Sob o poder de Pôncio Pilatos
António Sardinha
Separando o elemento moral e religioso referente à alma de cada indivíduo, - ao que há em nós de imortal e de inalienável, daquilo que constitui a essência própria do Estado, Jesus instituía e consagrava a verdadeira liberdade, que outra não é senão a que se fundamenta na plena soberania da nossa consciência.
A populaça é e será eternamente a rebelião instintiva do caos contra toda a regra e contra toda a harmonia. Imagem da Obediência e da Ordem, o Centurião é, pelo contrário, a vigilância em pessoa, - a fidelidade incarnada.
A populaça é e será eternamente a rebelião instintiva do caos contra toda a regra e contra toda a harmonia. Imagem da Obediência e da Ordem, o Centurião é, pelo contrário, a vigilância em pessoa, - a fidelidade incarnada.
I
Quando em Sexta-feira Maior entrei na Catedral de Badajoz, já as cerimónias religiosas tinham começado. À meia luz da nave recolhida cantava-se a Paixão de Cristo, Senhor Nosso, - conforme a lição do Discípulo-Amado. Curvado para o meu devocionário, logo me concentrei na passagem em que a minha leitura se encontrou com a leitura entoada dos oficiantes.
Era a cena espantosa do Pretório, com as tergiversações de Pilatos diante da turba enfurecida. Coroado de espinhos e cingido de purpura, Jesus não quebrava o seu doloroso silêncio nem com uma só palavra de humana justificação. Debalde tentava Pilatos arrancá-lo a uma morte certa, - quem sabe se debaixo da impressão que lhe deixava o aviso de Calpicónia, sua mulher.
Os sacerdotes e o povo gritavam sempre, ardendo num desejo hediondo de carnagem: — «Crucificai-o! Crucificai-o!» - «Mas crucificai-o vós, que eu não descubro nele crime nenhum!» — replicava-lhes o Pretor da sua varanda, com Jesus ao lado, escarnecido e cuspido, na atitude caída de quem chamava à face todos os pecados do mundo. - «Nós possuímos uma lei!»— teimavam raivosos os judeus. - «E segundo a nossa lei, é preciso que morra, porque se declarou Filho de Deus!» - A vacilação de Pilatos atingia o extremo. E recolhendo-se um pouco, pergunta a Jesus: — «Mas quem és tu? Donde é que tu vens?» Não lhe respondeu Jesus. Pilatos insiste ainda: -«Porque não falas? Ignoras tu acaso que eu disponho do poder de te crucificar ou de te libertar?» É então que Jesus descerra os lábios para dizer mansamente: - «Tu não disporias desse poder sobre mim, se não o houvesses recebido de cima.»
Com a sua voz resignada de vítima, Jesus acabava de definir, a dois passos do Calvário, a origem divina de toda a autoridade legítima. E assim, num exemplo de tocante humildade que atravessou os séculos, o Filho de Deus reconhecia a legitimidade do Império-Romano para o julgar e condenar. Já antes Jesus o quisera demonstrar, não se recusando a pagar o tributo, devido a César, desde que se mantivessem e guardassem os direitos imprescindíveis de Deus. Que revolução profunda não ia envolta na missão admirável de Cristo! Separando o elemento moral e religioso, referente à alma de cada indivíduo, - ao que há em nós de imortal e de inalienável, daquilo que constitui a essência própria do Estado, Jesus instituía e consagrava a verdadeira liberdade, que outra não é senão a que se fundamenta na plena soberania da nossa consciência.
Foi o que Jesus nos ensinou mandando pagar a César o que se devesse a César, mas reservando para Deus o que só a Deus pertencia. Na dureza materialista da sociedade pagã, perante a opressão e o capricho, arvorados em normas de justiça corrente, erguia-se enfim uma força que a nada se curvava, - a força invencível do Espírito. Com a força do Espírito, e unicamente por ela, a Igreja adoçou e renovou a herança corrupta da civilização antiga que descansava na escravatura como base económica e aceitava o filicídio como prática natural e legal. E tudo porquê? Tudo porque um Homem cingido de purpura e coroado de espinhos não tardaria a exclamar do alto do Pretório que se na Terra existia um poder para o julgar e condenar, era porque esse poder vinha de mais alto que do precário arbítrio do magistrado que não vacilava, por pecado de fraqueza, em permitir a morte de um inocente.
Energia saída do jogo cego da história, a autoridade não conhecera até aí a ética do seu fim superior, permanecendo alheia, por completo, a qualquer sentimento de responsabilidade, que ao mesmo tempo a limitasse e a engrandecesse. Deu-lho Jesus na cena do Pretório, em presença das hesitações de Pilatos, quando já a hora do sacrifício se aproximava e a humanidade estava prestes a receber da Sua morte na cruz os divinos eternos do Mandalum novum: - «Mas porque não falas tu? Não sabes que eu tenho poder, ou para te crucificar ou para te libertar?» - «Tu não terias esse poder, se ele não te viesse de cima!» (Non haberes potestatem adversum me ullam, nisi tibi data esset desuper! — escreve o Evangelista.)
E aqui começou a minha meditação em Sexta-Feira Maior, - Feria ut in Parasceve, - na velha catedral de Badajoz. Quedei-me suspenso, com o devocionário aberto, reconsiderando dentro de mim a expressiva e singular passagem. Comentava-a a pena autorizada de D. Guéranger, - o insigne abade Solesmes. E comentava-a num período quase cunhado na forma incisiva dos grandes aforismos. «Dignou-se Jesus falar; e foi para ensinar que todo o poder constituído, mesmo entre os infieis, é de Deus que deriva, e não do chamado pacto social». A observação de Guéranger depressa o meu pensamento a generalizou num rumoroso desfile de ideias. Impressionava-me o incenso, - impressionava-me o órgão. E com a mente embebida em coisas altas e imateriais, não tardou, em acudir-me à lembrança aquela doutrina medieval, tão invocada por Dante, para defesa do Império, no seu tratado Da Monarquia. É ela bem interessante e merece que a recordemos.
Para que o holocausto de Jesus aproveitasse ao Género Humano, tornava-se necessário que a condenação do Filho de Deus partisse de uma autoridade com tanto de legítima como de violentamente reconhecida (Si Pilati imperium jure fuit, pecatum in Christo non fuit adeo penitum.) Ora essa autoridade só podia ser a autoridade que residia no Império-Romano. Porque condenado apenas pelos judeus, segundo o particularismo da lei mosaica, nunca a imolação de Cristo abrangeria a Gentilidade, nem tão pouco as profecias seriam cumpridas. Mas sentenciado à morte pelo Pretor, Cristo era sentenciado por quem representava legitimamente a todo o Orbe. A legitimidade do Império-Romano, como de razão social, já Jesus a aceitava nascendo na hora exacta em que César Augusto ordenava por um édito «o recenseamento do universo inteiro». Recenseado como homem Jesus morria na obediência voluntária ao mesmo poder a que espontaneamente se subordinara só pelo facto do seu nascimento.
Contrariamente ao que supõe e quer um conceito já proverbial, a menção de Pilatos no Credo reveste-se pois, de um imenso e perdurável significado! «Nasceu de Maria Virgem, padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos...». E o poder de Pôncio Pilatos, acatado por Jesus, a Igreja o acataria depois desde as primeiras pregações dos Apóstolos até à confissão saída do próprio concílio de Niceia. O poder de Pilatos é o poder de Roma. O poder de Roma, passará, intacto, do domínio temporal dos Césares para a hierarquia imperecedoura do Papado. No meu devocionário D. Guéranger assim no-lo deixa visionado: - «Uma circunstância, transmitida até aos nossos dias pela tradição constante dos Santos Padres», - explica-nos o eminente liturgista, a propósito da inscrição imposta na cruz - indica-nos que esse Rei dos Judeus, repelido pelo seu povo, não reinará senão com mais glória sobre as nações da Terra que ele recebeu de seu Pai em herança. Os soldados, ao incrustarem a Cruz no chão, — continua D. Guéranger, — dispuzeram-na de maneira que o divino Crucificado ficou de costas voltadas para Jerusálem, abrindo os seus braços para as regiões do Ocidente. O sol da Verdade punha-se sobre a cidade deicida, ao mesmo tempo que se levantava sobre a nova Jerusalém, - sobre Roma, a urbes altiva que possuindo já a consciência da sua eternidade, ignorava ainda que só pela Cruz seria eterna.»
Efetivamente, a unidade da Fé completaria a unidade do Império. Não é outro o conceito que inspira a Teologia consoladora de Santo Agostinho na sua Civitas Dei, escrita quando Roma caía debaixo da pilhagem dos bárbaros. Em S. Jerónimo, — um dos primeiros e mais cultos humanistas cristãos, a impressão da queda de Roma ecoava dolorosamente como um desastre sem remédio. «A catástrofe do Ocidente» - como ele se exprime, obrigava-o ao silêncio, com a pena imobilizada, porque, - no próprio desabafo, — «o tempo só era para lágrimas». Mas sobre esse estridor de ruína e de morte, a esperança não demorou a aparecer, rasgando as perspectivas do futuro.
Imbuído do pensamento agostiniano, Próspero de Aquitânia dirá num poema seu que «Roma dominaria pela autoridade da religião o que ela já não possuía pela força das armas.» Versos conhecedíssimos, — os de Próspero de Aquitânia, Bossuet os repetiria séculos volvidos no seu formidável Sermão sobre a unidade da Igreja. Vinha-lhes de Cristo, acatando a César, o amor profundo dos antigos cristãos a Roma. Claramente o manifestaria o poeta hispano-latino, Aurélio Prudêncio Clemente, pondo na boca de S. Lourenço uma oração veementíssima em que o mártir pedia a Cristo para que Roma lhe fosse fiel, - Roma, por quem o Senhor tinha dado a fé às demais cidades do Orbe. E a aliança da ideia católica da Igreja com a ideia romana do Império sentia-se tão à vontade dentro dos espíritos que, aludindo a Juliano, - o Apóstata, - com uma nobre justiça, - Aurélio Prudêncio Clemente não titubeava em afirmar a seu respeito que, embora pérfido para com Deus, não o tinha sido ao menos para com Roma. (Perfidus ille Deo, quansuis non perfidus Urbi.)
Todos os testemunhos se tornam, porém, desnecessários, se não olvidarmos que Jesus, em presença da humildade do Centurião: - «Domine, non sum dignus!» não ocultava o seu espanto, exclamando para aqueles que o acompanhavam: - «Na verdade nunca vi assim uma fé em Israel!» São as palavras do Centurião que a Igreja ficou redizendo diante da Hóstia, à mesa soleníssima dos Sacramentos. Palavras de um rude Gentil, levavam na ingenuidade da sua confiança o gérmen de um mundo nascente! E quem as pronunciava? Pronunciava-as um soldado, — pilar da Ordem-Romana, portador de uma pequena parcela da autoridade do Império. E Jesus, correndo a recebê-las, não fazia senão confirmar os pressentimentos confusos da sociedade antiga, quando preconizava a eternidade de Roma, conquanto ignorasse ainda que «só pela Cruz ela seria eterna».
Era a cena espantosa do Pretório, com as tergiversações de Pilatos diante da turba enfurecida. Coroado de espinhos e cingido de purpura, Jesus não quebrava o seu doloroso silêncio nem com uma só palavra de humana justificação. Debalde tentava Pilatos arrancá-lo a uma morte certa, - quem sabe se debaixo da impressão que lhe deixava o aviso de Calpicónia, sua mulher.
Os sacerdotes e o povo gritavam sempre, ardendo num desejo hediondo de carnagem: — «Crucificai-o! Crucificai-o!» - «Mas crucificai-o vós, que eu não descubro nele crime nenhum!» — replicava-lhes o Pretor da sua varanda, com Jesus ao lado, escarnecido e cuspido, na atitude caída de quem chamava à face todos os pecados do mundo. - «Nós possuímos uma lei!»— teimavam raivosos os judeus. - «E segundo a nossa lei, é preciso que morra, porque se declarou Filho de Deus!» - A vacilação de Pilatos atingia o extremo. E recolhendo-se um pouco, pergunta a Jesus: — «Mas quem és tu? Donde é que tu vens?» Não lhe respondeu Jesus. Pilatos insiste ainda: -«Porque não falas? Ignoras tu acaso que eu disponho do poder de te crucificar ou de te libertar?» É então que Jesus descerra os lábios para dizer mansamente: - «Tu não disporias desse poder sobre mim, se não o houvesses recebido de cima.»
Com a sua voz resignada de vítima, Jesus acabava de definir, a dois passos do Calvário, a origem divina de toda a autoridade legítima. E assim, num exemplo de tocante humildade que atravessou os séculos, o Filho de Deus reconhecia a legitimidade do Império-Romano para o julgar e condenar. Já antes Jesus o quisera demonstrar, não se recusando a pagar o tributo, devido a César, desde que se mantivessem e guardassem os direitos imprescindíveis de Deus. Que revolução profunda não ia envolta na missão admirável de Cristo! Separando o elemento moral e religioso, referente à alma de cada indivíduo, - ao que há em nós de imortal e de inalienável, daquilo que constitui a essência própria do Estado, Jesus instituía e consagrava a verdadeira liberdade, que outra não é senão a que se fundamenta na plena soberania da nossa consciência.
Foi o que Jesus nos ensinou mandando pagar a César o que se devesse a César, mas reservando para Deus o que só a Deus pertencia. Na dureza materialista da sociedade pagã, perante a opressão e o capricho, arvorados em normas de justiça corrente, erguia-se enfim uma força que a nada se curvava, - a força invencível do Espírito. Com a força do Espírito, e unicamente por ela, a Igreja adoçou e renovou a herança corrupta da civilização antiga que descansava na escravatura como base económica e aceitava o filicídio como prática natural e legal. E tudo porquê? Tudo porque um Homem cingido de purpura e coroado de espinhos não tardaria a exclamar do alto do Pretório que se na Terra existia um poder para o julgar e condenar, era porque esse poder vinha de mais alto que do precário arbítrio do magistrado que não vacilava, por pecado de fraqueza, em permitir a morte de um inocente.
Energia saída do jogo cego da história, a autoridade não conhecera até aí a ética do seu fim superior, permanecendo alheia, por completo, a qualquer sentimento de responsabilidade, que ao mesmo tempo a limitasse e a engrandecesse. Deu-lho Jesus na cena do Pretório, em presença das hesitações de Pilatos, quando já a hora do sacrifício se aproximava e a humanidade estava prestes a receber da Sua morte na cruz os divinos eternos do Mandalum novum: - «Mas porque não falas tu? Não sabes que eu tenho poder, ou para te crucificar ou para te libertar?» - «Tu não terias esse poder, se ele não te viesse de cima!» (Non haberes potestatem adversum me ullam, nisi tibi data esset desuper! — escreve o Evangelista.)
E aqui começou a minha meditação em Sexta-Feira Maior, - Feria ut in Parasceve, - na velha catedral de Badajoz. Quedei-me suspenso, com o devocionário aberto, reconsiderando dentro de mim a expressiva e singular passagem. Comentava-a a pena autorizada de D. Guéranger, - o insigne abade Solesmes. E comentava-a num período quase cunhado na forma incisiva dos grandes aforismos. «Dignou-se Jesus falar; e foi para ensinar que todo o poder constituído, mesmo entre os infieis, é de Deus que deriva, e não do chamado pacto social». A observação de Guéranger depressa o meu pensamento a generalizou num rumoroso desfile de ideias. Impressionava-me o incenso, - impressionava-me o órgão. E com a mente embebida em coisas altas e imateriais, não tardou, em acudir-me à lembrança aquela doutrina medieval, tão invocada por Dante, para defesa do Império, no seu tratado Da Monarquia. É ela bem interessante e merece que a recordemos.
Para que o holocausto de Jesus aproveitasse ao Género Humano, tornava-se necessário que a condenação do Filho de Deus partisse de uma autoridade com tanto de legítima como de violentamente reconhecida (Si Pilati imperium jure fuit, pecatum in Christo non fuit adeo penitum.) Ora essa autoridade só podia ser a autoridade que residia no Império-Romano. Porque condenado apenas pelos judeus, segundo o particularismo da lei mosaica, nunca a imolação de Cristo abrangeria a Gentilidade, nem tão pouco as profecias seriam cumpridas. Mas sentenciado à morte pelo Pretor, Cristo era sentenciado por quem representava legitimamente a todo o Orbe. A legitimidade do Império-Romano, como de razão social, já Jesus a aceitava nascendo na hora exacta em que César Augusto ordenava por um édito «o recenseamento do universo inteiro». Recenseado como homem Jesus morria na obediência voluntária ao mesmo poder a que espontaneamente se subordinara só pelo facto do seu nascimento.
Contrariamente ao que supõe e quer um conceito já proverbial, a menção de Pilatos no Credo reveste-se pois, de um imenso e perdurável significado! «Nasceu de Maria Virgem, padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos...». E o poder de Pôncio Pilatos, acatado por Jesus, a Igreja o acataria depois desde as primeiras pregações dos Apóstolos até à confissão saída do próprio concílio de Niceia. O poder de Pilatos é o poder de Roma. O poder de Roma, passará, intacto, do domínio temporal dos Césares para a hierarquia imperecedoura do Papado. No meu devocionário D. Guéranger assim no-lo deixa visionado: - «Uma circunstância, transmitida até aos nossos dias pela tradição constante dos Santos Padres», - explica-nos o eminente liturgista, a propósito da inscrição imposta na cruz - indica-nos que esse Rei dos Judeus, repelido pelo seu povo, não reinará senão com mais glória sobre as nações da Terra que ele recebeu de seu Pai em herança. Os soldados, ao incrustarem a Cruz no chão, — continua D. Guéranger, — dispuzeram-na de maneira que o divino Crucificado ficou de costas voltadas para Jerusálem, abrindo os seus braços para as regiões do Ocidente. O sol da Verdade punha-se sobre a cidade deicida, ao mesmo tempo que se levantava sobre a nova Jerusalém, - sobre Roma, a urbes altiva que possuindo já a consciência da sua eternidade, ignorava ainda que só pela Cruz seria eterna.»
Efetivamente, a unidade da Fé completaria a unidade do Império. Não é outro o conceito que inspira a Teologia consoladora de Santo Agostinho na sua Civitas Dei, escrita quando Roma caía debaixo da pilhagem dos bárbaros. Em S. Jerónimo, — um dos primeiros e mais cultos humanistas cristãos, a impressão da queda de Roma ecoava dolorosamente como um desastre sem remédio. «A catástrofe do Ocidente» - como ele se exprime, obrigava-o ao silêncio, com a pena imobilizada, porque, - no próprio desabafo, — «o tempo só era para lágrimas». Mas sobre esse estridor de ruína e de morte, a esperança não demorou a aparecer, rasgando as perspectivas do futuro.
Imbuído do pensamento agostiniano, Próspero de Aquitânia dirá num poema seu que «Roma dominaria pela autoridade da religião o que ela já não possuía pela força das armas.» Versos conhecedíssimos, — os de Próspero de Aquitânia, Bossuet os repetiria séculos volvidos no seu formidável Sermão sobre a unidade da Igreja. Vinha-lhes de Cristo, acatando a César, o amor profundo dos antigos cristãos a Roma. Claramente o manifestaria o poeta hispano-latino, Aurélio Prudêncio Clemente, pondo na boca de S. Lourenço uma oração veementíssima em que o mártir pedia a Cristo para que Roma lhe fosse fiel, - Roma, por quem o Senhor tinha dado a fé às demais cidades do Orbe. E a aliança da ideia católica da Igreja com a ideia romana do Império sentia-se tão à vontade dentro dos espíritos que, aludindo a Juliano, - o Apóstata, - com uma nobre justiça, - Aurélio Prudêncio Clemente não titubeava em afirmar a seu respeito que, embora pérfido para com Deus, não o tinha sido ao menos para com Roma. (Perfidus ille Deo, quansuis non perfidus Urbi.)
Todos os testemunhos se tornam, porém, desnecessários, se não olvidarmos que Jesus, em presença da humildade do Centurião: - «Domine, non sum dignus!» não ocultava o seu espanto, exclamando para aqueles que o acompanhavam: - «Na verdade nunca vi assim uma fé em Israel!» São as palavras do Centurião que a Igreja ficou redizendo diante da Hóstia, à mesa soleníssima dos Sacramentos. Palavras de um rude Gentil, levavam na ingenuidade da sua confiança o gérmen de um mundo nascente! E quem as pronunciava? Pronunciava-as um soldado, — pilar da Ordem-Romana, portador de uma pequena parcela da autoridade do Império. E Jesus, correndo a recebê-las, não fazia senão confirmar os pressentimentos confusos da sociedade antiga, quando preconizava a eternidade de Roma, conquanto ignorasse ainda que «só pela Cruz ela seria eterna».
II
Já se compreenderá porque o nome de Pilatos se inclui na fórmula da Fé, onde não há nada a mais nem nada a menos. Detrás de Pilatos, erguia-se Roma — erguia-se a autoridade do Império, representativa do Género-Humano, por quem Jesus teria que ser julgado e condenado, para que a Redenção abrangesse a todos os homens. Pilatos no Credo é assim a humanidade sentenciando o Filho de Deus, sendo paralelamente a expressão do poder legítimo, sem a intervenção do qual não se consumaria nunca o mais augusto mistério da Religião.
Por Pilatos nós participámos, pois, como descendentes dos antigos Gentiles, das responsabilidades tremendas do drama do Calvário.
Mas o nosso crime não é de maldição perpétua como o de Israel, porque Israel repeliu o Messias enviado por Deus; e nós laborando nos velhos erros naturalistas, penetrados ainda por vezes da primitiva Revelação, confessamos e adoramos o Verbo feito Carne, tão depressa o nosso entendimento conseguiu libertar-se da treva espessa que sobre ele anoitecera.
Mas, se através da figura de Pilatos, a Gentilidade foi universalmente solidária com o crime nefando, não olvidemos que é também Pilatos, que é também o poder constituído e legítimo, quem no cimo do Calvário declara e proclama a realeza terrrestre de Jesus. Ouçamos o Evangelista: - «Pilatos redigiu esta inscrição que mandou pôr na Cruz Jesus Nazareno, Rei dos Judeus. E como estava perto da cidade o sítio onde Jesus foi crucificado, muitos judeus leram este letreiro, que era escrito em hebreu, em grego e em latim. Os príncipes dos sacerdotes disseram a Pilatos: — «Não ponhas rei dos judeus; senão que ele disse: sou o rei dos judeus. Respondeu-lhe Pilatos: - «O que escrevi, esta escrito.» (Quod scripsi, scripsi!). E a energia do Pretor contra o ódio infatigável da Sinagoga, manifesta-se inesperadamente, depois da sua fraqueza covarde - e manifesta-se para apregoar nas três línguas cultas da época a majestade terrena d'Aquele cujo Reino não era deste mundo. Singular contradição que mais nos confirma no destino reservado por Deus à autoridade do Império, que é o destino reservado a todo o poder a que não falte a legitimidade - essa espécie de ordenação social!
E entretanto, na Catedral, mais obscurecida e mais apreensiva, a leitura de Paixão já terminava. Com o devocionário fechado, eu ouvira meio absorto, a bela voz do prelado pacense entoando agora as Admoestações. A noção do Império palpitava em cada uma das preces elevadas a Deus-vivo, - mas do Império já depurado e santificado, como braço direito da cruz e baluarte da verdadeira e incorruptível Civilização. Mais uma vez meditei na expressão do Credo: - «Sob o poder de Pôncio Pilatos.» Mais uma vez meditei na resposta de Jesus ao Pretor : - «Tu não terias semelhante poder, se tu o não houvesses recebido de cima». A legitimidade do Poder, Cristo a instituía e aceitava no mesmo instante em que ia amassar com seu sangue o fermento admirável duma idade nova para os homens.
Desde esse momento o poder-legitimo tornou-se a segunda face da Igreja - o benefício que Deus confere aos povos para que se estabeleçam na paz e conheçam sempre os caminhos da vitória. Pelo poder-legítimo as nações se cicatrizam das chagas que cancerosamente as devoram - e a obra de Cristo encontra melhores e mais diligentes servidores. Ao poder-legítimo Cristo se curvou para morrer, ao poder legítimo Cristo se dirige para reinar. Pôncio Pilatos o condenou à morte, Pôncio Pilatos o declarou rei dos judeus. Eis donde nasce o consórcio secular da Cruz com a Espada, da Tiara com o Ceptro. Não nos esqueçamos que a fé do Centurião enchera de ternura o coração inefável de Jesus: - «Na verdade, nunca vi em Israel uma fé tão grande!», — dissera o Senhor. Pois, no alto do Calvário, um outro Centurião, ao transverberar o lado sacratíssimo de Cristo, bradará, soluçando: —«Eu creio que tu és Filho de Deus!». Mais tarde, quando a universalidade do catolicismo se impuser aos Apóstolos, presos ainda à visão israelita do Templo, será um terceiro Centurião quem procura S. Pedro com a humildade tocante dos dois primeiros. E diariamente, nas cerimónias da Missa, o Centurião é lembrado, como é lembrado no Credo o nome de Pilatos.
Sempre um centurião - sempre o nome de Pilatos, sempre o Império Romano! Não é que Jesus precise da força transitória de uma instituição política para que haja de triunfar na prosperidade dos séculos. Mas se nós somos livres para o acolhermos ou para o repudiarmos, não lhe será decerto indiferente quem o acolha ou quem o repudie, no uso de uma liberdade, - tremenda liberdade! -, a que o próprio Deus se submete. Ora no Pretório a Populaça pediu a morte de Cristo, enquanto Pilatos reagindo sobre si, acabaria por impôr ao ódio da Sinagoga a reabilitação póstuma de Jesus. No Golgota a Populaça volta a uivar a sua demência sanguinária. Mas dentre os grupos ululantes eis que um soldado se destaca, atravessando com a lança o divino coroado. A plebe continua ululando. Porém Longuinhos, tocado do prodígio súbito, roja a fronte no pó e confessa o Filho de Deus.
A populaça é e será eternamente a rebelião instintiva do caos contra toda a regra e contra toda a harmonia. Imagem da Obediência e da Ordem, o Centurião é, pelo contrário, a vigilância em pessoa, - a fidelidade incarnada. Por isso o Centurião se rendeu à evidência do Senhor; por isso a Populaça seguirá negando até à consumação dos tempos. Vejamos no Centurião o poder-legítimo derivado do poder de Roma, já cristianizado e batizado. Vejamos na turba vozeante dos Fariseus unicamente o poder de facto, - o grosseiro e violento poder de acaso que se abriga nos sofismas ignóbeis da mentira revolucionária. Assim eu o entendi na minha meditação de Sexta-Feira Maior, haverá um ano, sobre a terra melancólica do exílio.
E considerando a resposta de Cristo ao Pretor: - «Tu não terias esse poder, se ele te não viesse do alto!» -, aqui está porque o nome de Pilatos figura no Credo, onde não se encontra nada de mais, nem nada de menos. Figura no Credo, ao lado dos dogmas essenciais da fé, para que o Poder-legítimo partilhe na alma do cristão do respeito devido a essa verdade augustíssima!
Por Pilatos nós participámos, pois, como descendentes dos antigos Gentiles, das responsabilidades tremendas do drama do Calvário.
Mas o nosso crime não é de maldição perpétua como o de Israel, porque Israel repeliu o Messias enviado por Deus; e nós laborando nos velhos erros naturalistas, penetrados ainda por vezes da primitiva Revelação, confessamos e adoramos o Verbo feito Carne, tão depressa o nosso entendimento conseguiu libertar-se da treva espessa que sobre ele anoitecera.
Mas, se através da figura de Pilatos, a Gentilidade foi universalmente solidária com o crime nefando, não olvidemos que é também Pilatos, que é também o poder constituído e legítimo, quem no cimo do Calvário declara e proclama a realeza terrrestre de Jesus. Ouçamos o Evangelista: - «Pilatos redigiu esta inscrição que mandou pôr na Cruz Jesus Nazareno, Rei dos Judeus. E como estava perto da cidade o sítio onde Jesus foi crucificado, muitos judeus leram este letreiro, que era escrito em hebreu, em grego e em latim. Os príncipes dos sacerdotes disseram a Pilatos: — «Não ponhas rei dos judeus; senão que ele disse: sou o rei dos judeus. Respondeu-lhe Pilatos: - «O que escrevi, esta escrito.» (Quod scripsi, scripsi!). E a energia do Pretor contra o ódio infatigável da Sinagoga, manifesta-se inesperadamente, depois da sua fraqueza covarde - e manifesta-se para apregoar nas três línguas cultas da época a majestade terrena d'Aquele cujo Reino não era deste mundo. Singular contradição que mais nos confirma no destino reservado por Deus à autoridade do Império, que é o destino reservado a todo o poder a que não falte a legitimidade - essa espécie de ordenação social!
E entretanto, na Catedral, mais obscurecida e mais apreensiva, a leitura de Paixão já terminava. Com o devocionário fechado, eu ouvira meio absorto, a bela voz do prelado pacense entoando agora as Admoestações. A noção do Império palpitava em cada uma das preces elevadas a Deus-vivo, - mas do Império já depurado e santificado, como braço direito da cruz e baluarte da verdadeira e incorruptível Civilização. Mais uma vez meditei na expressão do Credo: - «Sob o poder de Pôncio Pilatos.» Mais uma vez meditei na resposta de Jesus ao Pretor : - «Tu não terias semelhante poder, se tu o não houvesses recebido de cima». A legitimidade do Poder, Cristo a instituía e aceitava no mesmo instante em que ia amassar com seu sangue o fermento admirável duma idade nova para os homens.
Desde esse momento o poder-legitimo tornou-se a segunda face da Igreja - o benefício que Deus confere aos povos para que se estabeleçam na paz e conheçam sempre os caminhos da vitória. Pelo poder-legítimo as nações se cicatrizam das chagas que cancerosamente as devoram - e a obra de Cristo encontra melhores e mais diligentes servidores. Ao poder-legítimo Cristo se curvou para morrer, ao poder legítimo Cristo se dirige para reinar. Pôncio Pilatos o condenou à morte, Pôncio Pilatos o declarou rei dos judeus. Eis donde nasce o consórcio secular da Cruz com a Espada, da Tiara com o Ceptro. Não nos esqueçamos que a fé do Centurião enchera de ternura o coração inefável de Jesus: - «Na verdade, nunca vi em Israel uma fé tão grande!», — dissera o Senhor. Pois, no alto do Calvário, um outro Centurião, ao transverberar o lado sacratíssimo de Cristo, bradará, soluçando: —«Eu creio que tu és Filho de Deus!». Mais tarde, quando a universalidade do catolicismo se impuser aos Apóstolos, presos ainda à visão israelita do Templo, será um terceiro Centurião quem procura S. Pedro com a humildade tocante dos dois primeiros. E diariamente, nas cerimónias da Missa, o Centurião é lembrado, como é lembrado no Credo o nome de Pilatos.
Sempre um centurião - sempre o nome de Pilatos, sempre o Império Romano! Não é que Jesus precise da força transitória de uma instituição política para que haja de triunfar na prosperidade dos séculos. Mas se nós somos livres para o acolhermos ou para o repudiarmos, não lhe será decerto indiferente quem o acolha ou quem o repudie, no uso de uma liberdade, - tremenda liberdade! -, a que o próprio Deus se submete. Ora no Pretório a Populaça pediu a morte de Cristo, enquanto Pilatos reagindo sobre si, acabaria por impôr ao ódio da Sinagoga a reabilitação póstuma de Jesus. No Golgota a Populaça volta a uivar a sua demência sanguinária. Mas dentre os grupos ululantes eis que um soldado se destaca, atravessando com a lança o divino coroado. A plebe continua ululando. Porém Longuinhos, tocado do prodígio súbito, roja a fronte no pó e confessa o Filho de Deus.
A populaça é e será eternamente a rebelião instintiva do caos contra toda a regra e contra toda a harmonia. Imagem da Obediência e da Ordem, o Centurião é, pelo contrário, a vigilância em pessoa, - a fidelidade incarnada. Por isso o Centurião se rendeu à evidência do Senhor; por isso a Populaça seguirá negando até à consumação dos tempos. Vejamos no Centurião o poder-legítimo derivado do poder de Roma, já cristianizado e batizado. Vejamos na turba vozeante dos Fariseus unicamente o poder de facto, - o grosseiro e violento poder de acaso que se abriga nos sofismas ignóbeis da mentira revolucionária. Assim eu o entendi na minha meditação de Sexta-Feira Maior, haverá um ano, sobre a terra melancólica do exílio.
E considerando a resposta de Cristo ao Pretor: - «Tu não terias esse poder, se ele te não viesse do alto!» -, aqui está porque o nome de Pilatos figura no Credo, onde não se encontra nada de mais, nem nada de menos. Figura no Credo, ao lado dos dogmas essenciais da fé, para que o Poder-legítimo partilhe na alma do cristão do respeito devido a essa verdade augustíssima!
Março, 1921
[negritos acrescentados]
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Refs.
- Dom Prosper Guéranger (1805-1875), restaurador da Ordem de São Bento, que fora suprimida em França durante a Revolução (13 de Fevereiro de 1790), destacou-se, entre outros aspectos de uma extraordinária vida e obra cristã, por ter composto L'Année liturgique [www.bibliotheque-monastique.ch/bibliotheque/bibliotheque/gueranger/anneliturgique/index.htm] (em 9 volumes, 1841-1866, até ao domingo da Trindade) dando início ao movimento litúrgico.
- Sofrónio Eusébio Jerónimo (São Jerónimo, 347?-420).
- Aurelius Augustinus Hipponensis - Agostinho de Hipona (Santo Agostinho, 354-430), De civitate Dei contra paganos. (A Cidade de Deus).
- Prosper Aquitanus (São Próspero de Aquitânia, c.390-c.455), discípulo de Santo Agostinho.
- Jacques-Bénigne Bossuet, 1628-1700, Sermão sobre a unidade da Igreja, 9 de Novembro de 1681. Bossuet cita São Próspero: «Rome le siège de Pierre, devenue sous ce titre le chef de l'ordre pastoral dans tout l'univers, s'assujettit par la religion ce qu'elle n'a pu subjuguer par les armes.» - Conc. Const. III, gen. VI, Serm. acclam. ad Imp., act. XVIII.
- Aurelius Clemens Prudentius (Aurélio Clemente Prudêncio, 348-410).
- São Lourenço (de Huesca ou Valência), Santo mártir cristão, 225?-258. Em 258, o imperador Valeriano emitiu um edito condenando à morte todos os presbíteros e diáconos cristãos. Em 6 de Agosto, o papa Sisto II foi morto, mas o diácono Lourenço foi poupado; as autoridades queriam obter informações sobre os bens e as propriedades dos cristãos. Lourenço apresentou-se com uma grande multidão de pobres, aleijados e cegos, afirmando "Estes são os tesouros da Igreja". Lourenço sofreu o martírio - queimado em uma grelha - no dia 10 de Agosto.
António Sardinha (1887-1925) - Sob o poder de Pôncio Pilatos, Março de 1921, in Purgatório das Ideias, pp. 289-301: