O exército espanhol
António Sardinha
... o exército espanhol, intérprete do sentir geral da nação, pretende restituir ao país a sua supremacia perdida nas combinações vergonhosas do partidarismo.
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Governos tidos como representativos de uma imaginária vontade nacional, os governos parlamentaristas em toda a Europa mostram-se hoje, na fase aguda da guerra, completamente divorciados das aspirações e dos interesses dos seus governados.
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Governos tidos como representativos de uma imaginária vontade nacional, os governos parlamentaristas em toda a Europa mostram-se hoje, na fase aguda da guerra, completamente divorciados das aspirações e dos interesses dos seus governados.
Mão amiga colocou sobre a minha mesa um número do conhecido jornal espanhol La correspondencia militar, chamando-me a atenção para o seu editorial. É o número referente a 24 de Outubro passado, e, com o subtítulo «El imperio de la verdad», designa-se esse artigo «La Patria y el ejército». Caluniada por uns, incompreendida por outros, a atitude do exército espanhol é ali definida em termos claros e precisos. Ninguém pense que o determina um vento indisciplinador de sedição, nem tão-pouco o suponham influenciado por quaisquer inclinações revolucionárias. Senhor da sua dignidade, o exército espanhol, intérprete do sentir geral da nação, pretende restituir ao país a sua supremacia perdida nas combinações vergonhosas do partidarismo.
Governos tidos como representativos de uma imaginária vontade nacional, os governos parlamentaristas em toda a Europa mostram-se hoje, na fase aguda da guerra, completamente divorciados das aspirações e dos interesses dos seus governados. Foi no que concluíram os regimes liberais, no esquecimento e no atropelo das mais rudimentares exigências do bem-comum, para unicamente atenderem as conveniências inconfessáveis das suas clientelas. Observou Spencer de uma vez que se a verdadeira liberdade consistira em outros tempos na luta contra o poder discricionário do Estado absoluto, ela consistiria num futuro bem próximo contra a tirania absurda dos parlamentos. A hora chegou em que a previsão de Spencer começa a ser realidade. Por obra da política, generalizada a uma profissão dos que não têm profissão, o parlamentarismo, através da burla do sufrágio, é hoje a arma de legalidade com que os partidos se impõem às indicações da colectividade e se defendem contra os seus desejos veementes de moralidade e de competência.
É debaixo deste ponto de vista que a atitude do exército espanhol carece de ser examinada.
Não se trata de um pronunciamento nem de uma pressão ditatorial sobre a marcha das coisas públicas. Cessadas por completo entre dirigentes e dirigidos as necessárias funções de osmose e de endosmose, nós vemos em Espanha a engrenagem constitucional do Estado impossibilitando a nação de ser ouvida e encaminhada segundo os seus votos profundos. Assim se explica como Maura, portador de uma forte afirmação social, se encontre incapacitado de governar dentro da ordem constituída. Despojado dos seus velhos órgãos históricos, a nação não acha mais quem junto do trono lhe traduza a voz ansiosa de paz e trabalho. Eis que o exército se apresenta, insurgindo-se contra a tutela injuriosa dos políticos e instituindo-se ele próprio essa força representativa que a consciência nacional espanhola baldadamente procurava.
Ora o artigo da Correspondencia militar, que se desdobra sobre a minha mesa, fixa com concisão enérgica o fim que o exército se propôs atingir por intermédio das suas "Juntas de Defensa". De «viejo, asqueroso y cínico sistema político» é logo de entrada qualificado o sistema por que a Espanha se governa. Não o sistema monárquico, entendamo-nos. Mas o sistema parlamentar, a que o articulista num apanhado sóbrio, mas incisivo, atribui as responsabilidades de condução que levaram a Espanha «a las jornadas tristes y adversas de Mellila en 1893», e depois à perda dos restos do seu império colonial, arranco de honesta indignação que o autor do artigo acusa, e acusa com firmeza o parlamentarismo como a causa única de decadência e de desorganização de Espanha.
«Firmada la paz de París en 1898 – escreve ele –, surgió en España un patriótico anhelo de resurrección, de engrandecimiento nacional; pero como el ejército, vencido sin derrota, y humillado miserablemente sin razón, se mantuvo en la soledad de su desesperación y de su impotencia, el sistema político que un día se creyó que lo iban a derrocar Silvela y Polavieja, artero, astuto, y ruin, separó a esos dos hombres ilustres del camino de sus elevados intentos. Y, continuando la farsa y la orgía del caciquismo, de crisis en crisis, todas estériles; de Parlamento en Parlamento, todos inútiles, llegamos a la Conferencia de Algeciras, al planteamiento del actual problema marroquí, a la campaña de Melilla de 1909, a las de 1911 y 1913, y, finalmente, a la guerra que desola en estos instantes a casi toda Europa, sin que en 1914 ni en 1917, como en 1893, en 1895 y en 1899, impere en España sino la audacia, la inmoralidad, la injusticia y el poder de los
profesionales de la política, que, al mermar las grandezas nacionales, han atrofiado el alma española, matando los ideales patrios; han malgastado escandalosamente el dinero del país, han escarnecido la justicia, han depauperado la raza y han aumentado – ¡que es el colmo! – el criminal estado de indefensión en que, desde tiempo inmemorial, nos hallamos.»
E a acusação continua, e continua cerrada. É o processo inexorável e minucioso de uma mentira a que a Espanha só pode agradecer desleixo e rudeza. Singular e precioso reforço nos vem assim do lado de lá da fronteira, corroborando de uma maneira inesperada quanto aqui se escreve e repete sobre a falência em aberto do parlamentarismo. Não é com meios termos que La Correspondencia militar se ocupa da questão. Bem rigorosamente, ela alude à «especialísima crisis de hombres de gobierno» que, por consequência de «um sistema político, montado sobre una plataforma de farsas, de concupiscencias, de convencionalismos personales y mesquinos», não permite que a Espanha veja o poder confiado a «personalidades capaces de hacer frente a los destinos del país». E o lealismo do exército enuncia-se de seguida, em palavras cheias da mais nobre elevação.
Denunciado o perigo e posta a descoberto a causa íntima dos males públicos, o artigo a que me encosto termina por declarar que é preciso «salvar a la Patria, sosteniendo al mismo tiempo el trono com más afinco y firmeza que nunca». Adulteradas com o mais franco dos descaros, estas é que são as verdadeiras intenções do exército espanhol no seu magnífico movimento de defesa. Tomando sobre a representação da legítima vontade nacional, ei-lo que luta sem tréguas contra os abusos do partidarismo que escravizam a Espanha, entregando-a à cupidez e à incompetência dos medíocres e dos aventureiros. Não é por isso a monarquia que está em risco perante a bela manifestação de espírito de classe que as "Juntas de defensa" significam. O que está em risco é o sofisma sem pudor que esquece a Espanha para só atender a si próprio, e com ele a situação pessoal de quantos persistem em fechar os ouvidos e não cumprir os deveres da sua alta hierarquia.
Não nos seria indiferente a nós, integralistas, a justa compreensão do movimento militar que no reino próximo tocou a unir contra os políticos e contra os partidos. É mais um sinal de que os tempos mudam e mudam no sentido em que a nossa mocidade se esforça por caminhar com segurança e presteza. Se bem de atrás o exército português reagisse contra tantas e tantas tentativas de burocratização, nunca a vergonha do Cinco de Outubro entraria nos domínios da possibilidade, nem tão-pouco o governo de Pimenta de Castro se desenlaçaria no desfecho ignominioso e rápido de uma troca simples de tiros pelo descair impassível de uma tarde de Maio. Sobe bem alto a lição que a Espanha nos manda, talvez esclarecida a tempo pelos exemplos da desgraça vizinha. Que nós a meditemos ao menos com sincero desejo de não a esquecer, confiando em melhores dias para a Pátria, agora que lá longe, na escola viril de guerra, as energias ancestrais da raça parecem ter encontrado a estrada bendita da ressurreição.
(1917)
[negrito acrescentado]
Governos tidos como representativos de uma imaginária vontade nacional, os governos parlamentaristas em toda a Europa mostram-se hoje, na fase aguda da guerra, completamente divorciados das aspirações e dos interesses dos seus governados. Foi no que concluíram os regimes liberais, no esquecimento e no atropelo das mais rudimentares exigências do bem-comum, para unicamente atenderem as conveniências inconfessáveis das suas clientelas. Observou Spencer de uma vez que se a verdadeira liberdade consistira em outros tempos na luta contra o poder discricionário do Estado absoluto, ela consistiria num futuro bem próximo contra a tirania absurda dos parlamentos. A hora chegou em que a previsão de Spencer começa a ser realidade. Por obra da política, generalizada a uma profissão dos que não têm profissão, o parlamentarismo, através da burla do sufrágio, é hoje a arma de legalidade com que os partidos se impõem às indicações da colectividade e se defendem contra os seus desejos veementes de moralidade e de competência.
É debaixo deste ponto de vista que a atitude do exército espanhol carece de ser examinada.
Não se trata de um pronunciamento nem de uma pressão ditatorial sobre a marcha das coisas públicas. Cessadas por completo entre dirigentes e dirigidos as necessárias funções de osmose e de endosmose, nós vemos em Espanha a engrenagem constitucional do Estado impossibilitando a nação de ser ouvida e encaminhada segundo os seus votos profundos. Assim se explica como Maura, portador de uma forte afirmação social, se encontre incapacitado de governar dentro da ordem constituída. Despojado dos seus velhos órgãos históricos, a nação não acha mais quem junto do trono lhe traduza a voz ansiosa de paz e trabalho. Eis que o exército se apresenta, insurgindo-se contra a tutela injuriosa dos políticos e instituindo-se ele próprio essa força representativa que a consciência nacional espanhola baldadamente procurava.
Ora o artigo da Correspondencia militar, que se desdobra sobre a minha mesa, fixa com concisão enérgica o fim que o exército se propôs atingir por intermédio das suas "Juntas de Defensa". De «viejo, asqueroso y cínico sistema político» é logo de entrada qualificado o sistema por que a Espanha se governa. Não o sistema monárquico, entendamo-nos. Mas o sistema parlamentar, a que o articulista num apanhado sóbrio, mas incisivo, atribui as responsabilidades de condução que levaram a Espanha «a las jornadas tristes y adversas de Mellila en 1893», e depois à perda dos restos do seu império colonial, arranco de honesta indignação que o autor do artigo acusa, e acusa com firmeza o parlamentarismo como a causa única de decadência e de desorganização de Espanha.
«Firmada la paz de París en 1898 – escreve ele –, surgió en España un patriótico anhelo de resurrección, de engrandecimiento nacional; pero como el ejército, vencido sin derrota, y humillado miserablemente sin razón, se mantuvo en la soledad de su desesperación y de su impotencia, el sistema político que un día se creyó que lo iban a derrocar Silvela y Polavieja, artero, astuto, y ruin, separó a esos dos hombres ilustres del camino de sus elevados intentos. Y, continuando la farsa y la orgía del caciquismo, de crisis en crisis, todas estériles; de Parlamento en Parlamento, todos inútiles, llegamos a la Conferencia de Algeciras, al planteamiento del actual problema marroquí, a la campaña de Melilla de 1909, a las de 1911 y 1913, y, finalmente, a la guerra que desola en estos instantes a casi toda Europa, sin que en 1914 ni en 1917, como en 1893, en 1895 y en 1899, impere en España sino la audacia, la inmoralidad, la injusticia y el poder de los
profesionales de la política, que, al mermar las grandezas nacionales, han atrofiado el alma española, matando los ideales patrios; han malgastado escandalosamente el dinero del país, han escarnecido la justicia, han depauperado la raza y han aumentado – ¡que es el colmo! – el criminal estado de indefensión en que, desde tiempo inmemorial, nos hallamos.»
E a acusação continua, e continua cerrada. É o processo inexorável e minucioso de uma mentira a que a Espanha só pode agradecer desleixo e rudeza. Singular e precioso reforço nos vem assim do lado de lá da fronteira, corroborando de uma maneira inesperada quanto aqui se escreve e repete sobre a falência em aberto do parlamentarismo. Não é com meios termos que La Correspondencia militar se ocupa da questão. Bem rigorosamente, ela alude à «especialísima crisis de hombres de gobierno» que, por consequência de «um sistema político, montado sobre una plataforma de farsas, de concupiscencias, de convencionalismos personales y mesquinos», não permite que a Espanha veja o poder confiado a «personalidades capaces de hacer frente a los destinos del país». E o lealismo do exército enuncia-se de seguida, em palavras cheias da mais nobre elevação.
Denunciado o perigo e posta a descoberto a causa íntima dos males públicos, o artigo a que me encosto termina por declarar que é preciso «salvar a la Patria, sosteniendo al mismo tiempo el trono com más afinco y firmeza que nunca». Adulteradas com o mais franco dos descaros, estas é que são as verdadeiras intenções do exército espanhol no seu magnífico movimento de defesa. Tomando sobre a representação da legítima vontade nacional, ei-lo que luta sem tréguas contra os abusos do partidarismo que escravizam a Espanha, entregando-a à cupidez e à incompetência dos medíocres e dos aventureiros. Não é por isso a monarquia que está em risco perante a bela manifestação de espírito de classe que as "Juntas de defensa" significam. O que está em risco é o sofisma sem pudor que esquece a Espanha para só atender a si próprio, e com ele a situação pessoal de quantos persistem em fechar os ouvidos e não cumprir os deveres da sua alta hierarquia.
Não nos seria indiferente a nós, integralistas, a justa compreensão do movimento militar que no reino próximo tocou a unir contra os políticos e contra os partidos. É mais um sinal de que os tempos mudam e mudam no sentido em que a nossa mocidade se esforça por caminhar com segurança e presteza. Se bem de atrás o exército português reagisse contra tantas e tantas tentativas de burocratização, nunca a vergonha do Cinco de Outubro entraria nos domínios da possibilidade, nem tão-pouco o governo de Pimenta de Castro se desenlaçaria no desfecho ignominioso e rápido de uma troca simples de tiros pelo descair impassível de uma tarde de Maio. Sobe bem alto a lição que a Espanha nos manda, talvez esclarecida a tempo pelos exemplos da desgraça vizinha. Que nós a meditemos ao menos com sincero desejo de não a esquecer, confiando em melhores dias para a Pátria, agora que lá longe, na escola viril de guerra, as energias ancestrais da raça parecem ter encontrado a estrada bendita da ressurreição.
(1917)
[negrito acrescentado]
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