As ideias de Duguit in "A Prol do Comum...", Lisboa, 1934, pp. 225-232.
António Sardinha saiu aqui em defesa do direito-natural, não do "direito-natural" que partiu do "Indivíduo" dos avós protestantes de Jean-Jacques Rousseau, mas do direito-natural que, baseado na Comunidade, vai de S. Tomás até aos doutores seiscentistas da Restauração.
[225]
Numa hora em que se encontram em completa revisão as noções de Direito e de «Estado », que tínhamos como fundamentais, não parecerá de certo tema fora de interesse um exame ligeiro às ideias do célebre professor da Universidade de Bordéus, Monsieur Léon Duguit. Visitou Mr. Duguit últimamente Lisboa, conferindo-lhe «borla» de doutor a Faculdade de Direito, instalada ali ao Campo de Sant'Ana, com vários subalternos dos barões da Finança por emproados e anafados catedráticos.
Foi o professor e tratadista francês recebido , desde a imprensa da Moagem à clorótica ciência-oficial, como um astro do pensamento contemporâneo, — daquele pensamento que o senhor Augusto de Castro, director do Diário de Notícias, costuma conviver nas suas frequentes idas ao estrangeiro. Ora mais devagar, excelentíssimos burocratas do Adormecimento-intelectual do País, para quem as glórias de latão e gesso valem como ouro de pura lei!
Ninguém nega a Mr. Duguit qualidades de espírito apreciáveis e até mesmo distintas. A sua obra exerceu uma acção profundamente renovadora no campo dos diversos mitos de que há cem anos as ciências jurídicas infatigavelmente se nutrem. Mas, se essa obra é, dentro de limites, de renovação,
[226]
não é,de modo nenhum, nem uma obra original, nem uma obra criadora.Numa época, como a nossa, em que a necessidade construtiva nos exige certezas e dados firmes em que nos apoiarmos para mais fortemente resistirmos à crise mental e social, aberta pela falência de quanto ideologicamente se herdou do século findo, — numa época, repito, como a nossa, carece-se de se ir mais adiante do que Mr. Duguit foi, não basta apenas crítica, exige-se-nos esforço de maior monta e amplitude.
Claro que as inteligências perturbadas pelos inúteis kantismos em que se emaranham, como numa selva escura, tanto o conceito de "Direito" como o conceito de "Estado", aproveitaram largamente os caminhos, rasgados com notável desembaraço pelo professor Duguit. Assim, como ponto de partida, não se escusará à obra do professor Duguit o valor excitante que ela possui. De resto, chefe da chamada "escola realista",— eis como adjectivam a corrente a que Mr. Duguit preside os que amam as classificações e as nomenclaturas, — Mr. Duguit estruturalmente não fez mais que glosar e desenvolver, concentrando-o na esfera da sua especialidade, o pensamento de Augusto Comte sobre a insubsistência dos dogmas políticos, saídos do individualismo de 89.
Com efeito, a Mr. Duguit deve-se a excepcional coragem de haver expulsado das suas lições e dos seus livros a ficção arcaica da soberania nacional , - fantasma lírico-explosivo, que enfeitiçou diabolicamente a nossa pobre civilização europeia. Res-
[227]
tringindo-se a um critério exclusivamente objectivo, Mr. Duguit iniciou desta forma a reacção contra as velhas concepções românticas, fixadas, como em textos sagrados, no tipo das Constituições escritas. Para ele,- para o arguto professor e tratadista francês, nos Estados , dêem-lhe as voltas que lhe derem, invoquem-se as razões que se invocarem, só houve e só haverá «governantes» e «governados», acrescentando em seguida que os actos dos governantes são obrigatórios para os governados , independentemente da aceitação dos segundos, logo que os referidos actos correspondam às necessidades colectivas e à natureza própria do Poder . Tais são os fundamentos das teorias do Mr. Duguit.
Contribui sensivelmente semelhante doutrina para a restauração no ensino jurídico de duas ideias-essenciais: a do objecto do direito e a da função do direito. Mas no seu pretenso realismo Mr. Duguit, ou não pôde abranger inteiramente toda a verdade do problema, ou não se animou a procurar-lhe o sentido exacto. Envolvendo na mesma excomunhão os princípios inaugurados pela Revolução-Francesa e aqueles em que assentava a sociedade tradicional, Mr. Léon Duguit recusa-se a admitir a existência dum direito soberano: - o direito que a boa ortodoxia democrática confere aos representantes da «vontade popular», engendrando a incapacidade despótica dos Parlamentos, equivale para Mr. Duguit ao direito das antigas monarquias, em que o Estado se considerava bem patrimonial do monarca. Não analisare-
[228]
- mos agora o que, debaixo do aspecto histórico, as doutrinas de Mr. Duguit nos oferecem de erróneo, pelo que respeita à equivalência apontada. Mas insistimos na sua afirmação central: - não existe um direito à soberania, porque não existe o direito de uns governarem os outros. O que existe, como mero estado de facto, são indivíduos que, por circunstâncias ocasionais, dispõem do poder material de governarem e de se fazerem obedecer. "Anarquista da cátedra", foi como alguém já apelidou Duguit. Por certo que não é injúria demasiada...
Mas Mr. Duguit adita: - não havendo um direito a governar, é necessário, em todo o caso, que os actos dos governantes sejam «jurídicos». Para tanto basta, sem que com isso lhes conquiste nenhuma espécie de direito, que os governantes procedam para com os governados segundo a lei d a solidariedade, alicerce e fonte para Mr. Duguit de toda a regra de direito. Observa um comentador :- «Voilá donc des personnes qui exercent légitimement un pouvoir, que nul autre qu'eux ne posséde, et qui cependant agissent sans droit!»
Tocámos na debilidade das doutrinas de Mr. Duguit, debilidade assustadora, se não fosse tão característica do superficialismo gaulês. Mr. Duguit na parte crítica da sua obra reconhecera a condição social do homem, contra o individualismo nato das instituições copuladas pelo vento da Enciclopédia. Por ai parecia o catedrático de Bordeus aproximar-se dos olvidados mestres do direito natural», - não
[229]
do direito-natural», com razão no indivíduo defendido e articulado pelos avós protestantes de Jean-Jacques e da Revolução, mas do direito-natural, que, baseado na «comunidade», desde S. Tomás até aos doutores seiscentistas da Restauração , tamanho éco encontrou na Europa universitária e culta. Sucede, porém, que a sociabilidade atribuída por Duguit ao homem reduz-se, no final de tudo, a uma estreita e magra manifestação de "solidariedade", - da solidariedade com que se alimenta o anémico sistema do professor bordelês.
Pondera Mr. Duguit no seu livro difundidíssimo, Les transformations du droit public: «On a compris que l'homme ne peut avoir les droits individuels parce qu'il est par nature un être social, que l'homme individuel est une pure création de l'esprit, que la notion de droit suppose la vie sociale, et que si l'homme a des droits il ne peut les tirer que du milieu social et non les lui imposer». Aqui se denuncia a fraqueza irremediável das teorias de Mr. Duguit, tão papagueadas pelos Mandarins da ciência-oficial. A «solidariedade » o u «interdependência social», que o catedrático de Bordeus reclama para raiz da sua doutrina, é, como nota um crítico, "uma espécie de imperativo categórico independente da ordem objectiva dos seres e das coisas». O professor Hauriou, outro «inovador» célebre no âmbito das superstições jurídicas!- acusa Duguit , e com visão certeira, de não distinguir a ordem da desordem ,- o lícito do ilícito. Porque, acentúe-
[230]
se, a solidariedade», invocada pelo tratadista em questão, envolve o repúdio terminante do direito, como inerente à personalidade humana, — como seu atributo inseparável e inalienável. E para reforçar essa enormidade ,- eixo de toda a sua desconjuntada e abstrusa concepção, - Mr. Duguit apresenta-nos um exemplo que considera típico e decisivo, - o de Robinson Crusoé na sua ilha. Sustenta Mr. Duguit que o personagem de Daniel de Foë não tem direitos, porque não vive em sociedade. Donde, anota Louis Bourgés no seu excelente Le romantisme juridique -, - o inferir-se que tudo o que Robinson pratica, pratica-o sem direito, ilegitimamente. O que há de grosseiro e de absurdamente negativo nas teorias de Mr. Duguit aparece-nos bem à vista. Surgindo como impregnado da ortodoxia jurídica da Revolução, em que, ao menos, a liberdade e a vontade, embora como simples expressões metafísicas, se consignam na qualidade de direitos absolutos, para cuja garantia a lei se vota e se cumpre, Mr. Duguit não admite nem direitos públicos, nem direitos privados, — somente admite uma diferença, a diferença entre os actos praticados, conforme eles se originem, ou nos governados, ou nos governantes. De sorte que, se, em harmonia com Mr. Duguit, unicamente existem factos, - e o direito, saído dos factos, só em colectividade se produz, é justo concluir-se com Louis Bourgés que se alguém desembarcasse na ilha de Robinson, podia apossar-se da cabana, das plantações e mais
[231]
bens do solitário, porque Robinson os possuía sem direito, pois os adquirira fora de toda a solidariedade social. O ladrão não seria ladrão, porque Robinson, indivíduo tão somente, por não existir direito formal ou positivo na sua ilha, não possuía nenhum direito natural sobre o fruto do seu trabalho.
Não é nosso fim opôr às teorias de Mr. Duguit as teorias que naturalmente o nosso espírito perfilha e defende. Com o amparo dum expositor fiel, como é o estudo citado de Louis Bourgés, estudo que aconselhamos aos alunos de Direito, - esboçamos uma pequena síntese das ideias propagadas pelo catedrático bordelês através duma bibliografia já considerável. Assinalamos de novo a influência de Duguit no desmantelo crescente das ficções e utopias constitucionalistas. A sua acção sob esse aspecto é comparável à de Bergson , apurando na esfera da filosofia propriamente dita a sua rara penetração psicológica contra o racionalismo. Quando, porém, Mr. Duguit procura substituir o que destrói, isto é, construir, o desastre culmina-se nas proporções apontadas!
Barbaria de pensamento, demissão total da Inteligência, tais são os traços predominantes das soluções com que Mr. Duguit banqueteia, numa evidente mistificação ou numa assustadora incapacidade de raciocínio, a plebe de doutores e pedagogos que andam por esse mundo além a entortar o claro entendimento da mocidade. Passeando-se de cátedra em cátedra como o verbe feito carne do
[232]
Direito, tocou-nos agora a honra de recebermos Mr. Duguit. Desde os professores da Faculdade do Campo de Sant'Ana, trapaceando umas mal digeridas leituras nas horas que lhes deixam livres seus amos e senhores, os barões da rua dos Capelistas, até àquele escritório de Importações & Exportações que gira sob a firma "Augusto de Castro", o incenso subiu em espirais grossas, o lugar-comum escovou-se e engomou-se, mobilizando a pasmaceira indígena para ouvir da boca do professor de Bordéus quaisquer generalizações de publicista sem voo, nasalizadas, porém, com a lentidão de um arcano profundo.
Ora é tempo de sacudirmos admirações deprimentes e curvaturas que nada nos dignificam! Reponham-se os valores, tanto nacionais como estrangeiros, no seu exato significado, promovendo-se um esforço de sincera e desanuviada cultura. Não apedrejamos com isto Mr. Léon Duguit. Só o restituímos à moldura que lhe é própria. De resto, porque culpa-lo? Culpemos antes os analfabetos que sabem ler e que, por acidentes da fortuna, são até às vezes catedráticos de uma Universidade. No fundo, bom blagueur, Mr. Duguit rir-se-ía. Professor de Direito, ninguém, como o mestre de Bordeus, nega o direito. A cena do seu doutoramento seria, pois, para ele, - como foi para nós, - um divertido episódio de Carnaval académico!
1923.
Numa hora em que se encontram em completa revisão as noções de Direito e de «Estado », que tínhamos como fundamentais, não parecerá de certo tema fora de interesse um exame ligeiro às ideias do célebre professor da Universidade de Bordéus, Monsieur Léon Duguit. Visitou Mr. Duguit últimamente Lisboa, conferindo-lhe «borla» de doutor a Faculdade de Direito, instalada ali ao Campo de Sant'Ana, com vários subalternos dos barões da Finança por emproados e anafados catedráticos.
Foi o professor e tratadista francês recebido , desde a imprensa da Moagem à clorótica ciência-oficial, como um astro do pensamento contemporâneo, — daquele pensamento que o senhor Augusto de Castro, director do Diário de Notícias, costuma conviver nas suas frequentes idas ao estrangeiro. Ora mais devagar, excelentíssimos burocratas do Adormecimento-intelectual do País, para quem as glórias de latão e gesso valem como ouro de pura lei!
Ninguém nega a Mr. Duguit qualidades de espírito apreciáveis e até mesmo distintas. A sua obra exerceu uma acção profundamente renovadora no campo dos diversos mitos de que há cem anos as ciências jurídicas infatigavelmente se nutrem. Mas, se essa obra é, dentro de limites, de renovação,
[226]
não é,de modo nenhum, nem uma obra original, nem uma obra criadora.Numa época, como a nossa, em que a necessidade construtiva nos exige certezas e dados firmes em que nos apoiarmos para mais fortemente resistirmos à crise mental e social, aberta pela falência de quanto ideologicamente se herdou do século findo, — numa época, repito, como a nossa, carece-se de se ir mais adiante do que Mr. Duguit foi, não basta apenas crítica, exige-se-nos esforço de maior monta e amplitude.
Claro que as inteligências perturbadas pelos inúteis kantismos em que se emaranham, como numa selva escura, tanto o conceito de "Direito" como o conceito de "Estado", aproveitaram largamente os caminhos, rasgados com notável desembaraço pelo professor Duguit. Assim, como ponto de partida, não se escusará à obra do professor Duguit o valor excitante que ela possui. De resto, chefe da chamada "escola realista",— eis como adjectivam a corrente a que Mr. Duguit preside os que amam as classificações e as nomenclaturas, — Mr. Duguit estruturalmente não fez mais que glosar e desenvolver, concentrando-o na esfera da sua especialidade, o pensamento de Augusto Comte sobre a insubsistência dos dogmas políticos, saídos do individualismo de 89.
Com efeito, a Mr. Duguit deve-se a excepcional coragem de haver expulsado das suas lições e dos seus livros a ficção arcaica da soberania nacional , - fantasma lírico-explosivo, que enfeitiçou diabolicamente a nossa pobre civilização europeia. Res-
[227]
tringindo-se a um critério exclusivamente objectivo, Mr. Duguit iniciou desta forma a reacção contra as velhas concepções românticas, fixadas, como em textos sagrados, no tipo das Constituições escritas. Para ele,- para o arguto professor e tratadista francês, nos Estados , dêem-lhe as voltas que lhe derem, invoquem-se as razões que se invocarem, só houve e só haverá «governantes» e «governados», acrescentando em seguida que os actos dos governantes são obrigatórios para os governados , independentemente da aceitação dos segundos, logo que os referidos actos correspondam às necessidades colectivas e à natureza própria do Poder . Tais são os fundamentos das teorias do Mr. Duguit.
Contribui sensivelmente semelhante doutrina para a restauração no ensino jurídico de duas ideias-essenciais: a do objecto do direito e a da função do direito. Mas no seu pretenso realismo Mr. Duguit, ou não pôde abranger inteiramente toda a verdade do problema, ou não se animou a procurar-lhe o sentido exacto. Envolvendo na mesma excomunhão os princípios inaugurados pela Revolução-Francesa e aqueles em que assentava a sociedade tradicional, Mr. Léon Duguit recusa-se a admitir a existência dum direito soberano: - o direito que a boa ortodoxia democrática confere aos representantes da «vontade popular», engendrando a incapacidade despótica dos Parlamentos, equivale para Mr. Duguit ao direito das antigas monarquias, em que o Estado se considerava bem patrimonial do monarca. Não analisare-
[228]
- mos agora o que, debaixo do aspecto histórico, as doutrinas de Mr. Duguit nos oferecem de erróneo, pelo que respeita à equivalência apontada. Mas insistimos na sua afirmação central: - não existe um direito à soberania, porque não existe o direito de uns governarem os outros. O que existe, como mero estado de facto, são indivíduos que, por circunstâncias ocasionais, dispõem do poder material de governarem e de se fazerem obedecer. "Anarquista da cátedra", foi como alguém já apelidou Duguit. Por certo que não é injúria demasiada...
Mas Mr. Duguit adita: - não havendo um direito a governar, é necessário, em todo o caso, que os actos dos governantes sejam «jurídicos». Para tanto basta, sem que com isso lhes conquiste nenhuma espécie de direito, que os governantes procedam para com os governados segundo a lei d a solidariedade, alicerce e fonte para Mr. Duguit de toda a regra de direito. Observa um comentador :- «Voilá donc des personnes qui exercent légitimement un pouvoir, que nul autre qu'eux ne posséde, et qui cependant agissent sans droit!»
Tocámos na debilidade das doutrinas de Mr. Duguit, debilidade assustadora, se não fosse tão característica do superficialismo gaulês. Mr. Duguit na parte crítica da sua obra reconhecera a condição social do homem, contra o individualismo nato das instituições copuladas pelo vento da Enciclopédia. Por ai parecia o catedrático de Bordeus aproximar-se dos olvidados mestres do direito natural», - não
[229]
do direito-natural», com razão no indivíduo defendido e articulado pelos avós protestantes de Jean-Jacques e da Revolução, mas do direito-natural, que, baseado na «comunidade», desde S. Tomás até aos doutores seiscentistas da Restauração , tamanho éco encontrou na Europa universitária e culta. Sucede, porém, que a sociabilidade atribuída por Duguit ao homem reduz-se, no final de tudo, a uma estreita e magra manifestação de "solidariedade", - da solidariedade com que se alimenta o anémico sistema do professor bordelês.
Pondera Mr. Duguit no seu livro difundidíssimo, Les transformations du droit public: «On a compris que l'homme ne peut avoir les droits individuels parce qu'il est par nature un être social, que l'homme individuel est une pure création de l'esprit, que la notion de droit suppose la vie sociale, et que si l'homme a des droits il ne peut les tirer que du milieu social et non les lui imposer». Aqui se denuncia a fraqueza irremediável das teorias de Mr. Duguit, tão papagueadas pelos Mandarins da ciência-oficial. A «solidariedade » o u «interdependência social», que o catedrático de Bordeus reclama para raiz da sua doutrina, é, como nota um crítico, "uma espécie de imperativo categórico independente da ordem objectiva dos seres e das coisas». O professor Hauriou, outro «inovador» célebre no âmbito das superstições jurídicas!- acusa Duguit , e com visão certeira, de não distinguir a ordem da desordem ,- o lícito do ilícito. Porque, acentúe-
[230]
se, a solidariedade», invocada pelo tratadista em questão, envolve o repúdio terminante do direito, como inerente à personalidade humana, — como seu atributo inseparável e inalienável. E para reforçar essa enormidade ,- eixo de toda a sua desconjuntada e abstrusa concepção, - Mr. Duguit apresenta-nos um exemplo que considera típico e decisivo, - o de Robinson Crusoé na sua ilha. Sustenta Mr. Duguit que o personagem de Daniel de Foë não tem direitos, porque não vive em sociedade. Donde, anota Louis Bourgés no seu excelente Le romantisme juridique -, - o inferir-se que tudo o que Robinson pratica, pratica-o sem direito, ilegitimamente. O que há de grosseiro e de absurdamente negativo nas teorias de Mr. Duguit aparece-nos bem à vista. Surgindo como impregnado da ortodoxia jurídica da Revolução, em que, ao menos, a liberdade e a vontade, embora como simples expressões metafísicas, se consignam na qualidade de direitos absolutos, para cuja garantia a lei se vota e se cumpre, Mr. Duguit não admite nem direitos públicos, nem direitos privados, — somente admite uma diferença, a diferença entre os actos praticados, conforme eles se originem, ou nos governados, ou nos governantes. De sorte que, se, em harmonia com Mr. Duguit, unicamente existem factos, - e o direito, saído dos factos, só em colectividade se produz, é justo concluir-se com Louis Bourgés que se alguém desembarcasse na ilha de Robinson, podia apossar-se da cabana, das plantações e mais
[231]
bens do solitário, porque Robinson os possuía sem direito, pois os adquirira fora de toda a solidariedade social. O ladrão não seria ladrão, porque Robinson, indivíduo tão somente, por não existir direito formal ou positivo na sua ilha, não possuía nenhum direito natural sobre o fruto do seu trabalho.
Não é nosso fim opôr às teorias de Mr. Duguit as teorias que naturalmente o nosso espírito perfilha e defende. Com o amparo dum expositor fiel, como é o estudo citado de Louis Bourgés, estudo que aconselhamos aos alunos de Direito, - esboçamos uma pequena síntese das ideias propagadas pelo catedrático bordelês através duma bibliografia já considerável. Assinalamos de novo a influência de Duguit no desmantelo crescente das ficções e utopias constitucionalistas. A sua acção sob esse aspecto é comparável à de Bergson , apurando na esfera da filosofia propriamente dita a sua rara penetração psicológica contra o racionalismo. Quando, porém, Mr. Duguit procura substituir o que destrói, isto é, construir, o desastre culmina-se nas proporções apontadas!
Barbaria de pensamento, demissão total da Inteligência, tais são os traços predominantes das soluções com que Mr. Duguit banqueteia, numa evidente mistificação ou numa assustadora incapacidade de raciocínio, a plebe de doutores e pedagogos que andam por esse mundo além a entortar o claro entendimento da mocidade. Passeando-se de cátedra em cátedra como o verbe feito carne do
[232]
Direito, tocou-nos agora a honra de recebermos Mr. Duguit. Desde os professores da Faculdade do Campo de Sant'Ana, trapaceando umas mal digeridas leituras nas horas que lhes deixam livres seus amos e senhores, os barões da rua dos Capelistas, até àquele escritório de Importações & Exportações que gira sob a firma "Augusto de Castro", o incenso subiu em espirais grossas, o lugar-comum escovou-se e engomou-se, mobilizando a pasmaceira indígena para ouvir da boca do professor de Bordéus quaisquer generalizações de publicista sem voo, nasalizadas, porém, com a lentidão de um arcano profundo.
Ora é tempo de sacudirmos admirações deprimentes e curvaturas que nada nos dignificam! Reponham-se os valores, tanto nacionais como estrangeiros, no seu exato significado, promovendo-se um esforço de sincera e desanuviada cultura. Não apedrejamos com isto Mr. Léon Duguit. Só o restituímos à moldura que lhe é própria. De resto, porque culpa-lo? Culpemos antes os analfabetos que sabem ler e que, por acidentes da fortuna, são até às vezes catedráticos de uma Universidade. No fundo, bom blagueur, Mr. Duguit rir-se-ía. Professor de Direito, ninguém, como o mestre de Bordeus, nega o direito. A cena do seu doutoramento seria, pois, para ele, - como foi para nós, - um divertido episódio de Carnaval académico!
1923.