Do valor da Tradição
António Sardinha
[Do valor da Tradição (1917) in António Sardinha, Na Feira dos Mitos, Lisboa, 1926 (2ª edição, 1942, pp. 11-16]
Num país em que o sentido das palavras e das ideias anda totalmente pervertido, bom será que precisemos o que seja o significado social e político do verdadeiro tradicionalismo.
Desde já se repele o conceito corrente de "Tradição". Para nós a "Tradição" não é somente o Passado. É antes a permanência no desenvolvimento. Sendo assim, — e não é outra a base filosófica das doutrinas tradicionalistas —, as instituições de um povo não podem nunca considerar-se como um acto de exclusiva vontade pessoal ou como a imposição deliberada de um grupo maior ou menor de indivíduos. A sociedade é uma criação, não é uma construção, não é um mecanismo. Porque é uma criação, a sua existência é condicionada por certas leis naturais, de cuja acção convergente um dia resultou. Ora por "Tradição", nós temos que entender necessariamente o conjunto de hábitos e tendências que procuram manter a sociedade no equilíbrio
[ 12 ]
das forças que lhe deram origem e pelo respeito das quais continua durando. Porque as coisas existem pelas mesmas razões porque se geram, é que, cientificamente, a doutrina democrática é um erro grosseiríssimo. Socorreu-se durante quase um século de uma concepção errada do darwinismo. Debaixo do prestígio das teorias evolucionistas, tomou-se a sociedade como uma transformação incessante, tentando realizar um longínquo ideal de aperfeiçoamento, - desse aperfeiçoamento já entrevisto, através da utopia estulta do Progresso Indefinido, pela mentalidade rudimentar dos filantropos da Revolução. Donde, a aparente superioridade intelectual de que se revestiram por largos tempos os princípios nefastos que hoje combatemos. A renovação dos estudos históricos veio ensinar-nos, porém, uma visão mais exacta dos fenómenos sociais. Um outro método derivou daí, mais experimental, mais positivo. E não tardou que o critério de «Evolução» se modificasse de uma maneira fundamental. Contribuiu bastante para isso o resultado estrondoso das descobertas de René Quinton [1867-1925]. Estabelecendo a lei da constância original dos seres sobre os dados recolhidos ao longo de uma série escrupulosa de observações, nós devemos a René Quinton uma nova compreensão biológica da Vida. Por ela se prova a extensão caprichosa e ilegítima que se atribuía às conclusões de Darwin. Não nega René Quinton a Evolução, mas restringe-lhe o alcance, concretizando-lhe as probabilidades.
[ 13 ]
"La fixité domine l'évolution, - escreve Lucien Corpechot, comentador da obra de René Quinton - La fixité, est le principe; l'évolution, le corollaire". É que a natureza, - segundo um outro sábio, George Bohn -, tem o horror das variações. Não procura senão manter com afinco a pureza do seu meio-vital, - isto é, a inviolabilidade daquelas circunstâncias especiais que a geraram, e de cuja guarda e duração depende inteiramente a sua existência.
Não podemos examinar aqui as consequências altíssimas das descobertas de René Quinton. Contudo, desde que a Vida não procura senão reproduzir-se inalteravelmente, dedicando todo o seu esforço à manutenção da sua integridade original, verifica-se ruidosamente a falência dos socorros fornecidos pelo transformismo às falsidades sociológicas da Democracia. É escusado salientar o extraordinário socorro que a ciência nos traz a nós outros, — os tradicionalistas, com semelhante demonstração. Paul Bourget vê, com efeito, nessa lei da constância original dos seres um testemunho do valor objectivo das verdades proclamadas pelos grandes mestres da Contra-Revolução.
Não que as regras biológicas hajam de governar o nosso conhecimento nos domínios do pensamento político! O eminente Dr. Grasset traçou os limites da biologia e não seremos nós quem os ultrapassará, constrangendo-os à aceitação de problemas que não cabem dentro da sua Órbita. Mas Paul Bourget resolve-nos a dificuldade. «Quand M. Quinton,
[ 14 ]
- respondera ele, nous démontre qu'il existe une loi de constance du milieu vital, ce n'est pas manquer aux bonnes méthodes que d'assignaler l'accord saisissant entre cette hypothèse et le vieux principe sur les gouvernements jadis proclamé par Rivarol: res eodem modo conservatur quo generantur». [“as coisas existem pelas mesmas razões porque se geram”].
A ideia de "Tradição" reabilita-se assim com profunda e inesperada claridade! No desenvolvimento das colectividades a persistência do elemento tradicional representa a mesma acção de constância de que René Quinton faz a essência íntima de toda a evolução. Já a escola cartesiana nos ensinava que "todo o ser tende a perseverar no seu ser". "La fameuse loi de Darwin, - depõe ainda Paul Bourget, dont l'ignorance des incompétents a fait un synonyme de changement, résume, au contraire, l'effort vers la durée, la permanence par l'adaptation. L'Espèce n' évolue que pour se mantenir, pour conserver la possibilité d'accomplir certaines fonctions sans lesquelles elle n'existerait plus. Ses modifications, si paradoxale qui semble cette formule, ne sont qu'une resistance". E Bourget termina por afirmar que as raças sãs não evolucionam senão para proteger a sua conformação social, com a perda da qual viria fatalmente a desnacionalização, que o mesmo é que a desnaturação.
Compreende-se, pois, o sentido social e político do "tradicionalismo". Se, por exemplo, se fala no municipalismo português, ninguém pensa em voltar aos forais, tal como a Idade-Média os concebeu,
[ 15 ]
nem aos procuradores das vilas, recebidos em Cortes por procuração passada em termos imperativos. O que se pretende é conservar esse apreciável instinto localista que assegura de per si a realização de mais saudáveis medidas descentralizadoras no interesse do Estado e no aproveitamento das diversas representações regionais e provinciais. Deste modo, a política é para nós uma realidade, uma como que experiência, garantida e comprovada pelo decurso da história.
A história e não as nossas predilecções doutrinárias é que nos deve guiar na determinação do regime que mais convém aos destinos de uma nacionalidade. Já Taine asseverava que não deviam existir "constituições" escritas. O que existe é uma "constituição" ditada pelo passado e que sendo a segunda natureza de um povo, não se aliena com ela as condições de vida do mesmo povo.
Reputo definido o verdadeiro, o rigoroso conceito da Tradição. Antecipando-se ao seu tempo, o senhor de Bonald declarava há mais de um século que as instituições do passado não eram boas por serem antigas, mas eram antigas por serem boas. Eis aqui o fundamento positivo do "tradicionalismo". Non nova, sed nove. A "Tradição" para nós não vale sentimentalmente, como as ruínas valiam para os românticos, como uma quantidade morta, que a saudade encheu do seu perfume estranho. Não, leitor amigo! A "Tradição" vale, sobretudo, como
[ 16 ]
a permanência na continuidade. Corresponde àquela ideia directriz que já Claude Bernard assinalava como presidindo ao desenvolvimento dos seres.
Quebrá-la é cortar a sequência hereditária, romper os antecedentes morais e sociais de que somos um elo aditivo. Regressar à "Tradição" não é, portanto, regressar a um ponto interrompido, já a sumir-se além, nas nuvens da distância. É antes inserir-nos nos moldes próprios da nacionalidade, mas na altura precisa em que estaríamos hoje, se a ruptura não se tivesse produzido. Numa palavra, e conforme Paul Bourget: - o doente que delira a 40° de febre, não recua, se recupera a temperatura normal. Bem pelo contrário, ele progride. Restituir ao nosso país o seu meio-vital obliterado, é o mesmo que restituir o doente ao seu estado anterior de saúde. Tal é o valor da "Tradição", como nós a olhamos e a ciência o acredita. "Sans tradition, - observa algures Galéot, chaque generation en serait au même point que la première. Nous en serions toujours à l'âge de pierre". Acentuemo-lo bem na hora que passa, para que as inteligências bem dotadas se compenetrem da actualidade da nossa aspiração e da sua plena concordância com as correntes mais notáveis do pensamento moderno. É como teremos respondido aos que nos imaginam divorciados da marcha da sociedade, passeando o nosso suposto arcaísmo sobre uma paisagem de forcas e fogueiras inquisitoriais!
[negritos acrescentados]
Desde já se repele o conceito corrente de "Tradição". Para nós a "Tradição" não é somente o Passado. É antes a permanência no desenvolvimento. Sendo assim, — e não é outra a base filosófica das doutrinas tradicionalistas —, as instituições de um povo não podem nunca considerar-se como um acto de exclusiva vontade pessoal ou como a imposição deliberada de um grupo maior ou menor de indivíduos. A sociedade é uma criação, não é uma construção, não é um mecanismo. Porque é uma criação, a sua existência é condicionada por certas leis naturais, de cuja acção convergente um dia resultou. Ora por "Tradição", nós temos que entender necessariamente o conjunto de hábitos e tendências que procuram manter a sociedade no equilíbrio
[ 12 ]
das forças que lhe deram origem e pelo respeito das quais continua durando. Porque as coisas existem pelas mesmas razões porque se geram, é que, cientificamente, a doutrina democrática é um erro grosseiríssimo. Socorreu-se durante quase um século de uma concepção errada do darwinismo. Debaixo do prestígio das teorias evolucionistas, tomou-se a sociedade como uma transformação incessante, tentando realizar um longínquo ideal de aperfeiçoamento, - desse aperfeiçoamento já entrevisto, através da utopia estulta do Progresso Indefinido, pela mentalidade rudimentar dos filantropos da Revolução. Donde, a aparente superioridade intelectual de que se revestiram por largos tempos os princípios nefastos que hoje combatemos. A renovação dos estudos históricos veio ensinar-nos, porém, uma visão mais exacta dos fenómenos sociais. Um outro método derivou daí, mais experimental, mais positivo. E não tardou que o critério de «Evolução» se modificasse de uma maneira fundamental. Contribuiu bastante para isso o resultado estrondoso das descobertas de René Quinton [1867-1925]. Estabelecendo a lei da constância original dos seres sobre os dados recolhidos ao longo de uma série escrupulosa de observações, nós devemos a René Quinton uma nova compreensão biológica da Vida. Por ela se prova a extensão caprichosa e ilegítima que se atribuía às conclusões de Darwin. Não nega René Quinton a Evolução, mas restringe-lhe o alcance, concretizando-lhe as probabilidades.
[ 13 ]
"La fixité domine l'évolution, - escreve Lucien Corpechot, comentador da obra de René Quinton - La fixité, est le principe; l'évolution, le corollaire". É que a natureza, - segundo um outro sábio, George Bohn -, tem o horror das variações. Não procura senão manter com afinco a pureza do seu meio-vital, - isto é, a inviolabilidade daquelas circunstâncias especiais que a geraram, e de cuja guarda e duração depende inteiramente a sua existência.
Não podemos examinar aqui as consequências altíssimas das descobertas de René Quinton. Contudo, desde que a Vida não procura senão reproduzir-se inalteravelmente, dedicando todo o seu esforço à manutenção da sua integridade original, verifica-se ruidosamente a falência dos socorros fornecidos pelo transformismo às falsidades sociológicas da Democracia. É escusado salientar o extraordinário socorro que a ciência nos traz a nós outros, — os tradicionalistas, com semelhante demonstração. Paul Bourget vê, com efeito, nessa lei da constância original dos seres um testemunho do valor objectivo das verdades proclamadas pelos grandes mestres da Contra-Revolução.
Não que as regras biológicas hajam de governar o nosso conhecimento nos domínios do pensamento político! O eminente Dr. Grasset traçou os limites da biologia e não seremos nós quem os ultrapassará, constrangendo-os à aceitação de problemas que não cabem dentro da sua Órbita. Mas Paul Bourget resolve-nos a dificuldade. «Quand M. Quinton,
[ 14 ]
- respondera ele, nous démontre qu'il existe une loi de constance du milieu vital, ce n'est pas manquer aux bonnes méthodes que d'assignaler l'accord saisissant entre cette hypothèse et le vieux principe sur les gouvernements jadis proclamé par Rivarol: res eodem modo conservatur quo generantur». [“as coisas existem pelas mesmas razões porque se geram”].
A ideia de "Tradição" reabilita-se assim com profunda e inesperada claridade! No desenvolvimento das colectividades a persistência do elemento tradicional representa a mesma acção de constância de que René Quinton faz a essência íntima de toda a evolução. Já a escola cartesiana nos ensinava que "todo o ser tende a perseverar no seu ser". "La fameuse loi de Darwin, - depõe ainda Paul Bourget, dont l'ignorance des incompétents a fait un synonyme de changement, résume, au contraire, l'effort vers la durée, la permanence par l'adaptation. L'Espèce n' évolue que pour se mantenir, pour conserver la possibilité d'accomplir certaines fonctions sans lesquelles elle n'existerait plus. Ses modifications, si paradoxale qui semble cette formule, ne sont qu'une resistance". E Bourget termina por afirmar que as raças sãs não evolucionam senão para proteger a sua conformação social, com a perda da qual viria fatalmente a desnacionalização, que o mesmo é que a desnaturação.
Compreende-se, pois, o sentido social e político do "tradicionalismo". Se, por exemplo, se fala no municipalismo português, ninguém pensa em voltar aos forais, tal como a Idade-Média os concebeu,
[ 15 ]
nem aos procuradores das vilas, recebidos em Cortes por procuração passada em termos imperativos. O que se pretende é conservar esse apreciável instinto localista que assegura de per si a realização de mais saudáveis medidas descentralizadoras no interesse do Estado e no aproveitamento das diversas representações regionais e provinciais. Deste modo, a política é para nós uma realidade, uma como que experiência, garantida e comprovada pelo decurso da história.
A história e não as nossas predilecções doutrinárias é que nos deve guiar na determinação do regime que mais convém aos destinos de uma nacionalidade. Já Taine asseverava que não deviam existir "constituições" escritas. O que existe é uma "constituição" ditada pelo passado e que sendo a segunda natureza de um povo, não se aliena com ela as condições de vida do mesmo povo.
Reputo definido o verdadeiro, o rigoroso conceito da Tradição. Antecipando-se ao seu tempo, o senhor de Bonald declarava há mais de um século que as instituições do passado não eram boas por serem antigas, mas eram antigas por serem boas. Eis aqui o fundamento positivo do "tradicionalismo". Non nova, sed nove. A "Tradição" para nós não vale sentimentalmente, como as ruínas valiam para os românticos, como uma quantidade morta, que a saudade encheu do seu perfume estranho. Não, leitor amigo! A "Tradição" vale, sobretudo, como
[ 16 ]
a permanência na continuidade. Corresponde àquela ideia directriz que já Claude Bernard assinalava como presidindo ao desenvolvimento dos seres.
Quebrá-la é cortar a sequência hereditária, romper os antecedentes morais e sociais de que somos um elo aditivo. Regressar à "Tradição" não é, portanto, regressar a um ponto interrompido, já a sumir-se além, nas nuvens da distância. É antes inserir-nos nos moldes próprios da nacionalidade, mas na altura precisa em que estaríamos hoje, se a ruptura não se tivesse produzido. Numa palavra, e conforme Paul Bourget: - o doente que delira a 40° de febre, não recua, se recupera a temperatura normal. Bem pelo contrário, ele progride. Restituir ao nosso país o seu meio-vital obliterado, é o mesmo que restituir o doente ao seu estado anterior de saúde. Tal é o valor da "Tradição", como nós a olhamos e a ciência o acredita. "Sans tradition, - observa algures Galéot, chaque generation en serait au même point que la première. Nous en serions toujours à l'âge de pierre". Acentuemo-lo bem na hora que passa, para que as inteligências bem dotadas se compenetrem da actualidade da nossa aspiração e da sua plena concordância com as correntes mais notáveis do pensamento moderno. É como teremos respondido aos que nos imaginam divorciados da marcha da sociedade, passeando o nosso suposto arcaísmo sobre uma paisagem de forcas e fogueiras inquisitoriais!
[negritos acrescentados]