Conceito Nacional de Soberania
Hipólito Raposo
O conceito de soberania nacional vinha sendo objeto de estudo por mais de meio século, defendendo aqui Hipólito Raposo que diferentes estados possuem diferentes noções sobre a origem e a aplicação do poder. No contexto português, a monarquia tradicional não foi sempre absoluta, sendo durante muitos século limitada pela consulta aos representantes da hierarquia dos interesses coletivos e do direito constituído - o "Rei era o nó da aliança, a última pedra do edifício nacional, o centro onde iam prender-se e confundir-se os elementos construtivos. Quem estudar atentamente a natureza da nossa monarquia, facilmente a verá caracterizada pelo pacto do Rei com os concelhos."
A soberania do Rei, expressa no seu exercício, compreendia a defesa nacional, a garantia da ordem pública interna e o reconhecimento da nação na comunidade internacional. O rei representava a soberania e exercia o poder supremo, em conformidade com o interesse coletivo e as leis fundamentais.
Ao longo da história de Portugal, as Cortes Gerais desempenharam um papel importante nas decisões sobre sucessão ao trono, administração pública e defesa do território. Exemplos históricos mostram que as decisões das Cortes prevaleciam sobre a vontade do rei em diversos momentos cruciais.
Hipólito Raposo enfatiza que, ao contrário da "soberania popular" expressa nas democracias modernas, durante a monarquia a soberania era mais concreta e prática, protegida pelo monarca e baseada no interesse coletivo, com limites claros ao exercício do poder. - J. M. Q.
A soberania do Rei, expressa no seu exercício, compreendia a defesa nacional, a garantia da ordem pública interna e o reconhecimento da nação na comunidade internacional. O rei representava a soberania e exercia o poder supremo, em conformidade com o interesse coletivo e as leis fundamentais.
Ao longo da história de Portugal, as Cortes Gerais desempenharam um papel importante nas decisões sobre sucessão ao trono, administração pública e defesa do território. Exemplos históricos mostram que as decisões das Cortes prevaleciam sobre a vontade do rei em diversos momentos cruciais.
Hipólito Raposo enfatiza que, ao contrário da "soberania popular" expressa nas democracias modernas, durante a monarquia a soberania era mais concreta e prática, protegida pelo monarca e baseada no interesse coletivo, com limites claros ao exercício do poder. - J. M. Q.
Andam há mais de meio século os neo-metafísicos do direito político a procurar a noção científica de soberania, que o Contrato Social revelara no povo e as modernas constituições atribuíram à nação.
Certo que tal conceito tem de ser divergente e até oposto, conforme os fundamentos que cada qual aceitar para a origem do poder nos diversos Estados.
Aqui não venho fazer a história das doutrinas da soberania: deixarei em paz Aristóteles, São Tomás, Suárez, Comte e Duguit.
Para nós, que nos factos encontramos as razões mais fortes da nossa doutrina e para o comum dos leitores que me pedem elementos concretos que os habilitem a julgar da verdade do que aqui estamos afirmando—o que importa sobretudo é deduzir a lição histórica que a vida política da Nação nos oferece.
Servirá mais uma vez (e nunca será de mais insistir) para demonstrar que a monarquia tradicional portuguesa nunca foi absoluta, senão por abuso do poder e que, se não tinha uma constituição de linhas bem definidas, nela existiram sempre leis fundamentais que à vontade dos reis geralmente prevaleciam.
A soberania, expressa no seu exercício, compreende a defesa nacional, isto é, o poder de garantir a ordem pública interna e o direito de que as outras nações lho reconheçam na comunidade dos povos cultos, para que o interesse dos associados possa manter-se e livremente progredir.
É a personalidade da Nação, a expressão da sua autonomia que individualiza os seus interesses em face do estrangeiro e a torna um Estado.
Nas monarquias absolutas (tipo Luis XIV), o rei resume em si a plenitude do poder político. Maior que a sua vontade, outro poder não é reconhecido, nem qualquer interesse se lhe sobrepõe.
Diante da Nação, o rei apresenta-se como seu dono ou proprietário, dispondo dela arbitrariamente, à maneira do que aconteceu em Portugal no período pombalino.
Mas, antes ainda de me autorizar com os depoimentos da História, cumpre que deixe já expresso o meu modo de ver relativamente ao titular da soberania que não pode deixar de ser o Rei, com as limitações impostas pela consulta aos representantes da hierarquia dos interesses coletivos e do direito constituído.
Se a Nação existe para utilidade dos indivíduos e o poder político é a fórmula de coordenação dos seus interesses, só a vontade esclarecida e motivada do Soberano os pode exprimir, visto que a manifestação periódica das vontades individuais em ordem à superior direção política, envolve a negação da capacidade ou competência do poder constituído e logicamente conduz à dispersão, à quebra da unidade nacional.
Não compreendendo como possível uma constituição social anarquista, sem poder político que discipline as atividades, corrija os desmandos e promova a maior utilidade, na qual legitimamente cada indivíduo seria soberano, não posso admitir, sem ofensa do senso-comum, que a soberania nacional viva parcelarmente em cada cidadão, consciente ou inconsciente, visto que ela deixaria de ser completa, logo que lhe faltasse a manifestação de uma vontade que fosse.
O exercício da soberania deve coincidir sempre com o interesse comum; e se algumas vezes, por erro possível, o contrariar, o que nunca aconteceria era cindir-se para o exprimir de um lado e o desconhecer ou combater do outro.
A Nação, porque não é uma pessoa, não tem vontade deliberada, direta, real, e a consciência do seu interesse só encontra expressão na declaração do seu poder político permanente e absoluto (no sentido de superior a todos) que é a pessoa do Rei.
E o exercício do poder será sempre condicionado pela utilidade coletiva?
Salvo o caso de erro, podemos dizer que sempre assim acontece na prática. Nenhum cidadão pode ser mais interessado do que o Rei no bom governo e prestígio da Nação.
Limitam-lhe o arbítrio, mais do que as responsabilidades do passado e do presente, as conveniências do futuro nas pessoas dos seus descendentes.
Deste modo, ao exercício do supremo poder político por uma só pessoa, embora aconselhada e necessariamente cautelosa só fica uma probabilidade de erro bem-intencionado - probabilidade infinitamente menor do que a da maioria numérica e tumultuária dos eleitores que constituem o chamado povo soberano, alcunha que desconfio os politiqueiros puseram ao corpo eleitoral para lhe fazerem esquecer a sua função de besta de carga.
O critério positivo que hoje fundamenta o conceito de soberania é o do seu exercício útil, que não pode deixar de ficar inacessível à massa geral do povo, ainda para mais, dócil a todas as sugestões contraditórias da praça, onde a retórica dos tribunos falsifica a própria vontade dos ouvintes, quando julgam que dispõem dela para seu bem.
Sendo a Nação a extensão social da Família (onde ninguém discute a legitimidade do chefe), na função de governo, atribuída por natureza ao pai, poderemos encontrar o gérmen do ofício régio em que o monarca, pelo próprio tacto da sua existência na continuidade do poder, é o natural representante do interesse mais alto da grei, o titular da soberania.
Como a família se desagrega para constituir outras e acaba pela morte do chefe (pai ou mãe) e a Nação na sua identidade moral e histórica, perdura indefinidamente, a extensão da sua vida reclama a hereditariedade da magistratura que nunca se interrompe nem morre.
Mas, muito mais do que as teorias, podem esclarecer as nossas deduções os subsídios históricos que a experiência dos séculos nos legou.
É sabido que o maior erro do Liberalismo foi o desprezo da tradição dos povos a que o sistema constitucional foi aplicado como um elixir salvador.
Em geral, as preocupações conciliadoras não perturbaram a geometria reformista, as indicações mais eloquentes da realidade e da experiência opunha-se a razão pura; a constituição social das nações, a índole de cada povo não foi atendida, porque o ponto era aplicar indistintamente o sistema racional que em França levara à guilhotina os seus legítimos soberanos.
Cem anos mal andados são uma condenação inexorável do sistema parlamentar que conseguiu as honras de uma das mais ruidosas mentiras de que a memória dos homens se pode recordar.
E pelo que respeita ao exercício da soberania em épocas em que o abuso não corrompera a significação da palavra, tanto nos pode aproveitar a lição histórica da natureza institucional do poder político, na sua origem remota, como a das consultas às Côrtes Gerais da Nação quando era o caso de resolver sobre graves negócios em que o interesse coletivo podia ser afetado, não só pelo que respeita a casos duvidosos de sucessão no trono, como em altas decisões de administração pública ou de defesa do território.
No processo de formação da nacionalidade tem de ir procurar-se a natureza da função régia, a atitude do chefe comum ante os núcleos económicos e populacionais, ab origine constituídos, reconhecendo-se com interesses diferentes para viver à parte e com identidade étnica, moral, religiosa, com tradição comum, para poderem afirmar-se numa unidade confederada.
De facto, desde o Conde Dom Henrique, que foi o impulso coordenador de todas as energias dispersas e amortecidas debaixo do domínio árabe, até Dom João 11, os reis portugueses aparecem-nos, no seu mais simpático e importante aspecto, como os protetores dos povos concelhios contra os excessos da nobreza, realizando uma função de equilíbrio permanente e de justiça benévola e reta.
Cada carta de foro era um título de contrato bilateral, por assim dizer, em que o Rei conferia aos povos a declaração solene das suas liberdades e privilégios e os concelhos se ligavam, por intermédio do Soberano, à consciência da coletividade a que todos pertenciam.
O Rei era o nó da aliança, a última pedra do edifício nacional, o centro onde iam prender-se e confundir-se os elementos construtivos.
Quem estudar atentamente a natureza da nossa monarquia, facilmente a verá caracterizada pelo pacto do Rei com os concelhos.
E se à Nação não tivessem perturbado a sua estrutura, rapidamente compreenderíamos que ela funcionava como um grande município de que o Rei seria o presidente nato e vitalício.
Assim o testemunham os capítulos das Cortes em mais de cinco séculos. A função suprema do poder político residia nas Côrtes e no Rei, uma espécie de diarquia prática, tendendo para a harmonia perfeita dos dois elementos, dos quais um não se sobrepunha regularmente ao outro.
Por isso não podemos categoricamente afirmar que a soberania era a vontade do Rei ou o voto das Côrtes, visto que umas vezes o Soberano não acatava a consulta dos três estados, outras vezes estes impunham-se lhe em nome do interesse comum.
Quando da morte de Dom Fernando, foi em nome do interesse nacional que o reino negou a sucessão a Dona Beatriz e nas Cortes de Coimbra, a Crónica atribui a Nun'Alvares e a João das Regras estas palavras terminantes: «Que no Reino onde houvesse muitos Pretendentes duvidosos, as Cortes deviam decidir; e que sendo a Nação livre, e estando o Reino sem sucessor, ela o podia escolher.
Dom Duarte nomeou por testamento regente do Reino e tutora de seu filho Dom Afonso, a Rainha Dona Leonor.
As Cortes de 1439 rejeitaram a regência, anulando a disposição do Rei defunto, e entregaram o governo ao Infante Dom Pedro, Duque de Coimbra, sustentando que os três estados em Cortes tinham autoridade em matéria de regências.
A seguir, Dom João II, apesar de absoluto, no sentido corrente, não se atreveu a preterir os direitos do Duque de Beja pelos de seu filho natural Dom Jorge.
O próprio Cardeal Dom Henrique, fraco e corrompido por toda a casta de seduções, aos cinco governadores entregou o encargo de escolher sucessor, segundo as leis.
Em defesa da autonomia nacional, em Almeirim se pronunciaram, no sentido da autoridade das Cortes, Dom Diogo Salema e Febo Moniz.
E ao processo seguido na menoridade de Dom Sebastião, junta-se o exemplo da sucessão de Dom Afonso VI, por onde se prova que às regências só são conferidos direitos majestáticos, quando reconhecidos e autorizados pelos três estados do Reino. É ainda elucidativo o caso da aclamação de El-Rei Dom Miguel que se apresentou às Cortes de 28 desprovido de insígnias reais, não praticando ato algum de soberania antes da decisão favorável dos três estados.
Mas não era só nos casos de sucessão que as decisões das Côrtes eram atendidas. Basta lembrar as Cortes de Leiria, convocadas por Dom Duarte, para consultar sobre a entrega de Ceuta ou a libertação do Infante Dom Fernando, depois do desastre de Tanger.
Sabe-se qual seria o desejo do Rei, a cujo coração vinham direitas as súplicas do desgraçado Principe, seu irmão. Mas as Côrtes, à voz do Conde de Arraiolos e dos procuradores das vilas e cidades, ergueram-se em clamor, Ceuta não foi entregue aos mouros e o Infante morreu martirizado no fundo de uma masmorra de Fez.
O direito escrito confirma iniludivelmente o caráter pactual da monarquia tradicional portuguesa, sob as designações de «leis fundamentais» e outras equivalentes, de maneira a conseguir-se o que Dom João II reconheceu e exprimiu numa célebre sentença: "se o soberano era senhor das leis, logo se fazia servo delas, pois lhe primeiro obedecia" (O Novo Príncipe, 2ª edição, p. 92).
Nada mais exato e terminante. É o mesmo Rei que premia com dádivas os juízes que em certa causa julgaram contra ele.
Tenho aberto diante de mim um livro precioso. Intitula-se — Ensaio sobre a inconstitucionalidade das leis no direito português e assina-o o mais novo dos professores da Universidade, o Dr. Magalhães Colaço, que foi dos mais notáveis estudantes da minha geração.
O primeiro capítulo consagra-o à demonstração de que sempre na Monarquia Portuguesa houve leis fundamentais, isto é, normas fixas onde encontrava limites o capricho ou o abuso do Soberano.
O ilustre professor abona as suas afirmações com as melhores autoridades na história do Direito, da administração pública e com a mais incontestável de todas — a própria letra dos textos.
Aconselho ao leitor o interesse dessas 38 páginas vingadoras da mentira constitucional, precursora deste despotismo coletivo, anónimo e portanto irresponsável, que é o atual parlamento republicano.
A prática seguida na investidura da autoridade real por ocasião da aclamação solene não permite dúvidas acêrca da natureza da instituição monárquica em Portugal.
Um texto já aqui citado no artigo "Poder Pessoal e Poder Absoluto", de António Sardinha, determina claramente a significação da precedência do juramento do Rei. Assim diz ele: ... "na Monarquia Portuguesa o juramento do Rei é o que lhe imprime, para assim dizer, o caráter da Soberania. É por isso que o Rei presta o juramento antes que o Povo preste o outro, pelo qual promete obediência, e fidelidade ao Rei. Este juramento, que o Povo Português dá, logo que o Rei dá o seu, chama-se de Preito e Homenagem, isto é, de Pacto e Obediência, porque este é o ato visível, pelo qual o Povo declara a ratificação do pacto fundamental, e o reconhecimento da pessoa, pelo qual as Leis dão o direito de possuir o Trono. Dado este juramento, o Rei é soberano; e então o Povo vem prestar-lhe depois homenagem, e obediência pelo juramento de Preito e Homenagem."
Podia multiplicar os testemunhos demonstrativos de que no conceito dos vassalos da antiga Monarquia, o Rei era um dos órgãos da Nação, embora o mais alto, e que ao supremo interesse dela, expresso em leis escritas, nos foros locais, nos privilégios das classes, estava subordinada a sua ação de governo e por ele circunscrita a esfera das suas atribuições.
Nada mais significativo de que o facto de o Rei Dom Manuel a pedir à câmara da Vidigueira autorização para dar o título a Vasco da Gama, em recompensa de ter descoberto o caminho da Índia.
Sempre que o Rei exorbitasse, lá estavam os interesses das classes a contê-lo, fossem juízes no tribunal, procuradores nas Cortes, vereadores na Câmara ou mesteirais na Casa dos Vinte e Quatro.
Quem limita hoje a chamada soberania nacional, expressa numa maioria de inconscientes, à ordem de um chefe político?
Antigamente sabemos nós que era soberano o interesse comum, e como na função do Rei ele se personificava, nós podemos dizer com verdade que, sendo o Rei o titular da Soberania, ele era soberano.
Mas o Rei, forçosamente, mais que nenhum outro cidadão, está ligado ao bem da coletividade, ao passo que hoje é soberano o chefe de partido que melhor máquina de corrupção soube montar para vencer as eleições, servindo-se dos selos do Estado para alimentar o devorismo da clientela que o cerca.
E para não alargar mais esta exposição, pelo respeito que devo à fadiga de quem a estiver lendo, quero aqui terminá-la, na esperança de ter demonstrado que a soberania antiga, traduzindo a utilidade da grei, protegida pelo Monarca, e alguma coisa de concreto, de salutar e de prático que da soberania do povo em vão podemos esperar pela extensão de todos os séculos.
Maio de 1915.
HIPÓLITO RAPOSO.
"Conceito Nacional de Soberania", Nação Portuguesa, nº 9, Outubro de 1915, pp. 274-278.