Hispanismo e espanholismo. Ainda a entrevista de Miramar
António Sardinha
Nada de alianças ou convénios [com Espanha], enquanto na Pátria forte não existir o Estado forte.
- António Sardinha
[por "Pátria forte" com "o Estado forte" entendia António Sardinha um Portugal Restaurado, isto é, com uma representação nacional assente nos Municípios e com a chefia de Estado entregue à Dinastia Portuguesa]
- António Sardinha
[por "Pátria forte" com "o Estado forte" entendia António Sardinha um Portugal Restaurado, isto é, com uma representação nacional assente nos Municípios e com a chefia de Estado entregue à Dinastia Portuguesa]
INSISTIMOS na nossa anterior atitude: hispanistas somos e hispanistas nos mantemos. É essa uma tradição gloriosa da velha política dos nossos Reis e ninguém melhor a define de que Camões nos acentos imortais do seu poema.
Ser hispanista é, evidentemente, hoje mais do que nunca, reivindicar para as duas grandes pátrias peninsulares a paternidade de uma civilização de que as Américas Central e Meridional são a garantia futura. Nesse sentido iniciámos uma campanha de inteligência e amizade com a Espanha, que todos fingiram não escutar, mas de que todos, a começar pelo diretor do Diário de Notícias, quiseram sofregamente aproveitar os frutos, cuidando-os já maduros. O resultado viu-se.
Quando o fim a atingir não era por ora senão um fim de natureza espiritual, apareceram logo os sinais do regime plutocrático, em que tanto Portugal, como Espanha, se debatem, meio estrangulados. Sem rodeios, a entrevista de Miramar foi um perfeito desastre, de que é, pela sua inabilidade, completamente responsável o jornalista que a provocou e reproduziu. Mal adormecidos, os velhos ódios declamatórios contra Castela surgiram escoltados pelo inevitável municiamento lírico de Tomás Ribeiro. E, em resumo, tudo porque, numa ausência lamentável do exato conteúdo do Hispanismo, o confundiram neste desgraçado país com as quimeras aberrativas do Iberismo. Ninguém entendeu que o Hispanismo não significava senão o regresso àquele paralelismo político e social da Era de Quinhentos que permitiu às duas nações peninsulares o levantarem amigavelmente o facho do seu mútuo primado no mundo. Por um lado, almejaram-se negócios, alongaram-se guerras cúpidas e insaciáveis. Por outro lado, num patriotismo irracional e tumultuário, caiu-se na sem razão de todos os protestos que obedecem apenas ao instinto, e não à lei suprema do espírito.
Marcando, por isso, a nossa posição, seja-nos permitido transcrever para aqui a entrevista que o acreditado Diário de Lisboa publicava no seu número do passado mês de outubro.
É como segue:
Uma passagem rápida por Elvas levou-nos a visitar o dr. António Sardinha. Batemos-lhe a porta no cair da tarde doirada, e foi sob o dossel verde das suas arvores que ele nos recebeu entre abraços e interjeições de surpresa. Vive o diretor da Nação Portuguesa numa velha quinta, cheia de tradição.
Nada menos que na quinta celebrada pelo Hyssope, quando nos fala dos passeios do senhor Bispo indignado.
Divagámos um pouco à flor dos assuntos, — e caímos depois na recente entrevista do Rei de Espanha, tão contraditoriamente recebida no nosso meio. O dr. António Sardinha é um hispanista fervoroso, iniciou entre nós uma campanha bem conhecida no sentido da aproximação intelectual entre Portugal e a Espanha, e, com o seu exilio de mais de dois anos no país vizinho, criou as melhores relações nos meios políticos e literários de Madrid. Ainda na primavera passada, ao realizar ali uma conferência, foi recebido com significativa simpatia por Afonso XIII.
- Dr., a sua opinião?
- A minha opinião? - E António Sardinha afasta um pouco a pergunta, chamando-nos a atenção para a arcaria elegante de um aqueduto que estampa no fundo azul do céu a sua linha nobre e sugestiva. Percebemos que é o companheiro das meditações do poeta. – É difícil expor-lha, nos traços leves de uma conversa. Como hispanista, pode já calcular...
- Que lhe agradaram as declarações de S. M. Católica, não é verdade?
- Pelo contrário! Acho-as até prejudiciais, pelo que nelas se encontra de excessiva atenção por nós, à boa marcha das relações entre Portugal e Espanha.
- ?!
- Já vê: - eu sou hispanista; não sou espanholista. Como hispanista, interessa-me a aliança entre todas as nacionalidades de origem peninsular. É por agora uma obra de cultura e aproximação sentimental. Na fórmula apresentada por S. M. Católica ao diretor do Diário de Notícias, fala-se de tudo, menos disso.
- Então...
- Então, não é por operações financeiras e planos de fomento que positivamente se deve principiar. Eu reclamo e exijo para o meu pais, num possível entendimento com a Espanha, o mais absoluto respeito da nossa soberania política e económica.
- Mas não me parece que a nossa soberania política e económica fosse afetada...
- Não lhe parece? Olhe: - se quisesse entrar no meu quarto de trabalho, teria muito gosto em lhe ler o apólogo das duas bilhas, do Padre Manuel Bernardes.
- De modo que Portugal é, no caso presente, a bilha de barro...
- Que se suicidaria, juntando-se sem reservas, embora na esperança de um sincero auxílio, A outra bilha, - a de cobre. Não falemos, porém, mais nas bilhas...
- Mas o dr. teme qualquer propósito absorcionista?
- De maneira alguma! É, em todo o caso, prudente acautelar o futuro. Decerto que os exércitos espanhóis não marchariam contra nós. Mas nós é que nos podíamos ver por nossas próprias mãos hipotecados à finança espanhola. E, a propósito meu caro amigo:
- Diga lá no seu jornal que é preciso abrir muito os olhos sobre a concessão do Porto de Montijo.
- ?
- Ninguém se preocupou com a questão - a não ser o antigo ministro democrático sr. Rodrigues Gaspar. Pois é uma questão gravíssima pelo que pode representar de inesperado, mais hoje, mais amanhã. O sr. Rodrigues Gaspar merece os agradecimentos de todos nós pela sua patriótica atitude.
- Em resumo...
- Em resumo, como defensor da amizade com a Espanha, considero a entrevista do Rei Afonso XIII um prejuízo grave para o entendimento das duas pátrias. Não pelo que ela contenha de perigoso. Mas pelas suspeitas e pelas reticencias de que justamente as pode rodear o nosso patriotismo alarmado.
- E a sua conduta?
- A minha conduta é a de sempre: - amizade peninsular; mas, enquanto não houver em Portugal o Estado forte na Pátria forte, nada de realizações que só nos aprisionarão à fatalidade dos acontecimentos! Por agora o trabalho pertence à inteligência, - ao espírito. As instituições que se calem, porque a sua hora não chegou ainda. E quando chegue...
- Quando chegue?
- Hão-de ser naturalmente as aspirações nacionais, e não a visão míope dos governos, quem ditará a regra de ação comum.
Anoitecia. O aqueduto, mais perfilado, dava à paisagem uma severidade clássica. Na cidade, por sobre o casario branquejando à orla dos baluartes, pairava um aroma esparso de sinos. Perto, defendia--se da sombra envolvente a carcassa de um fortim desmantelado. E no crescer dos rumores anónimos que subiam de toda a parte, nós sentimos como ali é que António Sardinha pode, em verdade, escutar, no seu magnífico isolamento, as vozes sagradas da Terra e dos Mortos.
Embora ligeiramente, supomos traçadas com a clareza necessária as determinantes do nosso pensamento sobre o magno problema do Hispanismo e ao mesmo tempo a nossa absoluta discordância com as infelizes e inoportunas declarações de S. M. Católica. Especial autoridade possui o diretor desta revista para se pronunciar acerca do assunto, porque não repeliu ainda a parte que lhe coube na serie de conferências do Integralismo Lusitano sobre a questão-ibérica, - conferências dadas a lume em 1915. Tão grande é, pelo contrário, a nossa coerência que nas suas campanhas hispanistas apenas temos desenvolvido uma tese já enunciada no referido volume. Lê-se, com efeito, nele a páginas 27: - “Cessaram talvez as condições especiais de tempo e de espaço que nos obrigavam a contrair pactos de amizade fora dos nossos limites, com prejuízos graves para a prosperidade de Portugal, - acrescente-se. A fórmula de amanhã em política exterior há-de ser, sem dúvida, não União-Ibérica, mas aliança-peninsular.” Vários artigos, saídos em a Monarquia, ainda antes da nossa forçosa retirada para Espanha, mostram como essa ideia se desenrolava e tomava corpo consciente e sereno.
Dois anos de residência em Espanha, o conhecimento de Espanha, não através das lunetas alheias, mas da própria observação, e o profundo corretivo trazido aos nossos preconceitos históricos por um estudo aturado e sincero, desvaneceram-nos as prevenções e as desconfianças que se aninhavam teimosamente no nosso sentimentalismo nacionalista. Compreendemos então a grandeza de Portugal e acreditamos na eternidade da sua alma forte e criadora. De resto, se a absurda miragem do unitarismo peninsular animava ainda um ou outro plumitivo de generalizações tão inflamadas como levianas, da própria erudição espanhola a nacionalidade portuguesa tirava altos e consideráveis reforços. Só então abrangemos o ridículo imenso de se levar a sério, cá deste lado da raía, o pobre e falecido senhor D. Juan del Nido y Segalerva, popularizado em Madrid pelas caricaturas literárias de Cerici Ventalló. Mas se tais manifestações do que a Espanha possui demais tristemente representativo chegavam até nós, não chegavam, por exemplo, depoimentos como o que se recolhe do Compendio de Geografia, dos irmãos Esquierdo y Crozelles, adotado como texto oficial nas Academias Militares, do reino vizinho. Formula-se aí uma teoria física da nacionalidade portuguesa que debalde se procura em qualquer livrinho nosso da mesma espécie.
Já se percebe porque, pouco a pouco, os nossos receios cederam à voz da nossa meditação. Esse espectro da ameaça espanhola é um entretenimento dos nossos ócios de povo exaltado e contemplativo. Percorrendo há pouco as impressões de Lord Beckford sobre a corte de D. Maria I, convencemo-nos de que já então nos serões de Lisboa do Intendente se temia que mais dia, menos dia, fossemos reduzidos à triste condição de província espanhola. No fim de contas, a desgraça apareceu, mas apareceu, soprada pela França, com as invasões napoleónicas. Então, ao expulsar-se o invasor da Península, sentiu-se bem como o português é irmão do espanhol e como há um interesse peninsular, que tanto é de Portugal como de Espanha.
E os Filipes? Não nos achamos aqui regendo um curso de história. Em todo o caso, sempre diremos que nem assim Portugal perdeu a sua independência. Não foi uma anexação, - foi uma monarquia dualista, como o império austro-húngaro o era em nosso tempo. Duvida-se? Pois embebam-se na leitura da História de Portugal, de Rebelo da Silva, acompanhada pela dos Estudios del reinado de Felipe IV, de Cánovas del Castillo. E se a questão os apaixonar, terão ensejo de verificar depois que o Iberismo é uma aspiração revolucionária da Maçonaria e dos vários ninhos romântico-liberais da Península. Gomes Freire padeceu por justiça por conspirar com maçons e espanhóis. Fernandes Tomás entendeu-se com eles e D. Pedro, indevidamente chamado IV, sonhou com a coroa unida de Portugal e Espanha.
Contra a unidade política preconizada pelo Iberismo, opõe a lição da História e da Geografia a unidade moral e cultural do Hispanismo. Surpreendido com essa unidade moral e cultural da Península Oliveira Martins escreveria a História da civilização ibérica, povoada de muitos mitos filosóficos, sim, mas também cheia das maiores adivinhações. A ele pertence a base fundamental da fórmula hispanista. Oiçamo-lo: -
«O antigo reino de Leão-Castela que, completado com a reconquista, incorporado o Aragão e a Navarra nas mãos de Fernando e Isabel, se passou a chamar a Espanha, definindo assim o pensamento de unificação peninsular, que Filipe Il julgou ter consumado: esse reino tem decerto o ideal da unidade: tradição não a pode ter.
«Portugal, porém, - continua Oliveira Martins—, nunca teve semelhante ideal, o que não quer dizer que, no pensamento dos seus soberanos, não passasse a visão de uma Espanha unida. Pelo contrário, a ideia de efetuar a união a benefício da dinastia portuguesa foi constante, a partir de Toro, e até D. Manuel. E esteve a ponto de realizar-se na cabeça do filho de D. João II.” - E Oliveira Martins alarga-se em considerações que o espaço não nos consente que reproduzamos para opinar pelo dualismo, ou paralelismo, nas relações dos dois Estados peninsulares, - e nunca pelo antagonismo. «Qual é, portanto em resultado de todas estas considerações várias, o programa que o juízo aconselha às duas monarquias da Península? É o regresso à tradição de Avis, a política de cooperação, despida, porém, de esperanças recíprocas de absorção pelo processo anacrónico dos enlaces dinásticos. É ao mesmo tempo a política interna de restauração e regeneração social e económica. Acordes, a Espanha e Portugal, conseguindo sarar as chagas de que enfermam ambas as nações (também nisto irmãs!) poderiam, mantendo-se, manter a ordem neste belo e glorioso canto do mundo.
“Não é necessário, - prossegue o historiador -, excessiva perspicácia para reconhecer que os motivos antigos que levaram a Inglaterra a proteger-nos contra a Espanha, acentuando e prolongando o carácter de oposição que a restauração teve, são de hoje transatas. É para nós positivo que nenhuma das potências europeias dispararia um tiro em nossa defesa; é óbvio, pois, que o interesse recíproco da Espanha e de Portugal está em que nenhum de nós pense, nem de longe, em aventuras perigosas para o futuro de ambos!» E Oliveira Martins remata: - “União de pensamentos e ação, independência de governo: eis a nosso ver a fórmula atual, sensata e prática do Iberismo.”
Hispanismo para nós e Iberismo para Oliveira Martins, - ninguém contestará a suprema atualidade do testemunho transcrito. Juntem-lhe os profundos motivos que nos mandam seguir de perto, como se nossa fosse, a contenda que se trava em Marrocos, some-se-lhe ainda o apelo das vinte e tantas nacionalidades americanas de origem peninsular, - e o programa hispanista ficará definido. Que perigos, - que ameaças para nós se contêm dentro dele? Não nos oferece ele um apoio pira o nosso império ultramarino combalido? Não é o único caminho que se abre a Portugal para acordar para a sua passada grandeza. E, se as diretrizes do Hispanismo não são outras, que, parentesco há, porventura, entre as linhas amplas e nítidas do seu horizonte e as reticências do absorcionismo plutocrático, confeciona do alvarmente na entrevista de Miramar pelo exibicionismo míope do diretor do Diário de Notícias? Pelo amor de Portugal, meus senhores, é preciso distinguir!
E porque é preciso distinguir, não confundamos as cobiças inconfessáveis da finança peninsular com a execução do testamento que Camões nos legou nos Lusíadas. Nada de alianças ou convénios, enquanto na Pátria forte não existir o Estado forte, - repetimos. Mas alma aberta a tudo quanto represente a salvaguarda do nosso património espiritual, em hasta publica vai para três seculos e meio só por culpa nossa, - só por culpa de Portugal e Espanha!
A. S.
P. S.- No próximo número faremos a devida referência ao folheto do heroico capitão senhor Aníbal de Azevedo, - Nós e a Espanha, e ao artigo do senhor dr. Henrique Trindade Coelho, Por Portugal inserto no jornal A Pátria. Publicaremos também uma expressiva carta do nosso querido amigo e colaborador, senhor D. Antonio Ballesteros Beretta, ilustre catedrático da Universidade Central de Madrid.
Ser hispanista é, evidentemente, hoje mais do que nunca, reivindicar para as duas grandes pátrias peninsulares a paternidade de uma civilização de que as Américas Central e Meridional são a garantia futura. Nesse sentido iniciámos uma campanha de inteligência e amizade com a Espanha, que todos fingiram não escutar, mas de que todos, a começar pelo diretor do Diário de Notícias, quiseram sofregamente aproveitar os frutos, cuidando-os já maduros. O resultado viu-se.
Quando o fim a atingir não era por ora senão um fim de natureza espiritual, apareceram logo os sinais do regime plutocrático, em que tanto Portugal, como Espanha, se debatem, meio estrangulados. Sem rodeios, a entrevista de Miramar foi um perfeito desastre, de que é, pela sua inabilidade, completamente responsável o jornalista que a provocou e reproduziu. Mal adormecidos, os velhos ódios declamatórios contra Castela surgiram escoltados pelo inevitável municiamento lírico de Tomás Ribeiro. E, em resumo, tudo porque, numa ausência lamentável do exato conteúdo do Hispanismo, o confundiram neste desgraçado país com as quimeras aberrativas do Iberismo. Ninguém entendeu que o Hispanismo não significava senão o regresso àquele paralelismo político e social da Era de Quinhentos que permitiu às duas nações peninsulares o levantarem amigavelmente o facho do seu mútuo primado no mundo. Por um lado, almejaram-se negócios, alongaram-se guerras cúpidas e insaciáveis. Por outro lado, num patriotismo irracional e tumultuário, caiu-se na sem razão de todos os protestos que obedecem apenas ao instinto, e não à lei suprema do espírito.
Marcando, por isso, a nossa posição, seja-nos permitido transcrever para aqui a entrevista que o acreditado Diário de Lisboa publicava no seu número do passado mês de outubro.
É como segue:
Uma passagem rápida por Elvas levou-nos a visitar o dr. António Sardinha. Batemos-lhe a porta no cair da tarde doirada, e foi sob o dossel verde das suas arvores que ele nos recebeu entre abraços e interjeições de surpresa. Vive o diretor da Nação Portuguesa numa velha quinta, cheia de tradição.
Nada menos que na quinta celebrada pelo Hyssope, quando nos fala dos passeios do senhor Bispo indignado.
Divagámos um pouco à flor dos assuntos, — e caímos depois na recente entrevista do Rei de Espanha, tão contraditoriamente recebida no nosso meio. O dr. António Sardinha é um hispanista fervoroso, iniciou entre nós uma campanha bem conhecida no sentido da aproximação intelectual entre Portugal e a Espanha, e, com o seu exilio de mais de dois anos no país vizinho, criou as melhores relações nos meios políticos e literários de Madrid. Ainda na primavera passada, ao realizar ali uma conferência, foi recebido com significativa simpatia por Afonso XIII.
- Dr., a sua opinião?
- A minha opinião? - E António Sardinha afasta um pouco a pergunta, chamando-nos a atenção para a arcaria elegante de um aqueduto que estampa no fundo azul do céu a sua linha nobre e sugestiva. Percebemos que é o companheiro das meditações do poeta. – É difícil expor-lha, nos traços leves de uma conversa. Como hispanista, pode já calcular...
- Que lhe agradaram as declarações de S. M. Católica, não é verdade?
- Pelo contrário! Acho-as até prejudiciais, pelo que nelas se encontra de excessiva atenção por nós, à boa marcha das relações entre Portugal e Espanha.
- ?!
- Já vê: - eu sou hispanista; não sou espanholista. Como hispanista, interessa-me a aliança entre todas as nacionalidades de origem peninsular. É por agora uma obra de cultura e aproximação sentimental. Na fórmula apresentada por S. M. Católica ao diretor do Diário de Notícias, fala-se de tudo, menos disso.
- Então...
- Então, não é por operações financeiras e planos de fomento que positivamente se deve principiar. Eu reclamo e exijo para o meu pais, num possível entendimento com a Espanha, o mais absoluto respeito da nossa soberania política e económica.
- Mas não me parece que a nossa soberania política e económica fosse afetada...
- Não lhe parece? Olhe: - se quisesse entrar no meu quarto de trabalho, teria muito gosto em lhe ler o apólogo das duas bilhas, do Padre Manuel Bernardes.
- De modo que Portugal é, no caso presente, a bilha de barro...
- Que se suicidaria, juntando-se sem reservas, embora na esperança de um sincero auxílio, A outra bilha, - a de cobre. Não falemos, porém, mais nas bilhas...
- Mas o dr. teme qualquer propósito absorcionista?
- De maneira alguma! É, em todo o caso, prudente acautelar o futuro. Decerto que os exércitos espanhóis não marchariam contra nós. Mas nós é que nos podíamos ver por nossas próprias mãos hipotecados à finança espanhola. E, a propósito meu caro amigo:
- Diga lá no seu jornal que é preciso abrir muito os olhos sobre a concessão do Porto de Montijo.
- ?
- Ninguém se preocupou com a questão - a não ser o antigo ministro democrático sr. Rodrigues Gaspar. Pois é uma questão gravíssima pelo que pode representar de inesperado, mais hoje, mais amanhã. O sr. Rodrigues Gaspar merece os agradecimentos de todos nós pela sua patriótica atitude.
- Em resumo...
- Em resumo, como defensor da amizade com a Espanha, considero a entrevista do Rei Afonso XIII um prejuízo grave para o entendimento das duas pátrias. Não pelo que ela contenha de perigoso. Mas pelas suspeitas e pelas reticencias de que justamente as pode rodear o nosso patriotismo alarmado.
- E a sua conduta?
- A minha conduta é a de sempre: - amizade peninsular; mas, enquanto não houver em Portugal o Estado forte na Pátria forte, nada de realizações que só nos aprisionarão à fatalidade dos acontecimentos! Por agora o trabalho pertence à inteligência, - ao espírito. As instituições que se calem, porque a sua hora não chegou ainda. E quando chegue...
- Quando chegue?
- Hão-de ser naturalmente as aspirações nacionais, e não a visão míope dos governos, quem ditará a regra de ação comum.
Anoitecia. O aqueduto, mais perfilado, dava à paisagem uma severidade clássica. Na cidade, por sobre o casario branquejando à orla dos baluartes, pairava um aroma esparso de sinos. Perto, defendia--se da sombra envolvente a carcassa de um fortim desmantelado. E no crescer dos rumores anónimos que subiam de toda a parte, nós sentimos como ali é que António Sardinha pode, em verdade, escutar, no seu magnífico isolamento, as vozes sagradas da Terra e dos Mortos.
Embora ligeiramente, supomos traçadas com a clareza necessária as determinantes do nosso pensamento sobre o magno problema do Hispanismo e ao mesmo tempo a nossa absoluta discordância com as infelizes e inoportunas declarações de S. M. Católica. Especial autoridade possui o diretor desta revista para se pronunciar acerca do assunto, porque não repeliu ainda a parte que lhe coube na serie de conferências do Integralismo Lusitano sobre a questão-ibérica, - conferências dadas a lume em 1915. Tão grande é, pelo contrário, a nossa coerência que nas suas campanhas hispanistas apenas temos desenvolvido uma tese já enunciada no referido volume. Lê-se, com efeito, nele a páginas 27: - “Cessaram talvez as condições especiais de tempo e de espaço que nos obrigavam a contrair pactos de amizade fora dos nossos limites, com prejuízos graves para a prosperidade de Portugal, - acrescente-se. A fórmula de amanhã em política exterior há-de ser, sem dúvida, não União-Ibérica, mas aliança-peninsular.” Vários artigos, saídos em a Monarquia, ainda antes da nossa forçosa retirada para Espanha, mostram como essa ideia se desenrolava e tomava corpo consciente e sereno.
Dois anos de residência em Espanha, o conhecimento de Espanha, não através das lunetas alheias, mas da própria observação, e o profundo corretivo trazido aos nossos preconceitos históricos por um estudo aturado e sincero, desvaneceram-nos as prevenções e as desconfianças que se aninhavam teimosamente no nosso sentimentalismo nacionalista. Compreendemos então a grandeza de Portugal e acreditamos na eternidade da sua alma forte e criadora. De resto, se a absurda miragem do unitarismo peninsular animava ainda um ou outro plumitivo de generalizações tão inflamadas como levianas, da própria erudição espanhola a nacionalidade portuguesa tirava altos e consideráveis reforços. Só então abrangemos o ridículo imenso de se levar a sério, cá deste lado da raía, o pobre e falecido senhor D. Juan del Nido y Segalerva, popularizado em Madrid pelas caricaturas literárias de Cerici Ventalló. Mas se tais manifestações do que a Espanha possui demais tristemente representativo chegavam até nós, não chegavam, por exemplo, depoimentos como o que se recolhe do Compendio de Geografia, dos irmãos Esquierdo y Crozelles, adotado como texto oficial nas Academias Militares, do reino vizinho. Formula-se aí uma teoria física da nacionalidade portuguesa que debalde se procura em qualquer livrinho nosso da mesma espécie.
Já se percebe porque, pouco a pouco, os nossos receios cederam à voz da nossa meditação. Esse espectro da ameaça espanhola é um entretenimento dos nossos ócios de povo exaltado e contemplativo. Percorrendo há pouco as impressões de Lord Beckford sobre a corte de D. Maria I, convencemo-nos de que já então nos serões de Lisboa do Intendente se temia que mais dia, menos dia, fossemos reduzidos à triste condição de província espanhola. No fim de contas, a desgraça apareceu, mas apareceu, soprada pela França, com as invasões napoleónicas. Então, ao expulsar-se o invasor da Península, sentiu-se bem como o português é irmão do espanhol e como há um interesse peninsular, que tanto é de Portugal como de Espanha.
E os Filipes? Não nos achamos aqui regendo um curso de história. Em todo o caso, sempre diremos que nem assim Portugal perdeu a sua independência. Não foi uma anexação, - foi uma monarquia dualista, como o império austro-húngaro o era em nosso tempo. Duvida-se? Pois embebam-se na leitura da História de Portugal, de Rebelo da Silva, acompanhada pela dos Estudios del reinado de Felipe IV, de Cánovas del Castillo. E se a questão os apaixonar, terão ensejo de verificar depois que o Iberismo é uma aspiração revolucionária da Maçonaria e dos vários ninhos romântico-liberais da Península. Gomes Freire padeceu por justiça por conspirar com maçons e espanhóis. Fernandes Tomás entendeu-se com eles e D. Pedro, indevidamente chamado IV, sonhou com a coroa unida de Portugal e Espanha.
Contra a unidade política preconizada pelo Iberismo, opõe a lição da História e da Geografia a unidade moral e cultural do Hispanismo. Surpreendido com essa unidade moral e cultural da Península Oliveira Martins escreveria a História da civilização ibérica, povoada de muitos mitos filosóficos, sim, mas também cheia das maiores adivinhações. A ele pertence a base fundamental da fórmula hispanista. Oiçamo-lo: -
«O antigo reino de Leão-Castela que, completado com a reconquista, incorporado o Aragão e a Navarra nas mãos de Fernando e Isabel, se passou a chamar a Espanha, definindo assim o pensamento de unificação peninsular, que Filipe Il julgou ter consumado: esse reino tem decerto o ideal da unidade: tradição não a pode ter.
«Portugal, porém, - continua Oliveira Martins—, nunca teve semelhante ideal, o que não quer dizer que, no pensamento dos seus soberanos, não passasse a visão de uma Espanha unida. Pelo contrário, a ideia de efetuar a união a benefício da dinastia portuguesa foi constante, a partir de Toro, e até D. Manuel. E esteve a ponto de realizar-se na cabeça do filho de D. João II.” - E Oliveira Martins alarga-se em considerações que o espaço não nos consente que reproduzamos para opinar pelo dualismo, ou paralelismo, nas relações dos dois Estados peninsulares, - e nunca pelo antagonismo. «Qual é, portanto em resultado de todas estas considerações várias, o programa que o juízo aconselha às duas monarquias da Península? É o regresso à tradição de Avis, a política de cooperação, despida, porém, de esperanças recíprocas de absorção pelo processo anacrónico dos enlaces dinásticos. É ao mesmo tempo a política interna de restauração e regeneração social e económica. Acordes, a Espanha e Portugal, conseguindo sarar as chagas de que enfermam ambas as nações (também nisto irmãs!) poderiam, mantendo-se, manter a ordem neste belo e glorioso canto do mundo.
“Não é necessário, - prossegue o historiador -, excessiva perspicácia para reconhecer que os motivos antigos que levaram a Inglaterra a proteger-nos contra a Espanha, acentuando e prolongando o carácter de oposição que a restauração teve, são de hoje transatas. É para nós positivo que nenhuma das potências europeias dispararia um tiro em nossa defesa; é óbvio, pois, que o interesse recíproco da Espanha e de Portugal está em que nenhum de nós pense, nem de longe, em aventuras perigosas para o futuro de ambos!» E Oliveira Martins remata: - “União de pensamentos e ação, independência de governo: eis a nosso ver a fórmula atual, sensata e prática do Iberismo.”
Hispanismo para nós e Iberismo para Oliveira Martins, - ninguém contestará a suprema atualidade do testemunho transcrito. Juntem-lhe os profundos motivos que nos mandam seguir de perto, como se nossa fosse, a contenda que se trava em Marrocos, some-se-lhe ainda o apelo das vinte e tantas nacionalidades americanas de origem peninsular, - e o programa hispanista ficará definido. Que perigos, - que ameaças para nós se contêm dentro dele? Não nos oferece ele um apoio pira o nosso império ultramarino combalido? Não é o único caminho que se abre a Portugal para acordar para a sua passada grandeza. E, se as diretrizes do Hispanismo não são outras, que, parentesco há, porventura, entre as linhas amplas e nítidas do seu horizonte e as reticências do absorcionismo plutocrático, confeciona do alvarmente na entrevista de Miramar pelo exibicionismo míope do diretor do Diário de Notícias? Pelo amor de Portugal, meus senhores, é preciso distinguir!
E porque é preciso distinguir, não confundamos as cobiças inconfessáveis da finança peninsular com a execução do testamento que Camões nos legou nos Lusíadas. Nada de alianças ou convénios, enquanto na Pátria forte não existir o Estado forte, - repetimos. Mas alma aberta a tudo quanto represente a salvaguarda do nosso património espiritual, em hasta publica vai para três seculos e meio só por culpa nossa, - só por culpa de Portugal e Espanha!
A. S.
P. S.- No próximo número faremos a devida referência ao folheto do heroico capitão senhor Aníbal de Azevedo, - Nós e a Espanha, e ao artigo do senhor dr. Henrique Trindade Coelho, Por Portugal inserto no jornal A Pátria. Publicaremos também uma expressiva carta do nosso querido amigo e colaborador, senhor D. Antonio Ballesteros Beretta, ilustre catedrático da Universidade Central de Madrid.
[ António Sardinha, Ainda a entrevista, Nação Portuguesa, 2.ª série, n.º 6, Dezembro de 1922, pp. 278-281. ]
[ 1922 - Hispanismo e Espanholismo. Ainda a entrevista de Miramar, Nação Portuguesa, 2.ª série, n.º 5, Novembro de 1922, pp. 211-214; Ainda a entrevista, Nação Portuguesa, 2.ª série, n.º 6, Dezembro de 1922, pp. 278-281. ]