou, nem venceu, afinal. Os vencedores que como tais se julgaram é que terão de se confessar vencidos à beira do abismo aonde nos achamos, arrastados por uma pérfida loquela de sereias a este passo último de abdicação e loucura, que é a tragicomédia republicana, com o senhor Afonso Costa contra regrando a cena. Do fundo do Passado, agora que se esvaem os vapores das dormideiras, repassa a voz solene dos nossos mestres e ergue-se de novo para a vida.
São de ontem e são de hoje, porque a verdade está com eles e a verdade é de sempre. «Absolutismo» entendiam-no como «antiparlamentarismo». E a índole corruptora da Monarquia constitucional futuravam-na com um acerto tamanho e tão profundo que os impõe não só como evangelistas da corrente autoritária que em Portugal se levanta com a aspiração dos moços, mas ainda como professores ilustres de toda a filosofia experimental da Contra Revolução.
Há em Faustino José da Madre de Deus uma passagem acerca da pessoa e ofício do Rei que, atualizada pelos ensinamentos consecutivos de cem anos de deceções e de instabilidade constante, se revela como uma condensação de doutrina, das mais perfeitas de que tenho notícia. Quero inserir aqui um depoimento passageiro de José Agostinho de Macedo, em quem reverencio, além de uma das mais contornadas figuras da nossa nobiliarquia literária, uma mentalidade singularmente adiantada, tão conforme eu a acho com os enunciados positivistas da consciência moderna. "Parece que um Governo Representativo, escreve no número 2 de O Desengano, contenta os Reis e enganam-se os Povos. Quando nos vem dizer que assim se coarta o Poder de um só, é para darem aos mesmos povos um centenar de tiranos. O irrisório Dogma, ou sofistico princípio da Soberania da Nação, que é a primeira das contradições, ou o primeiro dos absurdos, é também a primeira mola das revoluções. Em nome da Nação se cometem todos os atentados pela mesma Nação, e fica escrava dos facciosos a mesma que se acredita soberana no trono."
E com um retumbante acento profético o desembargador José Acúrcio das Neves, orando como procurador de Lisboa nas Cortes-Gerais de 1828, continuará as palavras do padre.
"Proclamadores sempiternos dos direitos do Povo e da Representação Nacional, logo que o Povo manifesta os seus desejos por aclamações espontâneas, tratam de o sufocar, e sujeitar a seus caprichos. Logo que se cogita de reunir a legitima Representação Nacional, segundo as leis, e usos da Monarquia, não há meio que não empreguem para obstar a esta reunião, como fizeram em 1820. Invocam hoje a Carta, como naquele tempo invocavam as Cortes, e afetaram chorar a perda das nossas antigas Instituições, porque lhes serviria de degrau para proclamarem amanhã a República, como então proclamaram a Soberania do Povo."
Antiparlamentaristas, enquanto coordenavam as funções vivificadoras da existência nacional na exclusiva entidade do Rei, —e daí a designação de «absolutismo» que um propósito insidioso depressa desvirtuou, inculcando-os como sicários dum regime terrorista de enxovias e forcas —, os teóricos da aposentada Monarquia Tradicional aceitavam, porém, a necessidade representativa, dentro do estrito ponto concreto em que o empirismo sociológico a preceitua hoje, — como uma delegação de interesses coletivos permanentes. Ontem os Concelhos e a Casa dos Vinte-e-Quatro, constituindo o braço dos povos por procuradores bastantes em quem as classes depunham um mandato imperativo que se zelava e cumpria. Assim na vindoira Monarquia orgânica com a representação regional e profissional (Municípios e Sindicatos), prestando concurso consultivo ao chefe da Nação, Mestre do Trabalho conjuntamente, assistido dos seus conselhos técnicos, como outrora nos Três-Estados do Reino os braços da Nobreza e do Clero exprimindo ao Rei a opinião venerável, o sentir honrado e prudente.
Contra os critérios abstratos do novíssimo direito público, aprendido nas exportações marca Benjamin Constant, se erguiam, portanto, os nossos escritores tradicionalistas, não por um estéril e encolhido misoneísmo, por uma baixa solicitação retardatária, mas cheios da donairosa higiene intelectual que apenas se contrai no convívio forte das letras clássicas. Percebendo claro, definindo claro, não os enredava em difusas e perplexas ideologias a superstição vulgaríssima do Progresso, tão querida dos salões didáticos do seculo XVIII. Nem tão pouco os surpreendera numa inércia, que seria a porta aberta para a perturbação, o naturalismo amoral do valdevinos de Genebra. Defendera-os de fantasias perigosas uma sadia conceção realista da sociedade. «Se os hábitos políticos, e morais arraigados profundamente pelo lapso dos séculos se tem convertido em natureza, sem fazer a esta extrema violência, não se podem mudar, ou destruir, para se
adquirirem outros em todo o sentido contrários». Eis um aforismo indiscutível de demopsicologia, a que uma redação mais concentrada e mais acutângula conferiria visos de Gustave le Bon, mas que é simplesmente um período perdido de Agostinho de Macedo. Conhece-se o argumento com que Maurras fulmina a democracia, não é verdade?
É ele a incapacidade ingénita do sistema para garantir o prestígio e a expansão exteriores. Em torno dessa tese se desenvolve o notabilíssimo estudo de história diplomática que é o Kiel et Tanger. Pois há bem mais de meio século que em português a sustentou um português. Veja-se O novo Príncipe, do doutor José da Gama e Castro, a páginas 115 da segunda edição.
Aí se assevera “que toda a nação que, tendo importantes relações exteriores que administrar, e muito especialmente com vizinhos poderosos, não obstante isto se organizar debaixo da forma democrática, pode contar com a perda infalível da sua independência, ou por outras palavras, da sua existência como nação.”
Ora com uma noção tão objetiva da estrutura complicada das sociedades se combateu entre nós o liberalismo invasor. Como um renovamento das inclinações foraleiras da Nacionalidade, deprimidas pela enfase centralista do Marquês, a opinião conservadora operava-se sob o fôlego animado da vida provincial, para que o fisiocratismo dos sábios da Academia conseguira atrair as atenções aproveitáveis. As desgraças ininterruptas da Pátria haviam preparado um meio apto a essa cruzada reabilitadora. E que as grandes crises geram sempre consigo uma semente de resgate. É em Portugal a depredação do território pelas mangas rapaces do Corso, — o inimigo em nossa casa, a fortuna pilhada, a família a monte, tinham-nos lavrado o pousio ignóbil em que jaziam as qualidades magnificas da Raça, em que a vontade esmorecera e a coesão andava em farrapos.
Talvez que a quimera liberalista para muitos sinceros fosse abraçada como um apelo enérgico de salvação. Talvez!
Mas o que é certo é que, ao considerar-se o desvio fatal para onde nos atirou, apenas uma coisa de grande ressalta à nossa vista. É ela a atitude inquebrantável da dúzia e meia de criaturas que se furtaram ao erro empolgante da sua época, gritando a calamidade tristíssima que se disfarçava em aparências generosas, numa renúncia sublime de quem se não torce nem emudece diante da vertigem que nada sustinha e que não tardaria a subverter tudo. E no desencadear dos incidentes posteriores, com o remate de catástrofe em que desfechou a ópera-bufa da Liberdade, rendamos-lhes a dolorida homenagem dos que se transviam, mas que voltam a estrada-direita depois de cruel aprendizado. Saiba-se confessar mais uma vez ainda que os vencidos é que foram os vencedores. Em maus versos, mas com profunda visão, lá o dissera Faustino José da Madre de Deus na sua Epistola à Nação Francesa:
“Se acaso fordes hoje desprezados,
Tempo virá de serdes atendidos:
Discursos, aos homens enganados,
Só por humanidade dirigidos.”
Ah! A liberdade extática e humanitarista de 33 palpita bem na inolvidável anedota de certo desembargador, picado de filosofismos sentimentais, que uma noite mandou soltar na arribana da herdade os bois de labuta, amarrados à manjedoura. Que os animais ruminassem livres de prisões e, livres, sem cabrestos nem argolas a molestarem-nos, se refizessem à larga sobre as camas de feno para a azáfama do dia seguinte no puxar custoso dos arados! O enternecimento naturalista do magistrado não demorou a ruir de espanto quando daí a pouco, escorneados, embaraçados como nunca, os bois se enovelavam numa barafunda dos diabos, com pernas partidas e olhos vazados. Tal era a liberdade das declamações doidivanas de uma sensibilidade em hipertrofia!
(continua)
[negritos acrescentados]
Com honestidade se tentara em França a experiência parlamentarista quando da Restauração. Sabe-se como abortou o bem-intencionado ensaio e de quantos benefícios se acompanhara a ditadura de Mr. de Villéle (1821-1828), criando à França um ótimo ambiente internacional e preparando-lhe a anexação da Argélia. O advento dos burgueses de Julho com um rei à bon marché - na ironia sangrenta de Balzac, colocou a sensibilidade romântica ao serviço de um mito despido de senso como era o da Vontade-Nacional. Rousseau ressuscitava, — diabo metido a monge, nas declamações faustosas de René. E Lafayette com a monarquia representativa, a que chamava a melhor das repúblicas, dedicava-se a descobrir o meio de conciliar o espírito montante da Revolução com o tradicionalismo ultra dos salões ancien-régime. Assim se inventava a perversão da Realeza. A anarquia legislativa, com tanta repulsa condenada por Comte, viu-se defendida pelas barricadas de Paris. Como um vento de peste e guerra, daí iria acender labaredas de catástrofe entre os povos qualificados de latinos, já debaixo da influência habilidosa das Lojas.
Encurralados no Porto, a alteração política que derrubou Carlos X, veio salvar da mais ignóbil das rendições os 7.500 bravos que de norte a sul tinham Portugal em peso contra eles. Venceu o figurino exótico por causa das voltas imprevistas em que a diplomacia se embrulhou nos gabinetes europeus. E com serenidade nós concordamos agora que Évora-Monte marca, não a entrada de uma era próspera, mas o epílogo prematuro e violento de uma sentida renovação coletiva. Retalhado primeiro pelo flagelo de três invasões, o País não conseguira recolher os frutos desse movimento modesto, mas persistente, que desde os derradeiros anos do século anterior aquecia pelo esforço carinhoso dos eruditos e de alguns governantes bem inspirados as seivas entorpecidas da Grei. A uma desgraça outra desgraça se sucedia, porque o mal não anda nunca sozinho. E acabava de levar o resto a questão aberta pelo falecimento de D. João VI, com a moda liberalista emprestando-lhe atributos teatrais de despotismo.
Não fugiram os escritores legitimistas ao prenúncio dos desastres que nos aguardavam. Alto ergueram a prevenção que se desprezou. E ei-los que estão ainda no pó das livrarias ensinando-nos as incapacidades e os vícios do abominável neologismo que se contrabandeava para cá, de envolta com as contemplações do Ermo. No doutor José da Cama e Castro, no desembargador José Acúrcio das Neves, em José Agostinho de Macedo, em Gouveia Pinto, em Faustino José da Madre de Deus, nós deparamos, com efeito, o processo de ficção parlamentar instruído por exame tão minucioso, por uma tão extraordinária amplitude de correlações e detalhes, como se o desencantamento desse exercício largamente provado lhes deferisse a lógica persuasiva e certeira que distingue, por exemplo, um Charles Maurras.
Encontra-se este bem antecipado na determinação dos caracteres mórbidos das democracias, desde a falha ingénita para manterem o prestígio exterior até ao enfraquecimento dos liames sociais, pelo abuso do partidarismo e da consequente tirania burocrática do Estado. A diferença vai apenas na terminologia mais hesitante dos nossos preceptores e na posição cronológica que fornece a Charles Maurras o reforço demonstrativo dos acontecimentos que se encarregaram de justificar as apreensões daqueles nobilíssimos amigos da Ordem.
Formados ao contacto do soberbo pensamento reacionário do conde Joseph de Maistre e do senhor de Bonald, em páginas que são um monumento observação positiva, eles diagnosticaram a falência insanável da mentira que nos ganhara. Nós éramos senhores de uma notável doutrina monárquica que, apoiada nos princípios do De regimine principum, se vira exposta com superior reflexão pelos jurisconsultos de Seiscentos. Na Justa Aclamação do arcediago Vaz de Gouveia, na Usurpação, retenção e restauração de Portugal de João Pinto Ribeiro, e na Arte de Reinar, do Padre António Carvalho de Parada, se encontram formuladas por uma elevada consciência jurídica as bases do nosso direito público tradicional. É a representação de interesses, exprimindo a natureza pluralista da sociedade, e reconhecendo no Monarca a garantia do equilíbrio do todo. Pois foi a filosofia política que ressurgiu com as batalhas do Portugal-Corcunda contra a liberdade dos conluios maçónicos que punha ao sol as raízes ancestrais da Pátria.
Esclarecia-a a mais perfeita concordância com a mentalidade do tempo. Nós não ficáramos estranhos ao impulso do século. Se Pombal se fez introdutor do estadismo abstrato dos tratadistas protestantes, indo à conceção germânica da Realeza e expulsando por "republicanos" os jesuítas que se mantinham fieis aos ditames de São Tomás, não se imagine que nos amoldamos sem resistência a essas inovações adversas à conformação histórica da Nacionalidade. Com o advento do Estado Todo-Poderoso preludiavam-se os introitos da epilepsia revolucionária. Por muito que a ditadura do Marquês nos desorganizasse até à medula, sabíamos ainda distinguir o que vinha de nós e nos pertencia, tendo para com as ideologias remetidas de França as necessárias precauções sanitárias. A defesa não se limitou ao zelo policial de Pina Manique. Não desmaiara ainda dentro de nós o instinto do bem geral, definido nas linhas vigorosas de uma finalidade. E é por isso que a lição deixada aos vindoiros pelos doutores da Feliz-Aclamação se reaviva e atualiza às luzes da inteligência portuguesa, alarmada com o espraiar da onda que transbordava de Paris...
Não bastavam as medidas da Intendência, — no fundo — mais um convite à leitura proibida, que uma interdição que se houvesse de respeitar. Urgia combater facto com facto, argumento com argumento. Fazer calar e calar-se denunciava uma debilidade que se esgotava toda em roncar de forte. E então, na escolhida roda do duque de Lafões, destacam-se atitudes de contradita. Convive-se Jean-Jacques, — refutam-se-lhe os artigos da nova fé com singular energia.
Portugal não era, pelos modos, a dianteira de Marrocos, com a rainha-mãe entretendo a loucura nos brinquedos de Dona Rosa, o Príncipe-Regente cosido pelas paredes, a tremer de pavor, e Diogo Inácio, sempre vigilante, arrecadando-nos a sete-chaves dentro de uma muralha cerrada de quadrilheiros e denunciantes.
A chapa é esta, com todas as tintas fortes do ultrarromantismo, pedidas a Pinheiro Chagas. Mas a verdade é outra — e tão outra que já em 1798 o académico António Caetano do Amaral traduzia para vernáculo A Monarquia, de D. Clemente de Peñalosa y Zuniga, em que os caracteres permanentes e hereditários da função real se destacavam como o mais seguro penhor do sossego e da prosperidade comuns.
À tradução de António Caetano do Amaral segue-se imediatamente o marquês de Penalva com a sua Dissertação a favor da Monarquia, onde se prova pela razão, autoridade, e experiência ser este o melhor, e mais justo de todos os governos... (1799). Não nos apanhavam desprecavidos as seduções do misticismo gregário em que a Europa ardia, como contorcionada em desvario alto. Com tão belos anúncios, a defensiva integralista tomou corpo, alentando-se depressa numa vistosa fileira. Entrementes, vulgarizavam-se os escritos contrarrevolucionários de Maistre e Bonald. Em 1814 o agostinho calçado Joaquim de S. Agostinho Brito França Galvão adapta do francês a valiosa apologética que é A voz da natureza sobre a origem dos governos. Transcrevo de páginas 101, do 1.º volume, uma nota do tradutor que se deve decorar como um aforismo político insofismável. "Povo-Soberano, considerado os termos no seu complexo, — escreve França Galvão—, equivale a primeiro - último, superior - inferior, etc., etc. É uma noção monstruosa e contraditória, como v. g. lupus - homo, Deus - criatura, sempiterno - temporal, curva -recta, sim - não. E, todavia, não deixaremos de ouvir tão cedo: — O Povo-Soberano!"
Não deixámos, não! E são os conservadores portugueses que se empenham em alimentar o equívoco, aceitando com diletantismo a indiferença em formas de regime, quando não concordam com a superioridade teórica da república.
Doloroso é confessar que de então para hoje houve um recuo, — e que recuo sensível! Em frente de uma ideia nova, rompendo toda cheia de viço e seduções, não se desconcertaram os nossos e opuseram-lhe o que existia de mais sólido em matéria de embargos. Aclimata-se o erro, padecem-se-lhe as consequências e quando já não passa de um arcaísmo sem nome, só por senilidade é que se ateima em lhe perpetuar o prestígio. O ludíbrio liberalista desnacionalizou-nos. E não satisfeito ainda, é na descerebração da Raça que mais afadigosamente se cansa, enchendo-nos o conhecimento de juízos oblíquos e de inclinações sectárias desde que toma conta de nós, nas bancadas da escola.
É com tais antecedentes que a prova que sofrêramos por mão dos regeneradores de 20 leva ao golpe de mestre que foi a Vila-Francada. Portugal decididamente não queria um rei com alcunha, como o povo chamava ao rei constitucional. A vivo custo lho procuraram impor as baiucas de triângulo e trolha que anos atrás reclamavam Junot, como um dom do céu para o trono glorioso de Afonso Henriques.
É o costume velho do estrangeiro do interior. E mais que ninguém nós lhe sabemos a manha que traja de patriota com Gomes Freire e finge de governamental com Cândido José Xavier, ambos às ordens do inimigo que em som de guerra invadiram o seu torrão natal!
Filha de traidores, condenados por esse crime à pena extrema, a liberdade estreou-se entre nós em dia de S. Bartolomeu, quando anda o diabo à solta. E o erário viu-se roubado — o clubismo enredou o país nas malhas de mil e uma associações secretas. O descrédito choveu em cima do descrédito, — não demorou que nos achássemos quase a pedir por portas com esbanjamentos e latrocínios pesando na bolsa esvaída do contribuinte. As reflexões da véspera, com Penalva, França Galvão e Caetano do Amaral por doutrinários, alargaram-se em motivos de ação pelo estado unanime dos espíritos.
O infante D. Miguel espanta das Necessidades a ninhada de arengadores que lá se amesendava a 4$800 réis diários por cabeça. Coroa-lhe a obra a formidável carta de lei de 4 de Junho de 1824, na qual se formulava para as exigências da época uma solução em harmonia com o determinismo orgânico da Nacionalidade. Chegava tarde, porém. O morbo gaulês sifilizara-nos demais para um rápido remédio. E tanto assim é que não deixamos de ouvir ainda falar no Povo-Soberano, — como França Galvão receava, por impossível que seja ser-se ao mesmo tempo Deus e criatura, finito e infinito!
Preparada, ou não, nos recessos de antecâmara palatina, a morte de Dom João VI acarreta o ponto agudo da crise. Repelidos pelo instinto da coletividade, os de 20 tornam debaixo do pretexto da sucessão com o ir .•. Sub-Serra colaborando, de meias com Palmela, tramas inconfessáveis da seita. D. Pedro é a desculpa, — D. Pedro que por si próprio se excluíra da herança dinástica e que não hesitara em afirmar a seu pai que fazia parte da Maçonaria.
Intriga-se. Canning manda em Portugal e é Stuart quem nos traz do Rio a Carta que Francisco Alves, um brasileiro, redigira. Apanhada de surpresa, a Nação jura, — jura com as luminárias da praxe e os tropos aprendidos ao padre-mestre, na aula sorumbática de retórica. Há uma pausa, — um momento em que tudo se suspende, como os que vão de caminho e param de súbito a escolher o rumo que mais lhes convenha. É a hora em que o Apostolismo de 28, gerado com amor na alma da Raça, se apresta para a rijeza e para os sacrifícios de uma campanha em que só a insídia o poderia amordaçar, que não vencer.
Não o amordaçou, nem venceu, afinal. Os vencedores que como tais se julgaram é que terão de se confessar vencidos à beira do abismo aonde nos achamos, arrastados por uma pérfida loquela de sereias a este passo último de abdicação e loucura, que é a tragicomédia republicana, com o senhor Afonso Costa contra regrando a cena. Do fundo do Passado, agora que se esvaem os vapores das dormideiras, repassa a voz solene dos nossos mestres e ergue-se de novo para a vida.
São de ontem e são de hoje, porque a verdade está com eles e a verdade é de sempre. «Absolutismo» entendiam-no como «antiparlamentarismo». E a índole corruptora da Monarquia constitucional futuravam-na com um acerto tamanho e tão profundo que os impõe não só como evangelistas da corrente autoritária que em Portugal se levanta com a aspiração dos moços, mas ainda como professores ilustres de toda a filosofia experimental da Contra Revolução.
Há em Faustino José da Madre de Deus uma passagem acerca da pessoa e ofício do Rei que, atualizada pelos ensinamentos consecutivos de cem anos de deceções e de instabilidade constante, se revela como uma condensação de doutrina, das mais perfeitas de que tenho notícia. Quero inserir aqui um depoimento passageiro de José Agostinho de Macedo, em quem reverencio, além de uma das mais contornadas figuras da nossa nobiliarquia literária, uma mentalidade singularmente adiantada, tão conforme eu a acho com os enunciados positivistas da consciência moderna. "Parece que um Governo Representativo, escreve no número 2 de O Desengano, contenta os Reis e enganam-se os Povos. Quando nos vem dizer que assim se coarta o Poder de um só, é para darem aos mesmos povos um centenar de tiranos. O irrisório Dogma, ou sofistico princípio da Soberania da Nação, que é a primeira das contradições, ou o primeiro dos absurdos, é também a primeira mola das revoluções. Em nome da Nação se cometem todos os atentados pela mesma Nação, e fica escrava dos facciosos a mesma que se acredita soberana no trono."
E com um retumbante acento profético o desembargador José Acúrcio das Neves, orando como procurador de Lisboa nas Cortes-Gerais de 1828, continuará as palavras do padre.
"Proclamadores sempiternos dos direitos do Povo e da Representação Nacional, logo que o Povo manifesta os seus desejos por aclamações espontâneas, tratam de o sufocar, e sujeitar a seus caprichos. Logo que se cogita de reunir a legitima Representação Nacional, segundo as leis, e usos da Monarquia, não há meio que não empreguem para obstar a esta reunião, como fizeram em 1820. Invocam hoje a Carta, como naquele tempo invocavam as Cortes, e afetaram chorar a perda das nossas antigas Instituições, porque lhes serviria de degrau para proclamarem amanhã a República, como então proclamaram a Soberania do Povo."
Antiparlamentaristas, enquanto coordenavam as funções vivificadoras da existência nacional na exclusiva entidade do Rei, —e daí a designação de «absolutismo» que um propósito insidioso depressa desvirtuou, inculcando-os como sicários dum regime terrorista de enxovias e forcas —, os teóricos da aposentada Monarquia Tradicional aceitavam, porém, a necessidade representativa, dentro do estrito ponto concreto em que o empirismo sociológico a preceitua hoje, — como uma delegação de interesses coletivos permanentes. Ontem os Concelhos e a Casa dos Vinte-e-Quatro, constituindo o braço dos povos por procuradores bastantes em quem as classes depunham um mandato imperativo que se zelava e cumpria. Assim na vindoira Monarquia orgânica com a representação regional e profissional (Municípios e Sindicatos), prestando concurso consultivo ao chefe da Nação, Mestre do Trabalho conjuntamente, assistido dos seus conselhos técnicos, como outrora nos Três-Estados do Reino os braços da Nobreza e do Clero exprimindo ao Rei a opinião venerável, o sentir honrado e prudente.
Contra os critérios abstratos do novíssimo direito público, aprendido nas exportações marca Benjamin Constant, se erguiam, portanto, os nossos escritores tradicionalistas, não por um estéril e encolhido misoneísmo, por uma baixa solicitação retardatária, mas cheios da donairosa higiene intelectual que apenas se contrai no convívio forte das letras clássicas. Percebendo claro, definindo claro, não os enredava em difusas e perplexas ideologias a superstição vulgaríssima do Progresso, tão querida dos salões didáticos do seculo XVIII. Nem tão pouco os surpreendera numa inércia, que seria a porta aberta para a perturbação, o naturalismo amoral do valdevinos de Genebra. Defendera-os de fantasias perigosas uma sadia conceção realista da sociedade. «Se os hábitos políticos, e morais arraigados profundamente pelo lapso dos séculos se tem convertido em natureza, sem fazer a esta extrema violência, não se podem mudar, ou destruir, para se
adquirirem outros em todo o sentido contrários». Eis um aforismo indiscutível de demopsicologia, a que uma redação mais concentrada e mais acutângula conferiria visos de Gustave le Bon, mas que é simplesmente um período perdido de Agostinho de Macedo. Conhece-se o argumento com que Maurras fulmina a democracia, não é verdade?
É ele a incapacidade ingénita do sistema para garantir o prestígio e a expansão exteriores. Em torno dessa tese se desenvolve o notabilíssimo estudo de história diplomática que é o Kiel et Tanger. Pois há bem mais de meio século que em português a sustentou um português. Veja-se O novo Príncipe, do doutor José da Gama e Castro, a páginas 115 da segunda edição.
Aí se assevera “que toda a nação que, tendo importantes relações exteriores que administrar, e muito especialmente com vizinhos poderosos, não obstante isto se organizar debaixo da forma democrática, pode contar com a perda infalível da sua independência, ou por outras palavras, da sua existência como nação.”
Ora com uma noção tão objetiva da estrutura complicada das sociedades se combateu entre nós o liberalismo invasor. Como um renovamento das inclinações foraleiras da Nacionalidade, deprimidas pela enfase centralista do Marquês, a opinião conservadora operava-se sob o fôlego animado da vida provincial, para que o fisiocratismo dos sábios da Academia conseguira atrair as atenções aproveitáveis. As desgraças ininterruptas da Pátria haviam preparado um meio apto a essa cruzada reabilitadora. E que as grandes crises geram sempre consigo uma semente de resgate. É em Portugal a depredação do território pelas mangas rapaces do Corso, — o inimigo em nossa casa, a fortuna pilhada, a família a monte, tinham-nos lavrado o pousio ignóbil em que jaziam as qualidades magnificas da Raça, em que a vontade esmorecera e a coesão andava em farrapos.
Talvez que a quimera liberalista para muitos sinceros fosse abraçada como um apelo enérgico de salvação. Talvez!
Mas o que é certo é que, ao considerar-se o desvio fatal para onde nos atirou, apenas uma coisa de grande ressalta à nossa vista. É ela a atitude inquebrantável da dúzia e meia de criaturas que se furtaram ao erro empolgante da sua época, gritando a calamidade tristíssima que se disfarçava em aparências generosas, numa renúncia sublime de quem se não torce nem emudece diante da vertigem que nada sustinha e que não tardaria a subverter tudo. E no desencadear dos incidentes posteriores, com o remate de catástrofe em que desfechou a ópera-bufa da Liberdade, rendamos-lhes a dolorida homenagem dos que se transviam, mas que voltam a estrada-direita depois de cruel aprendizado. Saiba-se confessar mais uma vez ainda que os vencidos é que foram os vencedores. Em maus versos, mas com profunda visão, lá o dissera Faustino José da Madre de Deus na sua Epistola à Nação Francesa:
“Se acaso fordes hoje desprezados,
Tempo virá de serdes atendidos:
Discursos, aos homens enganados,
Só por humanidade dirigidos.”
Ah! A liberdade extática e humanitarista de 33 palpita bem na inolvidável anedota de certo desembargador, picado de filosofismos sentimentais, que uma noite mandou soltar na arribana da herdade os bois de labuta, amarrados à manjedoura. Que os animais ruminassem livres de prisões e, livres, sem cabrestos nem argolas a molestarem-nos, se refizessem à larga sobre as camas de feno para a azáfama do dia seguinte no puxar custoso dos arados! O enternecimento naturalista do magistrado não demorou a ruir de espanto quando daí a pouco, escorneados, embaraçados como nunca, os bois se enovelavam numa barafunda dos diabos, com pernas partidas e olhos vazados. Tal era a liberdade das declamações doidivanas de uma sensibilidade em hipertrofia!
(continua)
[negritos acrescentados]
António Sardinha, Das razões do 'Integralismo', Nação Portuguesa, ano I, n.º 7, Janeiro de 1915, pp. 206-217.