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A dor de Antero

António Sardinha
Quando na história crítica das ideias portuguesas se procurarem as raízes filosóficas do movimento integralista, Antero de Quental há-de aparecer, sem surpresa para as pessoas cultas, como um dos nossos precursores mais próximos e mais directos. A figura mental de Antero não está ainda nem estudada, nem compreendida. Define-se através de uma vaga nebulosidade romântica, em que predominam, como nota psicológica acentuada, as simpatias revolucionárias do poeta. É certo que Antero de Quental vestiu a blusa azul dos tipógrafos e teve entendimentos sinceros com vários agentes da Internacional. Mas não esqueçamos que as inclinações socialistas lhe vinham da influência que a leitura de Proudhon, como mestre preferido, lhe gravara no espírito. É por aqui que a corrente integralista começa a encontrá-lo na jornada das suas origens. O carácter semi-orgânico das doutrinas de Proudhon, inimigo intransigente da Revolução, completou-se depois com a meditação da obra de Lassalle. E eu não cultivo o paradoxo se afirmar, antes de mais nada, que a política de poder pessoal por onde tão energicamente el-rei D. Carlos se decidiu a encaminhar o destino do nosso país, foi, por intermédio de Oliveira Martins, talvez da inspiração remota de Antero de Quental.
​
Para conhecermos Antero precisamos de conhecer a sua Carta autobiográfica a Wilhelm Storck, tradutor alemão de parte dos Sonetos. De mãos na consciência e num cuidadoso exame da sua vida interior, Antero confessa-se aí «discípulo da Alemanha filosófica poética». E é interessante ouvi-lo traçar com incisiva verdade a crise que o seu pensamento atravessou. «Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional», escreve ele, «caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida.» Coincide esta passagem da Carta a Wilhelm Storck com outra de uma carta a Teófilo Braga – aquela em que Antero, bem mais de dez anos atrás lhe dava conta, com entusiasmo, do plano que presidira às conferências célebres do Casino. «Seremos, em religião, pelo sentimento criador do coração humano, contra os mitos doutrinais das teologias – dizia Antero por essa altura; seremos, em política, pelo governo do povo pelo povo; em sociologia, pela emancipação do trabalho; em literatura e arte, pelo fim social e civilizador da arte e literatura, combatendo as tendências egoístas e esterilizadoras que hoje predominam.»

Do tempo da conferência do Casino é o opúsculo intitulado Discurso sobre as causas da decadência dos povos peninsulares nos séculos XVII e XVIII. «Embora pisasse um terreno mais sólido, o terreno da história, declara Antero a Storck, resente-se ainda muito da influência das ideias políticas preconcebidas, da crítica histórica com tendências.» Antero abjura assim da sugestão abstrusa de Michelet e de Quinet nas generalizações entusiásticas da sua mocidade. Sentira-o Antero bem nitidamente, não sabendo conciliar a sua preferência por estes escritores com o germanismo estrutural da parte mais consciente da sua cultura. «Como acomodava eu este culto pelas doutrinas do apologista do Estado prussiano (Hegel), com o radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon?» O que parecia incongruente a Antero, o próprio futuro lho explicaria, quando, aconselhando Oliveira Martins a aceitar o facto dinástico, reconhecesse, como Mommsen também reconhecera e o ensinara a Bismarck, que só os regimes hereditários, pela força indiscutível da sua autoridade, podem limitar os exageros da plutocracia e conceder às camadas pobres as reparações económicas necessárias. E agora a já desenhada orientação monárquica de muitos dos sindicalistas franceses responderia à interrogação perplexa de Antero, se ele em sua própria vida lhe não tivesse achado a resposta.

Mas eu apontei como decisiva no espírito de Antero a influência do filosofismo semi-orgânico de Proudhon. O primeiro folheto de Antero, datado de 1864, demonstra-o claramente e dá-nos a nós, integralistas, o prazer de possuirmos na defesa do Syllabus um exemplo bastante anterior ao de Charles Maurras. Charles Maurras, sem ser um crente, defende, é certo, o admirável documento pontifício como um acto de sabedoria eterna, de cujo regimento e guarda depende a boa saúde da sociedade. Antero, também sem ser um crente, não defendia o Syllabus, rigorosamente. Compreendia-o como um dever respeitável da Igreja, incompatibilizada com o século e destinada a desaparecer, vítima dessa incompatibilidade, nas nobremente, em harmonia com o seu património moral. O folheto, bastante raro, intitulava-se Defesa da Carta Encíclica de S. S. Pio IX contra a chamada opinião liberal. «É um protesto contra a falta de lógica com que as folhas liberais atacavam o Syllabus – apressa-se a elucidar Antero –, declarando-se ao mesmo tempo fiéis católicos». O autor, prossegue ele, «glorificando o Pontífice pela beleza da sua atitude intransigente em face do século, via nessa intransigência uma lei histórica, rezava respeitosamente um De profundis sobre a Igreja condenada pela mesma grandeza de sua instituição a cair inteira mas não a render-se, e atacava a hipocrisia dos jornais liberais». Hoje Antero teria que verberar os que procuram adaptar a Igreja à Democracia [= tirania dos partidos], e ainda, em virtude de Proudhon, seu mestre, o qual se não fartou de afirmar que a questão entre a Igreja e a Revolução não admite evasivas.

À primeira vista, Antero surge-nos como um sacrificado pelo espírito de análise e no seu pessimismo filosófico quase de antemão se contém o desfecho trágico que o levou ao suicídio. Não é outra, na verdade, a opinião corrente. Mas quem sobre o precioso volume Cartas de Antero de Quental se debruçar para a estranha psicologia do poeta, há-de encontrar nele, bem pelo contrário, uma inteligência sedenta de certezas e de modo nenhum disposta à solução desgraçada, com que por suas próprias mãos se atirou para a sepultura. Primeiro que ninguém, Antero repele a qualificação de budista, que no prefácio dos Sonetos Oliveira Martins lhe aplica (Carta autobiográfica). E em mais de uma carta nós o encontramos filiando o desalento contemporâneo nos excessos do criticismo, no intelectualismo agudo de uma época, que no caso doloroso de Amiel se encarnava dolorosamente.

«Diz algures o Renan que na procissão da humanidade o filósofo é que vai na frente, e depois o homem de acção. Eu não penso assim, e mais sou filósofo e parece-me que o Renan peca, como tanta gente boa (é uma doença do século) por aquilo a que o Lange chamou o «excesso do princípio da inteligência», comenta o poeta. «Quem vai na frente é o santo, filósofo a seu modo, como os que o são, e homem de acção por excelência, por isso que a sua acção é toda no sentido do bem. De resto (e era isso o que eu quisera dizer ao Renan), os que fundaram as coisas vitais da sociedade tinham muito mais de santos, quando o não eram completamente, do que de filósofos.»

Assim se exprime Antero, em data de 14 de Novembro de 1886, a Jaime de Magalhães Lima. É um aspecto inesperado que se nos revela, um aspecto que torna Antero, contra a ideia vulgarizada a seu respeito, um pensador encantado pelo gosto da Acção. Oiçamo-lo ainda combater com aspereza os abusos do racionalismo e apresentar-se francamente como um precursor das modernas filosofias da intuição. [Nota: Já no meu livro anterior, Ao princípio era o Verbo, assinalei a circunstância de ter sido eu, antes do senhor Leonardo Coimbra, o primeiro a afirmar este lado interessante da mentalidade de Antero. Bem sei que é a história do ovo de Colombo. Mas há que registá-lo por isso mesmo! ] «Não me agradou o livro de Nordau», comunica ele de Vila do Conde a Oliveira Martins. «Tantas ilusões, tanto optimismo e tão pouco espírito crítico, num sujeito que se apresenta como o representante da razão científica, em face das mentiras da sociedade actual, chegaram a irritar-me. De resto, parece-me homem muito moço, e nesse caso tem alguma desculpa, mas sempre queria dizer ao sr. Nordau para seu ensino, que não está tudo em se saber cientificamente que uma coisa é errónea, para se condenar e sobretudo para se afirmar que pode ser substituída. Para isso era necessário que a mola real do homem e da sociedade fosse a razão teórica e a sua preocupação principal a verdade. Mas a verdade humana não é a verdade científica. Os científicos não são capazes de compreender isto, exactamente como os ideólogos do século passado (com quem se parecem muito e julgo que para pior); e como o próprio de tais espíritos estreitos e sistemáticos é a presunção e o optimismo atrevido, a sua influência será ainda mais nociva do que a dos ideólogos, que ao menos partiam de princípios psicológicos. Decididamente a inteligência humana é fraca e acanhada demais para poder compreender, dominar e governar coisa tão complexa como é o homem. O instinto, afinal, valia muito mais para esse fim. Infelizmente, o período do instinto passou, e é nisso justamente que está a crise: substituir, na direcção das coisas humanas, o instinto, que era suficiente, pela inteligência que parece insuficientíssima. Não vejo saída a este beco escuro.»
​
Por longa que fosse a transcrição, ressalta dela um Antero inteiramente libertado do lívido sonho nirvanesco, que lhe embacia a memória. Crítico das ilusões da inteligência e diagnosticando o mal do seu tempo por uma confiança sem limites na ciência, Antero, ao inverso do que sucedeu com Renan, do que sucedeu com Amiel, do que sucedeu com quantos, numa palavra, sofreram o conflito da sua sensibilidade latina com a sua cultura germânica, não é de modo nenhum um divorciado da Acção, nem o ouvimos denunciar «na mortal fadiga de viver a vaidade de todo o esforço humano». São assombrosas as suas páginas sobre o pessimismo, sobre o seu significado de experiência psíquica, que leva o homem dos sentidos à posse do «homem interior». Antero, em uma das suas cartas, manda crer – e crer inabalavelmente. «É bom e até necessário passar pelo Pessimismo, mas não se deve ficar nele por muito tempo. O Pessimismo não é um ponto de chegada, mas um caminho. É a síntese das negações na esfera da natureza, a luz implacável caída sobre o acervo de ilusões das coisas naturais. Mas, para além da natureza, ou, se se quiser, escondido, envolvido no mais íntimo dela, está o mundo moral, que é o verdadeiro mundo, ao qual a harmonia, a liberdade e o optimismo são tão inerentes como ao outro a luta cega, a fatalidade e o pessimismo.» Antero aproximava-se do conceito místico da Igreja sobre a tristeza das coisas da existência. Nós vemos que o próprio misticismo se lhe manifestava como
o único norte verdadeiro do homem.
Nós vemos também como o Cristianismo lhe merecia uma veneração recolhida, e como que saudosa, de crença desfeita. Dominado, porém, pelos preconceitos evolucionistas, de que o seu anti-intelectualismo se não conseguira desembaraçar, Antero julgava-o um facto do passado, uma admirável ideia morta. Não olvidemos que Antero é filho de uma época de transição – de uma era de crise, que ele apreendeu e viveu como nenhum dos mestres apontados por Bourget nos seus Essais de psychologie contemporaine.

Camões na Renascença, o Padre António Vieira em Seiscentos, José Agostinho de Macedo na agonia da sociedade antiga, são a representação universal do nosso génio na Epopeia, na Política e no Panfleto. Juntemos-lhe agora Antero na Filosofia. Sem o perigo de tombarmos em generalizações apressadas, Antero é um precursor da inquietação contemporânea, adivinhando, preconizando mesmo, a aliança do Pensamento com a Acção – aliança que Taine repelia por contraditória e que o obrigou a escrever aqueles seus períodos memorandos a Paul Bourget, a propósito de Le disciple: «Eu não concluo senão uma coisa, e é que o gosto mudou, é que a minha geração desapareceu, e que a mim nada mais me resta senão ir enterrar-me no meu buraco da Saboia. Talvez o caminho por onde tomais, essa vossa ideia do incognoscível, de um nomeno, vos conduza para um porto místico, para uma forma de cristianismo...» O que deixava Taine suspenso, Antero o via com uma clareza formidável. Por isso, o que na sua existência se afigura aos outros como um passo coerente e lógico: o seu fim desgraçado, é o que, realmente, corresponde menos às profundas tendências do seu espírito, agitado, sim, mas famintamente ansioso de verdade absoluta!
* 
Pois detalhemos com mais precisão o carácter antirracionalista e antidemocrático da filosofia de Antero. O exame da sua correspondência entrega-nos a chave do drama interior, em que durante toda a sua vida o Poeta se debateu. Antero era por temperamento um homem destinado para a acção. Faltou-lhe como regra de conduta uma síntese em que a sua alma se repousasse e de que a sua vontade saísse resoluta e ritmada. Eram as consequências de um período de criticismo em que a estiagem dos caracteres abafava e em que abafava por completo a falta de finalidade na existência. Eça toca esse ponto nas suas páginas admiráveis acerca de Antero. Foi na última vez em que se encontraram – uma noite de Primavera e luar, como aquela outra em que já longinquamente Eça conhecera Antero em Coimbra, improvisando, de olhos para o alto, no Largo da Feira – magnífico fundo! –, junto à escadaria da Sé-Nova.

Conta Eça na sua prosa macia, sem ossos nem cartilagens: «Assim, viemos a conversar desta materialidade dos tempos, e estridor das cidades, e exageração da actividade cerebral, e aspereza das democracias [= tirania de oligarquias], que começam a empurrar tantos seres sensíveis, ou mais imaginativos, para a quietação religiosa e para o deserto moral. Antero pensava que uma forte reacção espiritualista e afectiva se seguiria à dura materialidade deste duro século utilitário e mercenário... Antero pensava-o. E porque o pensava, bem claramente nos aponta esse caminho, como o único, em cartas a mais de um amigo.

É ainda a Wilhelm Storck que Antero se confessa, com motivo na segunda edição das suas Odes Modernas: «Da luta que então combati, durante 5 ou 6 anos, com o meu próprio pensamento e o meu próprio sentimento que me arrastavam para um pessimismo vácuo e para o desespero, dão testemunho, além de muitas poesias que depois destruí (subsistindo apenas as que o Oliveira Martins publicou na sua introdução aos Sonetos) as composições que perfazem a secção 4.ª (de 1874 a 80) do meu livrinho. Conhece-as V. Ex.ª, não preciso comentá-las. Direi somente que esta evolução do pensamento correspondia a uma evolução do sentimento. O naturalismo, ainda o mais elevado e mais harmónico, ainda o de um Goethe ou de um Hegel, não tem solução verdadeira, deixa a consciência suspensa, o sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e só aparente, e no fundo não é mais do que um paganismo intelectual e requintado. «Ora eu debatia-me desesperadamente, sem poder sair do naturalismo, dentro do qual nascera para a inteligência e me desenvolvera.» E Antero prossegue: «Era a minha atmosfera, e todavia sentia me asfixiar dentro dela. O Naturalismo, na sua forma empírica científica, é o struggle-for-life, o horror de uma luta universal no meio da cegueira universal; na sua forma transcendente é uma dialéctica gelada e inerte, ou um epicurismo egoistamente contemplativo. Eram estas as consequências que eu via sair da doutrina com que me criara, da minha alma mater, agora que a interrogava com a seriedade e a energia de quem, antes de morrer, quer ao menos saber para que veio ao mundo.»

Antero mostra-se-nos uma alma inquieta, a quem não satisfaz a sujeição de Taine à fatalidade do Universo, nem o cepticismo de Renan, sibaritando docemente à sombra do horto de Epicuro. Antero é antes um afirmativo, a quem o falso intelectualismo da sua época punha em conflito com as predileções mais íntimas da sua personalidade. Antero não cria na Ciência, que foi a superstição amada de tantas inteligências do seu tempo. Antero vai até ao ponto de repelir o Positivismo, nas suas soluções filosóficas, como insuficiente e inexpressivo. Já vimos que, a respeito de Nordau, Antero escrevia a Oliveira Martins «que não está tudo em se saber cientificamente que uma coisa é errónea, para se condenar e sobre tudo para se afirmar que pode ser substituída». Quanto ao Positivismo, já em 1868, com o seu pensamento ainda por equacionar, Antero se dirigia nestes termos ao seu companheiro e amigo de toda a hora, Germano Vieira Meireles: «Mas tu és Positivista, meu pobre Germano. Pobre Filosofia essa, e fraco apoio! Quem me dera que tu pudesses crer! Esta orgulhosa razão é preciso humilhá-la num acto de sentimento íntimo; é preciso também chorar, e amar aquilo mesmo que nos faz chorar. Então ouve-se em nós uma voz que não é da razão, menos forte ou sonora, mas mais pura e, sobretudo, mais consoladora.»

A tendência de Antero para uma conclusão espiritualista nas incertezas da sua inteligência transparece, afinal, da maioria das suas cartas. O naturalismo, em triunfo no tempo de Antero, não lhe arranca senão a mais exacerbada das repulsões. Eis como Antero se expressa a Jaime de Magalhães Lima em 14 de Novembro de 1886: «O tom dos seus artigos na Província e muitas frases deles tinham-me já indicado o seu estado de espírito; via-o pensar por si, mas receava que a sua evolução parasse na fase negativa e ficasse pessimista, isto é, ficasse a meio caminho. Felizmente não é assim: e uma vez que galgou esse barranco, creia que há-de ir até ao final. O pessimismo não é um ponto de chegada, mas um caminho. É preciso passar por ele, mas justamente para sair dele. O pessimismo é a redução ao absurdo do naturalismo e das mil ilusões filhas dele, ou para melhor dizer (porque não se trata de sistemas simplesmente), filhas do espírito humano na sua fase naturalista. Mas, sobre estas ruínas acumuladas pelo pessimismo o que triunfa não é a negação, o que resta não é o vácuo.» E Antero, desenvolvendo com firmeza as suas vistas críticas, acrescenta imediatamente: «O que triunfa é o que fica, é aquilo que está para além do naturalismo, aquilo que no homem não é já filho da natureza, mas superior a ela e autónomo: a vida da consciência e a sua mais alta expressão, o sentimento moral.»

Como depoimento para a compreensão definitiva do pensamento de Antero, seria de maior interesse a reprodução completa da carta, que deixamos exemplificada nos trechos transcritos. Verificamos por eles que Antero se libertara da baixa superstição naturalista, que levava Taine a declarar, numa submissão cega à fatalidade das leis universais, que «o vício e a virtude são produtos como o vitríolo e como o açúcar». Antero, pelo contrário, embora vítima de tanto erro filosófico, conseguia «chegar teoricamente até aquela profundidade de compreensão do homem interior, como eles diziam, a que os místicos chegaram. Antero não se coloca, é claro, num terreno de pura ortodoxia religiosa. «Creio que a obra destes séculos mais próximos será – declara ele a Oliveira Martins – não destruir o Cristianismo (quero dizer, o espírito cristão, o ponto de vista de transcendência metafísica e moral), mas completá-lo com a ciência da realidade». «A religião do futuro – continua Antero –, de que nos fala Hartmann, não pode ser outra, e não julgo necessário ir buscar o Budismo, quando o que nele há de melhor se encontra no Cristianismo e com uma forma sentimental mais pura, mais humana.»

O erro modernista está contido neste como que evolucionismo religioso. Contudo, da parte de Antero, afastado do grémio da Igreja, revela-nos uma certa penetração católica na maneira de encarar a superioridade moral e metafísica do Catolicismo, como já antes, na esteira de Proudhon, a Igreja lhe valera palavras de respeito profundo pela grandeza do seu papel civilizador através da história. Mas Antero chega mais longe. Chega até ao limiar do conceito católico da Santidade, no seu desejo incessante de aquietamento espiritual. «Não compreendo, pois, porque emprega duas vezes a palavra resignação, quisera que a riscasse do vocabulário dos seus sentimentos, repara ele, dirigindo-se ainda a Jaime de Magalhães Lima. A transição do egoísmo idealista e da falsa liberdade, para a realidade moral e a verdadeira liberdade, é um progresso, e até em meu conceito, o máximo progresso: não pode ser pois matéria de resignação; antes de exultação... Entrou, meu caro amigo, num caminho em que todos os dias irá sentindo o chão mais firme debaixo dos pés, mais lúcido o pensamento, mais serena a consciência. Vivendo cada vez mais para os outros, sentindo morrer em cada dia dentro de si mais uma parcela do eu egoísta que tanto nos ilude, tanto nos faz sofrer e errar, irá entrando realmente naquela região da impersonalidade, que é a verdadeira beatitude.» [Nota: Se, como notámos, Antero, na sua crítica aos excessos do intelectualismo, foi um precursor das filosofias da intuição, por essa ideia activa da impersonalidade e por mais de um conceito, frequentes no seu espírito, aproximou-se singularmente, na sua tendência instintiva para a síntese católica, da filosofia tomista, da antiga, mas sempre remoçada filosofia do Ser. No seu magnífico volume Le sens commun, 3.ª edição, escreve, a p. 333, o Padre Garrigou-Lagrange, dominicano e professor do "Angélico" em Roma: "Les philosophes ont entrevu, mais les saints surtout ont compris que le plein développement de notre pauvre personnalité consiste à la perdre en quelque sorte en celle de Dieu, qui seul possède la personnalité au sens parfait de ce mot, car seul il est absolument indépendant dans son être et dans son action." (1924)]

Ora, na afirmação de impersonalidade, como sendo a verdadeira beatitude, é que reside o equívoco dos que supõem Antero inclinado ao Budismo. Na impersonalidade filosófica de Antero reside, porém, toda a libertação do místico, que se elevou acima dos condicionalismos da vida pela sua inteira identificação com o princípio divino. Não é outra a ânsia arrebatadora que enche de asas invencíveis as palavras da Imitação. Antero o adivinhou soberanamente, ao murmurar com o mais ungido dos recolhimentos no soneto célebre: «Na mão de Deus, na sua mão direita, / Descansou, afinal, meu coração.»

Eis como Antero se emancipa das cadeias duríssimas do materialismo e rasgadamente assevera a Wilhelm Storck que «a liberdade, em despeito do determinismo inflexível da natureza, não é uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na santidade. Para o santo, resume Antero, o mundo deixou de ser um cárcere, ele é, pelo contrário, o senhor do mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só por ele é que o Universo sabe para que existe: só ele realiza o fim do Universo. Não precisamos de mais nada para que, em boa crítica, fique definida pelo próprio Antero a significação que ligava à impersonalidade como chave de todas as bem-aventuranças e ainda o erro fundamental que o aponta como prostrado diante das fumaradas lívidas do Nirvana.

Tão perto do pensamento católico, Antero, que repelia a pesada herança do naturalismo, embora a utopia evolucionista lhe toldasse a posse de uma síntese que o reconciliasse consigo mesmo, não podia também participar do erro individualista do seu tempo. Ainda aqui Proudhon foi seu mestre seguro. Pela condenação do individualismo revolucionário, Antero chegara ao reconhecimento de superioridade do Catolicismo sobre a Reforma, conquanto muitas vezes se intitulasse a si próprio confessor in Ecclesia Revolutionis. O Catolicismo, em desacordo com o século, teria para Antero que desaparecer, mas isso não evitava que o reconhecesse como um facto histórico de excepcional grandeza. Antero como tal o encara, preocupado sempre com os problemas eternos, que são o eixo do drama moral, em que a sua alma constantemente se debate. Havia nele a necessidade ardente da afirmação. Afirmativo se nos mostra na sua filosofia, como afirmativo se nos mostra também na sua ignorada intervenção política. Caíra sobre ele o mal da inteligência, que tão bem diagnosticara na sua análise ao superficialismo da obra de Renan. Padeceu, pois, a contradição pavorosa de uma época, que o empurrava para a fatalidade resignada do cepticismo, com as altas impulsões do seu temperamento, que não se queria repousar senão à sombra das certezas absolutas.

É tempo de arrancar Antero à visão suicida, em que é costume emoldurá-lo. Labora et noli contristari! – lembrava ele a Jaime de Magalhães Lima, repetindo a palavra de São Bento ao noviço impaciente. E é Antero mesmo, filósofo antecipado da Acção, quem se encarrega de, numa ligeira passagem, se mostrar como uma existência cheia de um profundo sentido interior. Ele não o
procurava, nem acreditava no Nada. Porque não se podia esperar que um antigo hegeliano, e que depois leu Leibniz, pudesse nunca, como diz algures o mesmo Leibniz, donner dans le vide et les atomes. Esta confidência de Antero vale para nós preciosamente! Marca o caminho ascensional da sua aspiração, e eu não sei de epígrafe melhor para se lhe estampar na portada do seu livro de Sonetos. É assim, à claridade do seu testemunho, que o Poeta precisa de ser estudado e amado, tão corrompido como anda em impressionismos fáceis de ocasião, que é como em Portugal, infelizmente, usa praticar-se a crítica literária. Um Antero diverso nos surge da sua correspondência. É esse o Antero que viveu e sofreu para que os homens comungassem mais uma parcela de verdade e houvesse para a secura e para a míngua dos corações uma outra água, que não a dos poços estagnados do Deserto!



[ negritos acrescentados ] 
​

António Sardinha, in Ao ritmo da Ampulheta - Crítica e Doutrina, 1925, pp. 187-205.
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​​...nós não levantaríamos nem o dedo mínimo, se salvar Portugal fosse salvar o conúbio apertado de plutocratas e arrivistas em que para nós se resumem, à luz da perfeita justiça, as "esquerdas" e as "direitas"!

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- António Sardinha (1887-1925) - 
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