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1640

António Sardinha

António Sardinha aborda a complexidade política e histórica da Restauração de 1640 em Portugal, destacando o simbolismo da inscrição em Vila Viçosa, a liderança de D. João IV e a importância do Sebastianismo como força unificadora. Debate as políticas dos Filipes, a autonomia do reino durante a monarquia dualista e a transição de poder marcada por dificuldades financeiras, militares e diplomáticas. Critica interpretações históricas depreciativas, valorizando o papel dos diplomatas e estadistas portugueses, e conclui que a independência portuguesa resultou tanto de fatores internos como da conjuntura internacional. Defende uma visão de unidade espiritual peninsular baseada no respeito mútuo das soberanias nacionais.

À entrada de Vila-Viçosa, sobre a porta chamada do ‘Nó’, erguida por D. João IV para comemorar a sua aclamação em 1640, insculpe-se em duas almofadas de mármore uma inscrição misteriosa, que encerra consigo o segredo de todo o esforço admirável da nossa Restauração. Reza essa inscrição no seu latim doutíssimo, lembrado talvez ainda dos acentos puristas de mestre André de Resende

HOEC EST FATALIS
NODORUM PORTA.
JOANNES
ME NODO HESPERIOE
LIBERAT ENSE POTENS
 
SOLVIT ALEXANDER
NODUM UT REX IM-
PERET ORBI
REX MEUS UT REGIS
SCEPTRA LATENTIS
AGAT.
ANNO 1654.
Eis agora a tradução, segundo as melhores autoridades: «Esta é a fatal porta dos Nós. João poderoso, livra-me com a espada do nó da Espanha. Desfaz Alexandre o nó para imperar como rei na redondeza da terra: o meu rei o desata para empunhar os cetros do Rei encoberto. Ano de 1654.» Como monumento público à crença nacional na vinda do Desejado, não conheço outro mais expressivo. Na equilibrada dicção do epigrafista palpita, com verdade, a flama profunda que animou a resistência da alma colectiva contra a tentativa absorcionista de Castela. As iluminações proféticas do Padre António Vieira, as mil esperanças anónimas espalhadas no povo, ainda o elevado sentido de uma predestinação mística, conferida por Deus a Portugal, em que vibram unânimes as peças jurídicas com que diante das cortes estrangeiras os nossos diplomatas e tratadistas defenderam o direito da nossa nacionalidade à sua independência – nada, em resumo, é comparável à lápide comemorativa de Vila-Viçosa.

Por ela, o próprio Estado confessava a legitimidade do Sebastianismo, por ela o próprio monarca se tinha como herdeiro dos cetros do Encoberto – sceptra Regis latentis. Na singeleza daquelas tantas parelhas latinas se condensa a história toda do profundo movimento nativista que no século XVII nos levantou em massa, como um só homem, perante o espectro, indubitavelmente temeroso, da monarquia do Escurial. Interpretá-la é refazer a psicologia dos bons avós de Seiscentos que, por meio da espada e da pena, abriam outra vez lugar a Portugal no concerto das nações europeias. Consola-nos, como prova do vigor da raça, recordar semelhante epopeia, tão desvirtuada pelas diatribes romântico-revolucionárias dos nossos historiadores, que, ao abordarem o assunto, apenas escutam a voz do seu ódio à Companhia de Jesus e à dinastia de Bragança.

Ultimamente, os trabalhos conscienciosos de Edgar Prestage, de Roma du Bocage e de J. Lúcio de Azevedo é que entraram a restituir aos acontecimentos a sua cor e significação exactas. A pouco e pouco se dissipa a calúnia, que enegrece a acção e o espírito diligentemente patrióticos de D. João IV. No seu magnífico D. Francisco Manuel de Melo, observa o senhor Edgar Prestage: «Tem sido moda, com certos escritores modernos, mais políticos que historiadores, dizer todo o mal possível de D. João IV, embora devessem ponderar que sem ele, mesmo que Portugal se tivesse levantado contra os Filipes, teria tido, segundo todas as probabilidades, a sorte da Catalunha, sendo forçado a reintegrar-se na hegemonia espanhola. Deve a sua existência de país independente em grande parte ao Rei Restaurador que, secundado por diplomatas habilíssimos, assegurava a posição do novo reino por uma rede de alianças, e por suas qualidades pessoais alistava as forças vivas da nação numa luta quase desesperada contra o poder de Espanha e de Holanda... A política cautelosa do monarca, a única exequível, prova o seu bom senso... Validos nunca os teve, e se mostrava certa preferência para com o Jesuíta, Padre António Vieira, era porque, como bem disse o sr. Joaquim de Vasconcelos, ele lhe falava a verdade.»
Cita o sr. Edgar Prestage ao ilustre crítico sr. Joaquim de Vasconcelos. Sem receio de dúvidas, cabe-lhe, realmente, o louvor de haver sido o primeiro a intentar a reabilitação de D. João IV. No seu magnífico El-Rey D. João o 4.º, oiçamo-lo discorrer, e acertadamente, acerca do acto revolucionário de 1640: «Fazer um rei fora fácil; como porém firmar o novo trono? D. João IV compreendeu claramente a gravidade da situação. O seu programa foi contemporizar na Europa, onde a luta era mais grave, limitar-se à defensiva; e vencer nas colónias, onde devia adquirir novas forças para a consolidação do reino. O futuro provou que era a única política possível.» E o sr. Joaquim de Vasconcelos continua: «Durante dezasseis anos sustentou-se o rei com dignidade e coragem, no meio das maiores dificuldades que jamais rodearam um monarca e um povo; e contudo, nem por isso, vitória alguma decisiva alcançámos no continente. A guerra durou seis anos (1640-1646), com mui pouca glória para qualquer das partes beligerantes; depois, houve pausa de dez anos, até à morte do príncipe (1656).»

«Como se explica esta trégua?» – interroga o mesmo autor. «Uma rede de informadores extra-oficiais comunicava de Madrid todos os segredos da política espanhola, a peso de ouro, é verdade. Neste ponto, o económico D. João IV não fazia questão, e pagava generosamente, para não ter de gastar o cêntuplo numa campanha arriscada. Os que não souberam compreender a sua política, acusaram por isso o príncipe de falta de energia, de iniciativa, de coragem... Queriam que ele corresse sobre Madrid e outras loucuras do mesmo género... Entretanto, nesses dez anos de descanso na Europa, preparámo-nos para as grandes vitórias que esmaltam o reinado de seu filho, D. Afonso VI (Elvas, 1658 – Ameixial, 1663 – Castelo-Rodrigo, 1664 – Montes-Claros, 1665). Durante esta trégua reconquistámos todo o Brasil, e quase todas as possessões de África. Nas lutas de Além-mar se adestraram alguns dos capitães que depois mais luziram nas batalhas da fronteira.»

As linhas transcritas devolvem a D. João IV a envergadura que sistematicamente é de uso correntíssimo negar-se-lhe. Vem a propósito recordar o especial furor que o nome do desacreditado monarca acordava na pena de Camilo Castelo-Branco. Comentando o conhecido episódio do burro, a que D. João IV abrira a célebre Porta de Campainha, no Paço da Ribeira, Camilo, talvez por um resíduo mal dominado da sua costela judaica, não se contém sem exclamar: «A não ser coevo de sua majestade aquele burro faminto, morreriam ambos ignorados, sendo digna de escritura a lembrança que ambos tiveram.» Assim, em Portugal, ao sabor de predilecções romanescas ou de antipatias jacobinas, a dignidade do nosso passado se enxovalhava com a maior das sem-cerimónias! E, afinal, qual a origem, qual a fonte principal de que dimana essa campanha porfiada contra D. João IV e a sua memória?

O sr. Joaquim de Vasconcelos, com a sua vasta erudição, é explícito a tal respeito. «Tem-se falado muito das íntimas relações do Padre António Vieira com o seu amigo D. João IV; o padre era o rei, e o rei um instrumento, dizem. Não temos em pouco valor a influência do célebre jesuíta sobre o ânimo do príncipe, a influência necessariamente legítima do homem de génio sobre quem o não era. Os que pretendem porém reduzir o Rei à condição de um autómato, governado ora pela rainha, ora pelo padre, repetem apenas os lugares comuns de uma tradição inconsciente; não consultam os documentos.» E Joaquim de Vasconcelos esclarece em nota: «Mal sabem eles donde isso vem?! Compuseram nalguns panfletários castelhanos ao soldo do Conde-Duque; repetiu-a, sem crítica, M. de Vertôt em francês clássico, mas em argumentação fragilíssima (princípio do século XVIII).»

Acha-se perfeitamente restituído nas suas justas feições o perfil do Rei-Restaurador. No execrando espírito anti-nacional em que quase toda a nossa história se inspira são, como se vê, os boatos espalhados na Europa pelos foliculários às ordens do Conde-Duque quem determina entre nós a opinião professada correntemente acerca de D. João IV. E, no entanto, apesar da pintura que no-lo apresenta como um pusilânime, que extraordinário esforço o dele, esforço sereno e silencioso, que há-de achar ainda o historiador que merece! Escutemos um testemunho insuspeito, o testemunho do falecido coronel do Estado-Maior, Alfredo Pereira Taveira. Diz ele na sua monografia A defesa de Portugal: «Para obter dinheiro, que é o nervo da guerra, resolveu-se nas côrtes, que por vezes se reuniam, mandar que se lançasse o imposto da décima em todas as propriedades, e em quaisquer rendimentos provenientes de ofícios ou mercês e do comércio. Por sua parte, D. João IV cedeu para as despesas da guerra todas as jóias, baixelas, e rendimento da casa de Bragança, reservando apenas os que eram estritamente indispensáveis para o sustento da sua pessoa e família.»

«Com estes e outros impostos – continua Pereira Taveira, reproduzindo a opinião de Vilhena Barbosa – e com os rendimentos da casa de Bragança se foram custeando as imensas despesas de armamento e munições de guerra, da organização do exército e da armada, da reparação de praças, e das primeiras campanhas.» Por mais que se lha conteste, a acção do monarca revelava-se em tudo. Quem passear pelos olhos o papel que ele lançou na caixa das Côrtes debaixo do pseudónimo de João Fernandes, natural de Alhos-Vedros e «procurador dos descaminhos de Reino», reconhecerá a cuidadosa atenção com que seguia e estudava de perto os problemas que mais negrejavam nos horizontes pátrios. E as suas notabilíssimas conversas com o chevalier de Jant, enviado de Luís XIV, marcam bem a alta personalidade política do fundador da dinastia de Bragança. Ali aparece o Brasil encarado como a grande razão ultramarina de Portugal, esboçando-se pela primeira vez a visão do Atlântico como uma espécie de mare nostrum. A envergadura do Rei-Restaurador obriga-nos, pois, a uma rigorosa revisão do seu reinado.
Insiste ainda a tal respeito o sr. Joaquim de Vasconcelos: «Repetimos: Fazer um rei fôra fácil, como porém firmar o novo trono? O governo de D. João IV teve de levantar o reino de um estado de prostracção completa, que vamos caracterizar em poucas palavras. A revolução consumara-se com a maior facilidade, tratava-se agora de a consolidar e faltava – tudo?... dinheiro, soldados, cavalos, armas, artilharia, munições, navios, faltavam escolas de instrução militar, oficiais e engenheiros. Numa fronteira de cento e cinquenta léguas de extensão não havia uma só força em estado de defesa! Nada disto admira, lembrando-nos de que os espanhóis nos levaram daqui, pouco a pouco, 2.000 peças, 100 vasos de guerra e centenas de milhões de cruzados. Só durante uma parte do governo de Filipe IV perdera a coroa portuguesa 547 navios, entre grandes e pequenos, no valor de 6 a 7 milhões de florins; e de 1623 a 1688 perdemos só nas lutas do Brasil, segundo o testemunho dos holandeses, 28 milhões e meio de florins. Faltavam-nos enfim alianças seguras. As únicas que nos podiam servir eram, ironia extrema da sorte, as dos nossos inimigos de ontem, dos nossos mais perigosos rivais! – dos ingleses, que nos disputavam a Índia; dos holandeses, que nos tinham já arrancado as melhores possessões da África, além do Brasil; restava a França, cujo auxílio se reduziu quase sempre a promessas vās, temperadas com o pérfido sorriso de Mazarin – e as potências do Norte; uma única, de entre estas, a Suécia protestante, nos prestou algum serviço. E para essas mesmas alianças não havia, ao princípio, um diplomata capaz, experimentado. Só depois e em pouco tempo, relativamente (se considerarmos que a diplomacia portuguesa esteve inactiva durante sessenta anos!), é que se formou uma nova escola de que saíram Duarte Ribeiro de Macedo, Francisco de Sousa Coutinho, António de Sousa de Macedo, Andrade Leitão, João Rodrigues de Sá e outros.»

No quadro traçado pelo sr. Joaquim de Vasconcelos se encontra resumida com singular nitidez a desgraçada situação do reino, ao empunhar o ‘ceptro do Encoberto’ o neto da duquesa D. Catarina. Interessante seria condensar agora aqui em breves períodos a política dos Filipes em relação a Portugal, durante os sessenta anos da sua soberania. É uma verdade, cada vez mais confirmada pelo convívio dos documentos, que nós nunca fomos anexados à Espanha. Persistimos, embora ligados ao governo de Madrid, em plena autonomia governativa. O único laço que nos acolchetava ao resto da monarquia dos Áustrias consistia apenas na pessoa do soberano. Realizávamos então, espanhóis e portugueses, um sistema governativo, de que só acho exemplo aproximado na recente monarquia dualista dos Habsburgos para com a Áustria e a Hungria. Insurjo-me, em nome da verdade e da história, contra o falso patriotismo que considera como perda da autonomia a perda do nosso rei natural! Sem dúvida que a nacionalidade atravessou uma crise que bem poderia ser de morte, mais pela nossa decomposição interna, do que propriamente pela chamada opressão estrangeira. Mas, se considerarmos o sulco inapagável que durante o parêntesis filipino deixámos na sociedade e na literatura espanhola, verificaremos com desassombrada esperança que não só não éramos assimiláveis, mas que influíamos poderosamente no génio do povo-irmão, que parecia ocultar-nos e absorver-nos na sua sombra gigantesca.

Pondo de parte o evidente ressentimento que transparece nas suas reflexões, nada fotografa melhor – se a aplicação do termo é permitida! – o regime em que vivemos para com o governo central de Madrid de que a passagem seguinte do eminente Saavedra Fajardo, contemporâneo da nossa ruptura: «No deben desdeñarse los portugueses de que se junte aquella corona con la de Castilla, que de ella salió como Condado y vuelve a ella como Reino; y no a incorporarse y mezclarse con ella, sino a florecer a su lado, sin que se pueda decir que tiene Rey extranjero, sino propio, pues no por conquista, sino por sucesión... poseía el Reino y lo gobernaba con sus mismas leyes, estilos y lenguajes, no como castellanos, sino como portugueses. Y aunque tenía su residencia en Madrid, resplandecía su Majestad en Lisboa. No se veían en los escudos y sellos de Portugal, ni en sus flotas y Armadas, el Léon y Castillo sino las Quinas... No se daban sus premios y dignidades a extranjeros sino solamente a los naturales, y éstos gozaban también de los de Castilla de toda la Monarquía, favorecidos con la grandeza, con las encomiendas y puestos mayores de ella, estando en sus manos las armas de mar y tierra y el gobierno de las provincias más principales.»

Efectivamente assim foi. Nas côrtes de Tomar, Filipe II, que tinha atrás de si um exército aguerrido, preferiu apresentar-se a jurar os nossos foros, privilégios e mais franquias. Atendendo a tudo e a todos, com um visível propósito de atenuar quanto possível a mágoa dos portugueses em se verem privados do rei natural, Filipe desce até aos pormenores do vestuário, como ele mesmo o confessa, na mais chã das singelezas na sua famosa Correspondência para as filhas, publicada por Gachard. Diz ele: «Y ya habréis sabido como me quieren hacer vestir de brocado, muy contra my voluntad, mas dicen que es la costumbre de acá.» O procedimento de Filipe para connosco, tão transparente e leal nas páginas da história insuspeita, definiu-o Cánovas del Castillo no seu unitarismo inconsolável, ao exclamar que «para decir la verdad entera, no solamente es falso que fuese en Portugal tirano Felipe II, sino que ni siquiera mereció allí el título que en general merece de Prudente».

Referia-se Cánovas a Alexando Brandano e à sua Storia della guerra de Portogallo succedente per l’occasione della separazione di quel Regno della Corona Catholica (Veneza, 1689). Brandano vinha de origem portuguesa, como o seu apelido indica, e escrevia a favor da casa de Bragança. Isso não o impediu de salientar sempre o respeito que Filipe II guardou para Portugal e para com a casa de Bragança. Comenta com amargurada lógica Cánovas del Castillo: «Pero eran con tal evidencia excesivas las concesiones hechas en las Cortes de Tomar, que el primero (o citado Brandano) confesaba, que habrían rebajado, estrictamente cumplidas, el poder Real hasta el punto de dejarlo reducido al nombre y la apariencia, sin verdadera sustancia; como que se comprometió, entre otras cosas, Felipe II a excluir a todos los que no fueren portugueses de las dignidades eclesiásticas, gobiernos civiles, ejército y fortalezas, sin poder confiar siquiera el virreinato sino a persona Real. Por todo lo cual, concluye el historiador, que no debía esperar el Rey Católico la conservación de aquél reino, ni más que insignificantes provechos mientras lo conservase; pues que, además de lo expuesto, consumía todas sus rentas el pago de las milicias, y de las escuadras, continuamente en el mar, para defensa y comodidad del comercio portugués, así como la sustentación de los funcionarios de la Real Casa de Lisboa, que se conservó así mismo como estaba. Brandano, ardiente enemigo de España, que, si confesó la verdad, no hubo de confesarla sino a pesar suyo, pretendió que generosidad tamaña se explicaba tan sólo suponiendo el oculto propósito en Felipe II de no cumplir nada de lo prometido, que era de lo que se acusaba precisamente a su nieto, aunque no con mucha más razón. En buena lógica debió inferir que aquel Rey que, depués de allanado Portugal en gran parte por fuerza, otorgó, a la cabeza de un ejército triunfante, y sin peligro alguno exterior que por de pronto lo amenazara, tan exorbitantes privilégios, y cumplió religiosamente lo prometido durante su vida, protegiendo y aun engrandeciendo a una Casa que con más a menos vigor le había disputado el Trono, en vez de echarla del Reino, era el menos mal intencionado tiránico que han conocido los siglos.»

Quem quiser, na realidade, seguir de perto, e sobre dados extraídos do copioso arquivo de Simancas, a marcha do advento de Filipe ao trono de Portugal, basta-lhe percorrer com atenção o esplêndido trabalho de Danvila y Burguero, Don Cristóbal de Moura, primer marqués de Castel Rodrigo (1538-1613). Honra a erudição peninsular o citado estudo e o leitor português que deseja com desassombro formar o seu juízo acerca de tão contraditório período, como foi o da discussão da herança de el-rei D. Sebastião, encontra ali matéria suficiente para se esclarecer.
A fatalidade da nossa fraqueza levava-nos a não podermos resistir com sucesso ao peso das armas espanholas. Depois, as pretensões tanto de D. António, prior do Crato, como da duquesa D. Catarina, não eram acompanhadas de suficiente vigor e adesões, de maneira a evitar-nos o desastre sem remédio de uma conquista à mão armada. O Prior do Crato, que uma história romanesca procura vestir das linhas grandiosas de Caudilho nacional – de um como que segundo Mestre de Avis, não passava de um aventureiro sem escrúpulos, seguido em grande parte pelos judeus, a cuja grei pertencia por costela materna, e por tudo quanto havia de duvidoso na sociedade portuguesa. No mencionado estudo de Danvila y Burguero a fisionomia moral de D. António fica suficientemente iluminada. Não se vendeu a Filipe, porque, subindo sempre de ambição, ia subindo sempre de preço. A sua índole, a natureza dos seus sentimentos, mostrava-se de tal modo que, tendo sido seu mestre o virtuoso D. Frei Bartolomeu dos Mártires, nós sabemos com que afinco o prelado se opôs a que o proclamassem rei em Braga, na sua cidade arqui-episcopal. De resto, já Rebelo da Silva, sem maior conhecimento da documentação existente nos fundos diplomáticos do país vizinho, nos deixa entrever a doblez do bastardo do infante D. Luís.

Mas que estranha e dolorosa no meio de todo esse torvelinho trágico a figura do pobre cardeal D. Henrique! Apresenta-no-lo Danvila y Burguero, com convincente abundância de factos, como havendo sido ele o chefe do partido anti-espanhol durante a menoridade de D. Sebastião e a regência de sua avó D. Catarina de Áustria.

Cingindo mais tarde a coroa por uma catástrofe sem igual na nossa história, o Cardeal-Rei sufocou a sua preferência pela duquesa D. Catarina, olhando a desgraça em que Portugal se encontrava, totalmente incapacitado de resistência diante do colosso espanhol. A roda de um trono prestes a vagar, fervia a intriga, enquanto a miséria aumentava no Estado e na colectividade. «En efecto – escreve Danvila y Burguero – la situación del Reino tornábase por demás lastimosa. La peste hacia tales estragos en Lisboa y en sus inmediaciones, que obligaran el propio Felipe II a tomar serias medidas para impedir la propagación en España; la anarquía iba generalizándose y la miseria del Reino era tan grande, que apurado el mismo Monarca por sus gastos, no obstante su fama de parsimonia, rayaba en la avaricia, se vio obligado a vender con gran secreto un magnífico hilo de perlas de las alhajas de la corona para subvenir a las necessidades de su casa...» É então que o bispo Jerónimo Osório ergue a voz autorizada, numa carta célebre aos seus compatriotas. Comenta e resume-a Danvila y Burguero nos seguintes termos: «Observando que el país, sin jefes, apenas podría levantar en algunas partes una resistencia tumultuosa y casual, defensa vana contra los aguerridos tercios castellanos, el erudito escritor prefería la obediencia expontánea del Reino a la capitulación supuesta, y la concordia amistosa a la efusión de sangre, que estaba obligado a detestar como Cristiano y a temer como político, puesto que, desconfiando del éxito, sólo veía en la lucha una provocación inútil contra el poderío del Rey Católico.» Compreende-se já o que seria a aproximação da tormenta, com a morte iminente do Cardeal e a fúria dos diversos partidos corrompendo e malquistando tudo e todos.

«El desorden y la confusión adquirían proporciones alarmantes fuera de Palacio; D. António, que algunos días atrás dirigiera una carta a las Cortes representándoles su derecho, en vista de la buena acogida que su insolente acto (D. Henrique ainda vivia) hallara en los representantes de las ciudades, trasladóse a Santarém para tratar con los Procuradores que le levantasen por Rey; el duque de Braganza procuraba lo mismo, valiéndose de toda clase de personas, sin pensar nadie en la razón, en la justicia ni en el orden público, porque a ninguno de ellos se le ocurría que pudiera existir la necesidad de defenderse, no teniendo delante de sus ojos más que la idea de la rebelión.» Entretanto o Cardeal-Rei entrava nos estremeções da agonia, com as paixões à sua volta, perturbando-lhe a paz do arranco final.

Mal a vida se lhe extinguiu, o torpel dos vivos cresceu de violência. Em Portugal, essa hora de alucinação colectiva não achou ainda o seu verdadeiro historiador. Subscrevemos o juízo que a Danvila y Burguero merece a História de Rebelo da Silva, quando ele o acusa de se haver guiado «únicamente por autores como Conestagio y Herrera... descuidando la rectificación de aquellas afirmaciones con documentos inéditos y originales custodiados en su patria o en el castillo de Simancas.» Reputo mesmo um vastíssimo serviço prestado ao futuro de Portugal a revisão escrupulosa de tão acidentada época histórica. Ela nos manterá, por um lado, na fé imperecedora de que a raça portuguesa se retempera e redime na desgraça e, por outro, na certeza não menos fortificante de que de forma alguma caímos no cativeiro ou na escravidão, ao transitar para as mãos da dinastia filipina o ceptro de Afonso Henriques. Se perdíamos ‘rei natural’, a culpa não era só da ambição de Filipe. Colhiam-se as consequências da política peninsular da casa de Avis, que, em seguida à nossa consolidação em Aljubarrota, sonhou com a coroa unida de Portugal e Castela. Fala-se a todo o momento de um ‘perigo espanhol’. Mas ninguém se lembra de que houve também para com Castela, um ‘perigo português’!

O exemplo mais frisante desse perigo está nas pretensões do nosso D. Afonso V, como desposado de sua sobrinha, a infeliz ‘Excelente-Senhora’. Já antes, e na nossa primeira dinastia, o mesmo perigo se afirmara, sobretudo, durante as discórdias que movimentaram o reinado de Pedro-o-Cru de Castela. O resultado foi a morte de Inês de Castro, executada, como instrumento das maquinações dos nobres castelhanos junto do nosso príncipe herdeiro, seu amante. No mesmo rasto se encaminha a desgraçada política de expansão do caluniado D. Fernando. Mas é só, verdadeiramente, com a dinastia joanina que o êxito parece sorrir à febre anexadora dos nossos monarcas.

Repara a tal respeito Cánovas del Castillo, salientando o gosto que na nação portuguesa encontraram os propósitos de D. Afonso V: «No consta que a la unión personal de Portugal con Castilla se opusiesen más que dos magnates, uno de ellos por cierto el que era duque de Braganza, y otro el arzobispo de Lisboa.» O falecido historiador espanhol, ilustre braço direito da restauração dos Bourbons, assinala com exactidão o carácter das nossas pretensões perante Castela, ao falar em «unión personal». Efectivamente, tanto com D. Fernando, por ocasião do casamento de sua filha D. Beatriz, estipulando no contrato antenupcial que Portugal fosse sempre «reino sobre sí», como mais tarde com D. Manuel, ao ser jurado herdeiro dos Reis-Católicos seu filho, o príncipe D. Miguel da Paz, a independência institucional dos dois povos viu-se absolutamente garantida nas medidas de antemão determinadas. A política de ‘união-pessoal’, tal como em nossos dias se verificava em relação ao império austro-húngaro, foi assim um plano congeminado no espírito dos soberanos portugueses, a que D. João II, principalmente, dedicou um dos empenhos mais afervorados da sua profunda capacidade de homem de Estado. Desfez-lhe a morte o grande sonho nos areais inclementes do Tejo. E se Filipe II se senta depois debaixo do docel dos descendentes do Mestre de Avis, senta-se por essas mesmas circunstâncias e como sucessor ele próprio do vencedor de Aljubarrota.

Os cuidados de Filipe, ao entrar em Portugal o exército comandado pelo duque de Alba, revelaram-se com tanta minúcia e rigor na proibição de saques e escusadas violências, que um dos seus capitães exclamava com graça que se ganhava o reino de Portugal como se ganha o dos céus, «ayunando a pan y agua». Ninguém, de resto, queria a guerra. Os lavradores, no Alentejo, antepunham-lhe as preocupações da colheita. «Lo mismo escríben de Évora y toda la tierra está desta más con rata gana de coger sus trigos.» Os Braganças, mais ajuizados, decidem compor-se com Filipe. «Ofreciéndole renunciar a su derecho en cambio de partidos ventajosos, proposición que admitió en principio Felipe II, aunque no sin reprochar a los Duques su anterior conducta.» Quando deste modo transigiam aqueles que, no parecer de Jean de Vivonne,[1] eram os únicos capazes de levantar barreira ao avanço de Filipe, como é que a resistência nacional se atearia, desde que não encontrava eco nem no povo, nem nas camadas dirigentes?

Entrou, por fim, Filipe, depois de aplanadas as insurreições locais, a que – justiça lhe seja feita! –, presidiu o ânimo revolto do Prior do Crato. E apresentando-se em Tomar a ser jurado em Côrtes, «llegó su cuidado, no sólo a excluir de la cerimonia a todos los nobles castellanos, sino al prohibir a mismo Archiduque Alberto, su sobrino, que ocupara un lugar en la sala». Empenhou-se depois Filipe em mostrar que as rápidas campanhas levadas a efeito pelo duque de Alba e por Sancho de Ávila, não haviam sido de conquista, «sino de defensa contra un súbdito rebelde». Perguntando por Camões, já falecido, concede à mãe do Épico a tença que ele recebia. Em Lisboa aclamam-no com alvorôço, sendo frequente ouvir-se exclamar: «que rei tão mal empregado nos castelhanos»! As regaleiras, então, agrupadas em massa, declararam-lhe solenemente, por intermédio de uma que se adiantou, que «todas ellas recibían y juraban a S.M. por Rey y Señor, en tanto que no volvía el Rey D. Sebastián, pero que volviendo entendian que se había de ir con Dios y dejar el Reino». Filipe, ouvindo-as, apesar de sua gravidade e compostura, não conseguiu retrair o riso.

Fosse qual fosse o pensamento oculto de Filipe, o que é certo é que a sua política se manteve através do reinado dos seus sucessores. Para nos confirmar essa ideia, basta examinarmos as «Instrucciones dadas por Felipe IV en Noviembre de 1634 a la princesa Margarita para el gobierno de Portugal».[2] Diz Filipe à duquesa de Mântua, que a revolução de 1640 surpreenderia em Lisboa no exercício do seu mandato de vice-rainha: «Señora prima: Por la instrucción que os dará por mi Consejo de Portugal, se os advierte todo lo que por aquella vía puede dar mayor luz para que en el gobierno de aquel Reino entréis con tales noticias que los aciertos sean más seguros», etc. Pela transcrição se verifica como subsistia o tratamento de Reino reconhecido a Portugal por Filipe II e a sua autonomia em tudo desde o político ao administrativo. No seu memorando a Margarida de Parma, uma das preocupações de Filipe IV é ver se a vice-rainha obtém que Portugal consigne «renta fija para la recuperación y conservación del Brasil». Por aqui se observa a profunda razão com que o doutor Fernández de Navarrete assegurava a Filipe III no seu famoso memorial, La conservación de las Monarquías, que «si Roma esquilmaba a las provincias y se enriquecía a costa de ellas, Castilla había hecho todo lo contrario, y ella sola sustentaba todo el presupuesto de la Casa Real y las Armadas de Aragón». Não só as armadas do Aragão, mas também as armadas de Portugal e a manutenção dos seus domínios ultramarinos. Esse caso do Brasil é, sobremaneira, típico. Mas que o nosso comentário se substitua pelo comentário mais autorizado de um ilustre historiador brasileiro, o senhor Oliveira Lima.

No ensaio Pernambuco, seu desenvolvimento histórico, conta-nos Oliveira Lima, a propósito da luta com os holandeses em terras de Santa-Cruz: «Dois anos antes, ainda não sendo de regresso D. António de Oquendo, ordenara Filipe IV o armamento em Portugal de uma nova esquadra destinada à defesa do Brasil, e renovara essa ordem quando voltou o almirante espanhol; oferecendo para os gastos da sua própria e desfalcada fazenda, quinhentos mil cruzados anuais. Outro tanto de renda fixa, recomendava o monarca que se obtivesse por meio do estanco do sal, extensivo ao Brasil, e de um empréstimo. Da sugada Lisboa, porém, onde já assomavam veleidades de rebeldia, fizeram-lhe por tal forma ouvidos de mercador, provavelmente também porque na carta régia se mandavam suspender na quarta parte todas as tenças e rendas da coroa, comendas e mercês redituais, feitas pelos soberanos, as quais, diz o historiador Rebelo da Silva, absorviam o melhor dos rendimentos públicos, que em Setembro de 1633 Filipe IV se via obrigado a escrever uma nova carta a todas as câmaras municipais. Neste documento, publicado por Varnhagen nas suas Lutas dos Holandeses no Brasil, o rei tão facilmente apelidado de inepto e desdenhoso das coisas públicas, declara aplicar todos os anos para o apresto das armadas portuguesas um milhão de rendas castelhanas; pedindo que algum sacrifício também fizesse Portugal pelas suas colónias, reunindo-se adrede procuradores das cidades e vila de Santarém, do clero e da nobreza. Contudo nem soldados nem dinheiro acudiram às suas instantes solicitações, nas quais os portugueses diziam ter perdido toda a confiança, apesar de elas serem portadoras de vantagens e facilidades, e os holandeses puderam prosseguir as suas tentativas, quase sempre venturosas.»

Sugere-se daqui nitidamente a separação que existia entre os dois governos – o de Portugal e o de Castela – carregando em cima do último todo o peso violentíssimo da monarquia dos Áustrias. Índice perfeito da situação de Portugal dentro desse vasto conglomerado político, encontramos nós num curioso folheto – Tratado sobre a precedência do reino de Portugal ao reino de Nápoles, composto por Frei Bernardo de Braga, monge de São Bento, dado à estampa em 1843 por Albano Antero da Silveira Pinto. A justificação histórica, tal como a concebiam os contemporâneos do dualismo estadual em que Portugal se ligava a Castela, assume no aludido folheto aspectos curiosos. É uma influência manifesta das teorias de Frei Bernardo de Brito que tamanha influência exerceram depois, no Portugal-Restaurado.

Sendo, afinal, tão ténue o vínculo que nos prendia a Madrid, percebe-se a facilidade com que o rompemos, mal o Conde-Duque intentou integrar-nos no corpo e no interesse da nacionalidade castelhana. Oiçamos ainda o testemunho sempre insuspeito de Oliveira Lima: «Cánovas del Castillo teve a nobre coragem de no seu livro (Estudios del reinado de Felipe IV) reabilitar Olivares, não daquelas estúpidas acusações da plebe, mas de calúnias mais sérias. O Conde-Duque aparece-nos aí fascinado por um ideal, o da centralização política da Espanha, então como ainda hoje, um agregado de reinos diferentes nas tradições, nos costumes e nas tendências, mal amalgamados naquele tempo pelas dificuldades de comunicações e pelas rivalidades sempre fumegantes, mas cujo espírito nacional ele queria a todo o transe criar. No Nicandro, espécie de manifesto muito provavelmente da lavra de Olivares, e publicado depois da sua queda, se diz que o contrato existente entre as partes do todo peninsular era ajeno de la sociedad humana y desigual. Com efeito, Castela, a sede da monarquia, devia defesa aos outros reinos, enquanto que estes não tinham obrigação de ampará-la em qualquer invasão, antes salientavam a desunião ao menor revés das armas espanholas. A missão era portanto difícil, muito superior à do seu grande inimigo Richelieu, de abater os restos do feudalismo que a férrea mão de Luís XI não havia estrangulado. Ao passo que em França, além dos nobres, apenas a burguesia parlamentar, um tanto particularista, se contrapunha ao cardeal, tibiamente, com excepção da Bretanha, pouco antes anexada, Olivares tinha que arcar com estados ciosos da sua independência secular, e com uma plebe que, fora de Castela e pronunciadamente em Portugal, era inteiramente dedicada à fidalguia, por quanto a ausência do feudalismo obstara à formação de ódios inveterados de classes.»

Da opinião de Cánovas del Castillo e de Oliveira Lima, o publicista e hispanófilo inglês Martin Hume justifica-nos assim a sua tese na curiosíssima conferência, La política centralizadora del Conde-Duque, proferida no Ateneu de Madrid em 27 de Outubro de 1907: «Miró através de los Pirineos, y vio al gran rival de su patria fuerte y sólido, próspero y unido bajo el cetro de su Rey. Ya no se hablaba de normandos, ni bretones, ni tolosanos, ni angevinos. Todos eran franceses, y el Rey de Francia fue dueño de sus bolsas y sus cuerpos. Bien sabía Olivares que en una lucha con una nación unida como Francia, la desunida España, con sus rencores locales y recelos provinciales figuraría con desvantaja, y pensó hacer a España grande y poderosa, hollando bajo sus pies los sentimientos más queridos y las tradiciones más arraigadas de una gran parte del pueblo. En el importante documento, frecuentemente citado, que presentó el Conde-Duque al Rey en los primeros días de su reinado, dice así: Tenga V.M. por el negocio más importante de su Monarquía el hacerse Rey de España. Quiero decir, Señor, que no se contente V.M. con ser Rey de Portugal, de Aragón, de Valencia, Conde de Barcelona, sino trabaje y piense, con consejo maduro y secreto, por reducir estos reinos de que se compone España al estilo y leyes de Castilla, sin ninguna diferencia...»

Tal foi o plano de Olivares: traduzir no mesmo sentimento político e territorial o sentimento religioso que até então acolchetara entre si as diversas nacionalidades peninsulares. Espécie de Bismarck do século XVII, o Conde-Duque fracassou porque não se modificam de um traço as estratificações seculares da história. Portugal, mais que ninguém, soltou logo o grito de rebeldia, desobrigando-se do vínculo constitucional que o enlaçava a Castela. Saudoso do seu «rei natural», a ele voltava na pessoa do duque D. João II de Bragança. É esta a génese da revolução de 1640, e de modo nenhum a declamada escravidão que a retórica romântica entendeu por bem confabular para os seus gastos folhetinescos.

Já no crepúsculo, a ideia universal de Cristandade recebia com a separação de Portugal o seu golpe de morte. Baseada no consenso unânime de Respublica Christiana, a Europa vivera em sociedade internacional, debaixo do patrocínio augusto de Roma, até que o cisma de Lutero rasgou sacrilegamente a túnica sem costura de Jesus. Embora dentro do grémio da Igreja, a França alia-se ao Turco contra Carlos V, pondo em ameaça os destinos da fé e da civilização. Conjugada por parentesco e identidade de vistas políticas aos desígnios do império austríaco, a Espanha filipina assume então na Europa o papel grandioso de refazer a Cristandade despedaçada. Esse altíssimo ideal que inflama as estrofes sonoras de Camões, leva D. Sebastião a perder a vida no torvelinho anónimo de uma batalha e Filipe II a provocar os ódios dos séculos futuros, séculos racionalistas e incrédulos, incapazes de abranger o pensamento soberano do solitário do Escurial.
Mas o individualismo ia vencer tanto no instinto das nações como nas directrizes dos Estados. Enquanto o sábio paralelismo peninsular da centúria de Quinhentos se manteve de pé afiançado pela colaboração espontânea dos dois reinos amigos, a vocação da Península no mundo pôde cumprir-se. Agora que as duas metades se voltavam em adversárias irreconciliáveis, a Península teria que sucumbir necessariamente à conspiração que a Europa inteira urdia contra ela. Outro não é o sentido patético de D. Quijote, batendo-se dramaticamente por sonhos e aspirações que ninguém já quer, que ninguém já entende! O desastre consuma-se por fim em Vestfália. Ali o Papado, como pacificadora força de coordenação política, desaparece por completo na sombra. Com ele desaparece a Espanha, como potência europeia – como braço direito da Igreja. O conceito espiritual de Cristandade vê-se substituído pelo egoísmo nacionalista de cada Estado e, à falta dos soberanos ditames com que o Pontífice intervinha outrora nas contendas fratricidas dos povos e dos monarcas, o direito do mais forte insculpe-se na arena das balalhas como ultima ratio regum. Separados da Espanha, e agora num duelo irreparável, nós contribuímos não pouco para o desastre total de Vestfália. Mas o imperialismo do Conde-Duque, lógico sob o aspecto do castelhano, impelira-nos para o único caminho em que a nossa salvação, como pátria, se tornava possível.

Costuma-se atribuir aos Jesuítas a frouxidão de intenções nacionalistas com que nos saímos do longo e sangrento debate em que por mais de vinte anos defendêramos os sagrados títulos da nossa independència. Realmente impressiona que concluísse em poeira morta a magnífica primavera que o arranco da Restauração despertou em nós, nas virtudes adormecidas da raça. Na verdade, não fôra debalde que, segundo o latim polido da inscrição de Vila-Viçosa, o Encoberto – Rex Latens – se revelara, tomando o nome de João. Embora desacreditado, o nosso século XVII é um grande século! Desacostumados das exigências de Estado autónomo, nós já vimos como em D. João IV se improvisa um chefe dotado de qualidades superiores. Da mesma forma, à sua volta surge, como por encanto, um viveiro numeroso e diligente de diplomatas e de generais. A Restauração, conquanto no dizer de Garrett viesse melancólica e ascética, marca indubitavelmente uma ‘restauração’ da alma portuguesa. Nada melhor o prova do que o sentido orgânico de que o Sebastianismo se reveste nesse raro momento de condensação nacionalista, desde as camadas mais humildes do povo aos seus cumes doirados, em palácio.

Tocar em semelhante tema é, sem receio de contestação, tocar no valor do Sebastianismo, como fonte de energia, mas de energia positiva, na dinâmica da alma nacional. A Restauração só por si demonstra-nos quanto a crença sebástica, aliando, por uma filosofia experimental de alta transcendência, o Sonho à Acção, constitui, depois da nossa estrutura católica, o fundamento mais sólido do génio da Grei. Enganam-se os que a interpretam como um ínfimo rescaldo de judaísmo, crepitando às cegas num fundo estigmatizante de superstição. Nada de hebraico existe no Sebastianismo, senão o sentimento bíblico que naturalmente o inspira e que é de boa derivação cristã. Com a sua rara acuidade crítica, Menéndez Pelayo atingia o nó central do problema, ao observar na sua Historia de la poesía castellana en la Edad Media: «No es vana la antigua tradición que pone en Portugal o en Galicia la cuna del Amadis y de la mayor parte de los primitivos libros de caballerías, derivación muy libre y muy españolisada de los contos galeses y armoricanos. Allí debieron nacer, por la misma ley de misterioso atavismo céltico que llevó a los portugueses a la conquista del Mar Tenebroso, fascinados por el espejismo de las islas encantadas y de la leyenda de San Brandán, y que a través de los siglos renueva hasta en sus mínimos pormenores el mesianismo del Rey Artus, rex quondam resque futurus, en la esperanza nunca desfallecida y siempre renaciente, de los que todavía aguardan en día de niebla por la foz del Tajo al Rey Don Sebastián, redentor de su raza y fundador del sexto imperio apocalíptico.»

Não traçaremos aqui a genealogia emaranhada do Encoberto. Mas não deixemos de assinalar que Menéndez Pelayo focava bem a questão relacionando-a com o nosso substracto étnico. Para lá, e muito para lá de Artur, está o Saturno das lendas Proto-históricas do Ocidente, de que Martins Sarmento se ocupa com largueza em Os Argonautas. Aí a origem longínqua do Sebastianismo, que a mística do Cristianismo depuraria, conferindo-lhe mais coesão e ideal. Sinal assim da enraizada autoctonia do Lusitano, encontra a sua tipificação histórica em D. Sebastião. E se nos recordarmos agora da significação social dos Mitos, como Georges Sorel a concebe na sua conhecida teoria, abrangeremos por completo o alcance e a influência do Sebastianismo ao longo da nossa história.

Não é de maneira alguma depressiva essa influência – ao contrário do que imagina o criticismo de certos racionalistas encartados A prova, têmo-la na Restauração e no século que no-la enquadrou. Repito: século severo mas grande século! Não nos é lícito, por isso, encarar o Sebastianismo, que inflama a íntima fé nacionalista da côrte de D. João IV, como um sintoma de mentalidade caída e estagnada.

Desde que nos recordemos que em manifestos de responsabilidade, como a Lusitania liberata, de António de Sousa de Macedo, rutilam os clarões da estranha auréola sebástica, decerto que se apossa logo de nós uma outra compreensão do assunto. Os nossos doutores e panfletários da Restauração são na Europa os precursores das modernas doutrinas nacionalistas, tão vigorosamente sustentadas por eles, que de Suárez e mais comentadores da Contra Reforma haviam recebido o conceito tomista do ‘pacto’. Só por este aspecto, o século XVII é o século para cujo estudo eu chamo a atenção dos que pensam. E se dentro da mesma cuidadosa atenção, se meditarem as teses de Frei Bernardo de Brito na Monarquia Lusitana e as fraudes piíssimas dos monges de Alcobaça, sentir-se-á que uma intensa e apaixonada germinação levantava o Portugal-Restaurado, graças à labareda renovadora do Sebastianismo, de que a inscrição de Vila-Viçosa nos entrega a chave lógica, àquelas altas e distantes cumeadas em que florescêramos, para bem da civilização, durante a centúria admirável de Quinhentos.

Porque se esterilizou então o esforço que parecia restituir-nos o antigo e perdido primado dos barões assinalados, do Épico? Pelo motivo de que, dissolvido o conceito internacional de Cristandade, nós nos sumíamos na sombra, envoltos no mesmo destino em que a Espanha se afundia, esmagada. As razões da civilização pertenciam, em patriotismo comum, às duas gloriosas pátrias peninsulares.

Eclipsadas na sua radiação pelo vento da Reforma que em Vestfália ditara o novo direito internacional, começava o parêntesis funesto, cujo termo só agora se entra a avistar. Consequência das causas externas que a partir da insurreição de Lutero enfraquecera e diminuíra o prestígio do Pontificado, a Península – pobre D. Quixote, apedrejado pelos galeotes que desacorrentara! – tombava no arrastado obscurecimento donde tanto tardará a sair. Dividida, para mais, por uma luta fratricida, o seu declive irremediável apressava-se com gáudio e aplauso da Europa protestantizada. Colhiam-se os frutos de se haver trocado pela quimera insensata da monarquia-ecuménica o prudente e fecundo paralelismo em que Portugal e Castela sabiamente viveram no formidável labor apostólico do século XVI!

Que lição, a de tudo o que ponderamos, num simples enunciar de temas e de directrizes! É que 1640 não representa nem deve representar uma causa de ódio ou de reivindita contra a Espanha. Ao mesmo tempo que nos ensina a ter confiança nas qualidades criadoras da Raça, aponta-nos o caminho a seguir nas relações peninsulares. Corrigenda sanguinolenta ao erro político cometido pela aspiração imperialista tanto da casa de Áustria, como, mais atrás, da casa de Avis, fortifica-nos na convicção de que a unidade da Península é uma unidade espiritual, garantida pela acção concorde de duas soberanias políticas – a espanhola e a portuguesa. Que fomos nós, a partir da Restauração, muito embora o mistério do Encoberto se houvesse revelado e se chamasse Portugal-Restaurado? Fomos pelo mesmo conjunto de circunstâncias porque a Espanha nada foi também. Porque, divorciados da obra grandiosa que realizáramos ombro a ombro pelos quatro cantos da Terra, nem já nos elevava acima das dissídias mútuas a ideia que nos Lusíadas palpitava: nos Lusíadas, como bem o marcou Oliveira Martins, ‘testamento de Espanha’, mas de uma Espanha que, sendo a camoniana, tanto era Castela como Portugal. Ressurgem hoje do conflito trágico das Nações os lineamentos esquecidos do Hispanismo, despertados pela voz juvenil da América maravilhosa.

Congracemo-nos, ajoelhados diante da lembrança das desgraças e pecados recíprocos. O Encoberto, corporizado no milagre sempre vivo de Restauração, é o Encoberto do Quinto-Império pacífico de Espanha e Portugal, fundadores de nacionalidades, pioneiros da única civilização possível. E se ao abraço reconciliatório o demoram ainda susceptibilidades dolorosas, decida-nos, por nosso lado, a memória de D. Luísa de Gusmão, que sendo uma Medina-Sidónia, nem por isso deixou de ser um dos obreiros mais eficazes do Portugal-Restaurado!

​(1922)


[1] Vicomte Guy de Bremond d’Ars, Le père de Madame de Rambouillet. Jean de Vivonne, Sa vie et ses ambassades, Paris.

[2] Vid. Cánovas del Castillo, Estudios del reinado de Felipe IV, tomo I.

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