Na morte do Senhor
António Sardinha
O texto reflete sobre o significado da morte de Cristo, relacionando-a com a crise espiritual e moral do mundo contemporâneo. Sardinha compara o desalento atual ao declínio do mundo antigo, destacando como o orgulho intelectual e a perda do desejo de imortalidade levaram a uma tristeza sem esperança, diferente da tristeza cristã, que conduz à vida. Critica a busca moderna por liberdade e prazer, mostrando que, ao rejeitar o jugo de Cristo, a humanidade cai sob a lei da fatalidade e do pessimismo. Faz também um paralelo entre a civilização clássica, baseada na escravidão e na tirania, e a civilização cristã, que trouxe valores como caridade, fraternidade e esperança. Segundo Sardinha, o Cristianismo transformou o sofrimento e a morte, dando-lhes sentido e esperança de salvação. Por fim, salienta que, apesar das crises e castigos enfrentados pela humanidade, a verdadeira renovação e segurança só podem ser encontradas no retorno a Cristo e aos valores cristãos, que sustentaram a civilização europeia mesmo nos momentos mais difíceis da história.
Na morte do Senhor
Nesta hora ensombrada da história reapodera-se de nós o mesmo desalento, a mesma inquietação de viver, que o mundo antigo padeceu às vésperas do seu declínio. O orgulho das inteligências desenvolve a secura dos corações. Perdeu-se nas almas a sede ardente da imortalidade e os nossos olhos já se não abrem senão para as visões impuras dos sentidos. Todo um ciclo vão de vãs filosofias conclui assim na dolorosa tristeza contemporânea, que não é a tristeza segundo Deus, mas a tristeza segundo o Século, a qual, na palavra sublime do Apóstolo, unicamente gera a morte.
«Por que razão se enfureceram as gentes e conceberam os Povos os mais fantásticos projetos?» – pergunta a voz amargurada do Salmista logo no começo do drama da Paixão. «Ajuntaram-se e conspiraram os Reis e Príncipes da Terra contra o seu Senhor e contra o seu Cristo. Rompamos a sua cadeia (disseram) e expulsemos de nós o seu jugo.» Romperam-se as cadeias que o Senhor nos impusera e o jugo de Cristo foi expulso de nós.
Pois correndo atrás de uma ventura ilusória cada vez nos sentimos mais diminuídos e mais revoltados! Temos ânsias de libertação. A áspide da soberba morde-nos dentro, no mais íntimo dos nossos desejos. Mas, ai!, em que é que termina esse sonho de vaidade insensata e de insatisfação indominável? O pessimismo do tempo é o seu fruto legítimo. Ufanos do nosso delírio, concebemos fantásticos projetos, os projetos fantásticos da letra dolorida do Salmista. Não queremos servir nem uma dedicação nem uma disciplina. Não conseguimos, porém, vencer o círculo inexorável em que a vida nos encerra inexoravelmente. Porque não aceitamos a lei transfiguradora do Amor, cedemos, esmagados, perante a força de outra lei mais rude, a lei da Fatalidade.
A lei da Fatalidade insensibilizou o mundo antigo, que, tal como o nosso, se dissolveu na mentira dourada das aparências. Se conheceu o brilho de uma cultura superior, a antiguidade clássica não conheceu a grandeza moral, que é a semente fecunda de verdadeira civilização. A cidade grega assentava apenas no conceito material da existência. Possuía por base a escravidão e a tirania por cume. A consciência era sacrificada no indivíduo, ou aos caprichos do déspota, ou à vontade oligárquica de uma casta. Enganam-se no mais crasso dos erros os que por um criticismo medíocre opõem às verdades cristãs o esplendor naturalista do pensamento pagão. «Os ensinamentos de Sócrates e os diálogos de Platão, diz-se, fazem esquecer as parábolas de Jesus», escreve o positivista Georges Deherme. «Talvez para um intelectual na sua livraria, mas não para a Humanidade.»
E Georges Deherme acrescenta: «Dissipemos as abstrações com que se compraz o orgulho cerebral, deixemos os livros, comparemos no seu apogeu a civilização greco-romana e a civilização francesa. De um lado, os ilotas, a escravatura, todas as prostituições, o circo (em média, segundo Laurentie, 30.000 vidas humanas imoladas ao prazer anualmente), do outro lado, a admirável instituição da Cavalaria, as escolas gratuitas, os hospitais, a loucura santíssima da caridade, o culto da Virgem Maria.» De facto, tanto em Aristóteles, como em Platão, o Divino, exclusivamente na dureza se fundamenta a razão inflexível do Estado. Para Aristóteles, o privilégio do homem livre é a ociosidade, o infanticídio é permitido e o aborto olhado como um ato lícito. E se a um pai pertence o direito de vida e morte sobre os filhos, já lhe não pertence o direito de os educar. Do Estagirita descende a escola laica de absorção por parte do Estado das funções educadoras, que, pelo contrário, devem ser sempre pautadas pelo ambiente doméstico. Mas o mundo antigo via na família um organismo inútil e, por vezes, distinto dos interesses supremos da comunidade. Nem tudo floria com as rosas de Anacreonte perfumando o sono das Musas na vinha de mestre Horácio!
A serenidade helénica é fundida de egoísmo e de indiferença. Aproveite-se o instante que passa na areia livre da ampulheta! Vem de seguida o inebriamento dos sentidos, na certeza implacável do fim que a todos nos espera. O que há de mais nobre na Antiguidade é o estoicismo. Mas o estoicismo não é senão uma renúncia desdenhosa e impotente, toda secura de coração e de inteligência. Petrónio, mandando abrir as veias no meio de um festim, simboliza o negativismo filosófico da Antiguidade, a quem faltava a aspiração de um destino imortal. Assim se atiram para a morte também os emancipados da nossa época, que Ibsen e D’Annunzio procuram elevar a uma espécie de super-humanidade em tantas das suas criações literárias. Lembramo-nos em Ibsen de Hedda Gabler e em Annunzio de Giorgio Aurispa. O suicídio arvora-se em doutrina redentora sempre que a chama espiritualista desfalece dentro de nós, e nada mais nos resta senão sorver até ao último sorvo a taça bem exígua do prazer e da ilusão.
O Cristianismo apareceu, pois, no desfazer de uma curva da história. A transformação por que ele renova a natureza degradada do homem, numa passagem de São Paulo se contém e define. «Só os pagãos é que não têm esperança!», exclama o Apóstolo, falando das promessas infalíveis de Cristo. A Esperança é o sentimento purificador que batiza a face da Terra. O sofrimento e a morte encheram-se de um significado. E, desde que reside em cada um de nós uma alma resgatada pelo sangue de Jesus, os escravos e os senhores confundem-se na mesma ânsia de salvação e na confraternidade dos mesmos sacramentos. Roma, cética, incrédula, não perseguiu os cristãos porque eles trouxessem consigo uma religião diversa do politeísmo que o império professava. Roma faria até lugar a essa religião nos seus altares, se os mandamentos, saídos da tragédia do Calvário, não representassem para a estrutura do Império o maior dos abalos sociais.
Com razão observa o insigne Godefroid Kurth que a história da humanidade está partida em duas vertentes. Do fundo das idades cresce uma, pedregosa e lenta, para o cimo do monte em que Jesus expirou. A outra desce de lá e dirige-se para o futuro com a procissão dos séculos cristãos. A sociedade, o que hoje é nos seus alicerces mais sólidos, deve-o ao Cristianismo. Podem os povos formar os mais fantásticos projetos e conspirar contra o jugo paternal de Cristo. Mas as condições eternas da sua felicidade e da sua segurança não repousam em outros fundamentos. «Por muito que tenhamos errado e seja qual for a distância que nos separa do nosso modelo, a civilização da moderna Europa cresceu à sombra da Cruz e o que nela existe de melhor respira ainda o espírito do Crucificado.» Eis como se exprime, do outro lado do mar, o grande almirante Mahan no seu livro A salvação da raça branca [1], não hesitando em chamar ao Cristianismo a única regra eficaz de ‘resistência ao mal’.
Na tremenda expiação em que se debate o nosso continente enlutado, o renascimento para o Senhor será o prémio obtido pelo holocausto de tanta vítima inocente. Porque formámos fantásticos projetos, o Senhor nos castigou ‘com uma vara de ferro’, quebrando-nos ‘como um vaso de argila’. Mas a meditação do grande drama litúrgico que a Igreja comemora hoje, debruçada para a frialdade de um túmulo, recorda-nos que, mesmo quando por um pouco se acende a ira de Deus, são bem-aventurados os que se voltam para Ele com inteira confiança. Eu não sei que catástrofes formidáveis se reservam ainda para o nosso espanto e para a nossa dor. Mas se tudo houver de vir abaixo num tumulto de Juízo-Final, não nos esqueçamos nunca de que, colocada entre a agonia dissoluta do Império Romano e a anárquica das invasões bárbaras, a Igreja guardou com poderes de milagre o património sagrado das gerações e por suas próprias mãos restaurou a sociedade que parecia pulverizada para sempre.
[1] Nota desta edição: António Sardinha refere-se ao título da tradução para francês da obra The Influence of Sea Power Upon History, 1660-1783, de Alfred Mahan por Jean Izoulet: Le salut de la race blanche et l'empire des mers; traduction, sommaires, préface et introductions par Jean Izoulet. Introductions : La Croix et l'épée en Occident. L'Expropriation des "races incompétentes", Paris, Flammarion, 1906.
«Por que razão se enfureceram as gentes e conceberam os Povos os mais fantásticos projetos?» – pergunta a voz amargurada do Salmista logo no começo do drama da Paixão. «Ajuntaram-se e conspiraram os Reis e Príncipes da Terra contra o seu Senhor e contra o seu Cristo. Rompamos a sua cadeia (disseram) e expulsemos de nós o seu jugo.» Romperam-se as cadeias que o Senhor nos impusera e o jugo de Cristo foi expulso de nós.
Pois correndo atrás de uma ventura ilusória cada vez nos sentimos mais diminuídos e mais revoltados! Temos ânsias de libertação. A áspide da soberba morde-nos dentro, no mais íntimo dos nossos desejos. Mas, ai!, em que é que termina esse sonho de vaidade insensata e de insatisfação indominável? O pessimismo do tempo é o seu fruto legítimo. Ufanos do nosso delírio, concebemos fantásticos projetos, os projetos fantásticos da letra dolorida do Salmista. Não queremos servir nem uma dedicação nem uma disciplina. Não conseguimos, porém, vencer o círculo inexorável em que a vida nos encerra inexoravelmente. Porque não aceitamos a lei transfiguradora do Amor, cedemos, esmagados, perante a força de outra lei mais rude, a lei da Fatalidade.
A lei da Fatalidade insensibilizou o mundo antigo, que, tal como o nosso, se dissolveu na mentira dourada das aparências. Se conheceu o brilho de uma cultura superior, a antiguidade clássica não conheceu a grandeza moral, que é a semente fecunda de verdadeira civilização. A cidade grega assentava apenas no conceito material da existência. Possuía por base a escravidão e a tirania por cume. A consciência era sacrificada no indivíduo, ou aos caprichos do déspota, ou à vontade oligárquica de uma casta. Enganam-se no mais crasso dos erros os que por um criticismo medíocre opõem às verdades cristãs o esplendor naturalista do pensamento pagão. «Os ensinamentos de Sócrates e os diálogos de Platão, diz-se, fazem esquecer as parábolas de Jesus», escreve o positivista Georges Deherme. «Talvez para um intelectual na sua livraria, mas não para a Humanidade.»
E Georges Deherme acrescenta: «Dissipemos as abstrações com que se compraz o orgulho cerebral, deixemos os livros, comparemos no seu apogeu a civilização greco-romana e a civilização francesa. De um lado, os ilotas, a escravatura, todas as prostituições, o circo (em média, segundo Laurentie, 30.000 vidas humanas imoladas ao prazer anualmente), do outro lado, a admirável instituição da Cavalaria, as escolas gratuitas, os hospitais, a loucura santíssima da caridade, o culto da Virgem Maria.» De facto, tanto em Aristóteles, como em Platão, o Divino, exclusivamente na dureza se fundamenta a razão inflexível do Estado. Para Aristóteles, o privilégio do homem livre é a ociosidade, o infanticídio é permitido e o aborto olhado como um ato lícito. E se a um pai pertence o direito de vida e morte sobre os filhos, já lhe não pertence o direito de os educar. Do Estagirita descende a escola laica de absorção por parte do Estado das funções educadoras, que, pelo contrário, devem ser sempre pautadas pelo ambiente doméstico. Mas o mundo antigo via na família um organismo inútil e, por vezes, distinto dos interesses supremos da comunidade. Nem tudo floria com as rosas de Anacreonte perfumando o sono das Musas na vinha de mestre Horácio!
A serenidade helénica é fundida de egoísmo e de indiferença. Aproveite-se o instante que passa na areia livre da ampulheta! Vem de seguida o inebriamento dos sentidos, na certeza implacável do fim que a todos nos espera. O que há de mais nobre na Antiguidade é o estoicismo. Mas o estoicismo não é senão uma renúncia desdenhosa e impotente, toda secura de coração e de inteligência. Petrónio, mandando abrir as veias no meio de um festim, simboliza o negativismo filosófico da Antiguidade, a quem faltava a aspiração de um destino imortal. Assim se atiram para a morte também os emancipados da nossa época, que Ibsen e D’Annunzio procuram elevar a uma espécie de super-humanidade em tantas das suas criações literárias. Lembramo-nos em Ibsen de Hedda Gabler e em Annunzio de Giorgio Aurispa. O suicídio arvora-se em doutrina redentora sempre que a chama espiritualista desfalece dentro de nós, e nada mais nos resta senão sorver até ao último sorvo a taça bem exígua do prazer e da ilusão.
O Cristianismo apareceu, pois, no desfazer de uma curva da história. A transformação por que ele renova a natureza degradada do homem, numa passagem de São Paulo se contém e define. «Só os pagãos é que não têm esperança!», exclama o Apóstolo, falando das promessas infalíveis de Cristo. A Esperança é o sentimento purificador que batiza a face da Terra. O sofrimento e a morte encheram-se de um significado. E, desde que reside em cada um de nós uma alma resgatada pelo sangue de Jesus, os escravos e os senhores confundem-se na mesma ânsia de salvação e na confraternidade dos mesmos sacramentos. Roma, cética, incrédula, não perseguiu os cristãos porque eles trouxessem consigo uma religião diversa do politeísmo que o império professava. Roma faria até lugar a essa religião nos seus altares, se os mandamentos, saídos da tragédia do Calvário, não representassem para a estrutura do Império o maior dos abalos sociais.
Com razão observa o insigne Godefroid Kurth que a história da humanidade está partida em duas vertentes. Do fundo das idades cresce uma, pedregosa e lenta, para o cimo do monte em que Jesus expirou. A outra desce de lá e dirige-se para o futuro com a procissão dos séculos cristãos. A sociedade, o que hoje é nos seus alicerces mais sólidos, deve-o ao Cristianismo. Podem os povos formar os mais fantásticos projetos e conspirar contra o jugo paternal de Cristo. Mas as condições eternas da sua felicidade e da sua segurança não repousam em outros fundamentos. «Por muito que tenhamos errado e seja qual for a distância que nos separa do nosso modelo, a civilização da moderna Europa cresceu à sombra da Cruz e o que nela existe de melhor respira ainda o espírito do Crucificado.» Eis como se exprime, do outro lado do mar, o grande almirante Mahan no seu livro A salvação da raça branca [1], não hesitando em chamar ao Cristianismo a única regra eficaz de ‘resistência ao mal’.
Na tremenda expiação em que se debate o nosso continente enlutado, o renascimento para o Senhor será o prémio obtido pelo holocausto de tanta vítima inocente. Porque formámos fantásticos projetos, o Senhor nos castigou ‘com uma vara de ferro’, quebrando-nos ‘como um vaso de argila’. Mas a meditação do grande drama litúrgico que a Igreja comemora hoje, debruçada para a frialdade de um túmulo, recorda-nos que, mesmo quando por um pouco se acende a ira de Deus, são bem-aventurados os que se voltam para Ele com inteira confiança. Eu não sei que catástrofes formidáveis se reservam ainda para o nosso espanto e para a nossa dor. Mas se tudo houver de vir abaixo num tumulto de Juízo-Final, não nos esqueçamos nunca de que, colocada entre a agonia dissoluta do Império Romano e a anárquica das invasões bárbaras, a Igreja guardou com poderes de milagre o património sagrado das gerações e por suas próprias mãos restaurou a sociedade que parecia pulverizada para sempre.
[1] Nota desta edição: António Sardinha refere-se ao título da tradução para francês da obra The Influence of Sea Power Upon History, 1660-1783, de Alfred Mahan por Jean Izoulet: Le salut de la race blanche et l'empire des mers; traduction, sommaires, préface et introductions par Jean Izoulet. Introductions : La Croix et l'épée en Occident. L'Expropriation des "races incompétentes", Paris, Flammarion, 1906.