O meu republicanismo
António Sardinha
O municipalismo me levou à republica, o municipalismo me trouxe à verdade monárquica,
O Sr. Sousa Costa é aquele homem de letras de quem se dizia no nosso tempo de Coimbra que lera o Eça, mas em espanhol. Sua Excelência é duma espantosa fecundidade e nunca o romance-folhetim conheceu imaginação mais criadora. As criadas de servir regozijam-se, porque não está deserta a herança de Ponson e de Montépin. Sua Excelência habilita-se a ela e com decididos merecimentos...
Pois, o Sr. Sousa Costa, procurando os costumados efeitos no público, preocupa-se comigo na sua última crónica para o Primeiro de Janeiro. E afinal para quê, santo Deus? Para que o amigo leitor ficasse sabendo aquilo que eu não oculto: — é que fui republicano, enquanto andei debaixo da tutela materna de Minerva.
A este respeito cabia-me melhor a posição de acusador do que propriamente a de réu. Na verdade, o meu republicanismo, de ordem meramente intelectual, vinha, à falta de uma doutrina, de um grande desejo de ver Portugal regenerado nos seus costumes e nos seus governos. Concordemos que os exemplos ruinosos do Constitucionalismo não podiam seduzir uma alma desempoeirada de moço.
Depois, o que me ensinava a Universidade na sua cadeira de Direito Público? Ensinava-me a aceitar a Revolução Francesa e a considerar a democracia, tal como o cidadão Cunha e Costa a considera: — um facto definitivo e irremovível.
Acresce que no campo monárquico a transigência com o inimigo arvorara-se em bandeira comum.
Dentro de mim havia ideias ávidas, — é certo, ideias bebidas com o leite, herdadas com o sangue.
Eu era um municipalista de natureza, não só porque nas minhas veias repousavam dois séculos ininterruptos de boa tradição concelhia, mas também porque vira o meu município suprimido por João Franco em 1895 e guardado em nossa casa durante três anos o seu pendão de damasco rubro, à espera de uma hora melhor.
O municipalismo me levou à república, o municipalismo me trouxe à verdade monárquica. A um mês do 5 de Outubro sustentei sozinho uma campanha municipalista em defesa dos interesses da minha terra, que me valeu alguns perigos e foi a primeira realidade a instruir-me em toda a força moral, quando Couceiro padecia em Chaves o desalento da traição e da derrota. Não hesitei dando um passo que reputo de heroico, porque nesse passo ia contido o sacrifício de todo o meu futuro.
Mais tarde bateram-me ainda à porta oferecendo-me uma candidatura em condições de honrosa independência. O Partido Evolucionista não ignora a resposta que dei a esse oferecimento.
Não me chocam, pois, quaisquer alusões que o meu republicanismo de algum dia haja de provocar do outro lado da barricada. E com a altivez daqueles a quem o carácter não serve para rebuçar erros passados, sou o primeiro a confessar coram populo: que sim, — que é verdade o facto de que o Sr. Sousa Costa se fez agora portador nas colunas do Janeiro.
O Sr. Sousa Costa aduba-o com muita literatura, — com a literatura folhetinesca de S. Ex.ª. Mas a frase soltei-a, e soltei-a com a exaltação jacobina que conheci infelizmente por mim e que por isso mesmo a combato agora com todo o fogo da minha energia. É a Deus e não aos homens, que pertence julgar dos nossos atos. E talvez que já tivesse expiado bem amargamente no meu próprio sangue a insensatez imperdoável de um momento de imperdoável irreflexão!
O Sr. Sousa Costa é que não tem nem o respeito da sensibilidade nem a noção da delicadeza. Inculca-se como meu amigo para que a sua perfídia desça mais fundo. Se porventura alguma amizade nos ligou, arrependo-me tanto dessa amizade como do júbilo criminoso de que S. Ex.ª se fez denunciante. Podia o Sr. Sousa Costa avançar mais: — podia dizer até que subscrevi o manifesto dos estudantes de 1908. Subscrevi-o, com efeito, não o subscrevendo S. Ex.", porque, apesar de republicano, se formava daí a um ano e a Monarquia morava ainda no Terreiro do Paço...
Não percebe o Sr. Sousa Costa a razão do meu monarquismo. O meu elogio consiste realmente nisso. É que S. Ex.ª está incapacitado de o perceber. Tão incapacitado está que, colaborador de um jornal monárquico às vésperas da República, pretendia como bom pretendente, — e das mais afanosos, que a Monarquia o despachasse para qualquer parte secretário geral de governo civil. Surpreendeu-o a revolução republicana em Vila Real, sua terra - ao que me informam aqui do lado. S. Ex.ª agarrava-se então aos ofícios e mais diligências do falecido par do reino, Sr. António de Azevedo Castelo Branco, a quem dedicara um livro bem excêntrico chamado Excêntricos. Eu não juro, mas contaram-me que a solicitude do Sr. Sousa Costa para com o Sr. António de Azevedo se passou logo praticamente com armas e bagagens para as benevolências de um senhor fulano de tal, primeiro governador civil da República no berço glorioso de S. Ex.ª.
Eu não juro, — repito. O que afirmo é que o Sr. Sousa Costa anda a escrever agora um romance tradicionalista. Compreende-se: — é o motivo por que já em Coimbra não assinou o manifesto de 1908. A Monarquia achava-se de pé. É a república agora quem manda. Mas como de um instante para o outro as coisas se viram debaixo para cima, S. Ex.ª decide-se a preparar o futuro com um romance «quase integralista» — na sua própria expressão.
...E fica o assunto arrumado.
1917.
Pois, o Sr. Sousa Costa, procurando os costumados efeitos no público, preocupa-se comigo na sua última crónica para o Primeiro de Janeiro. E afinal para quê, santo Deus? Para que o amigo leitor ficasse sabendo aquilo que eu não oculto: — é que fui republicano, enquanto andei debaixo da tutela materna de Minerva.
A este respeito cabia-me melhor a posição de acusador do que propriamente a de réu. Na verdade, o meu republicanismo, de ordem meramente intelectual, vinha, à falta de uma doutrina, de um grande desejo de ver Portugal regenerado nos seus costumes e nos seus governos. Concordemos que os exemplos ruinosos do Constitucionalismo não podiam seduzir uma alma desempoeirada de moço.
Depois, o que me ensinava a Universidade na sua cadeira de Direito Público? Ensinava-me a aceitar a Revolução Francesa e a considerar a democracia, tal como o cidadão Cunha e Costa a considera: — um facto definitivo e irremovível.
Acresce que no campo monárquico a transigência com o inimigo arvorara-se em bandeira comum.
Dentro de mim havia ideias ávidas, — é certo, ideias bebidas com o leite, herdadas com o sangue.
Eu era um municipalista de natureza, não só porque nas minhas veias repousavam dois séculos ininterruptos de boa tradição concelhia, mas também porque vira o meu município suprimido por João Franco em 1895 e guardado em nossa casa durante três anos o seu pendão de damasco rubro, à espera de uma hora melhor.
O municipalismo me levou à república, o municipalismo me trouxe à verdade monárquica. A um mês do 5 de Outubro sustentei sozinho uma campanha municipalista em defesa dos interesses da minha terra, que me valeu alguns perigos e foi a primeira realidade a instruir-me em toda a força moral, quando Couceiro padecia em Chaves o desalento da traição e da derrota. Não hesitei dando um passo que reputo de heroico, porque nesse passo ia contido o sacrifício de todo o meu futuro.
Mais tarde bateram-me ainda à porta oferecendo-me uma candidatura em condições de honrosa independência. O Partido Evolucionista não ignora a resposta que dei a esse oferecimento.
Não me chocam, pois, quaisquer alusões que o meu republicanismo de algum dia haja de provocar do outro lado da barricada. E com a altivez daqueles a quem o carácter não serve para rebuçar erros passados, sou o primeiro a confessar coram populo: que sim, — que é verdade o facto de que o Sr. Sousa Costa se fez agora portador nas colunas do Janeiro.
O Sr. Sousa Costa aduba-o com muita literatura, — com a literatura folhetinesca de S. Ex.ª. Mas a frase soltei-a, e soltei-a com a exaltação jacobina que conheci infelizmente por mim e que por isso mesmo a combato agora com todo o fogo da minha energia. É a Deus e não aos homens, que pertence julgar dos nossos atos. E talvez que já tivesse expiado bem amargamente no meu próprio sangue a insensatez imperdoável de um momento de imperdoável irreflexão!
O Sr. Sousa Costa é que não tem nem o respeito da sensibilidade nem a noção da delicadeza. Inculca-se como meu amigo para que a sua perfídia desça mais fundo. Se porventura alguma amizade nos ligou, arrependo-me tanto dessa amizade como do júbilo criminoso de que S. Ex.ª se fez denunciante. Podia o Sr. Sousa Costa avançar mais: — podia dizer até que subscrevi o manifesto dos estudantes de 1908. Subscrevi-o, com efeito, não o subscrevendo S. Ex.", porque, apesar de republicano, se formava daí a um ano e a Monarquia morava ainda no Terreiro do Paço...
Não percebe o Sr. Sousa Costa a razão do meu monarquismo. O meu elogio consiste realmente nisso. É que S. Ex.ª está incapacitado de o perceber. Tão incapacitado está que, colaborador de um jornal monárquico às vésperas da República, pretendia como bom pretendente, — e das mais afanosos, que a Monarquia o despachasse para qualquer parte secretário geral de governo civil. Surpreendeu-o a revolução republicana em Vila Real, sua terra - ao que me informam aqui do lado. S. Ex.ª agarrava-se então aos ofícios e mais diligências do falecido par do reino, Sr. António de Azevedo Castelo Branco, a quem dedicara um livro bem excêntrico chamado Excêntricos. Eu não juro, mas contaram-me que a solicitude do Sr. Sousa Costa para com o Sr. António de Azevedo se passou logo praticamente com armas e bagagens para as benevolências de um senhor fulano de tal, primeiro governador civil da República no berço glorioso de S. Ex.ª.
Eu não juro, — repito. O que afirmo é que o Sr. Sousa Costa anda a escrever agora um romance tradicionalista. Compreende-se: — é o motivo por que já em Coimbra não assinou o manifesto de 1908. A Monarquia achava-se de pé. É a república agora quem manda. Mas como de um instante para o outro as coisas se viram debaixo para cima, S. Ex.ª decide-se a preparar o futuro com um romance «quase integralista» — na sua própria expressão.
...E fica o assunto arrumado.
1917.

O municipalismo me levou à república, o municipalismo me trouxe à verdade monárquica. A um mês do 5 de Outubro sustentei sozinho uma campanha municipalista em defesa dos interesses da minha terra, que me valeu alguns perigos e foi a primeira realidade a instruir-me em toda a força moral, quando Couceiro padecia em Chaves o desalento da traição e da derrota.
[ In Glossário dos Tempos, ed. 1942, pp. 289-293. ]