Hispanismo e Latinidade
António Sardinha
I
Alegrêmo-nos! Charles Maurras acaba de encarar pela primeira vez o valioso
concurso que à restauração das "forças latinas" pode trazer um entendimento
sincero da França com a Espanha. Se há consolações intelectuais para quem labuta
noite e dia na seara vasta das ideias, eis aqui uma delas! A confissão do ilustre
mestre do pensamento contra-revolucionário confirma-me na cruzada que iniciei
com todo o afinco da minha modesta pena em favor de um maior conhecimento da
grande nação a que Mistral chamava a "Espanha magnânima", é Maurras que no-lo
recorda, e que até agora vivia para o figurino mental importado de Paris quase
como uma afloração de africanismo dentro da comunidade europeia.
Nobremente declara Charles Maurras que durante a guerra, se a Espanha
permaneceu oficialmente neutral, o seu coração e o seu espírito vibraram em mais
de uma ocasião de acordo com o inimigo. «Ni je ne m'étonne, ni je ne m'irrite, ni
je ne me plains, cela serait trois fois indigne d'une philosophie politique», escreve
Maurras. «Je constate votre hiatus d'une belle cadence. Cet hiatus aurait pu être
évité.» Ora como é preciso fugir a que essa dissonância se repita de futuro numa
outra estrofe épica, Charles Maurras acrescenta: «Que nos amis espagnols nous le
pardonnent donc, comme des frères de civilisation et d'éducation: nous aspirons à
faire disparaître nos dissidences et à remplacer la défiance par l'amitié.»
Conservo no seu acento original as palavras do eminente preceptor da
Contra-Revolução. Representam, concordemos! – um alargamento sensível do
antigo nacionalismo da Action Française, com frequência bem molesto e até anti-
cristão no enunciado das suas reivindicações. Mas tocado pela lição procedente das
realidades e dos tempos, Maurras resolve sair dos palissados da velha cidade
gaulesa e restabelecer a sociedade internacional desfeita, estendendo a mão
acolhedoramente a parentes e vizinhos. E tudo porque, no deflagrar de tantos e tão
inquietantes problemas, «justement pour debattre leurs intérêts, les peuples animés
d'une certaine communauté d'esprit se comprennent plus facilement que les autres,
et c'est un principe d'union». De modo que, superior ao nacionalismo peculiar a
cada uma das pátrias ocidentais, um património mais amplo se alevanta, a que é
imperioso acudir: a Latinidade.
Importa, porém, definir o que seja Latinidade nos seus termos exactos. «O
historiador filósofo – observa Maurras – admirar-se-á um dia que tantos oradores e
poetas italianos, franceses, espanhóis e até valões pudessem confundir com o génio
da raça o que lhe era mais directamente oposto: não se compreenderá sem
dificuldade que tantos Latinos apaixonados, alguns mesmo eminentes, renegassem,
em nome da Latinidade, o essencial à herança comum a todos os Latinos.» E o
facto da raça e da cultura aparece para Charles Maurras ligado indissoluvelmente
ao facto da Religião. Assim a Latinidade se identifica com o catolicismo, que é a
sua medula e a sua razão de ser imortal.
Desde que Maurras abriu janelas mais rasgadas no seu nacionalismo, decerto
se apercebeu logo que a Latinidade, ainda antes de depurada e vivificada pelo
fermento de Cristo, já recebera do génio hispânico um inolvidável e poderosíssimo
esforço.
De Séneca e Lucano aos imperadores Trajano e Teodósio, é a Península
Ibérica que transfunde nas várias camadas de Roma o seu sangue moço e seivoso.
A aptidão colonizadora dos seus filhos, séculos depois magnificamente afirmada na
criação de mais de vinte nacionalidades americanas, cedo se traduz em Trajano
lançando os alicerces da moderna Roménia com colonos levados daqui. E não me
parece despropositado lembrar que o povo romeno possui no seu idioma um
vocábulo – dor – que, sendo inexprimível, só é comparável à nossa saudade. («Je
n'ai trouvé le presque équivalent que dans la langue de nos frères portugais, la
saudade», diz a poetisa romena Adrio Val na sua conferência Poètes Roumains.)
Triunfa o cristianismo na Península e a feição católica do génio hispânico
reveste-se de tal universalidade que nós quase podemos asseverar ser o hispanismo,
depois do catolicismo, a base fundamental do conceito de Latinidade. Na Idade-
Média não só salvámos a civilização dominando o crescer da onda maometana,
como transmitimos à restante Europa o que do Oriente viera até à Península em
aquisições de cultura por intermédio das escolas e dos filósofos árabes. Os
trabalhos recentes do professor Asín Palacios ensinam-nos como São Tomás e
como Dante foram intelectualmente nossos tributários.
Sucedem-se as Descobertas e com elas uma nova dilatação da cristandade,
trazendo-se à ciência novos horizontes e novas soluções. Sem reserva e sem
desprimor, nessa hora máxima da história, que Charles Maurras continua
adornando com o falso prestígio da Renascença, enquanto os portugueses na Índia
feriam o Islamismo pelas costas, impedindo o seu avanço até ao coração da Europa
Central, e Carlos V limpava de piratas, com a nossa colaboração, o antigo mar
latino, e defendia a Igreja dos assaltos da reforma – em França, Francisco I não
hesitava em se aliar ao Turco e em pactuar com o Protestantismo.
Por isso nós merecemos um Camões – intérprete supremo da consciência
culta e religiosa daquela época, ao passo que a França, discípula – acentue-se – dos
nossos humanistas, se contentava consigo própria escutando o diálogo de Ronsard
com as Musas à sombra da vinha de mestre Horácio.
E o inventário não terminaria ainda, se de mais carecêssemos para
demonstrar como o génio hispânico nas suas duas metades inseparáveis – Portugal
e Castela – constitui, na verdade, pelo carácter universal da sua vocação histórica, a
coluna dorsal da Latinidade. Reconhece-o Maurras, finalmente, reabilitando a sua
pátria do juízo sumário de M. Masson, ao perguntar, em 1782, na Enciclopédia:
«Mais que doit-on à l'Espagne? Et depuis deux siècles, depuis quatre, depuis six
qu'a-t'elle fait pour l'Europe?» E reconhece-o, porque, seguindo com o seu espírito
penetrante a moralidade que a história da obra civilizadora da Espanha no Novo
Mundo oferece à meditação de todo o pensador, teve que se render à necessidade
de expurgar da inteligência francesa a mentira que nela incrustara a interrogação
caluniosa de M. Masson. Por mais de um século a Espanha sofreu as campanhas
sistemáticas do ódio jacobino, que nunca lhe perdoou, com o ser o baluarte firme
da Igreja contra a Reforma e contra o Judaísmo, a sua adesão incondicional ao
primado augustíssimo de Roma. É que o Catolicismo representa alguma coisa de
próprio na conformação da alma espanhola, a ponto de o devermos tomar na
Península como uma genuína expressão social, quando na vida dos outros povos se
manifesta só de fora para dentro – pelo lado ecuménico da sua natureza religiosa.
II
Assim se explica que espanhóis e portugueses mereçam verdadeiramente o nobre
título de "criadores de nacionalidades". Não se perderam decerto essas virtudes
ancestrais, desde que se mantém intacto o seu princípio vivificador. Tal é o que
Charles Maurras sugere ao numeroso convívio dos seus discípulos no prefácio que
estampou à frente do livro de Marius André, La fin de l’empire espagnol
d’Amérique.
A base americana tantas vezes acentuada por mim como motivo imediato de
uma aproximação entre Espanha e Portugal, foi evidentemente o elemento que
mais pesou na reflexão de Maurras. Ao dirigir-se à Espanha em acto de penitência
pública, considera Maurras inteligentemente o tesoiro das suas grandes energias
morais como preâmbulo essencial a uma definitiva reorganização das "forças
latinas", sinónimo evidente das forças da ordem. Conhecida a separação
profundíssima de espírito que põe entre a Espanha e a França uma divisória bem
mais intransponível que a linha geográfica dos Pirinéus, dificilmente se marchava
para um entendimento das possibilidades ocidentais da Contra-Revolução, visto
ser, sobretudo, no tradicionalismo espanhol que existe, por causa do justo orgulho
patriótico, o maior ressentimento da Espanha para com a França.
O primeiro passo deu-se, porém, e deu-se com notável espontaneidade por
parte de Charles Maurras. Compreendeu Maurras que unicamente por intermédio
da Espanha será possível a agremiação contra-revolucionária da América-
Hispânica. E eu não exagero acrescentando que só por semelhante facto a Contra-
Revolução ganhou uma importante e decisiva batalha. Outro não é o sentido social
do livro de Marius André.
Viveu Marius André bastante tempo em Espanha. Como nota pessoal direi
aqui que num pequeno grupo de rapazes galegos a que por vezes me associava,
encontrei vestígios da sua passagem, e não supondo, porém, a que espécie de
trabalho o seu espírito tão metódico e objectivo se andava dedicando. E como todo
o estrangeiro que familiarmente se senta à lareira da boa e acolhedora Castela,
Marius André deixou-se possuir pelo secreto encanto dessa grande Madre
caluniada. Pois foi com gentil desassombro que lhe pagou a sua dívida de
hospitalidade, corrigindo os erros e as falsidades que a respeito da acção de
Espanha na América pululam à farta nos manuais de ciência oficial, todos bebendo
da mesma fonte – o alemão Gervinus.
A tese sustentada e plenamente demonstrada por Marius André em relação à
guerra da Emancipação, na América espanhola, é a que ele lapidou num período
transparente: «A guerra hispano-americana é uma guerra civil entre Americanos
que querem, uns a continuação do regime espanhol, outros a independência com
Fernando VII ou um dos seus parentes como rei, ou ainda debaixo do regime
republicano.»
Não acompanharei Marius André na sua refutação, aliás bem fácil, das
acusações tornadas já proverbiais sobre os processos colonizadores da Espanha.
Não obstante, registarei uma passagem sua. «A Espanha, observa – empobrecida,
despovoada, em estado quase de guerra permanente na Europa, tinha podido,
durante mais de trezentos anos, conservar um longínquo império, o maior que o
mundo conhecera até à data, sem exército profissional, graças a um sistema de
governo que, se não foi sempre o mais inteligente quanto ao ponto de vista
económico, foi, pelo menos, o mais humano e o mais paternal de todos para com os
indígenas e os crioulos e, pelo que respeita a certos aspectos, o mais conforme com
as tradições da república romana.»
E contrariamente à opinião mantida pelo lugar-comum em voga durante
perto de cem anos, o autor de La fin de l’empire espagnol condensa no trecho
seguinte aquela parte de verdade que o seu estudo acaba de trazer ao património
intelectual da Latinidade – mas da Latinidade Católica, não da Latinidade
Maçónica. «Para que o movimento de emancipação apaixonasse as massas,
triunfasse e concluísse na república, foi necessário que o povo espanhol se
revoltasse contra Napoleão e que os súbditos de Além-mar recusassem também
submeter-se ao usurpador. A independência e a república nasceram na América das
unânimes manifestações de fidelidade ao regime decaído e à religião católica.»
A revolução hispano-americana será, pois, não uma filha da revolução
francesa, como o afirmam numerosos historiadores europeus, mas, ao contrário,
uma reacção contra essa revolução, sobretudo no que ela teve de anti-religioso. O
aspecto da questão transforma-se inteiramente. E embora assome nо volume de
Marius André, numa ligeira referência e um tanto encoberta na designação vaga de
"infante Charlotte", como se enche de extraordinária claridade a atitude da nossa D.
Carlota Joaquina perante o lealismo borbónico dos seus adeptos de Montevideu e
Buenos Aires! Já na sua política americanista a esposa de D. João VI revelara com
tacto admirável, mas naturalíssimo numa filha e neta de Reis, aquela firmeza e
superior clarividência que mais tarde manifestaria na defesa da sociedade
tradicional.
E não prossigo no desfile de ideias que o livro de Marius André logicamente
me suscita. O seu significado parece-me que ficou assente e bem definido. Creio
que o destino lhe reserva, por meio do inolvidável prefácio de Charles Maurras, um
papel de infinito alcance na dissipação dos preconceitos, que adentro da mesma
cidadela católica e monárquica incompatibilizaram até agora franceses e espanhóis.
Se das fileiras da Revolução saíu há um século a pergunta injuriosa de M. Masson,
das hostes da Contra-Revolução responde-lhe enfim vitoriosamente o autor da
Enquête sur la Monarchie.
Por nosso lado, com as nossas campanhas peninsularistas, gostosamente
temos contribuído para esse aumento de latinidade – o mesmo é que de Cristandade
– que Maurras preconiza.
Bem podíamos agora festejar o triunfo legítimo de uma iniciativa que só a
nós em Portugal nos pertence! Preferimos, porém, redobrar de energia no caminho
percorrido, para que a unidade das forças latinas, enlaçando o Atlântico num
abraço de eterna juventude, desenvolva o seu vôo amplíssimo, graças ao milagre
sempre vivo do hispanismo.
No ondular da sua cadência heróica, o Oceano das Descobertas tornar-se-á
um mar doméstico – um sorridente Mare nostrum de águas quietas e azuis.
Assim o quer o esforço de espanhóis e portugueses, conjugados outrora no
mesmo amor da Fé e do Império, quando Francisco I se aliava ao Turco,
arrancando a Camões um rugido de indignação. Mas o hiato adoçou-se até
desaparecer de todo e dir-se-ia que a Musa da Epopeia levanta a voz sonora e
grandíloqua. Silêncio!
Assistido da cigarra divina da Provença, é Charles Maurras que está
entoando, em honra da Espanha magnânima, a saudação do velho Mistral.
(1922)
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