A Democracia e a Guerra
António Sardinha
"A Democracia e a Guerra" (Junho de 1917) in Durante a Fogueira - Páginas da Guerra, 1927, pp. 3-7
António Sardinha considera que a I Guerra Mundial está ser travada entre o imperialismo germânico e o imperialismo maçónico. Aponta a revolução russa como exemplo dos perigos colocados pelas chamadas "democracias", que poderão ser tomadas e derrubadas por minorias bem organizadas, com consequências imprevisíveis. Vencendo o imperialismo maçónico, havia a possibilidade de uma subalternização europeia, mas Sardinha receava também que Renan viesse a ter razão: os povos latinos poderiam vir a sofrer uma nova invasão germânica.
- Um ponto prévio: António Sardinha usa sempre a palavra "democracia" como sinónimo de mentira ou embuste parlamentarista, de regime político dominado por oligarquias partidárias e financeiras - ver o texto Democracia, segundo o Integralismo Lusitano.
- Sardinha critica aqui fortemente o papel desse tipo de "democracia" na condução da guerra pelos Aliados. A sua defesa está assente em princípios que, na sua opinião, enfraquecem a disciplina militar e desviam a luta dos interesses nacionais para uma solidariedade cosmopolita de ideias. Em vez de cada país lutar pelos seus próprios interesses, os governos estão a combater para impor o que aqui designa por um “imperialismo democrático”.
- A instabilidade e a falta de instituições sólidas nos países aliados resultam da obsessão pela "democratização", o que contrasta com a “suficiência orgânica” dos países centrais (como a Alemanha).
- Sardinha aponta a revolução russa como exemplo dos perigos colocados pelas chamadas "democracias", que podem ser facilmente tomadas e derrubadas por minorias bem organizadas, alertando para o risco de subversão da ordem e para consequências imprevisíveis.
- Critica também a incoerência dos Aliados, que proclamam a defesa das pequenas nacionalidades mas tomam decisões contraditórias, como a pressão sobre a Grécia e a exportação da revolução para a Rússia.
- A guerra estava a revelar os perigos do referido pensamento "democrático", proveniente de figuras como Rousseau, defendendo Sardinha que as futuras gerações devem aprender com os erros cometidos, valorizando a tradição e a estabilidade.
A PREVISÃO DE UMA SUBALTERNIZAÇÃO EUROPEIA
A Conferência de Estocolmo, referida neste artigo escrito em Junho de 1917, só virá a realizar-se entre 5 e 12 de Setembro de 1917. Tal como as anteriores conferências de Zimmerwald (1915) e de Kiental (1916), também em Estocolmo a Internacional Socialista não conseguiu chegar a uma posição comum contra a Guerra. O SPD Alemão, o mais importante partido socialista europeu, tinha votado a favor da ampliação dos Orçamentos de Guerra (os chamados “créditos de guerra”), aprofundando a divisão entre "nacionalistas" e "internacionalistas".
Após a revolução russa de Fevereiro de 1917, os socialistas dinamarqueses Frederik Borgbjerg e Thorvald Stauning iniciaram conversações para realização de uma nova Conferencia de paz a celebrar em território neutral. Em 15 de Abril, o Secretariado da Internacional Socialista, dirigido por Camille Huysmans, mudou-se de Berna para Estocolmo com o intuito de preparar a conferencia organizada pelo Comité Holandês-Escandinavo (van Kol, Troelstra, Albarda, Branting, Stauning). Nesse mês de Abril, Borgbjerg foi a Petrogrado e, em nome do Comité Unificado dos partidos operários da Dinamarca, Noruega e Suécia, convidou os partidos socialistas da Rússia a participarem numa nova "Conferência de paz", que se efectuaria em Maio de 1917. Após a revolução de Fevereiro, os bolcheviques, mencheviques e socialistas revolucionários estavam unidos no soviete de Petrogrado mas, por proposta de Lenine, os bolcheviques pronunciaram-se contra a participação na Conferência de Estocolmo, denunciando Borgbjerg como um agente do imperialismo alemão.
O texto definitivo da convocação da Conferência de Estocolmo, indicava a seguinte "ordem de trabalhos":
«Os organizadores da conferencia geral (diz esse documento) estão intimamente convencidos de que, para pôr termo à guerra mundial, a Internacional deverá levar todos os partidos socialistas e todas as organizações sindicais a exercerem uma acção comum contra os governos que recusam tornar públicos os seus fins de guerra, ou que, aberta ou secretamente, tiveram em vista fins imperialistas e a eles recusam renunciar.»
Em Junho, António Sardinha, escreve que tais propósitos "são a negação de quanto se proclama e afirma a todo o instante na oratória parlamentar em que os Aliados não deixaram nunca de se mostrar fecundos. Fomentaram eles com a sua exportação revolucionária a anarquia irreparável da Rússia. No fim de contas, quem iluminou foi Berlim. Declaram-se os portadores das mais sagradas reivindicações da democracia. Querem os socialistas usar de uma dessas reivindicações, — e os Aliados só encontram solução para a dificuldade que com tanta lógica os salteia, lançando mão de medidas que em nada correspondem ao papel emancipador de que se imaginam titulares. Entretanto, a cavalgada do Apocalipse continua avançando no seu tropel de morte...
Na perspectiva de Sardinha, havia tradicionalistas que não estavam a entender a natureza imperialista da guerra e suas possíveis consequências para as nações europeias: a guerra iniciada em 1914 era fundamentalmente uma guerra entre dois imperialismos: o imperialismo germânico e o imperialismo maçónico (representado pelos governos britânico e francês, com o governo americano na sua retaguarda):
"Esquecem-se as velhas aspirações nacionais para a luta se instalar numa solidariedade cosmopolita de princípios. Já não é a França que combate pela França, a Inglaterra que combate pela Inglaterra. São antes o governo francês e o governo inglês batendo-se pela parcialidade que representam e que a todo o custo procuram impôr. Não há que duvidar: — ao imperialismo germânico um outro imperialismo se opõe, — o imperialismo democrático, se não lhe quisermos chamar com precisão imperialismo maçónico."
E, mais adiante, prevendo a futura subalternização europeia:
"Os frutos da obsessão [de Lloyd George e de Ribot] recolhem-se na ansia aflita com que se agarram às promessas da intervenção americana, subalternizando o nosso continente à formula arrogante de Monroe e promovendo — quem sabe? — a decaída próxima da hegemonia da Europa no concerto da civilização."
No essencial, António Sardinha receava que Ernest Renan viesse a ter razão. "Se a realeza, — escrevia Renan numa hora bem amarga para a França -, se a realeza e o militarismo estão perdidos nos povos latinos, os povos latinos provocam uma nova invasão germânica e eles a sofrerão."
Poucos meses depois, no Outono de 1917, com o regresso de Lenine à Rússia e a tomada do poder pelos bolcheviques, a Grande Guerra entrou no seu derradeiro capítulo.
J.M.Q.
Após a revolução russa de Fevereiro de 1917, os socialistas dinamarqueses Frederik Borgbjerg e Thorvald Stauning iniciaram conversações para realização de uma nova Conferencia de paz a celebrar em território neutral. Em 15 de Abril, o Secretariado da Internacional Socialista, dirigido por Camille Huysmans, mudou-se de Berna para Estocolmo com o intuito de preparar a conferencia organizada pelo Comité Holandês-Escandinavo (van Kol, Troelstra, Albarda, Branting, Stauning). Nesse mês de Abril, Borgbjerg foi a Petrogrado e, em nome do Comité Unificado dos partidos operários da Dinamarca, Noruega e Suécia, convidou os partidos socialistas da Rússia a participarem numa nova "Conferência de paz", que se efectuaria em Maio de 1917. Após a revolução de Fevereiro, os bolcheviques, mencheviques e socialistas revolucionários estavam unidos no soviete de Petrogrado mas, por proposta de Lenine, os bolcheviques pronunciaram-se contra a participação na Conferência de Estocolmo, denunciando Borgbjerg como um agente do imperialismo alemão.
O texto definitivo da convocação da Conferência de Estocolmo, indicava a seguinte "ordem de trabalhos":
- A guerra mundial e a Internacional;
- O programa de paz da Internacional;
- Vias e meios para a realização desse programa e conclusão rápida da guerra.
«Os organizadores da conferencia geral (diz esse documento) estão intimamente convencidos de que, para pôr termo à guerra mundial, a Internacional deverá levar todos os partidos socialistas e todas as organizações sindicais a exercerem uma acção comum contra os governos que recusam tornar públicos os seus fins de guerra, ou que, aberta ou secretamente, tiveram em vista fins imperialistas e a eles recusam renunciar.»
Em Junho, António Sardinha, escreve que tais propósitos "são a negação de quanto se proclama e afirma a todo o instante na oratória parlamentar em que os Aliados não deixaram nunca de se mostrar fecundos. Fomentaram eles com a sua exportação revolucionária a anarquia irreparável da Rússia. No fim de contas, quem iluminou foi Berlim. Declaram-se os portadores das mais sagradas reivindicações da democracia. Querem os socialistas usar de uma dessas reivindicações, — e os Aliados só encontram solução para a dificuldade que com tanta lógica os salteia, lançando mão de medidas que em nada correspondem ao papel emancipador de que se imaginam titulares. Entretanto, a cavalgada do Apocalipse continua avançando no seu tropel de morte...
Na perspectiva de Sardinha, havia tradicionalistas que não estavam a entender a natureza imperialista da guerra e suas possíveis consequências para as nações europeias: a guerra iniciada em 1914 era fundamentalmente uma guerra entre dois imperialismos: o imperialismo germânico e o imperialismo maçónico (representado pelos governos britânico e francês, com o governo americano na sua retaguarda):
"Esquecem-se as velhas aspirações nacionais para a luta se instalar numa solidariedade cosmopolita de princípios. Já não é a França que combate pela França, a Inglaterra que combate pela Inglaterra. São antes o governo francês e o governo inglês batendo-se pela parcialidade que representam e que a todo o custo procuram impôr. Não há que duvidar: — ao imperialismo germânico um outro imperialismo se opõe, — o imperialismo democrático, se não lhe quisermos chamar com precisão imperialismo maçónico."
E, mais adiante, prevendo a futura subalternização europeia:
"Os frutos da obsessão [de Lloyd George e de Ribot] recolhem-se na ansia aflita com que se agarram às promessas da intervenção americana, subalternizando o nosso continente à formula arrogante de Monroe e promovendo — quem sabe? — a decaída próxima da hegemonia da Europa no concerto da civilização."
No essencial, António Sardinha receava que Ernest Renan viesse a ter razão. "Se a realeza, — escrevia Renan numa hora bem amarga para a França -, se a realeza e o militarismo estão perdidos nos povos latinos, os povos latinos provocam uma nova invasão germânica e eles a sofrerão."
Poucos meses depois, no Outono de 1917, com o regresso de Lenine à Rússia e a tomada do poder pelos bolcheviques, a Grande Guerra entrou no seu derradeiro capítulo.
J.M.Q.
A DEMOCRACIA E A GUERRA
Em mau terreno colocaram os Aliados a defesa da sua causa. A democracia, de que estrondosamente se dizem os paladinos, é a raiz íntima da inutilidade, até hoje bem patente, de todos os seus extraordinários esforços militares. A disciplina, sem a qual não há exército nem a guerra se faz com proveito, exclui fundamentalmente o erro liberalista que os Aliados porfiam em cultivar e servir. A questão está-se desviando do seu verdadeiro eixo de equilíbrio para um terreno mais que resvaladiço – para um terreno que, de um modo ou de outro, só nos pode ser motivo de desastres irreparáveis. Esquecem-se as velhas aspirações nacionais para a luta se instalar numa solidariedade cosmopolita de princípios. Já não é a França que combate pela França, a Inglaterra que combate pela Inglaterra. São antes o governo francês e o governo inglês batendo-se pela parcialidade que representam e que a todo o custo procuram impor. Não há que duvidar: ao imperialismo germânico um outro imperialismo se opõe – o imperialismo democrático, se não lhe quisermos chamar com precisão imperialismo maçónico.
No entanto, os factos, de dia para dia, demonstram-nos os resultados fatais dessa cegueira, que só traduz o menosprezo de tanto e tanto sacrifício por parte dos tradicionalistas na tremendíssima catástrofe que esmaga, há três anos, a Europa crucificada. As consequências verificam-se – e verificam-se num simples relance de olhos. Qual a base de resistência dos Centrais a um círculo de ferro que os teria já esmagado, se uma causa profunda não anulasse a superioridade de número e de posição com que a cada hora se defrontam e de que conseguem sempre desembaraçar-se com êxito? Só os obcecados é que o não vêem. É uma suficiência de natureza orgânica – uma suficiência de instituições, de estabilidade governativa, que, infelizmente para nós, os Aliados não conhecem, tontos como vivem no seu sonho estulto de democratizarem o mundo.
A revolução na Rússia – se uma demência, que começa a ser aterradora, não dominasse a todos –, a revolução da Rússia bastava já de si para prevenir os estadistas, que nos hão-de conduzir à vitória, de quanto é incerto e traiçoeiro o caminho por onde encarreiram. Não bastou, desgraçadamente. No seu apelo às forças negativas da sociedade, os Aliados, constantemente a contar com a revolução na Alemanha, parece que desistiram de vencer militarmente para triunfarem apenas pela subversão da ordem estatuída. Se assim é, terríveis surpresas os esperam! A atitude do exército espanhol é já nesse sentido um aviso significativo. Não sei o que será amanhã a atitude da Grécia, dada a sua inteira identificação com o rei deposto, que, depois de um brilhante passado guerreiro, é atirado abaixo do trono unicamente por ser o intérprete das tendências do seu povo.
Existe aqui um manifesto desacordo entre o enunciado frequente de protecção às pequenas nacionalidades, de que os Aliados fizeram a mais bela divisa dos seus estandartes, e o seu inexplicável procedimento para com a côrte de Atenas, que as exigências da guerra justificarão, mas que talvez a história haja de emparceirar com palavras rigorosas ao lado da violação da neutralidade da Bélgica.
Não insisto na análise de um ponto tão melindroso como este se me revela. O que eu entro a recear é que se realize a previsão de Renan. Lembrei-a já a propósito dos acontecimentos da Rússia. Não é demais lembrá-la outra vez, embora peça a Deus para que ela não seja o remate fatídico desta espécie de festim de Baltazar, em que o desvario democrático dos Aliados nem de longe se preocupa com o destino implacável que nos parece andar preparando. «Se a realeza – escrevia Renan numa hora bem amarga para a França –, se a realeza e o militarismo estão perdidos nos povos latinos, os povos latinos provocam uma nova invasão germânica e eles a sofrerão. Não pensam, porém, assim os Lloyd George e os Ribot. Os frutos da sua obsessão recolhem-se na ânsia aflita com que se agarram às promessas da intervenção americana, subalternizando o nosso continente à fórmula arrogante de Monroe e promovendo – quem sabe? – a decaída próxima da hegemonia da Europa no concerto da civilização.
Depois, tão errada é a estrada por onde os Aliados se lançaram com um afinco que é difícil de compreender, se o não explicarmos como uma razão universal de seita, que a força superior das circunstâncias os obriga a contradizerem-se perante as necessidades mais altas da sua legítima defesa. Já aludi à pressão exercida sobre a Grécia, no mais absoluto desprezo pelos sentimentos dessa nação. Refiro-me agora às resoluções tomadas em face da conferência de Estocolmo, que são a negação de quanto se proclama e afirma a todo o instante na oratória parlamentar em que os Aliados não deixaram nunca de se mostrar fecundos. Fomentaram eles com a sua exportação revolucionária a anarquia irreparável da Rússia. No fim de contas, quem iluminou foi Berlim. Declaram-se os portadores das mais sagradas reivindicações da democracia. Querem os socialistas usar de uma dessas reivindicações – e os Aliados só encontram solução para a dificuldade que com tanta lógica os salteia, lançando mão de medidas que em nada correspondem ao papel emancipador de que se imaginam titulares. Entretanto, a cavalgada do Apocalise continua avançando no seu tropel de morte e a vitória mantém-se sempre difícil em nos conceder o mais ligeiro dos seus sorrisos.
E unicamente, porquê? Unicamente, porque houve um homem chamado Jean-Jacques Rousseau, de quem Napoleão, passeando-lhe junto do túmulo, disse uma vez que para repouso da humanidade fôra melhor que não tivesse nascido.
Tal é a lição da guerra. Tal é a lição proveitosa que as gerações futuras certamente aprenderão no vendaval de loucura e sangue em que a Europa se enclavinha e despedaça, para que a sociedade a vir venha mais forte, mais robusta e menos iludida. A hora é uma hora de sinceridade – uma hora de perigos supremos. Se a linguagem da verdade é esta, por que é então que nós outros, os tradicionalistas, tanto receio mostramos em a falar claramente?
Junho, 1917.
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