A Teoria das Cortes Gerais
António Sardinha
Mais que simples teoria da representação nacional, este trabalho de António Sardinha é uma teoria do Povo Português. - Henrique Barrilaro Ruas
Nota prévia à 2ª edição
Enquanto se não reeditam as, ainda hoje indispensáveis, Memórias para a História e Teoria das Cortes Gerais, do Visconde de Santarém, resolveu a Biblioteca do Pensamento Politico lançar em volume autónomo o monumental Prefácio com que António Sardinha valorizou a 2. edição dessa obra clássica.
Escrito no tumulto de uma vida política apaixonante — e, em parte, na amargura do exílio —, o presente ensaio de interpretação histórica está longe da pureza linear de certas páginas de Sardinha. Nele se reflectem, porém, a profundidade e a riqueza da inteligência do A., que de muitos modos foca o tema das Cortes e amplamente o ultrapassa, integrando-o no todo histórico que o Integralismo Lusitano meditou e pretendeu restaurar.
Mais que simples teoria da representação nacional, este trabalho de António Sardinha é uma teoria do Povo Português.
O primeiro elemento dessa teoria é o personalismo: «Reconhecida a independência da personalidade humana, sobre esse traço espiritual a sociedade se restaurará» (pág. 26).
Bem distinto do individualismo, o personalismo integralista justifica e promove as formas sociais espontâneas. Antes de tudo, a família: «A família, desenvolvendo-se como célula fundamental, oferece na sua composição intima a natureza do Estado» (pág. 29). Em seguida, as outras realidades pré-estatais: «O mais rigoroso experimentalismo sociológico, levando-nos indutivamente do Indivíduo à Família, da Família à Corporação e ao Município, do Município à Província (...)» (pág. 228).
A todas essas comunidades António Sardinha reconhece o direito fundamental de autogoverno: «Pela soberania social, são autónomos os Municípios, as Províncias, as Corporações» (pág. 201).
E como garantia desses direitos que Sardinha justifica o Estado: «Anteriores dos direitos circunscritos do Estado, há os direitos da sociedade, mais extensos e mais profundos, para cuja garantia o Estado exclusivamente se constitui» (pág. 42).
No caso concreto de Portugal, é claríssimo o pensamento de António Sardinha: «A nacionalidade surge duma rede miúda de beetrias e outras agremiações agrárias» (pág. 73); «Portugal tecera-se duma federação instintiva de agrupamentos naturais» (pág. 103); e ainda: «Pela federação das nossas confrarias agrícolas Portugal se constituiu» (pág. 97).
Nesse longo processo histórico, foi essencial o papel da Realeza. «Função unificadora» (pág. 40); «órgão essencial do Estado» (pág. 61); «órgão coordenador e necessário» (pág. 73); «elemento estático, traduzindo finalidade e continuidade» (pág. 79); «energia consciente» (pág. 40) — o Rei é definido pela natureza espiritual do poder: «O juramento do Rei, incidindo sobre os privilégios e as isenções do seu povo, conferia-lhe a legitimidade e com ela a soberania» (pág. 118); «era legítima toda a dinastia que não destruísse o governo da "república" para cuja garantia os reis se criavam e ordenavam» (págs. 120-1).
Na concepção integralista, o poder real, longe de ser absoluto, é um poder «complementário» (pág. 203). «Simples agente da coordenação governativa, organicamente mais dotado e mais provado de que qualquer outro» (pág. 229), ao Rei pertence uma soberania «mais histórica que política» (pág. 239). Por isso «seria tão absurdo fazer dirigir o Estado por qualquer homem-bom de qualquer comuna, como pôr o Rei a cuidar das conveniências locais nos diversos concelhos» (pág. 36).
Assim se compreende que o maior cuidado político de Sardinha tenha sido refazer aquilo que, com Le Play, insistentemente chamou "constituição essencial".
Hoje, como no tempo do grande doutrinador, o pensamento monárquico consiste em transcender a Monarquia: «A restauração da Monarquia não é simplesmente a restituição do poder ao Rei, mas a restauração de todas as leis fundamentais do povo» (pág. 115).
Reavivar neste sentido a obra de António Sardinha parece, à Biblioteca do Pensamento Político, a melhor maneira de honrar a memória daquele que, em plena e operosa juventude, há cinquenta anos deixou o mundo.
10 de Janeiro de 1975.
H. B. R.
[Henrique Barrilaro Ruas, 1921-2003]
[negritos acrescentados]
Escrito no tumulto de uma vida política apaixonante — e, em parte, na amargura do exílio —, o presente ensaio de interpretação histórica está longe da pureza linear de certas páginas de Sardinha. Nele se reflectem, porém, a profundidade e a riqueza da inteligência do A., que de muitos modos foca o tema das Cortes e amplamente o ultrapassa, integrando-o no todo histórico que o Integralismo Lusitano meditou e pretendeu restaurar.
Mais que simples teoria da representação nacional, este trabalho de António Sardinha é uma teoria do Povo Português.
O primeiro elemento dessa teoria é o personalismo: «Reconhecida a independência da personalidade humana, sobre esse traço espiritual a sociedade se restaurará» (pág. 26).
Bem distinto do individualismo, o personalismo integralista justifica e promove as formas sociais espontâneas. Antes de tudo, a família: «A família, desenvolvendo-se como célula fundamental, oferece na sua composição intima a natureza do Estado» (pág. 29). Em seguida, as outras realidades pré-estatais: «O mais rigoroso experimentalismo sociológico, levando-nos indutivamente do Indivíduo à Família, da Família à Corporação e ao Município, do Município à Província (...)» (pág. 228).
A todas essas comunidades António Sardinha reconhece o direito fundamental de autogoverno: «Pela soberania social, são autónomos os Municípios, as Províncias, as Corporações» (pág. 201).
E como garantia desses direitos que Sardinha justifica o Estado: «Anteriores dos direitos circunscritos do Estado, há os direitos da sociedade, mais extensos e mais profundos, para cuja garantia o Estado exclusivamente se constitui» (pág. 42).
No caso concreto de Portugal, é claríssimo o pensamento de António Sardinha: «A nacionalidade surge duma rede miúda de beetrias e outras agremiações agrárias» (pág. 73); «Portugal tecera-se duma federação instintiva de agrupamentos naturais» (pág. 103); e ainda: «Pela federação das nossas confrarias agrícolas Portugal se constituiu» (pág. 97).
Nesse longo processo histórico, foi essencial o papel da Realeza. «Função unificadora» (pág. 40); «órgão essencial do Estado» (pág. 61); «órgão coordenador e necessário» (pág. 73); «elemento estático, traduzindo finalidade e continuidade» (pág. 79); «energia consciente» (pág. 40) — o Rei é definido pela natureza espiritual do poder: «O juramento do Rei, incidindo sobre os privilégios e as isenções do seu povo, conferia-lhe a legitimidade e com ela a soberania» (pág. 118); «era legítima toda a dinastia que não destruísse o governo da "república" para cuja garantia os reis se criavam e ordenavam» (págs. 120-1).
Na concepção integralista, o poder real, longe de ser absoluto, é um poder «complementário» (pág. 203). «Simples agente da coordenação governativa, organicamente mais dotado e mais provado de que qualquer outro» (pág. 229), ao Rei pertence uma soberania «mais histórica que política» (pág. 239). Por isso «seria tão absurdo fazer dirigir o Estado por qualquer homem-bom de qualquer comuna, como pôr o Rei a cuidar das conveniências locais nos diversos concelhos» (pág. 36).
Assim se compreende que o maior cuidado político de Sardinha tenha sido refazer aquilo que, com Le Play, insistentemente chamou "constituição essencial".
Hoje, como no tempo do grande doutrinador, o pensamento monárquico consiste em transcender a Monarquia: «A restauração da Monarquia não é simplesmente a restituição do poder ao Rei, mas a restauração de todas as leis fundamentais do povo» (pág. 115).
Reavivar neste sentido a obra de António Sardinha parece, à Biblioteca do Pensamento Político, a melhor maneira de honrar a memória daquele que, em plena e operosa juventude, há cinquenta anos deixou o mundo.
10 de Janeiro de 1975.
H. B. R.
[Henrique Barrilaro Ruas, 1921-2003]
[negritos acrescentados]