A agonia de Agatão Tinoco
António Sardinha
Agatão Tinoco – o mísero Agatão Tinoco, imagem dolorosa de Portugal despedaçado e humilhado!
...
... meu pobre Agatão Tinoco, quando acabará a tua agonia?
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... meu pobre Agatão Tinoco, quando acabará a tua agonia?
Foi Ángel Ganivet um dos mais fortes e mais originais pensadores de Espanha nos últimos trinta anos. Há no seu Idearium español – espécie de interessante breviário nacionalista – muita página cuja meditação reflectida se impõe como um dever a nós outros, portugueses. Ganivet, dotado de um rico temperamento literário, escrevia às vésperas do desastre de 98. Já não lhe presenciou a violência do golpe. Levado para a cova em plena mocidade da vida e do talento, nós vemos que a sua obra, feita de bocados e de apontamentos de génio, serve de raiz fecunda a este despertar vigoroso e lento da grande-madre Espanha. Se algum aspecto de patriotismo elevado se nota nos livros de Unamuno, é ainda um eco do belo espírito de Ganivet. Unamuno e Ganivet conviveram juntos numa ocasião de concurso – Ganivet observava e Unamuno estudava a anatomia das rãs. Prouvera a Deus que Unamuno continuasse estudando e que nunca a mentalidade rebuscada e artificial pensasse um dia em se substituir a Ganivet!
Falaremos com mais vagar de semelhante personagem. Hoje não quero perturbar-me com a lembrança desse bufarinheiro das coisas da inteligência que, sendo latão sem preço, fulgura às vezes ao longe como ouro de lei. O que eu desejo é recapitular as minhas impressões acerca de um dos mais significativos trechos de Ganivet no seu Idearium. Ganivet era cônsul em Antuérpia – em Amberes, à boa maneira castelhana. Chamaram-no de uma vez ao Hospital Strugreberg – «por razones de mi cargo» – e, explica, tratava-se de um espanhol em gravíssimo estado que pedia para falar ao representante do seu país. Um dos enfermeiros esclareceu Ganivet. O doente viera do Estado Livre do Congo e encontrava-se moribundo, no acesso último de um violentíssimo ataque de febre amarela, sem esperança de possível salvação.
«Ainda agora – escreve Ganivet – estou vendo aquele infelicíssimo homem, que mais que um ser humano parecia um esqueleto pintado de ocre, sujeito dificilmente ao seu pobre leito e travando contra a morte o seu derradeiro combate. E recordo-me que as suas primeiras palavras foram para desculpar-se pelo incómodo que me causava, sem motivo que a isso o autorizasse. "Eu não sou
espanhol – disse-me; mas aqui não me entendem e, ao ouvirem-me falar espanhol, convenceram-se de que a v. é que eu pretendo falar."»
Efectivamente, o moribundo não nascera espanhol. Nascera na América Central e vinha de costela portuguesa. «Yo soy de Centro-América, señor; de Managua; y mi familia era portuguesa; me llamo Agatón Tinoco.» Logo Ganivet o tranquilizou. «Pois nesse caso é o meu amigo espanhol umas poucas de vezes. Vou sentar-me aqui um bocado, e fumaremos um cigarro como bons companheiros. E entretanto, fará favor de me ir dizendo em que é que eu o posso servir.»
E aqui começa a agonia de Agatão Tinoco, com tanto de sofrido como de simbólico. «Em nada, senhor, me respondeu» – continua Ganivet. «Em nada, porque não tardarei a morrer. O meu desejo é falar com quem me perceba, porque desventuradamente há bastante tempo que não tenho com quem falar. Sou muito desgraçado, senhor, tão desgraçado como nenhum outro homem no mundo. Se eu lhe contasse a minha vida, então veria como o não engano!» E, pronto, Ganivet atalhou: «Basta olhar para si, amigo Tinoco, para que me convença de quanto me diz. Mas conte! Conte-me com inteira confiança todos os seus infortúnios, como se eu conhecesse toda a sua vida.»
Acolhido tão carinhosamente por um estrangeiro, que assim o envolvia num rasgo de carinho ao estrebuchar numa cama de hospital entre os sinais aflitivos da agonia, Agatão Tinoco – o mísero Agatão Tinoco, imagem dolorosa de Portugal despedaçado e humilhado! – deu princípio à tragédia obscura da sua negra existência de sacrificado. E, de um episódio banal de todas as horas, a pena fácil de Ganivet arranca uma cena cheia de grandeza espontânea. Porque «aunque pobre era hombre de honor», Agatão Tinoco fugira de casa impelido pela vergonha de um desastre conjugal. Trabalhou depois com afinco na abertura do canal do Panamá e, quando sobreveio a suspensão das obras, partiu para o Congo na qualidade de colono. Ali adquiriu a terrível enfermidade que o prostrava e que mesmo naquela noite o arrastaria consigo ao seu desenlace fatal.
Ouviu-o Ganivet com a atenção devida. E ao findar a triste narrativa das suas desventuras, o moço escritor acudiu-lhe imediatamente com o conforto espiritual da sua nobre e sincera emoção. «Pois, amigo Tinoco, o senhor é o maior homem que até hoje tenho conhecido. E é-o porque possui uma virtude que só está ao alcance dos homens verdadeiramente grandes: a virtude de haver trabalhado em silêncio e de poder abandonar a vida com a satisfação de não ter recebido o prémio que os seus trabalhos mereciam.» E, numa linguagem persuasiva e quente, Ángel Ganivet consolou o moribundo de tantas e tão profundas desditas, convencendo-o de que não suara nem sofrera baldadamente.
«Se o amigo Tinoco olhar para dentro de si – insistia o escritor à cabeceira do agonizante –, comparar toda a obra da sua vida com a recompensa que obteve, notará que a sua única recompensa foi uma escassa alimentação e por último o leito de um hospital, onde nem sequer o entendem. No entanto, a sua obra foi notabilíssima, pois não só trabalhou para viver, como prestou o seu concurso a empresas gigantescas, de que outros tirarão o proveito e a glória. E o que o amigo Tinoco fez, revela que a têmpera da sua alma é fortíssima e que nas suas veias corre o sangue de uma raça de lutadores e de triunfadores, prostrada e humilhada por suas próprias culpas, entre as quais não é a menor a falta de espírito fraternal, a desunião que nos leva a ser joguetes de poderes estranhos e dá origem a que muitos, como o amigo Tinoco, andem aos pontapés pelo mundo como gente sem nome, quando deviam pompear com fortuna.»
E Ganivet não se calava, tomado de uma compadecida inspiração íntima: «Medite o amigo Tinoco em tudo isto e sentirá uma labareda de orgulho, de profundo e sereno orgulho, que lhe há-de encher de luz formosíssima os derradeiros momentos da vida, porque o fará ver quanto o mundo é indigno de que homens como o amigo Tinoco, tão honrados, tão bons, tão infelizes o ajudem a
fertilizar com o suor dos seus rostos e o esforço dos seus braços.»
Morreu Agatão Tinoco logo depois de Ganivet sair do hospital. E morreu possuindo a consciência de que não passava em vão pela terra e que, tão abandonado e tão miserável, a morte se lhe constelava do sentido superior da sua raça. Foi Ganivet que lho desvendou. E essa página simples de beleza e verdade é página para que a decoremos religiosamente no melhor das nossas recordações.
No caso vulgar do hospitalizado de Antuérpia, reconheçamos que toma expressão e vigor patético todo o drama, não só do nosso emigrante, mas das pequenas pátrias portuguesas que lá longe vegetam, anónimas e laboriosas, no desapego completo da metrópole. Cada vez bendigo mais a hora que me trouxe a Espanha! O meu nacionalismo ampliou-se com a projecção que lhe faltava de um necessário complemento internacional. Achei-o aqui, ao contacto benéfico da madre Espanha, e à morte de Agatão Tinoco o terei que agradecer, sobretudo. Não se enganava Ganivet, quando atribuía a decadência peninsular à falta de fraternidade do nosso espírito. As consequências desdobram-se aos olhos de quem queira ver no exemplo de Marrocos, na anarquia do México, cuidadosamente explorada e cultivada pelos Estados Unidos. Ah!, mas se a nós nos visitasse um milagre súbito, como acordaríamos ainda a tempo, e muito a tempo! Para que, debaixo do ponto de vista imediato de Portugal, se avalie de quanto, por nossa culpa, Agatão Tinoco, aos tombos pelo mundo, não acaba nunca de morrer, ponderemos o que sucede na América, com gente da nossa estirpe.
No seu livro España y el programa americanista, alude Rafael Altamira a um artigo publicado num dos mais importantes periódicos da Califórnia, The San Francisco Examiner. Intitula-se esse artigo «Os sete competidores», que em tantos computa na ordem económica os concorrentes dos Estados Unidos de portas adentro. São eles, pelo que respeita ao preço e capacidade do trabalho, os hispano-portugueses, os muçulmanos, os russos, os negros, os índios, os amarelos e os "brancos". Comenta Altamira: «É de supor que com esta classificação o articulista não pretenda expulsar do grupo das raças brancas (ou indo-europeias, como se dizia dantes) aos espanhóis e aos portugueses, ou melhor dito, aos hispano-portugueses, da América. Em todo o caso, a separação é curiosa.» E Altamira segue, comentando o artigo.
De capital alcance para nós, não cabe aqui reproduzir integralmente a parte que consagra aos hispano-portugueses. No fundo, é sempre a agonia de Agatão Tinoco. Os hispano-portugueses possuem a totalidade do continente ocidental, esclarece, desde o Rio-Grande ao Polo-Sul, exceptuando a nossa pequena faixa do Panamá – a faixa civilizada, se modestamente se pode dizer. Possuem portanto nove milhões de milhas quadradas de terra americana...
«É provável que possuam igualmente, ou pelo menos, três quartas partes da riqueza do hemisfério ocidental, a maioria dela inexplorada. » E o San Francisco Examiner detalha mais, documentando a sua intenção:
«As grandes condições que têm para a luta as raças hispano-portuguesas... por nenhumas outras são igualadas... A fecundidade da raça é enorme e esse facto desempenha um grande papel na questão da concorrência nacional. Não obstante, se os Estados Unidos se querem garantir-se com sensata precaução, como corresponde a um homem de negócios, não devem preocupar-se demasiadamente da competência hispano-portuguesa. É uma raça de bons lutadores, mas a sua energia a empregam combatendo-se a si próprios.»
O quadro, já bastante sombrio, carrega-se ainda de tintas mais negras. «A extraordinária proporção da natalidade pode preencher os nove milhões de milhas quadradas e atemorizar-nos com isso; mas de cada cem crianças entre os infelizes, ignorantes e supersticiosos hispano-portugueses (o sublinhado não é meu), morrem, sem exagero, cinquenta. Em alguns pontos, prossegue o articulista, chegam a morrer 70 por cento.»
Com pais que se matam uns aos outros e as meio-desfalecidas, arrasadas e desditosas mães que vêem como lhes morrem os filhos, do que necessitamos é de uma boa frota e de senso comum para dominar semelhante concorrência.
O testemunho reveste-se por si do suficiente valor para que eu o haja de reforçar com escusadas considerações. Em face da solicitação crescente dos acontecimentos, a ninguém reste dúvida que, ou Portugal e Espanha se entendem em pé de igualdade e de independência para a salvaguarda do seu património cultural e económico, ou Portugal e Espanha não demorarão, como despojo de um mundo morto, a marcharem arrastados na trajectória de qualquer das grandes forças imperialistas, em constituição tanto na Europa como na América. Eu creio, e creio com fé inabalável, nos destinos que Deus reserva à Península. Até lá, que provações nos esperam porém, que duros e implacáveis ensinamentos serão o preço da nossa ansiada libertação? Mas o caminho é só um – e já o traçou o presidente Epitácio Pessoa, pelo que toca à situação de Portugal e Espanha na América, aconselhando a rápida aliança do lusitanismo com o espanholismo. Impõe-se-nos a obrigação de arrancar a um estado lastimável de definhamento e desordem os nossos irmãos do outro lado do mar, semente segura do mais seguro porvir para a Península. Daqui o saúdo, a esse porvir, com os olhos da alma, adivinhando-lhe a realização plena. No entanto, meu pobre Agatão Tinoco, quando acabará a tua agonia?
(1919)
[negritos acrescentados]
Falaremos com mais vagar de semelhante personagem. Hoje não quero perturbar-me com a lembrança desse bufarinheiro das coisas da inteligência que, sendo latão sem preço, fulgura às vezes ao longe como ouro de lei. O que eu desejo é recapitular as minhas impressões acerca de um dos mais significativos trechos de Ganivet no seu Idearium. Ganivet era cônsul em Antuérpia – em Amberes, à boa maneira castelhana. Chamaram-no de uma vez ao Hospital Strugreberg – «por razones de mi cargo» – e, explica, tratava-se de um espanhol em gravíssimo estado que pedia para falar ao representante do seu país. Um dos enfermeiros esclareceu Ganivet. O doente viera do Estado Livre do Congo e encontrava-se moribundo, no acesso último de um violentíssimo ataque de febre amarela, sem esperança de possível salvação.
«Ainda agora – escreve Ganivet – estou vendo aquele infelicíssimo homem, que mais que um ser humano parecia um esqueleto pintado de ocre, sujeito dificilmente ao seu pobre leito e travando contra a morte o seu derradeiro combate. E recordo-me que as suas primeiras palavras foram para desculpar-se pelo incómodo que me causava, sem motivo que a isso o autorizasse. "Eu não sou
espanhol – disse-me; mas aqui não me entendem e, ao ouvirem-me falar espanhol, convenceram-se de que a v. é que eu pretendo falar."»
Efectivamente, o moribundo não nascera espanhol. Nascera na América Central e vinha de costela portuguesa. «Yo soy de Centro-América, señor; de Managua; y mi familia era portuguesa; me llamo Agatón Tinoco.» Logo Ganivet o tranquilizou. «Pois nesse caso é o meu amigo espanhol umas poucas de vezes. Vou sentar-me aqui um bocado, e fumaremos um cigarro como bons companheiros. E entretanto, fará favor de me ir dizendo em que é que eu o posso servir.»
E aqui começa a agonia de Agatão Tinoco, com tanto de sofrido como de simbólico. «Em nada, senhor, me respondeu» – continua Ganivet. «Em nada, porque não tardarei a morrer. O meu desejo é falar com quem me perceba, porque desventuradamente há bastante tempo que não tenho com quem falar. Sou muito desgraçado, senhor, tão desgraçado como nenhum outro homem no mundo. Se eu lhe contasse a minha vida, então veria como o não engano!» E, pronto, Ganivet atalhou: «Basta olhar para si, amigo Tinoco, para que me convença de quanto me diz. Mas conte! Conte-me com inteira confiança todos os seus infortúnios, como se eu conhecesse toda a sua vida.»
Acolhido tão carinhosamente por um estrangeiro, que assim o envolvia num rasgo de carinho ao estrebuchar numa cama de hospital entre os sinais aflitivos da agonia, Agatão Tinoco – o mísero Agatão Tinoco, imagem dolorosa de Portugal despedaçado e humilhado! – deu princípio à tragédia obscura da sua negra existência de sacrificado. E, de um episódio banal de todas as horas, a pena fácil de Ganivet arranca uma cena cheia de grandeza espontânea. Porque «aunque pobre era hombre de honor», Agatão Tinoco fugira de casa impelido pela vergonha de um desastre conjugal. Trabalhou depois com afinco na abertura do canal do Panamá e, quando sobreveio a suspensão das obras, partiu para o Congo na qualidade de colono. Ali adquiriu a terrível enfermidade que o prostrava e que mesmo naquela noite o arrastaria consigo ao seu desenlace fatal.
Ouviu-o Ganivet com a atenção devida. E ao findar a triste narrativa das suas desventuras, o moço escritor acudiu-lhe imediatamente com o conforto espiritual da sua nobre e sincera emoção. «Pois, amigo Tinoco, o senhor é o maior homem que até hoje tenho conhecido. E é-o porque possui uma virtude que só está ao alcance dos homens verdadeiramente grandes: a virtude de haver trabalhado em silêncio e de poder abandonar a vida com a satisfação de não ter recebido o prémio que os seus trabalhos mereciam.» E, numa linguagem persuasiva e quente, Ángel Ganivet consolou o moribundo de tantas e tão profundas desditas, convencendo-o de que não suara nem sofrera baldadamente.
«Se o amigo Tinoco olhar para dentro de si – insistia o escritor à cabeceira do agonizante –, comparar toda a obra da sua vida com a recompensa que obteve, notará que a sua única recompensa foi uma escassa alimentação e por último o leito de um hospital, onde nem sequer o entendem. No entanto, a sua obra foi notabilíssima, pois não só trabalhou para viver, como prestou o seu concurso a empresas gigantescas, de que outros tirarão o proveito e a glória. E o que o amigo Tinoco fez, revela que a têmpera da sua alma é fortíssima e que nas suas veias corre o sangue de uma raça de lutadores e de triunfadores, prostrada e humilhada por suas próprias culpas, entre as quais não é a menor a falta de espírito fraternal, a desunião que nos leva a ser joguetes de poderes estranhos e dá origem a que muitos, como o amigo Tinoco, andem aos pontapés pelo mundo como gente sem nome, quando deviam pompear com fortuna.»
E Ganivet não se calava, tomado de uma compadecida inspiração íntima: «Medite o amigo Tinoco em tudo isto e sentirá uma labareda de orgulho, de profundo e sereno orgulho, que lhe há-de encher de luz formosíssima os derradeiros momentos da vida, porque o fará ver quanto o mundo é indigno de que homens como o amigo Tinoco, tão honrados, tão bons, tão infelizes o ajudem a
fertilizar com o suor dos seus rostos e o esforço dos seus braços.»
Morreu Agatão Tinoco logo depois de Ganivet sair do hospital. E morreu possuindo a consciência de que não passava em vão pela terra e que, tão abandonado e tão miserável, a morte se lhe constelava do sentido superior da sua raça. Foi Ganivet que lho desvendou. E essa página simples de beleza e verdade é página para que a decoremos religiosamente no melhor das nossas recordações.
No caso vulgar do hospitalizado de Antuérpia, reconheçamos que toma expressão e vigor patético todo o drama, não só do nosso emigrante, mas das pequenas pátrias portuguesas que lá longe vegetam, anónimas e laboriosas, no desapego completo da metrópole. Cada vez bendigo mais a hora que me trouxe a Espanha! O meu nacionalismo ampliou-se com a projecção que lhe faltava de um necessário complemento internacional. Achei-o aqui, ao contacto benéfico da madre Espanha, e à morte de Agatão Tinoco o terei que agradecer, sobretudo. Não se enganava Ganivet, quando atribuía a decadência peninsular à falta de fraternidade do nosso espírito. As consequências desdobram-se aos olhos de quem queira ver no exemplo de Marrocos, na anarquia do México, cuidadosamente explorada e cultivada pelos Estados Unidos. Ah!, mas se a nós nos visitasse um milagre súbito, como acordaríamos ainda a tempo, e muito a tempo! Para que, debaixo do ponto de vista imediato de Portugal, se avalie de quanto, por nossa culpa, Agatão Tinoco, aos tombos pelo mundo, não acaba nunca de morrer, ponderemos o que sucede na América, com gente da nossa estirpe.
No seu livro España y el programa americanista, alude Rafael Altamira a um artigo publicado num dos mais importantes periódicos da Califórnia, The San Francisco Examiner. Intitula-se esse artigo «Os sete competidores», que em tantos computa na ordem económica os concorrentes dos Estados Unidos de portas adentro. São eles, pelo que respeita ao preço e capacidade do trabalho, os hispano-portugueses, os muçulmanos, os russos, os negros, os índios, os amarelos e os "brancos". Comenta Altamira: «É de supor que com esta classificação o articulista não pretenda expulsar do grupo das raças brancas (ou indo-europeias, como se dizia dantes) aos espanhóis e aos portugueses, ou melhor dito, aos hispano-portugueses, da América. Em todo o caso, a separação é curiosa.» E Altamira segue, comentando o artigo.
De capital alcance para nós, não cabe aqui reproduzir integralmente a parte que consagra aos hispano-portugueses. No fundo, é sempre a agonia de Agatão Tinoco. Os hispano-portugueses possuem a totalidade do continente ocidental, esclarece, desde o Rio-Grande ao Polo-Sul, exceptuando a nossa pequena faixa do Panamá – a faixa civilizada, se modestamente se pode dizer. Possuem portanto nove milhões de milhas quadradas de terra americana...
«É provável que possuam igualmente, ou pelo menos, três quartas partes da riqueza do hemisfério ocidental, a maioria dela inexplorada. » E o San Francisco Examiner detalha mais, documentando a sua intenção:
«As grandes condições que têm para a luta as raças hispano-portuguesas... por nenhumas outras são igualadas... A fecundidade da raça é enorme e esse facto desempenha um grande papel na questão da concorrência nacional. Não obstante, se os Estados Unidos se querem garantir-se com sensata precaução, como corresponde a um homem de negócios, não devem preocupar-se demasiadamente da competência hispano-portuguesa. É uma raça de bons lutadores, mas a sua energia a empregam combatendo-se a si próprios.»
O quadro, já bastante sombrio, carrega-se ainda de tintas mais negras. «A extraordinária proporção da natalidade pode preencher os nove milhões de milhas quadradas e atemorizar-nos com isso; mas de cada cem crianças entre os infelizes, ignorantes e supersticiosos hispano-portugueses (o sublinhado não é meu), morrem, sem exagero, cinquenta. Em alguns pontos, prossegue o articulista, chegam a morrer 70 por cento.»
Com pais que se matam uns aos outros e as meio-desfalecidas, arrasadas e desditosas mães que vêem como lhes morrem os filhos, do que necessitamos é de uma boa frota e de senso comum para dominar semelhante concorrência.
O testemunho reveste-se por si do suficiente valor para que eu o haja de reforçar com escusadas considerações. Em face da solicitação crescente dos acontecimentos, a ninguém reste dúvida que, ou Portugal e Espanha se entendem em pé de igualdade e de independência para a salvaguarda do seu património cultural e económico, ou Portugal e Espanha não demorarão, como despojo de um mundo morto, a marcharem arrastados na trajectória de qualquer das grandes forças imperialistas, em constituição tanto na Europa como na América. Eu creio, e creio com fé inabalável, nos destinos que Deus reserva à Península. Até lá, que provações nos esperam porém, que duros e implacáveis ensinamentos serão o preço da nossa ansiada libertação? Mas o caminho é só um – e já o traçou o presidente Epitácio Pessoa, pelo que toca à situação de Portugal e Espanha na América, aconselhando a rápida aliança do lusitanismo com o espanholismo. Impõe-se-nos a obrigação de arrancar a um estado lastimável de definhamento e desordem os nossos irmãos do outro lado do mar, semente segura do mais seguro porvir para a Península. Daqui o saúdo, a esse porvir, com os olhos da alma, adivinhando-lhe a realização plena. No entanto, meu pobre Agatão Tinoco, quando acabará a tua agonia?
(1919)
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