A Festa da Raça
António Sardinha
Foi a 12 de Outubro, pelas duas horas da madrugada nesse ano da graça de 1492,
que, a bordo da Pinta, uma voz bradou alvoroçadamente: Tierra! A América estava
descoberta e Colombo entrava nos átrios augustíssimos da História. Pois a 12 de
Outubro celebra a Espanha, em comunhão com outras nacionalidades americanas,
suas filhas, aquela festa que, por chamar-se da Raça, quer certamente ser a festa da
sua civilização. Ora, na festa da civilização hispânica, que encontrou o seu
primeiro historiador no nosso admirável Oliveira Martins, têm também lugar
Portugal e o Brasil. Sentêmo-nos então no espaçoso anfiteatro em que tantos povos
unidos pelo mais apertado parentesco se agrupam para comemorar a alta e gloriosa
origem de que derivam, e seja para lembrar que, ao lado da Espanha, nas
homenagens que lhe chegam de além do Atlântico, Portugal não pode nem deve
ficar esquecido.
Não recordarei aqui que na descoberta da América foi Colombo antecedido
por navegadores portugueses, que, presos da sedução pérfida do Oceano, atingiram
paragens sem nome, navegando sempre para Oeste. É inútil recordar também
quanto influiu em Colombo o seu longo convívio com os nossos pilotos, o seu
casamento com uma Perestrelo da ilha da Madeira.
Entre outros, Luciano Cordeiro, cujo labor tão honesto e tão nacionalista é
obrigação nossa não olvidar, fixou numa pequena monografia a parte decisiva que
nos pertence a nós no descobrimento do Novo-Mundo. Mas, bem mais do que
essas indispensáveis aclarações históricas, o dia de hoje exige-nos uma sereníssima
meditação sobre o destino que o futuro nos reserva, se, olhando para o lado de lá do
Atlântico, soubermos compreender que, antes de tudo, as duas pátrias peninsulares
precisam entender-se para irem depois à reconquista espiritual dessas vinte e tantas
nacionalidades, que ambas souberam criar e que tão desejosas se mostram de
conhecer de perto a casa paterna.
No momento revolto que se atravessa, quando parece haverem desaparecido
da face da terra as grandes aspirações e com elas os grandes sacrifícios, a Espanha
oferece-nos um espectáculo maravilhoso, o espectáculo de uma guerra pela
civilização, o exemplo de uma verdadeira Cruzada! O sangue que se verte em
Marrocos verte-se ainda pelos mesmos soberanos motivos por que fomos outrora,
espanhóis e portugueses, os fronteiros-mores da Europa ameaçada de se dissolver
na barbaria agarena. É sangue do sangue que andámos vertendo ao longo dos
séculos sem fim e que, se em Marrocos significa mais uma caminhada dolorosa da
Raça, já se tornou na América num jardim de frutos magníficos, por onde a
esperança passeia, encantada.
Marcou-nos Deus com o sinal das suas melhores promessas, pondo-nos no
extremo da angustiada Europa, como num terraço lançado para os países moços do
Ocidente. Portugal e Espanha são assim na Europa a guarda-avançada da América,
como são na América o prolongamento da Europa.
Bem cedo se verá que os imperialismos do Ferro e do Carvão de nada valem,
se um sorriso de divina mocidade, que só vem da História e do Passado, lhe não
insuflar a vida das coisas fecundas. O poder do Espírito há-de renascer, como o
Senhor depois de ressuscitado, mais belo e mais dominador, por mercê do seu
longo eclipse. Não é outra a letra do cântico que, sentadas em torno da velha-madre
Hispânia, entoam em coro as suas filhas do lado de lá do Mar. Tomemos também
lugar, à cabeceira do festim, dando a mão direita ao Brasil, que é o nosso morgado.
Festa da Raça, festa da nossa Civilização, que é a obra imortal de um abraço
comum, abraço de Espanha e Portugal!
Não seremos assim uns anónimos atrevidos na assembleia festiva em que
exulta hoje a alma infatigável e sempre pronta da gloriosa nação vizinha. Liga-nos
aquela "unidade substancial", na frase feliz de D. Rafael Altamira, que, respeitando
e consagrando as diferenças eternas em que reciprocamente se exprimem duas
soberanias políticas indiscutíveis, nos está convocando do fundo da História para a
defesa e para o prestígio de um incomparável património de cultura e de ideal, que
só na Península encontrou o seu berço.
Além da questão candente de Marrocos, que a todo o transe é necessário
compreender e fazer igualmente nossa, no americanismo reside, principalmente, a
razão de um entendimento imediato entre Portugal e Espanha.
Não pode, porém, esse entendimento fazer-se na forma definitiva de uma
aliança, enquanto não for precedido pela indispensável preparação moral e
intelectual. A espanhóis e a portugueses separava-nos nos domínios da inteligência
e da sensibilidade toda uma floresta espessíssima de preconceitos e velhas
desconfianças. Primeiro que o mais impõe-se-nos, com a revisão da leyenda-negra
que intercepta a nossa natural solidariedade, a prática de actos públicos solenes em
que o nosso conhecimento recíproco se avigore e depure.
Nada como a Festa da Raça, com missões nossas visitando não só Madrid,
mas os diversos países americanos que de longe procuram restabelecer as relações
de família interrompidas! Nada como os frequentes congressos hispano-
americanistas, em que se participa da mesma ardorosa fé nacionalista e se traçam
roteiros seguros para se assegurar o dia que vem!
Nunca Portugal se mostra, nunca Portugal se manifesta. Bem sabemos que,
alheio por completo ao nosso passado e à nossa tradição, o Estado português não
representa Portugal. Mas supra essa falta imperdoável a assistência vigilante da
Nação. De há muito que o Integralismo Lusitano inscreve entre as suas aspirações
fundamentais o regresso ao hispanismo de Quinhentos, que achou em Camões um
cantor inolvidável, e que, evidentemente, se traduzirá amanhã numa fórmula leal e
clara de amizade, de colaboração mútua.
É aí que está, sem dúvida, o segredo do ressurgimento do nome português no
mundo. Outra não é a conclusão inteligente e patriótica de quem, olhando à
excepcional posição geográfica de Portugal, ambiciona legitimamente para a terra
em que nasceu o vê-la restituída à sua antiga glória e preponderância.
Celebremos, por isso, nós também a Festa da Raça. Discípulo dos nossos
pilotos, Colombo levava consigo uma fracção do génio lusitano. A mulher
inspirada que o acolheu e o animou tinha nas veias, como filha de portugueses, o
sangue do Condestável e dos "altos Infantes". Se o rumo de Portugal se inclinou
sobretudo para o Oriente, era ainda a miragem da Índia que atirava Colombo
erradamente a ver do mistério fascinante da misteriosa Cipango. O que Castela não
logrou com Colombo, veio a lográ-lo depois com Fernão de Magalhães. É bem
transparente a "unidade substancial" que a História imprime a portugueses e
espanhóis. Meditêmo-la nós, num demorado exame de consciência. E, de olhos
postos na alvorada que rompe já para além dos horizontes, sejamos desde agora os
obreiros de um Portugal-Maior, partindo com a Espanha à reconquista espiritual de
uma civilização que foi nossa e que ignominiosamente deixámos perder!
(1921)
que, a bordo da Pinta, uma voz bradou alvoroçadamente: Tierra! A América estava
descoberta e Colombo entrava nos átrios augustíssimos da História. Pois a 12 de
Outubro celebra a Espanha, em comunhão com outras nacionalidades americanas,
suas filhas, aquela festa que, por chamar-se da Raça, quer certamente ser a festa da
sua civilização. Ora, na festa da civilização hispânica, que encontrou o seu
primeiro historiador no nosso admirável Oliveira Martins, têm também lugar
Portugal e o Brasil. Sentêmo-nos então no espaçoso anfiteatro em que tantos povos
unidos pelo mais apertado parentesco se agrupam para comemorar a alta e gloriosa
origem de que derivam, e seja para lembrar que, ao lado da Espanha, nas
homenagens que lhe chegam de além do Atlântico, Portugal não pode nem deve
ficar esquecido.
Não recordarei aqui que na descoberta da América foi Colombo antecedido
por navegadores portugueses, que, presos da sedução pérfida do Oceano, atingiram
paragens sem nome, navegando sempre para Oeste. É inútil recordar também
quanto influiu em Colombo o seu longo convívio com os nossos pilotos, o seu
casamento com uma Perestrelo da ilha da Madeira.
Entre outros, Luciano Cordeiro, cujo labor tão honesto e tão nacionalista é
obrigação nossa não olvidar, fixou numa pequena monografia a parte decisiva que
nos pertence a nós no descobrimento do Novo-Mundo. Mas, bem mais do que
essas indispensáveis aclarações históricas, o dia de hoje exige-nos uma sereníssima
meditação sobre o destino que o futuro nos reserva, se, olhando para o lado de lá do
Atlântico, soubermos compreender que, antes de tudo, as duas pátrias peninsulares
precisam entender-se para irem depois à reconquista espiritual dessas vinte e tantas
nacionalidades, que ambas souberam criar e que tão desejosas se mostram de
conhecer de perto a casa paterna.
No momento revolto que se atravessa, quando parece haverem desaparecido
da face da terra as grandes aspirações e com elas os grandes sacrifícios, a Espanha
oferece-nos um espectáculo maravilhoso, o espectáculo de uma guerra pela
civilização, o exemplo de uma verdadeira Cruzada! O sangue que se verte em
Marrocos verte-se ainda pelos mesmos soberanos motivos por que fomos outrora,
espanhóis e portugueses, os fronteiros-mores da Europa ameaçada de se dissolver
na barbaria agarena. É sangue do sangue que andámos vertendo ao longo dos
séculos sem fim e que, se em Marrocos significa mais uma caminhada dolorosa da
Raça, já se tornou na América num jardim de frutos magníficos, por onde a
esperança passeia, encantada.
Marcou-nos Deus com o sinal das suas melhores promessas, pondo-nos no
extremo da angustiada Europa, como num terraço lançado para os países moços do
Ocidente. Portugal e Espanha são assim na Europa a guarda-avançada da América,
como são na América o prolongamento da Europa.
Bem cedo se verá que os imperialismos do Ferro e do Carvão de nada valem,
se um sorriso de divina mocidade, que só vem da História e do Passado, lhe não
insuflar a vida das coisas fecundas. O poder do Espírito há-de renascer, como o
Senhor depois de ressuscitado, mais belo e mais dominador, por mercê do seu
longo eclipse. Não é outra a letra do cântico que, sentadas em torno da velha-madre
Hispânia, entoam em coro as suas filhas do lado de lá do Mar. Tomemos também
lugar, à cabeceira do festim, dando a mão direita ao Brasil, que é o nosso morgado.
Festa da Raça, festa da nossa Civilização, que é a obra imortal de um abraço
comum, abraço de Espanha e Portugal!
Não seremos assim uns anónimos atrevidos na assembleia festiva em que
exulta hoje a alma infatigável e sempre pronta da gloriosa nação vizinha. Liga-nos
aquela "unidade substancial", na frase feliz de D. Rafael Altamira, que, respeitando
e consagrando as diferenças eternas em que reciprocamente se exprimem duas
soberanias políticas indiscutíveis, nos está convocando do fundo da História para a
defesa e para o prestígio de um incomparável património de cultura e de ideal, que
só na Península encontrou o seu berço.
Além da questão candente de Marrocos, que a todo o transe é necessário
compreender e fazer igualmente nossa, no americanismo reside, principalmente, a
razão de um entendimento imediato entre Portugal e Espanha.
Não pode, porém, esse entendimento fazer-se na forma definitiva de uma
aliança, enquanto não for precedido pela indispensável preparação moral e
intelectual. A espanhóis e a portugueses separava-nos nos domínios da inteligência
e da sensibilidade toda uma floresta espessíssima de preconceitos e velhas
desconfianças. Primeiro que o mais impõe-se-nos, com a revisão da leyenda-negra
que intercepta a nossa natural solidariedade, a prática de actos públicos solenes em
que o nosso conhecimento recíproco se avigore e depure.
Nada como a Festa da Raça, com missões nossas visitando não só Madrid,
mas os diversos países americanos que de longe procuram restabelecer as relações
de família interrompidas! Nada como os frequentes congressos hispano-
americanistas, em que se participa da mesma ardorosa fé nacionalista e se traçam
roteiros seguros para se assegurar o dia que vem!
Nunca Portugal se mostra, nunca Portugal se manifesta. Bem sabemos que,
alheio por completo ao nosso passado e à nossa tradição, o Estado português não
representa Portugal. Mas supra essa falta imperdoável a assistência vigilante da
Nação. De há muito que o Integralismo Lusitano inscreve entre as suas aspirações
fundamentais o regresso ao hispanismo de Quinhentos, que achou em Camões um
cantor inolvidável, e que, evidentemente, se traduzirá amanhã numa fórmula leal e
clara de amizade, de colaboração mútua.
É aí que está, sem dúvida, o segredo do ressurgimento do nome português no
mundo. Outra não é a conclusão inteligente e patriótica de quem, olhando à
excepcional posição geográfica de Portugal, ambiciona legitimamente para a terra
em que nasceu o vê-la restituída à sua antiga glória e preponderância.
Celebremos, por isso, nós também a Festa da Raça. Discípulo dos nossos
pilotos, Colombo levava consigo uma fracção do génio lusitano. A mulher
inspirada que o acolheu e o animou tinha nas veias, como filha de portugueses, o
sangue do Condestável e dos "altos Infantes". Se o rumo de Portugal se inclinou
sobretudo para o Oriente, era ainda a miragem da Índia que atirava Colombo
erradamente a ver do mistério fascinante da misteriosa Cipango. O que Castela não
logrou com Colombo, veio a lográ-lo depois com Fernão de Magalhães. É bem
transparente a "unidade substancial" que a História imprime a portugueses e
espanhóis. Meditêmo-la nós, num demorado exame de consciência. E, de olhos
postos na alvorada que rompe já para além dos horizontes, sejamos desde agora os
obreiros de um Portugal-Maior, partindo com a Espanha à reconquista espiritual de
uma civilização que foi nossa e que ignominiosamente deixámos perder!
(1921)