A política espanhola
António Sardinha
... Agustín Ruiz, presidente da Federação dos Sindicatos Católicos de Ferroviários, teve que retirar nas últimas eleições a sua candidatura por Logroño, porque, para vencer, careceria da fabulosa importância de 90.000 duros. É que a máquina política em Espanha repousa sobre uma autêntica organização de clientelas e subornos. E só uma revolução – desde arriba, como dizia Maura – disporá de energia suficiente para libertar o país do grande polvo que o estrangula e envolve.
Não ocultemos a verdade: a situação política em Espanha é gravíssima. Não porque o regime se encontre em perigo ou que o sr. Lerroux esteja prestes a ser governo. Suficientemente desacreditada pelos seus homens e pela sua ideologia, a república aqui não é possível. Se algum estremecimento social atirasse com o trono a terra, esse estremecimento levaria consigo indiferentemente monárquicos e republicanos, talvez mais aos segundos do que aos primeiros. A solução de uma democracia burguesa para os espíritos ansiosos de novidade impossibilitou-se, não só em Espanha, como em toda a velha Europa. É que imperativamente o dilema cada vez aperta mais os seus termos implacáveis: ou bolchevismo ou unidade do poder.
É, pois, muito outro o problema espanhol. «Rica e madura», na frase de Salaverría, a Espanha atingiu o momento próprio de uma grande afirmação nacional. Não lhe falta nem energia nem ouro. Falta-lhe, porém, o esforço que a liberte das oligarquias dominantes, dos grandes partidos que a exploram, corrompem e escravizam. O povo está são. E é o que vale ainda à Espanha. Mas
propriamente os seus elementos representativos não só cavam de hora para hora um divórcio absoluto entre a Nação e o Estado, como, recrutados na mais pura mediocracia, são por natureza incapazes de se elevarem à consciência exacta dos deveres do seu patriotismo no actual momento.
O que me mostrou quanto a Espanha verdadeira não é nada a Espanha que nós conhecemos de fora e de longe, foi o movimento desenrolado à roda do último ministério, presidido por Maura. De dia para dia, à maneira que a abstenção parlamentar aumentava, de toda a parte, do norte e do sul, subiam até ao governo as afirmações de apoio e de solidariedade de um país inteiro, que só deseja que o conduzam com acerto e o deixem trabalhar livremente. Sindicatos, câmaras de comércio e indústria, ayuntamientos, pueblos em peso com o seu alcalde à frente, exprimiam a Maura constantemente, no meio da maior confiança, o seu entusiasmo e o seu aplauso. Pois, precisamente, com uma atmosfera tão propícia, tão favorável, Maura, condicionado na sua existência pelo concurso do partido-conservador, viu-se na necessidade de se ir embora, para não ter que pactuar, para não ter que transigir.
Tal é o aspecto grave da política espanhola. Resume-se todo na incapacidade do constitucionalismo monárquico em satisfazer as aspirações da "Espanha rica e madura". É a decomposição do tipo napoleónico do Estado que se nota por todo o mundo. Mas, por se tratar de um país entrado em plena prosperidade económica, o fenómeno reveste-se aqui de uma significação particular.
Não se imagine que a Espanha está às vésperas de se pulverizar, só pelo aspecto exterior que nos oferecem as suas lutas políticas. A política em Espanha é apenas o indício da falência ruidosa do partidarismo. A nação, saudável e forte, não tardará a retomar as direcções naturais do seu génio e da sua estrutura histórica, rompendo com os moldes que a centralizam e opressoramente a mutilam.
Eu só acho comparação para o estado presente de Espanha na Espanha de Enrique El-Doliente, também rica e madura, como a actual, mas totalmente retalhada e devorada pelos apetites insaciáveis de uma nobreza poderosa e turbulenta. Mas os Reis-Católicos surgiram. Com eles – com a sua estrela – venceram-se os fermentos da divisão interna. E, obtida pelas virtudes da monarquia a unidade necessária, nós não ignoramos como logo o crescer da Espanha foi glorioso e rápido.
Ora, decorridos alguns séculos, as circunstâncias repetem-se. Não há agora os nobres, mas há os políticos, tão perturbadores e tão insaciáveis como os primeiros.
Hoje, como ontem, à Coroa, e só à Coroa, pertence vibrar o golpe cirúrgico com decisão e firmeza. Como? Sem dúvida, pela ditadura, pois que dentro da legalidade já se viu, com sobrada experiência, não serem possíveis em Espanha os governos estáveis, os governos duradoiros. A ditadura é assim o mais vivo anelo de todo o espanhol que pensa um minuto nos destinos da sua pátria. Os próprios republicanos reconhecem que, a proclamar-se a república – é o proclamas! – o novo regime jamais se consolidaria se a sua obra não fosse imposta ditatorialmente. Então, porque se hesita? Talvez por ser grande o receio em se tocar nos Interesses criados, título simbólico de uma das mais belas peças de Jacinto Benavente.
São tão fundos e estão tão ligados esses interesses, que Agustín Ruiz, presidente da Federação dos Sindicatos Católicos de Ferroviários, teve que retirar nas últimas eleições a sua candidatura por Logroño, porque, para vencer, careceria da fabulosa importância de 90.000 duros. É que a máquina política em Espanha repousa sobre uma autêntica organização de clientelas e subornos. E só uma revolução – desde arriba, como dizia Maura – disporá de energia suficiente para libertar o país do grande polvo que o estrangula e envolve.
Porque Maura representava um perigo nesse sentido, não nos admiremos da facilidade com que "esquerdas" e "direitas" se confabularam para embaraçar a vida do seu governo. Herdou-lhe o poder a parte menos significativa do partido datista – é certo. Mas por isso mesmo a parte mais funesta e mais atrabiliária, namoradora das complacências parlamentares dos republicanos e mais preocupada em lhes dar satisfação do que em atender aos votos bem claros e bem terminantes do povo espanhol. Salva-se apenas Bugallal, actual ministro da Fazenda, dotado de magníficas qualidades políticas e com um notável sentido das necessidades do momento. Mas, inimigo irreconciliável de uma aproximação com mauristas e ciervistas, no Ministério do Estado o marquês de Lema cacareja a cada instante as impertinências da sua insignificância contente, enquanto, no da Gobernación, Burgos y Mazo é a versão castiça de Nunes da Mata, do nosso genuíno "Nónes",
irmãos os dois na facúndia com que escrevem obras de teatro que ninguém representa, talvez porque nem um só dos seus personagens consegue escapar à morte.
Já se compreende onde reside a gravidade da política espanhola. É na evidente insuficiência dos seus dirigentes, para que nas suas mãos frutifique deveras a hora de promissão que passa por sobre a Espanha, "rica e madura". O que nos dirá o dia de amanhã? Concentração? Volta de Maura? Solução parlamentar, entregando o governo às "esquerdas"? Profecias, não as arrisco. Mas não oculto o profundo tom melancólico com que o ABC aludia a «el cirujano de hierro», que «no ha nacido, ni hay quién lo llame».
Nascido, talvez haja nascido... E talvez se encontre mesmo para as bandas do Cabo-Palos, conversando intimamente com os seus pinheiros. Agora o que se me afigura certo é que «no hay quién lo llame»!
Tanto pior para a Coroa, tanto pior para a Espanha!
(1919)
É, pois, muito outro o problema espanhol. «Rica e madura», na frase de Salaverría, a Espanha atingiu o momento próprio de uma grande afirmação nacional. Não lhe falta nem energia nem ouro. Falta-lhe, porém, o esforço que a liberte das oligarquias dominantes, dos grandes partidos que a exploram, corrompem e escravizam. O povo está são. E é o que vale ainda à Espanha. Mas
propriamente os seus elementos representativos não só cavam de hora para hora um divórcio absoluto entre a Nação e o Estado, como, recrutados na mais pura mediocracia, são por natureza incapazes de se elevarem à consciência exacta dos deveres do seu patriotismo no actual momento.
O que me mostrou quanto a Espanha verdadeira não é nada a Espanha que nós conhecemos de fora e de longe, foi o movimento desenrolado à roda do último ministério, presidido por Maura. De dia para dia, à maneira que a abstenção parlamentar aumentava, de toda a parte, do norte e do sul, subiam até ao governo as afirmações de apoio e de solidariedade de um país inteiro, que só deseja que o conduzam com acerto e o deixem trabalhar livremente. Sindicatos, câmaras de comércio e indústria, ayuntamientos, pueblos em peso com o seu alcalde à frente, exprimiam a Maura constantemente, no meio da maior confiança, o seu entusiasmo e o seu aplauso. Pois, precisamente, com uma atmosfera tão propícia, tão favorável, Maura, condicionado na sua existência pelo concurso do partido-conservador, viu-se na necessidade de se ir embora, para não ter que pactuar, para não ter que transigir.
Tal é o aspecto grave da política espanhola. Resume-se todo na incapacidade do constitucionalismo monárquico em satisfazer as aspirações da "Espanha rica e madura". É a decomposição do tipo napoleónico do Estado que se nota por todo o mundo. Mas, por se tratar de um país entrado em plena prosperidade económica, o fenómeno reveste-se aqui de uma significação particular.
Não se imagine que a Espanha está às vésperas de se pulverizar, só pelo aspecto exterior que nos oferecem as suas lutas políticas. A política em Espanha é apenas o indício da falência ruidosa do partidarismo. A nação, saudável e forte, não tardará a retomar as direcções naturais do seu génio e da sua estrutura histórica, rompendo com os moldes que a centralizam e opressoramente a mutilam.
Eu só acho comparação para o estado presente de Espanha na Espanha de Enrique El-Doliente, também rica e madura, como a actual, mas totalmente retalhada e devorada pelos apetites insaciáveis de uma nobreza poderosa e turbulenta. Mas os Reis-Católicos surgiram. Com eles – com a sua estrela – venceram-se os fermentos da divisão interna. E, obtida pelas virtudes da monarquia a unidade necessária, nós não ignoramos como logo o crescer da Espanha foi glorioso e rápido.
Ora, decorridos alguns séculos, as circunstâncias repetem-se. Não há agora os nobres, mas há os políticos, tão perturbadores e tão insaciáveis como os primeiros.
Hoje, como ontem, à Coroa, e só à Coroa, pertence vibrar o golpe cirúrgico com decisão e firmeza. Como? Sem dúvida, pela ditadura, pois que dentro da legalidade já se viu, com sobrada experiência, não serem possíveis em Espanha os governos estáveis, os governos duradoiros. A ditadura é assim o mais vivo anelo de todo o espanhol que pensa um minuto nos destinos da sua pátria. Os próprios republicanos reconhecem que, a proclamar-se a república – é o proclamas! – o novo regime jamais se consolidaria se a sua obra não fosse imposta ditatorialmente. Então, porque se hesita? Talvez por ser grande o receio em se tocar nos Interesses criados, título simbólico de uma das mais belas peças de Jacinto Benavente.
São tão fundos e estão tão ligados esses interesses, que Agustín Ruiz, presidente da Federação dos Sindicatos Católicos de Ferroviários, teve que retirar nas últimas eleições a sua candidatura por Logroño, porque, para vencer, careceria da fabulosa importância de 90.000 duros. É que a máquina política em Espanha repousa sobre uma autêntica organização de clientelas e subornos. E só uma revolução – desde arriba, como dizia Maura – disporá de energia suficiente para libertar o país do grande polvo que o estrangula e envolve.
Porque Maura representava um perigo nesse sentido, não nos admiremos da facilidade com que "esquerdas" e "direitas" se confabularam para embaraçar a vida do seu governo. Herdou-lhe o poder a parte menos significativa do partido datista – é certo. Mas por isso mesmo a parte mais funesta e mais atrabiliária, namoradora das complacências parlamentares dos republicanos e mais preocupada em lhes dar satisfação do que em atender aos votos bem claros e bem terminantes do povo espanhol. Salva-se apenas Bugallal, actual ministro da Fazenda, dotado de magníficas qualidades políticas e com um notável sentido das necessidades do momento. Mas, inimigo irreconciliável de uma aproximação com mauristas e ciervistas, no Ministério do Estado o marquês de Lema cacareja a cada instante as impertinências da sua insignificância contente, enquanto, no da Gobernación, Burgos y Mazo é a versão castiça de Nunes da Mata, do nosso genuíno "Nónes",
irmãos os dois na facúndia com que escrevem obras de teatro que ninguém representa, talvez porque nem um só dos seus personagens consegue escapar à morte.
Já se compreende onde reside a gravidade da política espanhola. É na evidente insuficiência dos seus dirigentes, para que nas suas mãos frutifique deveras a hora de promissão que passa por sobre a Espanha, "rica e madura". O que nos dirá o dia de amanhã? Concentração? Volta de Maura? Solução parlamentar, entregando o governo às "esquerdas"? Profecias, não as arrisco. Mas não oculto o profundo tom melancólico com que o ABC aludia a «el cirujano de hierro», que «no ha nacido, ni hay quién lo llame».
Nascido, talvez haja nascido... E talvez se encontre mesmo para as bandas do Cabo-Palos, conversando intimamente com os seus pinheiros. Agora o que se me afigura certo é que «no hay quién lo llame»!
Tanto pior para a Coroa, tanto pior para a Espanha!
(1919)