A "Carta"
António Sardinha
Se ainda fosse viva a Carta Constitucional, faria ontem, 29 de Abril, noventa-e-um anos de idade. Regicida uma vez e não sei quantas vezes regicida, Oliveira Martins teve uma expressão admirável quando a comparou à boceta nefasta de Pandora. De facto, a Carta Constitucional consagra na sua política de abstracções o princípio de desnacionalização metódica que trouxe Portugal à república, e, com a república, às proximidades quase inevitáveis da morte.
Sumiram-se já há muito as luminárias do estilo, emudeceu a retórica de Acácio na vacuidade pomposa das comemorações de grande gala. Frente a frente com as consequências do sofisma que só nos enxovalhou e diminuiu, nós não podemos calar a nossa acusação numa hora em que, se não quisermos participar da loucura comum, precisamos antes de tudo confessar e reconhecer os males profundos que o passado nos legou.
Num país de arreigada estrutura municipalista, a vitória da Carta foi a vitória dessa tirania burocrática a que Augusto Comte chamava "ministerialismo", e cujo carácter fundamental é, segundo o filósofo, a centralização do poder elevada ao extremo, com a corrupção sistematizada por meio geral de acção. O que o Constitucionalismo significa para nós debaixo de semelhante ponto de vista, não só como incapacidade organizadora, mas sobretudo como ruína financeira, há um livro precioso que preciosamente no-lo demonstra. Refiro-me ao trabalho de Pereira Lobo, As confissões de ministros de Portugal (1832-1871), que sobre documentos oficiais, com passagens de relatórios e algarismos de orçamentos, resume, sem intenção de combate nem espírito de partido, a obra económica e administrativa com que os aventureiros do Mindelo nos brindaram um dia, depois de conluiados com todos os mitos cosmopolitas da funesta miragem da Liberdade.
Não nos esqueçamos de que a Carta veio ao mundo, filha de estrangeiros, com estrangeiros ditando-a ao ouvido do pobre imperador D. Pedro – ninguém, como ele, vítima do figurino romântico de emancipador de povos – que, à maneira de Bolívar, a si mesmo se quisera vestir esse príncipe estouvado!
Como um flagelo dos deuses, do Brasil nos chegou o papel anarquizador, guardado na pasta de lord Stuart e com a letra de Francisco Alves firmando-lhe a redacção. É um improviso de pouco fôlego, decalcado miseravelmente sobre a constituição francesa de 1791. A diferença está em que uma foi aceite e a outra outorgada. No fundo prevalece em ambas o mesmo erro social que a Revolução proclamara e que ia ser, na quebra sensível da nossa velha disciplina católica e monárquica, a primeira porta aberta para a crise desgarradora em que hoje nos afundamos.
O internacionalismo maçónico contaminara-nos já desde atrás, com os soldados que seguiram a fortuna de Napoleão e que no regresso nos empurravam francamente para a União Ibérica, saudada e propagada nas Lojas Peninsulares como o triunfo maior da causa da Liberdade. Só numa história escrita ao contrário, como a nossa anda, é que Gomes Freire pode figurar de mártir da Pátria. O militar valente, mas desnacionalizado, da epopeia napoleónica não era o único, porém. Os seus irmãos do triângulo simbólico enraizaram-se farta e fortemente no solo português, mal o senhor Intendente deixou de farejar por toda a Lisboa do começo do século findo os agentes perniciosos da grande conspiração universal que foi, na verdade, a Revolução. Pois da Maçonaria descende o nosso liberalismo, como da Maçonaria surgiu esta república, já adivinhada e procurada com entusiasmo de sentimento e de oratória pelos homens de 1820.
Os homens de 1820 representavam a influência directa da Revolução, porque pertenciam ao partido francês, mais radical e mais puritano nos seus devaneios ideológicos. Traduzem assim uma modalidade maçónica, por vezes incompatível com os felizes que em 34 se apossaram do poder e nele se instalaram com fome vasta de sete anos. A Carta reflecte a orientação dos últimos, mais
moderada, embora maçónica também, mas de um maçonismo à inglesa com Palmela por inspirador. Procuravam-se atenuar os exageros líricos dos regeneradores vintistas e, pactuando com o trono um momento, tornar deste modo mais viável o sonho revolucionário que tão intimamente perturbara a sensibilidade facilmente excitável da nossa gente.
A biografia da Carta define-se depressa na biografia de tantos e tantos que a serviram. Teve consigo, é certo, muitas das nossas glórias militares, que nos campos da Guerra da Península souberam cumprir com garbo e heroísmo o seu dever. No entanto, desde Cândido José Xavier, banido de Portugal e condenado à pena máxima como traidor à Pátria, até José António da Silva Torres, mais tarde visconde da Serra de Pilar, que se bandeou com os revoltosos da Terceira, porque, coronel de um regimento de Lisboa, se vira descoberto como ladrão dos dinheiros
do corpo do seu comando, é-nos forçoso concordar que o movimento de que resultou a imposição decisiva da Carta não significa senão a conquista do país por um grupo de descontentes e de ambiciosos, sem outra mira que não fosse a satisfação regalada dos seus apetites vorazes.
Oliveira Martins no Portugal contemporâneo instaurou e instruíu o processo. Sem isso, como interpretar o arrependimento de Garrett e o desalento de Herculano, que, na pureza das suas convicções mais poéticas que políticas, se encontravam, ao cabo de sacrifícios inúmeros, inteiramente ludibriados? O desaforo das clientelas, surgidas no cortejo da Carta, manifestou-se logo tão
desenfreado e impudente que Luz Soriano – o insuspeitíssimo Luz Soriano! – não se conteve sem que bem cedo lançasse o seu grito de alarme num opúsculo que nunca é demasiado rememorar, Utopias desmascaradas do sistema liberal em Portugal. Ali se vergastam os desperdícios e os esbanjamentos em que o novo regime se mostrou verdadeiramente excepcional, com a sua máquina de corrupção sistemática, montada com uma perícia e uma minúcia de não se acreditar, com efeito.
Tratava-se, no fim de contas, de uma empresa de argentários sem escrúpulos, com o cavalheiro de Mendizábal por cabecilha. Só da extinção das Ordens Religiosas resvalaram para os cofres do Estado cerca de 300 milhões de cruzados. Qual o seu destino com o déficit crescendo sempre, crescendo assustadoramente? A esse respeito é típico o caso do visconde de Oliveira, Marcelino Máximo de Azevedo e Melo. Azevedo e Melo fornecera as forragens ao exército liberal. Como não havia verba para lhe pagarem, satisfez-se-lhe a dívida com a entrega pura e simples do mosteiro de Oliveira e dos seus consideráveis bens patrimoniais. Ainda na emigração, os fundos portugueses já eram negociados ao par e mesmo acima do par pela promessa categórica da reversão para o tesouro das riquezas pertencentes aos nossos institutos monásticos. Eis aqui uma página negra de que jamais o Constitucionalismo se poderá desembaraçar.
De resto, em tudo e por tudo, a Carta revelou-se para Portugal como a autêntica boceta de Pandora. Delineada em apriorismos geométricos, ela acabou de romper com a nossa tradição, já pervertida e abastardada pela centralização absolutista do século XVIII. A tradição de um povo é a continuidade da existência no tempo. Os reformadores cartistas ignoravam-no, como ignoravam que uma constituição se não redige nem se decreta, porque deriva gradualmente da natureza histórica da sociedade que se tem em vista. A nada atendeu o desvario sentimental
daquela época! Destruíram-se e revolveram-se os alicerces centenários de Portugal num furor que só obedecia «ao compasso e à esquadria da abstracção maçónica», na frase de Oliveira Martins. Os resultados colheram-se no completo eclipse da consciência nacional, na poeira solta e sem consistência a que se reduziram as instituições características do génio da raça.
Hoje a Carta está morta e mais que morta. Mas não está infelizmente morto o espírito que ela criou. A obra do nosso tradicionalismo destina-se na sua acção imediata a debelar essa erva daninha. Enquanto a não houvermos debelado, a Monarquia não será possível em Portugal. Será possível em Portugal um rei-funcionário, que a cada instante se veja prisioneiro dos políticos de profissão, ladrando-lhe de lado, à sua iniciativa de soberano, com as ameaças restritivas do pacto constitucional. Se trabalhássemos para restaurar uma situação assim, trabalhávamos para restaurar um partido, nunca a Monarquia. Por isso é que a restauração da Monarquia em Portugal só será restauração quando seja uma restauração de Portugal pela Monarquia. O caminho é apenas um e não é positivamente o que o Constitucionalismo nos oferece. Esse levou-nos à república e levar-nos-ia lá pela segunda vez, se tivéssemos a ingenuidade de optar por ele.
Como connosco, que somos novos, é que a vida e a esperança se querem, sosseguem os manes de Acácio que só voltarão a este mundo no Dia-de-Juízo com a ressurreição da Carne e para prestarem a Deus estreitas contas do imenso mal que por cá fizeram!
[ 30 de Abril de 1917]
[negritos acrescentados]
Sumiram-se já há muito as luminárias do estilo, emudeceu a retórica de Acácio na vacuidade pomposa das comemorações de grande gala. Frente a frente com as consequências do sofisma que só nos enxovalhou e diminuiu, nós não podemos calar a nossa acusação numa hora em que, se não quisermos participar da loucura comum, precisamos antes de tudo confessar e reconhecer os males profundos que o passado nos legou.
Num país de arreigada estrutura municipalista, a vitória da Carta foi a vitória dessa tirania burocrática a que Augusto Comte chamava "ministerialismo", e cujo carácter fundamental é, segundo o filósofo, a centralização do poder elevada ao extremo, com a corrupção sistematizada por meio geral de acção. O que o Constitucionalismo significa para nós debaixo de semelhante ponto de vista, não só como incapacidade organizadora, mas sobretudo como ruína financeira, há um livro precioso que preciosamente no-lo demonstra. Refiro-me ao trabalho de Pereira Lobo, As confissões de ministros de Portugal (1832-1871), que sobre documentos oficiais, com passagens de relatórios e algarismos de orçamentos, resume, sem intenção de combate nem espírito de partido, a obra económica e administrativa com que os aventureiros do Mindelo nos brindaram um dia, depois de conluiados com todos os mitos cosmopolitas da funesta miragem da Liberdade.
Não nos esqueçamos de que a Carta veio ao mundo, filha de estrangeiros, com estrangeiros ditando-a ao ouvido do pobre imperador D. Pedro – ninguém, como ele, vítima do figurino romântico de emancipador de povos – que, à maneira de Bolívar, a si mesmo se quisera vestir esse príncipe estouvado!
Como um flagelo dos deuses, do Brasil nos chegou o papel anarquizador, guardado na pasta de lord Stuart e com a letra de Francisco Alves firmando-lhe a redacção. É um improviso de pouco fôlego, decalcado miseravelmente sobre a constituição francesa de 1791. A diferença está em que uma foi aceite e a outra outorgada. No fundo prevalece em ambas o mesmo erro social que a Revolução proclamara e que ia ser, na quebra sensível da nossa velha disciplina católica e monárquica, a primeira porta aberta para a crise desgarradora em que hoje nos afundamos.
O internacionalismo maçónico contaminara-nos já desde atrás, com os soldados que seguiram a fortuna de Napoleão e que no regresso nos empurravam francamente para a União Ibérica, saudada e propagada nas Lojas Peninsulares como o triunfo maior da causa da Liberdade. Só numa história escrita ao contrário, como a nossa anda, é que Gomes Freire pode figurar de mártir da Pátria. O militar valente, mas desnacionalizado, da epopeia napoleónica não era o único, porém. Os seus irmãos do triângulo simbólico enraizaram-se farta e fortemente no solo português, mal o senhor Intendente deixou de farejar por toda a Lisboa do começo do século findo os agentes perniciosos da grande conspiração universal que foi, na verdade, a Revolução. Pois da Maçonaria descende o nosso liberalismo, como da Maçonaria surgiu esta república, já adivinhada e procurada com entusiasmo de sentimento e de oratória pelos homens de 1820.
Os homens de 1820 representavam a influência directa da Revolução, porque pertenciam ao partido francês, mais radical e mais puritano nos seus devaneios ideológicos. Traduzem assim uma modalidade maçónica, por vezes incompatível com os felizes que em 34 se apossaram do poder e nele se instalaram com fome vasta de sete anos. A Carta reflecte a orientação dos últimos, mais
moderada, embora maçónica também, mas de um maçonismo à inglesa com Palmela por inspirador. Procuravam-se atenuar os exageros líricos dos regeneradores vintistas e, pactuando com o trono um momento, tornar deste modo mais viável o sonho revolucionário que tão intimamente perturbara a sensibilidade facilmente excitável da nossa gente.
A biografia da Carta define-se depressa na biografia de tantos e tantos que a serviram. Teve consigo, é certo, muitas das nossas glórias militares, que nos campos da Guerra da Península souberam cumprir com garbo e heroísmo o seu dever. No entanto, desde Cândido José Xavier, banido de Portugal e condenado à pena máxima como traidor à Pátria, até José António da Silva Torres, mais tarde visconde da Serra de Pilar, que se bandeou com os revoltosos da Terceira, porque, coronel de um regimento de Lisboa, se vira descoberto como ladrão dos dinheiros
do corpo do seu comando, é-nos forçoso concordar que o movimento de que resultou a imposição decisiva da Carta não significa senão a conquista do país por um grupo de descontentes e de ambiciosos, sem outra mira que não fosse a satisfação regalada dos seus apetites vorazes.
Oliveira Martins no Portugal contemporâneo instaurou e instruíu o processo. Sem isso, como interpretar o arrependimento de Garrett e o desalento de Herculano, que, na pureza das suas convicções mais poéticas que políticas, se encontravam, ao cabo de sacrifícios inúmeros, inteiramente ludibriados? O desaforo das clientelas, surgidas no cortejo da Carta, manifestou-se logo tão
desenfreado e impudente que Luz Soriano – o insuspeitíssimo Luz Soriano! – não se conteve sem que bem cedo lançasse o seu grito de alarme num opúsculo que nunca é demasiado rememorar, Utopias desmascaradas do sistema liberal em Portugal. Ali se vergastam os desperdícios e os esbanjamentos em que o novo regime se mostrou verdadeiramente excepcional, com a sua máquina de corrupção sistemática, montada com uma perícia e uma minúcia de não se acreditar, com efeito.
Tratava-se, no fim de contas, de uma empresa de argentários sem escrúpulos, com o cavalheiro de Mendizábal por cabecilha. Só da extinção das Ordens Religiosas resvalaram para os cofres do Estado cerca de 300 milhões de cruzados. Qual o seu destino com o déficit crescendo sempre, crescendo assustadoramente? A esse respeito é típico o caso do visconde de Oliveira, Marcelino Máximo de Azevedo e Melo. Azevedo e Melo fornecera as forragens ao exército liberal. Como não havia verba para lhe pagarem, satisfez-se-lhe a dívida com a entrega pura e simples do mosteiro de Oliveira e dos seus consideráveis bens patrimoniais. Ainda na emigração, os fundos portugueses já eram negociados ao par e mesmo acima do par pela promessa categórica da reversão para o tesouro das riquezas pertencentes aos nossos institutos monásticos. Eis aqui uma página negra de que jamais o Constitucionalismo se poderá desembaraçar.
De resto, em tudo e por tudo, a Carta revelou-se para Portugal como a autêntica boceta de Pandora. Delineada em apriorismos geométricos, ela acabou de romper com a nossa tradição, já pervertida e abastardada pela centralização absolutista do século XVIII. A tradição de um povo é a continuidade da existência no tempo. Os reformadores cartistas ignoravam-no, como ignoravam que uma constituição se não redige nem se decreta, porque deriva gradualmente da natureza histórica da sociedade que se tem em vista. A nada atendeu o desvario sentimental
daquela época! Destruíram-se e revolveram-se os alicerces centenários de Portugal num furor que só obedecia «ao compasso e à esquadria da abstracção maçónica», na frase de Oliveira Martins. Os resultados colheram-se no completo eclipse da consciência nacional, na poeira solta e sem consistência a que se reduziram as instituições características do génio da raça.
Hoje a Carta está morta e mais que morta. Mas não está infelizmente morto o espírito que ela criou. A obra do nosso tradicionalismo destina-se na sua acção imediata a debelar essa erva daninha. Enquanto a não houvermos debelado, a Monarquia não será possível em Portugal. Será possível em Portugal um rei-funcionário, que a cada instante se veja prisioneiro dos políticos de profissão, ladrando-lhe de lado, à sua iniciativa de soberano, com as ameaças restritivas do pacto constitucional. Se trabalhássemos para restaurar uma situação assim, trabalhávamos para restaurar um partido, nunca a Monarquia. Por isso é que a restauração da Monarquia em Portugal só será restauração quando seja uma restauração de Portugal pela Monarquia. O caminho é apenas um e não é positivamente o que o Constitucionalismo nos oferece. Esse levou-nos à república e levar-nos-ia lá pela segunda vez, se tivéssemos a ingenuidade de optar por ele.
Como connosco, que somos novos, é que a vida e a esperança se querem, sosseguem os manes de Acácio que só voltarão a este mundo no Dia-de-Juízo com a ressurreição da Carne e para prestarem a Deus estreitas contas do imenso mal que por cá fizeram!
[ 30 de Abril de 1917]
[negritos acrescentados]
[In Na Feira dos Mitos - Ideias e Factos, 1926 ]