À lareira de Castela
António Sardinha
[À lareira de Castela]
Hoje, festa da Raça, também eu, peregrino português, venho tomar assento à lareira carinhosa de Castela. Não devemos nós compreender a Raça como um estreito conceito de ordem étnica, porque seria um imperdoável erro e, além disso, um motivo de exclusão para Portugal.
É uma verdade, confirmada nas indicações da natureza e nos actos da história, a diferença estrutural que distingue o tipo lusitano do tipo "ibérico‟, propriamente dito. Se essa diferença existiu sempre, até ao ponto de a assinalarem os antigos geógrafos que escreveram da península, é, sobretudo, nos domínios da criação literária onde encontra a sua completa consagração. Enquanto Castela exprimia na gesta heróica o seu alto génio conquistador, Portugal, país dos litorais, mais "atlântico" que as outras pátrias hispânicas, pedia ao lirismo a significação da sua alma inquieta e apaixonada. Se é certo que tais matizes imprimem aos dois povos peninsulares uma fisionomia distinta e inconfundível, há todavia a reconhecer que existe uma unidade superior a eles nas direcções principais do seu destino imortal, bem caracterizada numa obra comum de civilização. A Raça tem, pois, que compreender-se nesse amplo sentido espiritual, como expressão de um mesmo património de cultura que tanto Castela como Portugal, com o seu esforço e o seu sangue, semearam por mundos novos.
Nações de arreigada vocação apostólica, Castela e Portugal nasceram da Cruzada e pela Cruzada viverão. Mudam as circunstâncias; mas mantém-se, inalterável, a essência das coisas. Uma política, com tanto de falsa como de secular, cavou entre as duas pátrias um profundo abismo. O Estado espanhol, herdeiro do centralismo absorvente do Conde-Duque, quando olha Portugal, olha-o como uma parte sua, que interesses criminosos separaram da sua natural gravitação.
Por sua parte, Portugal cultiva contra Castela uma leyenda negra que daria à pena do malogrado Juderias outro volume não menos luminoso do que esse que deixou com tal título.
Se meditarmos as lições do passado logo se nos mostram patentes as graves consequências de um tão longo e recíproco equivoco. Estrangeiros e só estrangeiros (como português me considero, não de Espanha, designação política, mas das Espanhas, apelativo geográfico) continuam cultivando cada dia mais a separação tantas vezes centenária que põe num afastamento fratricida as duas grandes pátrias peninsulares. Resultado da sua fraqueza interna, o ódio a Castela é em Portugal uma velha razão de sentimento. Paga-lhe Castela com uma indiferença não menos injusta nem menos censurável...
E, assim, não se pode estranhar que a Península sucumba na missão mundial que Deus lhe assinalou desde o início dos tempos.
Pois diversa tem que ser a obra futura senão presente, de todos os que em Espanha e em Portugal se conceituam bons patriotas.
Do outro lado do mar, a América, rica de juventude e de seiva, a América, não "latina", mas unicamente "hispânica", chama por nós.
O Atlântico poderá converter-se, num futuro próximo e glorioso mas verdadeiro mare nostrum. Contemplemos com fé viva a promessa maravilhosa do dia vindouro! Mas, condição essencial é que portugueses e espanhóis se conheçam e se estimem!
A festa da Raça é a data propícia para uma comunhão tão elevada e tão bela. Como outrora, a Cruzada desperta, a Cruzada nos une. Castela e Portugal, erguendo o império de Cristo na Idade-Média, salvaram com a fé a civilização. Enquanto Portugal abria o caminho da Índia, ferindo o islamismo pelo flanco, Castela batia-o na Europa Central e no Mediterrâneo, salvando uma vez mais a civilização do seu naufrágio inevitável.
Porque a civilização é a Cruz, a Cruzada impõe-se quando a civilização se encontra ameaçada de morte. É, repito, o que sucede no momento presente. As circunstâncias modificam-se, mas não a essência das coisas. Por isso a Cruzada ressuscita e nos convoca. Talvez uma Cruzada menos violenta; mas, sem embargo, não menos militante. Os perigos que entenebrecem os horizontes sociais vêm do total esquecimento dos princípios eternos. Proclamemos e evangelizemos esses princípios restaurando a sociedade cristã pela volta aos caminhos perdidos da Tradição. À "universalidade" da Revolução respondamos nós com a "universalidade" da instauração por que combatemos. Comecem-no as direitas espanholas e portuguesas, fraternalmente ligadas pelas mesmas aspirações. E imediatamente virá a colheita do milagre.
Que a truculenta e impossível miragem do unitarismo ibérico seja substituída por uma ideia firme de "amizade peninsular" ! Somente assim a festa da Raça poderá ser verdadeiramente a festa da Raça!
Somente assim nós seremos dignos do futuro que Deus nos prepara desde as mais remotas páginas da História!
E outras não são as palavras de um pobre peregrino lusitano, que deseja também tomar assento à lareira de Castela, quando Castela recebe e saúda, com a sua fidalguia carinhosa, a quantos a buscam, arvorando as insígnias das outras nacionalidades hispânicas.
(1920)
(Texto que serviu de prefácio ao livro À Lareira de Castela, Lisboa, Edições GAMA, 1942, pp. XIII-XVIII.)
Hoje, festa da Raça, também eu, peregrino português, venho tomar assento à lareira carinhosa de Castela. Não devemos nós compreender a Raça como um estreito conceito de ordem étnica, porque seria um imperdoável erro e, além disso, um motivo de exclusão para Portugal.
É uma verdade, confirmada nas indicações da natureza e nos actos da história, a diferença estrutural que distingue o tipo lusitano do tipo "ibérico‟, propriamente dito. Se essa diferença existiu sempre, até ao ponto de a assinalarem os antigos geógrafos que escreveram da península, é, sobretudo, nos domínios da criação literária onde encontra a sua completa consagração. Enquanto Castela exprimia na gesta heróica o seu alto génio conquistador, Portugal, país dos litorais, mais "atlântico" que as outras pátrias hispânicas, pedia ao lirismo a significação da sua alma inquieta e apaixonada. Se é certo que tais matizes imprimem aos dois povos peninsulares uma fisionomia distinta e inconfundível, há todavia a reconhecer que existe uma unidade superior a eles nas direcções principais do seu destino imortal, bem caracterizada numa obra comum de civilização. A Raça tem, pois, que compreender-se nesse amplo sentido espiritual, como expressão de um mesmo património de cultura que tanto Castela como Portugal, com o seu esforço e o seu sangue, semearam por mundos novos.
Nações de arreigada vocação apostólica, Castela e Portugal nasceram da Cruzada e pela Cruzada viverão. Mudam as circunstâncias; mas mantém-se, inalterável, a essência das coisas. Uma política, com tanto de falsa como de secular, cavou entre as duas pátrias um profundo abismo. O Estado espanhol, herdeiro do centralismo absorvente do Conde-Duque, quando olha Portugal, olha-o como uma parte sua, que interesses criminosos separaram da sua natural gravitação.
Por sua parte, Portugal cultiva contra Castela uma leyenda negra que daria à pena do malogrado Juderias outro volume não menos luminoso do que esse que deixou com tal título.
Se meditarmos as lições do passado logo se nos mostram patentes as graves consequências de um tão longo e recíproco equivoco. Estrangeiros e só estrangeiros (como português me considero, não de Espanha, designação política, mas das Espanhas, apelativo geográfico) continuam cultivando cada dia mais a separação tantas vezes centenária que põe num afastamento fratricida as duas grandes pátrias peninsulares. Resultado da sua fraqueza interna, o ódio a Castela é em Portugal uma velha razão de sentimento. Paga-lhe Castela com uma indiferença não menos injusta nem menos censurável...
E, assim, não se pode estranhar que a Península sucumba na missão mundial que Deus lhe assinalou desde o início dos tempos.
Pois diversa tem que ser a obra futura senão presente, de todos os que em Espanha e em Portugal se conceituam bons patriotas.
Do outro lado do mar, a América, rica de juventude e de seiva, a América, não "latina", mas unicamente "hispânica", chama por nós.
O Atlântico poderá converter-se, num futuro próximo e glorioso mas verdadeiro mare nostrum. Contemplemos com fé viva a promessa maravilhosa do dia vindouro! Mas, condição essencial é que portugueses e espanhóis se conheçam e se estimem!
A festa da Raça é a data propícia para uma comunhão tão elevada e tão bela. Como outrora, a Cruzada desperta, a Cruzada nos une. Castela e Portugal, erguendo o império de Cristo na Idade-Média, salvaram com a fé a civilização. Enquanto Portugal abria o caminho da Índia, ferindo o islamismo pelo flanco, Castela batia-o na Europa Central e no Mediterrâneo, salvando uma vez mais a civilização do seu naufrágio inevitável.
Porque a civilização é a Cruz, a Cruzada impõe-se quando a civilização se encontra ameaçada de morte. É, repito, o que sucede no momento presente. As circunstâncias modificam-se, mas não a essência das coisas. Por isso a Cruzada ressuscita e nos convoca. Talvez uma Cruzada menos violenta; mas, sem embargo, não menos militante. Os perigos que entenebrecem os horizontes sociais vêm do total esquecimento dos princípios eternos. Proclamemos e evangelizemos esses princípios restaurando a sociedade cristã pela volta aos caminhos perdidos da Tradição. À "universalidade" da Revolução respondamos nós com a "universalidade" da instauração por que combatemos. Comecem-no as direitas espanholas e portuguesas, fraternalmente ligadas pelas mesmas aspirações. E imediatamente virá a colheita do milagre.
Que a truculenta e impossível miragem do unitarismo ibérico seja substituída por uma ideia firme de "amizade peninsular" ! Somente assim a festa da Raça poderá ser verdadeiramente a festa da Raça!
Somente assim nós seremos dignos do futuro que Deus nos prepara desde as mais remotas páginas da História!
E outras não são as palavras de um pobre peregrino lusitano, que deseja também tomar assento à lareira de Castela, quando Castela recebe e saúda, com a sua fidalguia carinhosa, a quantos a buscam, arvorando as insígnias das outras nacionalidades hispânicas.
(1920)
(Texto que serviu de prefácio ao livro À Lareira de Castela, Lisboa, Edições GAMA, 1942, pp. XIII-XVIII.)
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