Do espírito da Democracia
Luís de Almeida Braga
O sufrágio universal é uma superstição.
O que é compreensível e útil é o sufrágio profissional, acompanhado da representação dos agrupamentos locais, criados segundo as suas necessidades políticas e económicas.
- Luís de Almeida Braga
O que é compreensível e útil é o sufrágio profissional, acompanhado da representação dos agrupamentos locais, criados segundo as suas necessidades políticas e económicas.
- Luís de Almeida Braga
Cada nação é um corpo social organizado, submetido a certas leis que asseguram a conservação das suas energias e o seu harmónico funcionamento. À ciência política cabe o trabalho de investigar e conhecer essas leis e de mostrar como elas deverão ser aplicadas na organização de um determinado país.
É, pois, pelo método de observação que esse conhecimento melhor se alcança. Ao lado das reflexões que primeiro se fazem nos diferentes países, e que permitem descobrir as leis gerais que por toda a parte se encontram, miudamente se devem notar as leis particulares que determinam a vida daquele povo que ao nosso estudo diretamente interessa.
Porque cada nação é uma unidade social que se prolonga no tempo, jamais se pode perder de vista um só momento da sua história. Torna-se necessário abraçar em conjunto a existência inteira da nação.
O passado ensina a conhecer o presente e esclarece o futuro.
Mas para que cheguemos a alcançar conclusões positivas, que possam assegurar a unidade, a força e a duração de tais leis é preciso que não vamos tomá-las isoladamente na distinção que, para melhor as estudar, primeiro estabelecemos.
As instituições de um Estado formam corpo entre si. Ainda que só na ordem intelectual tal distinção se fizesse, isso seria já o mesmo que uma violenta amputação. Uma parte da vida estaria perdida.
Quando uma instituição não ocupa o seu lugar, nem enche as suas funções no corpo político de que faz parte integrante, logo se torna impossível compreendê-la.
Não podem, portanto, estudar-se as instituições de um Estado e o seu regular funcionamento, sem o prévio estudo da sua constituição política.
A fórmula política e social de um povo não está dependente da sua vontade; é determinada pela natureza e pela história. Somos nós quem terá de se adaptar a ela, porque o passado não é suscetível de se transformar segundo os nossos gostos ou inclinações.
Escreve Bourget no prefácio das suas Obras Completas que, tanto na ordem moral como na ordem física, tudo está sujeito a leis invariáveis e invencíveis, às quais, em vão, o nosso livre-arbítrio procurará subtrair-se. Ducunt volentem, nolentem trahunt, diziam os antigos. Era também a fórmula de Bacon, Nemo naturae nisi parendo imperat.
A atividade de um povo tem as suas condições inscritas na própria natureza desse povo. Ora os princípios revolucionários afirmam que Constituição e Leis são produto de uma convenção, quando tudo mostra que uma e outras se formam independentemente da nossa vontade. Nós não temos mais do que procurar a constituição que a natureza nos impõe.
Examinadas as condições em que uma nação se criou e desenvolveu, os costumes, a religião, a situação geográfica, as relações políticas, a população, determinar-se-á o governo que é necessário a essa sociedade.
As instituições de um país apresentam-se assim como sendo a criação do seu génio. Daqui a afirmação de que a Monarquia é, em Portugal, o sistema politico em que mais perfeitamente se desenvolvem as qualidades da nossa gente.
Desde a era nefasta da Terceira que, em nome dos princípios revolucionários de 89, se tem vindo sistematicamente destruindo a ordem social portuguesa.
Enfraqueceu-se a família, - primeiro elemento constitutivo da nação, que é para o corpo social o que a célula é para o corpo vivo - , e procurou-se mesmo dissolvê-la pelo divórcio, negando-se também aos pais a educação dos filhos, para a confiar ao Estado; foram divididas as províncias, que desde a primeira hora da nacionalidade tinham sido delimitadas pelo seu caracter agrícola e climatológico; a vida municipal, - lareira sagrada em que os corações se aqueciam para o amor da Terra, - foi extinta, e procedeu-se a uma arbitrária divisão administrativa que só tem a vida fictícia que o poder central lhe empresta.
A Igreja foi sujeita ao Estado, e em nome da Liberdade proibidas as ordens religiosas, centros admiráveis de estudo e caridade. Numa palavra, observa Taine, foram rotos todos os laços que a natureza ou a experiência tinham formado, e pelos quais a geografia, o clima, a história, a profissão ou ofício, uniam os povos e os tornavam fortes. E sobre as ruínas que um tal estado de coisas espalhou por toda a banda, deixando os indivíduos ao deus-dará, dispersos e debilitados, só o Estado se ergue como um colosso no meio de pigmeus miseráveis!
Em política, dizia Le Play, o abuso incessante de uma dezena de palavras que não se definem, afoga os espíritos num vergonhoso estado de inércia. Rousseau, o mestre supremo da Revolução, pois os demagogos ainda hoje não fazem mais do que realizar na prática senão o que ele formulou em teoria, condena claramente os regimes democráticos quando escreve que eles não serviriam senão para um povo de deuses.
Ora, como é que um governo feito para deuses, poderá ser aplicado a homens?
Edgar Quinet, insuspeito de reacionarismo, pergunta na sua História da Revolução se fundar uma sociedade politica sobre as teorias de Jean-Jacques, não seria a mesma coisa que construir uma cidade sobre a cratera do Etna.
Foi no Contracto Social que Rousseau condensou e sistematizou as suas ideias políticas. Nesse livro se guardam as razões filosóficas da Democracia.
Um rápido exame a alguns dos seus dogmas, bastará para demonstrar que a teoria individualista em que eles assentam, não poderia resistir a uma análise vagarosa e séria.
Certamente que o individualismo existia antes de Jean-Jacques vir ao mundo. A Rousseau não coube mais do que aperfeiçoar e rematar o mal começado por Descartes. O Contracto Social completou o Discurso sobre o método.
Barbey d'Aureviley chama a Descartes o Robinson do pensamento, e diz que ele transformou a inteligência num deserto, só para ter o regalo de lá se encontrar depois. Rousseau é um outro Robinson, sem pátria e sem princípios, valdevinos sentimental que, tendo arribado a Paris, os Enciclopedistas cobriram de galas logo que o souberam firmante do Contracto, fora do qual não há salvação filosófica para nenhum daqueles que se intitulam livres-pensadores, mas em quem, na verdade, o pensamento é profundamente servil. Ele levou até ao absurdo a fórmula satânica de Descartes: Cogito, ergo sum. [Penso, portanto sou]
O Contracto Social é o produto de um orgulho doente e insensato, não passa de uma bufoneria. Voltaire, que por ser da irmandade devia conhecê-lo bem, julga-o assim numa carta a Damilaville: Tous les honnêtes gens de Genève regardent Jean-Jacques comme un monstre. Pour moi, je ne le regarde que comme un fou [Todas as pessoas honestas de Genebra consideram Jean-Jacques um monstro. Para mim, vejo-o apenas como um louco]; depois insistia ainda: L'infâme Jean-Jacques est le Judas de la confrérie des philosophes. C'est une âme pétrie de boue et de fiel. [O infame Jean-Jacques é o Judas da irmandade dos filósofos. É uma alma amassada com lama e fel.]
Não formava Rousseau outra opinião de si mesmo. Num instante de sinceridade, confessou: Je ne regarde aucun de mes livres sans frémir: au lieu d'instruire, je corromps; au lieu de nourrir, j'empoisonne; mais la passion m'égare, avec tous mes beaux discours, je ne suis qu'un scélérat. [Não olho para nenhum dos meus livros sem estremecer: em vez de instruir, corrompo; em vez de nutrir, enveneno; a paixão desencaminha-me, com todos os meus belos discursos, sou apenas um canalha.]
Tendo abandonado os filhos, que o admirável S. Vicente de Paula caridosa e carinhosamente recolheu e educou, o imundo Jean-Jacques escreve Le Vicaire Savoyard, a fim de que o santo fosse perseguido por lhe ter livrado os filhos da miséria e da morte. Mas S. Vicente de Paula, expulso em 1793 pela escola que Rousseau fundara, volta, quatro anos depois, e traz com ele as pobres crianças, catequizadas e já de comunhão, legitimadas à face de Deus pela fé, pela humildade e pela prática das virtudes cristas.
O pensamento de Rousseau, reduzido à sua expressão mais simples, é que a sociedade é o resultado de um contracto, e que a ordem social não assenta senão sobre convenções.
A máxima de que todo o homem nasce livre e não está jamais submetido à autoridade de algum outro, começando por destruir a família, leva à revolta e à anarquia. Por certo, Rousseau reconhece que, na realidade, a criança que acaba de nascer está, ao menos pela força das coisas, sujeita àqueles que lhe deram a vida e sem os quais não poderia subsistir. Mas logo que a idade lhe permite encontrar independentemente os necessários meios de existência, Rousseau proclama que o laço natural se dissolveu, e que os filhos ficam isentos da obediência que deviam aos pais. E assim, desde a primeira página do Contracto Social, a autoridade e o respeito encontram uma formal condenação.
Rousseau supõe que originariamente os homens viviam independentes uns dos outros. Depois de os ter dispersado pelos bosques, onde levavam todos vida regalada, alimentando-se a ervas e raízes, e brincando com as feras em santa irmandade, Rousseau entendeu que tanta felicidade devia pesar-lhes e magicamente os junta um dia numa vasta planície. Então ali celebra o Contracto Social, sem que ele tivesse refletido em que a ideia de contracto não poderia nascer no espírito do homem, senão depois dele já viver em sociedade.
No entanto, Rousseau insiste em que foi dessa forma que os homens passaram do estado de natureza ao estado de sociedade, dando para isso cada um o seu consentimento, e alienando com ele a sua independência natural.
Mas para que não alienasse também a sua liberdade, ou melhor, o direito de não obedecer a ninguém senão a si mesmo, - visto que em seu entender a Liberdade é a principal dignidade de um ser humano, aliená-la, e seria uma degradação aliená-la - Rousseau valeu-se da fórmula engenhosa do sofisma, dizendo que «dando-se cada um a todos, não se dá a ninguém».
Desse contracto nasceu um corpo moral e coletivo, uma vontade geral soberana, individual e inalienável. Afirma-se então como princípio inicial um direito individual, e daí se deduz o governo de que logicamente necessita esse direito.
É dessa afirmação de direitos, - direito à liberdade, direito a igualdade, ao voto das leis e à nomeação dos governantes, que se forma nos espíritos o culto da República, por se cuidar que é esse regime que os nossos direitos naturais exigem.
A palavra "república" não anda, pois, ligada nem a ideia da Terra, nem a lembrança dos homens que fizeram a Pátria. Esconde só detrás de si uma concepção do nosso espírito, uma opinião, um Direito criado no nosso cérebro sob a ação de uma paixão mais ou menos egoísta.
Aqueles que reclamam a República, não o fazem em resultado do estudo das realidades exteriores, mas unicamente tendo em vista as exigências da sua simpatia íntima.
Ora uma ideia criada à parte da observação dos factos, aventura-se a não estar em harmonia com a realidade. E então, um natural conflito se produzirá entre a ordem das coisas, e a ordem imposta por essa ideia.
Está-se, assim, em plena ideologia. Mas porque esses ideólogos desprezaram a ordem exterior e querem impor à nação o governo forjado nas nebulosidades quiméricas do seu espírito, sem se preocuparem das invencíveis dificuldades de tal trabalho só procuram amoldar o país à forma exigida pelo regime sonhado.
E se apesar de tudo ele se não ajusta ao ideal concebido, então sacrificar-se-á a Pátria, espalhar-se-á o incêndio e a morte, e, como num eco, ouve-se repetir ainda o grito de Carrier: Nous ferons un cimetière de la France, plutôt que de ne pas la régénérer à notre manière ! [Faremos um cemitério da França, se a não regenerarmos à nossa maneira!] E outro jacobino, Hydens, dizia: antes morram cem mil vezes vinte e cinco milhões de franceses, do que a república uma só vez.
Não foi esta doutrina ignorada em Portugal. Também a fação Regicida de 20, que por esse tempo andava traduzindo quanto papel revolucionário corria a Europa, nos dava em vernáculo a fórmula La liberté ou la Mort, exclamando: Ou constituição ou morte!
À noção da criatura individual, essencialmente diversa e complicada, a filosofia então em moda opôs a noção de um homem ideal, por toda a parte o mesmo, por toda a parte justo, e para o qual seria possível organizar uma sociedade a priori, tendo só em conta os seus direitos inatos, a sua inclinação natural para a justiça e para a bondade. Ao estudo direto da realidade substituiu-se assim a ideologia, e ao método experimental os processos da razão abstrata e matemática.
Como todos os filósofos que veem no Estado um organismo, isto é, um conjunto de centros locais, todos ativos e progressivos, Taine considera a desigualdade como uma lei essencial da sociedade. Pelo contrário, a Revolução tinha como seu primeiro axioma que, socialmente, todos os homens são iguais.
Produto dessa ideia de cidadão, abstrata e teórica, absolutamente inconciliável com a saúde do corpo político, o Contracto Social procurou encontrar uma forma de associação que protegesse defendesse da força coletiva a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedecesse senão a si mesmo e d'essa forma ficasse tão livre como o era antes de contrair esses laços. D'esta maneira, a sociedade não será governada por indivíduos, porque podendo um indivíduo impor aos outros a sua vontade, logo eles deixariam de ser livres.
A sociedade será, portanto, regida por leis, e dessas leis todo o povo será autor. De aqui a ficção da soberania popular em que assenta o princípio do governo representativo.
Assim em 1789 rezava a Declaração dos Direitos do Homem, colocando a origem do poder político na vontade coletiva da sociedade. «A soberania reside essencialmente em a Nação» diz, traduzido de lá, o artigo 5.° da Constituição da República Portuguesa.
Para os pagãos era em Deus que esse poder assistia: A Jove principum, diziam, e para os cristãos era também em Deus que ele se guardava: Omni potestas a Deo, não pertencendo ao povo mais do que ordenar esse poder segundo as suas necessidades.
Pela fórmula filosófica da Democracia, o povo está acima de todos os poderes, é o poder supremo; numa palavra, o povo é Deus.
Ora esta expressão - povo -, é um nome coletivo que não representa senão uma ideia abstrata, pura concepção do nosso espírito. Abstraindo os indivíduos de que o povo se compõe, criamos um ser sem realidade, um ser fictício que só na nossa razão existe.
Mas como o povo soberano é incapaz de exercer a sua pretendida soberania, é ele obrigado a entregá-la a alguém que o represente e em quem essa abstração se realize.
Daqui resulta que basta contar todas as opiniões, sejam competentes ou não, para que logo se resolvam as questões de interesse geral, que só por si exigem longos anos de estudo, de prática ou de meditações. E juntos assim, sem outro critério, os sufrágios de quem quer que seja, ¡ feita está a escolha dos que hão-de resolver os mais delicados problemas da vida nacional!
Ora um governo estabelecido desta maneira, tende fatalmente à desorganização do país, pois os interesses gerais da nação são demasiadamente complexos para que possam ser igualmente e claramente sensíveis ao pensamento de todos.
Ninguém melhor que Comte demonstrou a importância da tradição na vida social, importância que os filósofos revolucionários desconhecem ou escondem.
É sabido o aforismo célebre de Comte: Les morts gouvernent les vivants. E como se dissesse que só pela continuidade do esforço através dos séculos, a humanidade se eleva e progride. Pois Comte ergueu-se violentamente contra o dogma da soberania popular, fundamento invariável dos governos revolucionários. "Toda a escolha dos superiores pelos inferiores, escreve ele, é profundamente anárquica." E junta ainda: "- Há mais de trinta anos que estudo filosofia, e tenho dito sempre que a soberania popular é uma mistificação opressiva e a igualdade uma ignóbil mentira."
Ao sufrágio chamava Comte uma doença política, e mostrando como são anárquicos todos os princípios revolucionários, declarava que não saberíamos terminar com a Revolução, empregando as doutrinas que a fizeram. O que serviu para destruir, não presta para construir.
Quando diferentes partidos aceitam os mesmos princípios políticos, todos os combates se travam, não roda das ideias, mas à volta de pessoas. Ora os monárquicos constitucionais - nunca é demais recordá-lo - aceitam os princípios políticos dos seus naturais adversários, os republicanos. Todos eles partem e se confundem na teoria da soberania popular e do sufrágio.
E esses princípios, ainda segundo Comte, são essencialmente destrutivos, incapazes de organizar coisa alguma, salvo a dúvida, a desordem e a degradação. Por isso Maurras pôde dizer que a Democracia é a inveja e a República a divisão e o ódio.
Em palavras ardentes de profeta, o padre José Agostinho de Macedo, no número 2 desse formidável libelo contra as ideologias revolucionárias, que se chama O Desengano, exclama: "Desenganem-se os Reis, desenganem-se os Povos, que o mais sagaz, e ardiloso artifício dos malvados ou da pestífera seita revolucionaria, é a invenção dos governos representativos; por mais disfarçados que se apresentem com atavios da Realeza, mais suspeitos se nos devem tornar. Um governo representativo à moderna é um seguro degrau para a Democracia. Parece que um governo representativo contenta os Reis, e enganam-se os Povos. Quando nos veem dizer que assim se coarta o poder de um só, é para darem aos mesmos Povos um centenar de tiranos. O irrisório dogma, ou sofistico princípio da soberania da Nação, que é a primeira das contradições, ou o primeiro dos absurdos, é também a primeira mola das Revoluções."
O poder real é só um e indivisível; reparti-lo, é enfraquecê-lo e dar cabo dele. O povo foi feito para obedecer às leis e não para ditar leis, dizia Schopenhauer.
De resto, sob o regímen do sufrágio universal não é nunca a maioria, mas uma fraca minoria quem governa. Todas as reivindicações, todas as dificuldades, todos os conflitos que nesse regime se apresentam, se resolvem dentro das urnas; que é a maneira de mais facilmente os iludir ou inutilizar.
Lemaitre, porque era sincero na sua crença, pôde reconhecer os danos essenciais do poder eletivo. Ele presidia então a uma liga eleitoral, e viu todas as maquinações, todos os truques, todas as fraudes governamentais para obter o triunfo, fosse de que maneira fosse. E compreendendo como essa máquina levava necessariamente, fatalmente, à supremacia dos piores, não se demorou em concordar com Hebert Spencer, em que a função da verdadeira liberdade consiste em limitar o poder dos parlamentos. Uma nação não é livre senão quando os deputados têm um freio, bradava Benjamin Constant, um dos grandes liberais da França.
O regime parlamentar é um regime de impressões momentâneas, um regime de opinião. E sendo a opinião de si mesmo variável, flutuante, apaixonada, superficial, o regime que ela reflete será forçosamente incompetente e estéril, e há-de lançar o Estado na confusão e na desordem.
Governo parlamentar é governo de incoerências. Num país parlamentarista não haverá obra duradoira. O trabalho fecundo e hábil de um governo, é metodicamente destruído por aquele que se lhe segue.
Quem tiver o espírito formado pelas ideias de método, de coerência, de continuidade, não pode ser um defensor do sistema parlamentar.
Recorde-se a definição de Guizot: Governar é aguentar-se no poder; o que em bom romance quer dizer: Governar é governar-se. Ora para se aguentar no poder, o governo procura por todos os meios possíveis subjugar o eleitor, tornar nula a sua força de oposição. Para isso o eleitor é amimado, corrompido, coberto de favores e de promessas. E se o governo assim não fizer, se não se conformar com essa lei, e se, por exemplo, quisesse sacrificar o interesse próprio do partido ao interesse nacional, não tardaria a desaparecer do poder para dar lugar a políticos mais avisados e menos escrupulosos.
Por sua natureza, os regimes eletivos são ainda levados dia a dia a uma maior centralização, que é a maneira de apagar as energias individuais e de os governos assegurarem a sua reeleição. Os regimes democráticos servem este fim à maravilha.
Pela supressão de todos os agrupamentos, o eleitor fica isolado e o seu voto enfraquecido. Mas como isso não bastasse ainda, os governos procuram mais dominá-lo, prendê-lo, e daí chegam mesmo a quebrar-lhe a sua independência, tornando-o funcionário público ou subornando-o com a promessa de favorecer a sua candidatura ao funcionalismo, sem se interessarem com o inevitável aumento de despesas que esses serviços, tantas vezes inúteis, vão trazer à nação.
Lembro a profecia de Ferry: "C'est par les finances que les démocraties périront."
Sob o regime do sufrágio universal a vitória pertence aos menos escrupulosos, aos mais corruptos, aos que melhor sabem especular com a credulidade, a fraqueza, a cobardia, a inveja, o ódio, o egoísmo, isto é, com tudo o que há de mais vil no homem.
Um notável publicista português comparava a época das eleições a uma grande feira franca para a compra e alborque das consciências.
A honra, o brio, o caos sentimentos generosos que podem fazer o homem digno da sua própria estima e da dos outros, são aí postos em almoeda.
O regímen democrático entrega d'esta forma a vitória ao que há de pior numa nação.
"On na qu'à formuler un axiome qui flatte la nonchalance et la vanité, dizia Goethe, pour être sûr de se faire un parti considérable dans la multitude des médiocrités."
O Parlamento é um centro de defeções que empesta toda a vida nacional. Barrés, o grande educador de almas, escrevendo recentemente um livro sobre o parlamento, punha-lhe êste título:Na cloaca. O nosso José Agostinho de Macedo, após as cortes de 20, chamava-lhe casa de Orates.
A competência universal em que se baseia a teoria democrática, é um absurdo. O Estado não é uma aglomeração de cidadãos iguais em conhecimentos e previdência, é um conjunto de famílias e grupos sociais organizados.
O sufrágio universal não atina a conhecer os interesses gerais da nação. O próprio Rousseau, em uma das muitas contradições de que o seu livro é cheio, confirma a nossa tese, reconhecendo que "il y a mille sortes d'idées qu'il est impossible de traduire dans la langue du peuple. Les vues trop générales et les objets trop éloignés sont également hors de sa portée : chaque individu ne goûtant d'autre plan de gouvernement que celui qui se rapporte à son intérêt particulier, aperçoit difficilement les avantages qu'il doit retirer des privations continuelles qu'imposent les bonnes lois ». Por isso a iniciativa parlamentar é nula em tudo quanto se refere aos interesses gerais da nação.
Bakounine opunha-se terminantemente a que a classe operária tomasse parte nas eleições. «Quem diz poder diz predomínio, e todo o predomínio presume a existência de uma massa dominada» escrevia êle. Os socialistas revolucionários consideram assim a Democracia como o pior de todos os governos burgueses.
A República, tão reclamada como a forma mais perfeita da democracia burguesa, possui no mais alto grau, segundo Proudhon, esse zelo governamental, fanático e mesquinho, que julga poder atrever-se impunemente a tudo, só porque com ele justifica os seus atos de despotismo, sob o cómodo pretexto do bem da República. E assim, o governo não é mais do que um sindicato formado para defender os interesses do poder.
O trabalho parlamentar faz-se sem regra, sem ordem, sem sinceridade.
Sempre foi assim. Já o Rei Estanislau Il se queixava dos ardis e fraudes que aí se empregam a todo o momento. "As nossas Dietas, lamenta ele, que deverão ser a escola da modéstia e da candura; o centro da singeleza e o santuário da verdade e do respeito, são ao contrário o assento da animosidade e do orgulho; são a morada em cujo seio fervem e se agitam as paixões. O que é mais tenaz e inflexível em suas ideias é reputado por mais zeloso; e se venera por mais poderosa aquela opinião que acha sustentada pelos esforços de um peito mais robusto. Dentro do Senado prevalecem os interesses particulares; e chocando entre si, cresce a desordem, a alteração se inflama e engrossa, e produz o ruído e a confusão."
Foi também de aí que veio, segundo conta Plutarco na vida de Solon, a desgraça de Atenas. Debaixo da democracia, Atenas viveu sempre entre discórdias e ambições que a atassalhavam. E só depois de reduzida as humilhações e trabalhos de uma barbara anarquia, só depois de cansado o Povo de sofrer, ele se entregou ao Principado. Aclamou-o então, e acolheu-se à sua sombra, escreve Plutarco, como ao único abrigo que lhe restava para recobrar os seus direitos.
O sufrágio universal é uma superstição.
O que é compreensível e útil é o sufrágio profissional, acompanhado da representação dos agrupamentos locais, criados segundo as suas necessidades políticas e económicas.
A Era de Quinhentos, que foi quando melhor nos possuímos, ensina a verdade desta letra. O monárquico integral, tomando por mote a divisa do Senhor Rei Dom João II, Pola Lei e pola Grei, coloca a Pátria acima de tudo, e é só em relação com o interesse nacional, e não com os seus caprichos e sentimentos, que examina e resolve todos os problemas políticos.
LUIS D'ALMEIDA BRAGA.
Do espírito da Democracia, Nação Portuguesa, nº 9, Outubro de 1915, pp. 279-285.
Refs.
- Paul Bourget, 1852-1935, Obras Completas - na ordem moral, tal como na ordem física, há leis invariáveis e invencíveis - Ducunt volentem, nolentem trahunt - em referência às leis invariáveis às quais em vão o nosso livre arbítrio se procurará subtrair. [atribuída a Séneca: ducunt volentem fata, nolentem trahunt - O destino conduz os dispostos, arrasta os relutantes ]
- Bacon - Nemo naturae nisi parendo imperate - "Ninguém comanda a natureza, a não ser dando à luz."
- Hippolyte A. Taine, 1828-1893 - o Estado ergue-se após a destruição dos corpos intermédios (p. 280); vê o Estado como um organismo, isto é um conjunto de centros locais, todos activos e progressivos, e considera a desigualdade como uma lei essencial da sociedade (p. 282) - em oposição ao pensamento da Revolução que tem como primeiro axioma a igualdade de todos os homens - "ideia abstracta e teórica"
- Frédéric Le Play, 1806-1882 - Em política, dizia Le Play, o abuso incessante de uma dezena de palavras que não se definem, afoga os espíritos num vergonhoso estado de inércia. (p. 280)
- Jean-Jacques Rousseau - "o mestre supremo da Revolução (...) condena claramente os regimes democráticos quando escreve que eles não serviriam senão para um povo de deuses" ; Rousseau aperfeiçoa o individualismo - o mal - vindo de Descartes; e cita o próprio classificando-se a si mesmo como corruptor, envenenador, celerado (p. 280); citado na p. 285.
- Edgar Quinet, História da Revolução - fundar uma sociedade política sobre as teorias de Jean-Jacques seria a mesma coisa que construir uma cidade sobre a cratera do Etna. (p. 280)
- Barbey d' Aureviley - "chama a Descartes o Robinson do pensamento"
- Voltaire - classifica Rousseau de louco e de infâme
- S. Vicente de Paula - refere-se ao acolhimento e à educação dos filhos abandonados por Rousseau... p. 281.
- Declaração dos direitos do homem (1789) - p. 282; o povo (abstração que só existe na nossa mente) é concebido como se fosse Deus.
- Comte - Os mortos governam os vivos - só pela continuidade do esforço através dos séculos, a comunidade se eleva e progride; a escolha dos superiores pelos inferiores é profundamente anárquica - "a soberania popular é uma mistificação opressiva e a igualdade uma ignóbil mentira" (p. 283);
- Charles Maurras - a Democracia é a inveja e a República a divisão e o ódio. (p. 283)
- José Agostinho de Macedo, 1761-1831 - p. 283: cita o nº 2 de O Desengano; p. 284: parlamento: Casa de Orates
- Schopenhauer - p. 283
- Lemaître - p. 283
- Herbert Spencer - a função da verdadeira liberdade consiste em limitar o poder dos parlamentos (p. 284)
- Benjamin Constant - (p. 284)
- Guizot - (p. 284) - "governar é governar-se"
- Luc Ferry - (p. 284)
- Maurice Barrès - Na Cloaca, título do seu recente livro sobre o Parlamento. (p. 284)
- Bakounine (p. 285)
- Estanislau II
- D. João II
Não há salvação filosófica para nenhum daqueles que se intitulam "livres-pensadores", mas em quem, na verdade, o pensamento é profundamente servil.
- Luís de Almeida Braga
- Luís de Almeida Braga