Na Feira dos Mitos - Ideias e Factos
António Sardinha
Em Na Feira dos Mitos - Ideias & Factos (1ª edição, 1926), se reuniram as prosas de António Sardinha publicadas no jornal A Monarquia, entre Fevereiro de 1917 e Dezembro de 1919, correspondendo a um período de intensa propaganda do Integralismo Lusitano e que o próprio identificou como as suas "primeiras páginas de voluntário da Reacção."
Este foi um volume póstumo, mas ainda organizado e preparado pelo Autor que, "ao olhar para trás, num exame rápido do caminho andado", em Novembro de 1921, escreveu o prefácio intitulado "EU, PECADOR, ME CONFESSO" onde, referindo-se à "anarquia mental" e ao "sibaritismo literário" dos seus vinte anos, escreveu: "Levanto as mãos ao Senhor, - eu que sou feito de barro grosseiro e impuro, por não me haver perdido nas estradas do Egito".
Em Outubro de 1926, em "Nota Final", os editores Hipólito Raposo e Rodrigues Cavalheiro, definiram-na como a sua obra jornalística, na "expressão mais sincera e impetuosa, no fulgor espontâneo da crítica e do comentário", acrescentando: “Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se retifica a si mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente o seu erro, sem pecado de vaidade. Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.” (Rodrigues Cavalheiro e Hipólito Raposo in “Nota final”, Na Feira dos Mitos, 2ª edição, 1942, p. 314)
Pelo testemunho de Luís Chaves, soube-se uns anos depois que O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional (1915) foi um livro que, por pouco, não terá sido inutilizado: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que a obra "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38).
Em meados dos anos de 1960, vem a surgir uma literatura capciosa acerca do Integralismo Lusitano e, ao encerrar-se a década, em 1969, vem mesmo a ser desenterrado um livro que Sardinha tinha anulado e retirado de circulação: O Sentido Nacional duma Existência - António Tomás Pires e o Integralismo Lusitano (1913).
J. M. Q.
Este foi um volume póstumo, mas ainda organizado e preparado pelo Autor que, "ao olhar para trás, num exame rápido do caminho andado", em Novembro de 1921, escreveu o prefácio intitulado "EU, PECADOR, ME CONFESSO" onde, referindo-se à "anarquia mental" e ao "sibaritismo literário" dos seus vinte anos, escreveu: "Levanto as mãos ao Senhor, - eu que sou feito de barro grosseiro e impuro, por não me haver perdido nas estradas do Egito".
Em Outubro de 1926, em "Nota Final", os editores Hipólito Raposo e Rodrigues Cavalheiro, definiram-na como a sua obra jornalística, na "expressão mais sincera e impetuosa, no fulgor espontâneo da crítica e do comentário", acrescentando: “Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se retifica a si mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente o seu erro, sem pecado de vaidade. Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.” (Rodrigues Cavalheiro e Hipólito Raposo in “Nota final”, Na Feira dos Mitos, 2ª edição, 1942, p. 314)
Pelo testemunho de Luís Chaves, soube-se uns anos depois que O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional (1915) foi um livro que, por pouco, não terá sido inutilizado: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que a obra "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38).
Em meados dos anos de 1960, vem a surgir uma literatura capciosa acerca do Integralismo Lusitano e, ao encerrar-se a década, em 1969, vem mesmo a ser desenterrado um livro que Sardinha tinha anulado e retirado de circulação: O Sentido Nacional duma Existência - António Tomás Pires e o Integralismo Lusitano (1913).
J. M. Q.
Eu, pecador, me confesso...
Eis algumas linhas de prefácio, a título de esclarecimento. Gostaria de condensar-me naquela maneira arrepanhada e enérgica com que Paul Bourget costuma preludiar os seus volumes de «esparsos ». O intento do grande mestre da Contra-Revolução intelectual consiste inalteravelmente em nos demonstrar que, através das sugestões múltiplas da vida, nunca deixou de encontrar tema para robustecer a unidade do seu espírito na unidade sóbria dos dois princípios que lho fortificam e iluminam.
Esses princípios, já indicados por Balzac no pórtico de La Comédie Humaine, são o Catolicismo e a Realeza. Filho de uma época nefasta que rompeu, tanto nos factos como nas almas, o elo das verdades tradicionais, aos mesmos princípios me acolhi, também, quando procurei para as angústias do meu pensamento uma decisão definitiva e tranquilizadora. Venho duma longa geração de lavradores, que, pelo exercício da espada e do arado, conseguiram atingir as honras da pequena nobreza provinciana. Subiram, portanto, dentro da regra - ou sulcando de regos geométricos a herdade patrimonial, ou assentando-se, em vereação, graves e singelos, à roda da mesa antiga do Concelho. Sempre que perscruto as minhas raízes ancestrais, não me respondem outras vozes. Apenas um se destacou da série familiar, para correr as cavalhadas sentimentais do Romantismo.
Andou na Guerra Peninsular, foi talvez das lojas maçónicas, e, depois de aprender cirurgia com frades de S. João de Deus, meteu-se, debaixo da repulsão dos parentes, por campanhas duras, à vida duríssima dos hospitais de sangue. Tão perto de mim, nas transmissões mais directas da minha linhagem, creio bem que dele herdaria o estigma inquieto, que me levou ainda aprovar o veneno saboroso da Negação. Mas, sem dúvida, a ele pertence o golpe atirado ao coração duma ideia ou dum acontecimento que, sem fazer da minha forma intelectual um exercício de análise permanente, a caracteriza, no entanto, para a crítica, como trabalhada por um único desejo, - o de compreender e de relacionar.
Ao acordar assim para as batalhas largas do tradicionalismo português, se as forças misteriosas da hereditariedade, na lenta procissão dos meus avós rurais, me abriram as portas amplas da Religião e da Monarquia, ao romântico desordenado, que não se vexou de trocar a banda de seda das Ordenanças concelhias pelo bisturi inglório de cirurgião militar, eu posso e devo agradecer o senso do diagnóstico», que parece latejar nos comentários soltos que passaremos a ler.
“Qu'est ce donc que l'art? qu'est-ce que la beauté dans cette action brutale qu'est une opération?...” - interroga o notável operador francês Dr. Jean-Louis Faure no seu não menos notável opúsculo L'âme du chirurgien. "C'est la sobriété, c'est la précision dans le geste, c'est l'ordre dans le mouvement, c'est la puissance dans la continuité de l'action..." É a sobriedade, é a precisão no gesto, é a ordem no movimento o que a mim me encanta no escritor, que sendo um dissecador de tipos, participa como tal da lição em que o quadro célebre de Rembrandt se ilumina para a posteridade.
Apresentando com carinho o opúsculo do Dr. J.-L. Faure, como filho de cirurgião, Paul Bourget assinala jubilosamente a perfeita identidade que existe entre uma operação cirúrgica definida, porque é a ordem "no movimento", e a definição que do estilo nos legou, com os seus punhos de renda, o senhor de Buffon. "Le style n'est que l'ordre et le mouvement que l'on met dans ses pensées", - recorda Bourget, para logo acrescentar que "Flaubert, filho e irmão de médicos, amaria esse acordo de linguagem entre um mestre na arte de escrever e um mestre na arte de operar". E Bourget não se contém, sem concluir: "Tant il vrai qu'à travers la diversité des objets l'unité de l'intelligence demeure constante attestant ainsi, même à l'occasion des activités les plus spécialisées, semble-t-il, l'unité intime de l'Univers, l'unité de l'énergie sous toutes ses formes, qui fait, rencontre plus remarquable encore, le premier article du Credo: Credo in unum Deum".
Esses princípios, já indicados por Balzac no pórtico de La Comédie Humaine, são o Catolicismo e a Realeza. Filho de uma época nefasta que rompeu, tanto nos factos como nas almas, o elo das verdades tradicionais, aos mesmos princípios me acolhi, também, quando procurei para as angústias do meu pensamento uma decisão definitiva e tranquilizadora. Venho duma longa geração de lavradores, que, pelo exercício da espada e do arado, conseguiram atingir as honras da pequena nobreza provinciana. Subiram, portanto, dentro da regra - ou sulcando de regos geométricos a herdade patrimonial, ou assentando-se, em vereação, graves e singelos, à roda da mesa antiga do Concelho. Sempre que perscruto as minhas raízes ancestrais, não me respondem outras vozes. Apenas um se destacou da série familiar, para correr as cavalhadas sentimentais do Romantismo.
Andou na Guerra Peninsular, foi talvez das lojas maçónicas, e, depois de aprender cirurgia com frades de S. João de Deus, meteu-se, debaixo da repulsão dos parentes, por campanhas duras, à vida duríssima dos hospitais de sangue. Tão perto de mim, nas transmissões mais directas da minha linhagem, creio bem que dele herdaria o estigma inquieto, que me levou ainda aprovar o veneno saboroso da Negação. Mas, sem dúvida, a ele pertence o golpe atirado ao coração duma ideia ou dum acontecimento que, sem fazer da minha forma intelectual um exercício de análise permanente, a caracteriza, no entanto, para a crítica, como trabalhada por um único desejo, - o de compreender e de relacionar.
Ao acordar assim para as batalhas largas do tradicionalismo português, se as forças misteriosas da hereditariedade, na lenta procissão dos meus avós rurais, me abriram as portas amplas da Religião e da Monarquia, ao romântico desordenado, que não se vexou de trocar a banda de seda das Ordenanças concelhias pelo bisturi inglório de cirurgião militar, eu posso e devo agradecer o senso do diagnóstico», que parece latejar nos comentários soltos que passaremos a ler.
“Qu'est ce donc que l'art? qu'est-ce que la beauté dans cette action brutale qu'est une opération?...” - interroga o notável operador francês Dr. Jean-Louis Faure no seu não menos notável opúsculo L'âme du chirurgien. "C'est la sobriété, c'est la précision dans le geste, c'est l'ordre dans le mouvement, c'est la puissance dans la continuité de l'action..." É a sobriedade, é a precisão no gesto, é a ordem no movimento o que a mim me encanta no escritor, que sendo um dissecador de tipos, participa como tal da lição em que o quadro célebre de Rembrandt se ilumina para a posteridade.
Apresentando com carinho o opúsculo do Dr. J.-L. Faure, como filho de cirurgião, Paul Bourget assinala jubilosamente a perfeita identidade que existe entre uma operação cirúrgica definida, porque é a ordem "no movimento", e a definição que do estilo nos legou, com os seus punhos de renda, o senhor de Buffon. "Le style n'est que l'ordre et le mouvement que l'on met dans ses pensées", - recorda Bourget, para logo acrescentar que "Flaubert, filho e irmão de médicos, amaria esse acordo de linguagem entre um mestre na arte de escrever e um mestre na arte de operar". E Bourget não se contém, sem concluir: "Tant il vrai qu'à travers la diversité des objets l'unité de l'intelligence demeure constante attestant ainsi, même à l'occasion des activités les plus spécialisées, semble-t-il, l'unité intime de l'Univers, l'unité de l'énergie sous toutes ses formes, qui fait, rencontre plus remarquable encore, le premier article du Credo: Credo in unum Deum".
* * *
Ora porque, depois de Deus, foram decerto os meus Mortos que me lançaram na alma a semente inextinguível da Esperança, eu não os quero olvidar, à face do presente volume, onde recolho, melhor ou pior forjadas, segundo as necessidades do combate, as minhas primeiras páginas de voluntário da Reacção. Ao confessar-me coram populi voluntário da Reacção, proclamo, dentro daquele justo desvanecimento que até a Religião abençoa como estímulo humano necessário, o mais belo título da minha inteligência de estudioso e da minha sensibilidade de comunicativo. Graças aos que me precederam na sucessão intérmina da existência, não nasci nem para descrer, nem para duvidar. Palpita dentro de mim um intento modesto, mas sólido, de construir, que mesmo quando contempla o espectáculo melancólico de quaisquer ruínas, encontra sempre nelas motivos vitoriosos de afirmação e de confiança. Não me será talvez dado a mim, nem aos que comigo mais de cerca rezam e aguardam, levantar o grande edifício que já avistamos, erguido, com os olhos serenos da convicção para além da orla sangrenta em que tudo parece acabar nesta expectativa trágica de Apocalipse. Mas é com amor, é com enlevada dedicação, sem desânimo, nem arrependimento, que vamos preparando as pedras uma a uma, sem nos importarmos se a casa a refazer-se nos abrigará ainda, ou se mal veremos ressurgir, sobre a face dolorosa d a Terra, o desenho perdido dos antigos alicerces.
Escrevo numa tarde doirada de outono, - tarde translúcida de Advento. E precisamente, no azul profundo e acariciador, estampa-se a linha nobre dum aqueduto, como resumindo toda a paiisagem que me vai à roda. Pois nesse aqueduto dir-se-ia que se simboliza o meu esforço, - o esforço de quantos padecem a emigração na sua própria pátria para que amanhã, cedo ou tarde, o Portugal-Maior seja possível. Como o aqueduto que arranca, através do tempo, a sua caminhada secular para servir um destino que só aos outros aproveitará, assim nós, — os de agora, ao nascer, nascemos para reatar, por soobre as nossas desilusões e os nossos sacrificios, os anéis tradicionais criminosamente quebrados no breve instante duma só geração . E no delirio devastador em que nem a beleza do coração se salva, o nosso triunfo já não é pequeno, se considerarmos que somos os obreiros mandados por Deus ao trabalho anónimo, mas salutar, de não se permitir que morra na consciência da Raça a psique olvidada - pobre Silvaninha do rimance ! - que tirita lá dentro.
"Un principe triomphe, - dizia duma vez Berryer, - quand on l'applique et qu'il produit le bien ; il triomphe quand on applique le principe contraire et que ce principe produit le mal". Eis o que soberanamente se confirma ao repassar as páginas do livro presente.
Contemporâneas as primeiras do período mais agudo da Guerra, redigiram-se as últimas já no isolamento moral do exilio. Liga-as entre si o traço cronológico de pouco mais de dois anos. Mas que dois anos esses, cheios de drama, de experiências angustiosas, de rugidos de catástrofe?! Todavia, a serenidade com que me persigno, ao comeeço, em nome da Tradição, é a serenidade com que me persigno, ao final, ouvindo expirar, nos relógios de Badajoz, sem lareira, quase às portas de casa, a data terrível de 1919. Por isso, eu cometeria a mais vil das deserções se um momento só me considerasse um vencido!
A minha vitória a nossa vitória, é evidente nos domínios augustos do Espírito. Não é já um prémio alto de Deus ter razão numa babel confusa em que ninguém mais a tem? Levanto as mãos ao Senhor, - eu que sou feito de barro grosseiro e impuro, por não me haver perdido nas estradas do Egipto.
Antes, tranquilamente as passeei, à hora clara do sol, denunciando a mentira execrável dos seus ídolos.
Riram-se os da festa, dançando e afundando-se como aqueles bailarins do conto macabro. Mas numa quermesse de doidos é humaníssimo que aos loucos pareça loucura o falar alguém com acerto ...
*
Seja como for, ao olhar para trás, num exame rápido do caminho andado, só encontro conforto e incentivos para avançar cada vez mais. No total desnorteamento em que eu poderia ser um desnorteado também, volto a agradecer às minhas boas sombras tutelares a aancora que a tempo me salvou da onda crescendo, crescendo sempre.
As virtudes rurais da minha estirpe me resguardaram da anarquia mental a que loogicamente me dispunha o sibaritismo literário que aos meus vinte anos, por toda a parte, se respirava e alardeava. Pouco durou esse parentesis, quem sabe se de inquietação criadora? Hoje, creio e espero. E creio e espero, não só pela herança que me vem do meu sangue, mas em plena autonomia do meu pensamento. Não foi debalde que entre os meus houve alguém que se desgarrou dos velhos quadros famíliares para ir correr seduções imprevistas, na alucinação do vento novo que soprava. Tão perto de mim o sinto que talvez do seu pecado derive a paz de que neste momento me sinto singularmente penetrado. Porque sem o senso do diagnóstico», que a sua aventura depositou na minha hereditariedade bucólica, eu que sou por natureza um contemplativo, é provável que me tivesse transviado, como tantos, na atracção tumultuosa da feira dos Mitos!
Elvas, Quinta do Bispo.
16 de Novembro de 1921
Escrevo numa tarde doirada de outono, - tarde translúcida de Advento. E precisamente, no azul profundo e acariciador, estampa-se a linha nobre dum aqueduto, como resumindo toda a paiisagem que me vai à roda. Pois nesse aqueduto dir-se-ia que se simboliza o meu esforço, - o esforço de quantos padecem a emigração na sua própria pátria para que amanhã, cedo ou tarde, o Portugal-Maior seja possível. Como o aqueduto que arranca, através do tempo, a sua caminhada secular para servir um destino que só aos outros aproveitará, assim nós, — os de agora, ao nascer, nascemos para reatar, por soobre as nossas desilusões e os nossos sacrificios, os anéis tradicionais criminosamente quebrados no breve instante duma só geração . E no delirio devastador em que nem a beleza do coração se salva, o nosso triunfo já não é pequeno, se considerarmos que somos os obreiros mandados por Deus ao trabalho anónimo, mas salutar, de não se permitir que morra na consciência da Raça a psique olvidada - pobre Silvaninha do rimance ! - que tirita lá dentro.
"Un principe triomphe, - dizia duma vez Berryer, - quand on l'applique et qu'il produit le bien ; il triomphe quand on applique le principe contraire et que ce principe produit le mal". Eis o que soberanamente se confirma ao repassar as páginas do livro presente.
Contemporâneas as primeiras do período mais agudo da Guerra, redigiram-se as últimas já no isolamento moral do exilio. Liga-as entre si o traço cronológico de pouco mais de dois anos. Mas que dois anos esses, cheios de drama, de experiências angustiosas, de rugidos de catástrofe?! Todavia, a serenidade com que me persigno, ao comeeço, em nome da Tradição, é a serenidade com que me persigno, ao final, ouvindo expirar, nos relógios de Badajoz, sem lareira, quase às portas de casa, a data terrível de 1919. Por isso, eu cometeria a mais vil das deserções se um momento só me considerasse um vencido!
A minha vitória a nossa vitória, é evidente nos domínios augustos do Espírito. Não é já um prémio alto de Deus ter razão numa babel confusa em que ninguém mais a tem? Levanto as mãos ao Senhor, - eu que sou feito de barro grosseiro e impuro, por não me haver perdido nas estradas do Egipto.
Antes, tranquilamente as passeei, à hora clara do sol, denunciando a mentira execrável dos seus ídolos.
Riram-se os da festa, dançando e afundando-se como aqueles bailarins do conto macabro. Mas numa quermesse de doidos é humaníssimo que aos loucos pareça loucura o falar alguém com acerto ...
*
Seja como for, ao olhar para trás, num exame rápido do caminho andado, só encontro conforto e incentivos para avançar cada vez mais. No total desnorteamento em que eu poderia ser um desnorteado também, volto a agradecer às minhas boas sombras tutelares a aancora que a tempo me salvou da onda crescendo, crescendo sempre.
As virtudes rurais da minha estirpe me resguardaram da anarquia mental a que loogicamente me dispunha o sibaritismo literário que aos meus vinte anos, por toda a parte, se respirava e alardeava. Pouco durou esse parentesis, quem sabe se de inquietação criadora? Hoje, creio e espero. E creio e espero, não só pela herança que me vem do meu sangue, mas em plena autonomia do meu pensamento. Não foi debalde que entre os meus houve alguém que se desgarrou dos velhos quadros famíliares para ir correr seduções imprevistas, na alucinação do vento novo que soprava. Tão perto de mim o sinto que talvez do seu pecado derive a paz de que neste momento me sinto singularmente penetrado. Porque sem o senso do diagnóstico», que a sua aventura depositou na minha hereditariedade bucólica, eu que sou por natureza um contemplativo, é provável que me tivesse transviado, como tantos, na atracção tumultuosa da feira dos Mitos!
Elvas, Quinta do Bispo.
16 de Novembro de 1921
NOTA FINAL (na edição de 1942, pp. 314-315)
Por encargo de piedoso afecto, coube-nos o destino triste de inventariar e ordenar o abundante espólio literário de António Sardinha.
As páginas que formam o presente volume, são os artigos escritos pelo nosso querido amigo morto, ao acaso dos acontecimentos, muitas vezes sobre a sua mesa de redactor da
Monarquia, no período político que vai de Fevereiro de 1917 a Dezembro de 1919, correspondente à mais intensa propaganda do Integralismo Lusitano.
Elas representam, portanto, caracterisadamente, a obra jornalística de António Sardinha, na sua expressão mais sincera e impetuosa, no fulgor espontâneo da crítica e do comentário doutrinal.
Lendo-se este livro, que tem um pouco a natureza de diário, bem se compreende a distância que vai de um homem de pensamento a um escrevedor, de um doutrinário a um pedante ou literato de indústria.
Por estas palavras que à nossa saudade parecem ainda quentes da sua alma , ficam definidas em sincera projecção, as duas faces mais salientes da sua figura de pensador e de evangelista da Esperança.
Uns capítulos valem como depoimentos sobre os homens e as coisas do nosso tempo, outros transmudaram-se em profecias em que se contraprova a verdade da nossa doutrina na sua objectivação, muitos também acusam nele o analista-vidente que tantas vezes ilumina de intuição factos e aspectos que a melhor crítica deixara obscuros ou inexplicados.
Na grande fragmentação destas páginas, subsiste a estrutura interna de um tratado de bem servir a nossa Terra, escrito com o ardor de uma apologia, flama sempre acesa em altos clarões de fé e de verdade.
C o m elas, grava-se uma inscrição nova no cipo glorioso da sua passagem por este mundo, que lêem através de lágrimas os seus companheiros de ontem e os numerosos discípulos de hoje. Desaparecido Êle , mortos os ressentimentos , dispersos os rumores que latejavam aos seus golpes, a figura mental do nosso amigo engrandece-se cada vez mais, e, sem atropelos nem violências, na serena justiça da morte, António Sardinha sobe ao primeiro lugar no protesto da inteligência e da fé nacionalista contra os tendeiros do pensamento, contra a superstição das idéias-feitas, contra os falsos grandes-homens de Portugal.
A sua vida, todos o sabem hoje, passou-se num anseio permanente de elevação espiritual, a preço daquela luta áspera que tantas vezes faz sangrar o coração e que só terminou com o último alento da sua agonia.
Mas, como se a sua missão terrena não pudesse medir-se com os passos da sua curta vida, ainda de além da morte ele continua a erguer o mais ardente facho do nosso pensamento de resgate.
Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se rectifica a si mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente o seu erro, sem pecado de vaidade.
Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.
O presente livro estava organizado e prefaciado, quando António Sardinha morreu.
Só agora pode ser publicado e cremos que em condições materiais que não causarão desagrado aos leitores devotos do seu nome, como são motivo de contentamento para nós no dever de honrar a sua memória por este encargo de testamentaria espiritual. Ao contrário dos que hão-de seguir-se, só havia que vigiar o trabalho da impressão deste volume, embora o fizéssemos com a mágoa irremediável de que o último retoque da mão do Autor não o deixasse ainda mais perfeito. Os livros que até ao presente pudemos ordenar, reunindo estudos e ensaios dispersos, agrupando e seleccionando poesias, irão sendo publicados, alguns deles conforme o plano e os títulos revelados ainda pelo Autor.
São os seguintes:
POESIA:
Era uma vez um menino... (elegias);
Roubo de Europa (poema);
«Pequena Casa Lusitana» (sonetos);
Procissão de Cinzas & Outros Poemas.
PROSA :
À sombra dos Pórticos (novos ensaios);
Durante a Fogueira (páginas da guerra);
De Vita et Moribus (casos e almas);
Purgatório das Idéias;
A prol do comum;
Da hera nas colunas;
O Processo dum Rei;
À Lareira de Castela (estudos peninsulares).
Lisboa, Outubro de 1926
RODRIGUES CAVALHEIRO e HIPÓLITO RAPOSO.
(negritos acrescentados)
Índice
Eu, pecador me confesso...
[ Prefácio, ass. em Elvas, Quinta do Bispo, 16 de Novembro de 1921 ]
Monsieur Homais em Patmos
[ Guerra Junqueiro ]
[ Guerra Junqueiro ]
A "Lenda Negra"
[ acerca dos Jesuítas ]
[ acerca dos Jesuítas ]
A voz dos Bispos
A nova Rússia
Na morte do Senhor
O espírito universitário
A «Carta»
[ A Carta Constitucional de 29 de Abril de 1926 ]
[ A Carta Constitucional de 29 de Abril de 1926 ]
O Brasil
Os Jesuítas e as Letras
Santo António
Pátria e Monarquia
24 de Julho
O «milagre» de Ourique
As "Linhas de Elvas"
Nun'Álvares
Juxta Crucem
Os Judeus e os Descobrimentos
Com João Coutinho
Ciência e Democracia
A estátua do Marquês
[ Obra da Maçonaria ]
Aljubarrota
No Forte da Graça
Natal
Um Vereador
Mgr. Ragonesi
No Parlamento
E agora?
[ após o assassínio de Sidónio Pais ]
Sinal da Raça
A moral da derrota
Nocturno de S. Silvestre
Com João Coutinho
Ciência e Democracia
A estátua do Marquês
[ Obra da Maçonaria ]
Aljubarrota
No Forte da Graça
Natal
Um Vereador
Mgr. Ragonesi
No Parlamento
E agora?
[ após o assassínio de Sidónio Pais ]
Sinal da Raça
A moral da derrota
Nocturno de S. Silvestre
[ Na feira dos mitos - Ideias & Factos, Lisboa, 1926; 2ª edição, Porto, Edições GAMA, 1942. (pdf)
Na feira dos mitos. Ideias & Factos
«Ce que j‟appelle ici antimoderne, aurait pu tout aussi bien être appelé ultramoderne.»
Jacques Maritain.
A HIPÓLITO RAPOSO
MEU CAMARADA
NOS ITINERÁRIOS
SENTIMENTAIS
DO PERIGO E DA ESPERANÇA
EM MEMÓRIA
DO TEMPO ALEGRE
QUE
IN GARLANDIA FUIMUS
MEU CAMARADA
NOS ITINERÁRIOS
SENTIMENTAIS
DO PERIGO E DA ESPERANÇA
EM MEMÓRIA
DO TEMPO ALEGRE
QUE
IN GARLANDIA FUIMUS
A voz dos bispos
Falaram os bispos portugueses. A sua pastoral colectiva – loquemur ad filios
Lusitaniae – é um depoimento notabilíssimo que nesta hora alta de incertezas se
reveste do maior dos significados. Têm já hoje os católicos de Portugal, que são a
quase unanimidade do país, uma regra de conduta pública, traçada pela voz dos
seus legítimos pastores. Mais uma vez a verdade se definiu, em termos que não vão
ficar esquecidos! Todas as promessas da Igreja se recordam ali numa exortação
cheia de ardor religioso. E é com profundo estímulo para nós que a pastoral dos
nossos Prelados acolhe debaixo do ponto de vista eclesiástico os grandes
ensinamentos contra-revolucionários que são o património social do nosso passado
cristão e monárquico.
A Igreja não se subordina a interesses temporais, de modo a sujeitar o
cumprimento da sua missão às contingências fragilíssimas da instabilidade política.
Mas há princípios condenados solenemente pela Cadeira de Pedro que nunca
podem merecer a expectativa benévola da Igreja na sua aplicação à sociedade.
Esses princípios são os princípios da Revolução Francesa e expressos formalmente
no dogma anárquico da soberania popular. A soberania popular é a negação da
origem divina da Autoridade – representa a vitória do número, baseada
exclusivamente na força material. Não passaram no silêncio dos indiferentes as
palavras memorandas do Syllabus a tal respeito. Também no nosso pensamento, e
como norma segura de acção, não se apagam nunca os ditames profundíssimos de
Leão XIII e de Pio X sobre a natureza perturbadora dos governos democráticos.
A Igreja não reconhece assim aquele poder que se não entenda
fundamentado no direito de Deus. Leão XIII fulminou terminantemente o
«naturalismo social, económico e moral», que é a consequência imediata do
espírito da Revolução, indo o Pontífice até ao ponto de indicar a Reforma como a
sua causa primária e directa. «Foi desta heresia que nasceram no século último a
falsa filosofia, o que se chama o direito moderno, a soberania do povo e essa
licença sem freio fora da qual muitos não sabem ver o que seja a verdadeira
liberdade.» A condenação da Democracia resulta sempre com o mesmo vigor de
todas as letras emanadas de Roma. Não é que a Igreja repila a república, sistema
político. Mas é porque a república, na maioria dos casos, não é senão a realização
dos princípios que a Igreja proscreve e anatematiza, como contrários à lei de Deus
e ao interesse da comunidade.
«A Revolução está afinal longe de ser apenas um facto, escreve o conde de
Mun. É antes uma doutrina social, uma doutrina política, que pretende fundar a
sociedade sobre a vontade do homem, em vez de a fundar sobre a vontade de Deus,
colocando a soberania da razão humana em lugar da lei divina. Eis no que consiste
a Revolução.» Ora se a Revolução, como doutrina, combate a Igreja, a Igreja, sem
se submeter nem limitar, está ligada à doutrina que combater a Revolução. Não são
outras as conclusões do escrito pontifício que interdisse a intervenção dos católicos
no movimento democrático do Sillon. Bem categoricamente Pio X as formulava ao
apresentar nesse documento os tradicionalistas como os únicos e verdadeiros
amigos do povo. Pela continuidade admirável que encerra em si a prova histórica
da divindade da Igreja, Pio X não fazia senão recordar os fortes e serenos
conselhos dos seus predecessores no Pontificado – Pio VI, Gregório XVI, Pio IX e
Leão XIII.
Na sua pastoral os Prelados portugueses obedecem com serena elevação à
herança gloriosa da filosofia católica. Defendendo contra os excessos funestos do
individualismo, consagram a família como a célula social, para desfiar dela a justa
constituição do agregado. Enumeram com dedo experiente de médicos da alma os
motivos morais da nossa decadência e do consequente enfraquecimento da
[35]disciplina religiosa. Uma colectividade sem a presença contínua de Deus, é um
corpo que se relaxa e desfibra em bocados. No repúdio irrevogável do
individualismo contém-se o repúdio irrevogável de quantos frutos derivam dessa
árvore maldita. Neles está compreendido o Estado de condição maçónica,
firmemente apontado aos fiéis como um perigo mortal na encíclica de Leão XIII
Humanum genus, que mais não foi do que a renovação de outros anátemas de
Roma.
Tal é a lição a tirar da pastoral colectiva do Episcopado. O divórcio, a
escola-laica, as medidas persecutórias, necessariamente filhas do regime de
separatismo sectário, merecem as atenções paternais dos nossos Bispos nos seus
funestos resultados. A organização dos católicos impõe-se, por isso, como força
precisa para actuar na conquista de um mínimo de liberdade essencial. Semelhante
organização não é, porém, de modo nenhum um partido, entenda-se. Partido
católico só pode ser um: «o partido de Deus», que, como muito bem observa o
abade Barbier no seu livro Le devoir politique des catholiques, não é senão «o
partido da Ordem e da Liberdade».
O partido da Ordem e da Liberdade entre nós é aquele que, em relação à
Igreja e ao Estado, seja o remate da nossa longa formação tradicional. A Igreja
manda ponderar realmente as circunstâncias históricas que condicionam como
meio-vital a existência autónoma das nacionalidades. Mas é esse um problema que
a Igreja não põe aos católicos, de um modo absoluto, porque não lhe toca
directamente. Os católicos, sendo também cidadãos de uma pátria livre, é que não
podem pelos princípios em que comungam desinteressar-se das responsabilidades
que lhes pertencem na consecução do bem comum. Católica era a Polónia, e não
era o bastante para que a Polónia, como Polónia, possuísse a sua vida independente
de pátria. Infere-se daqui – e a Igreja o reconhece – que os católicos, sem
comprometerem a sua organização religiosa com as controvérsias agitadas da
[36]discussão política, devem, no entanto, participar como cidadãos da marcha das
coisas públicas e dar-lhes a direcção mais conforme com as direcções da sua
consciência.
É certo que a Igreja assenta como um mandamento o respeito ao Estado.
Admite em todo o caso, mesmo teologicamente, a resposta violenta às violações da
justiça e às iniquidades da tirania. Leão XIII na encíclica Libertas
praestantissimum é explícito e categórico quando afirma que «a Igreja não condena
que se queira libertar o seu país, ou do estrangeiro ou de um déspota, desde que
isso se faça sem ofender a justiça». E mais adiante, para que se não tome como
ofensa à justiça a oposição a uma determinada legalidade – que por ser legalidade,
não é, contudo, direito –
, o Pontífice, de imortal memória, acrescenta: «Quando se
está debaixo de um golpe ou sob a ameaça de uma dominação que coloca a
sociedade na opressão de uma violência injusta, ou priva a Igreja da sua liberdade
legítima, é permitido procurar uma outra organização política, dentro da qual se
possa agir com liberdade.»
Creio definido o pensamento que, segundo a pastoral colectiva do
Episcopado, presidirá à organização católica. Não se trata nem de um ralliement,
nem de uma abdicação. Os prelados portugueses, no seu ponto de vista religioso,
só à causa da sua Religião atenderam. Mas eles são da linhagem virtuosa dos
nossos bispos de outrora que, ao levantarem a Cruz de Cristo, sabiam que
levantavam com Ela a bandeira sagrada das Quinas. Não podiam, pois, esquecer-se
de que há um Portugal-Maior, que é mais dos que morreram e dos que estão para
nascer, do que propriamente daqueles que com tanto sacrilégio e tanta veniaga o
empurram cada vez mais para a ruína!
A nova Rússia
Se alguém pode tirar conclusões seguras do movimento revolucionário que lançou
a Rússia para os acasos de uma democracia ainda duvidosa, somos nós outros, os
tradicionalistas.
Tão confusas que se nos apresentem por enquanto as notícias vindas de
Petrogrado, uma certeza se possui já – e é que a forma autocrática do governo russo
foi suplantada por um regime parlamentar, com base nos princípios saídos da
Revolução Francesa. Não me parece a mim que o interesse dos Aliados haja de
ganhar muito com isso. Muito menos ganhará a Rússia que, na sua mole imensa,
perdida na unidade do poder a única força centrípeta que a mantinha cerrada e
intacta, caminhará rapidamente para uma fragmentação inevitável e talvez que bem
próxima.
Marcelo Sembat – o insuspeitíssimo Marcelo Sembat, que por si mesmo,
como ministro, se encarregou de demonstrar à França a verdade do seu livro Faites
un roi sinon faites la paix – escreveu de uma vez algures que «as democracias
tendem a substituir as lutas externas de expansão pelas lutas internas de partido». A
índole profundamente passiva dos sistemas apoiados no critério exclusivo da
opinião pública, Marcelo Sembat a fixou como ninguém naquela meia-dúzia de
palavras! De facto, prova-o bem a crise orgânica que na sua defesa militar os países
aliados têm atravessado desde o começo da guerra em conflito permanente com as
maiorias parlamentares, sempre ciosas dos seus direitos de tudo discutir e de tudo
fiscalizar. Não se enganava o príncipe de Bismarck quando, em seguida a 1871, se
opunha tenazmente à restauração da Monarquia em França, facilitando a Gambetta
o triunfo definitivo da sua política. E não será motivo de espanto para nós se um
dia se vier a descobrir que os agentes de Berlim trabalharam com afinco na
[38]organização do movimento revolucionário que tão grande estremeção acaba de dar
a essa Rússia impenetrável, onde se fôra acolher o último reflexo do cesarismo
hierático de Bizâncio.
Eu acredito piamente nos sentimentos aliadófilos da Duma e da situação
política criada pela sua vitória. Acredito neles e nem de longe os discuto. Agora o
que eu vejo é que, a braços com uma modificação violenta na estrutura histórica do
velho império, qualquer que venha a ser a forma de governo que escolheu, a Rússia
há-de experimentar – e experimentar com estrondosos desastres – as consequências
fatais de todo o governo fundamentalmente democrático, tais como Marcelo
Sembat as definiu. As lutas de partido vão surgir. Vão surgir com facilidades já
anunciadas e reconhecidas no direito à greve, pertinazes e violentas guerras
privadas num país em que a questão agrária se agravará cada vez mais, dada por
um lado a natureza, ainda feudal, da propriedade e por outro o sopro de revolta que
não tarda a fazer-se sentir na população adormecida dos campos. Isto, com as
ambições de mando e os desejos ardentes de reformismos (insensatos) que
enfraquecerão sem dúvida, pela instabilidade governativa, a acção dos comandos
nas linhas de batalha, tanto mais que o reconhecimento do direito à greve envolve
parece que o direito à greve militar.
A Rússia conhece agora o seu 89. Não riam, senhores democratas! Numa
época em que a Contra-Revolução contragravou com inteiro positivismo os seus
enunciados de filosofia política, a lição a tirar dos acontecimentos da Rússia só nós
a utilizaremos nos seus resultados finais. Mais uma vez se verá então que a
liberdade teórica dos Imortais Princípios é um agente de ruína onde quer que ela se
instale.
Na Rússia, mais do que em França há um século, talvez que um grande
drama lhe prepare bem cedo o costumado cortejo de horrores. Alguma coisa de
Constantinopla se guarda no íntimo da impassibilidade teocrática da Rússia. O
iluminismo sereno, mas entranhado, do eslavo encontra hoje uma nova razão de
existência mística. Lembremo-nos de que a Rússia é a terra natal de todos os
desvarios nihilistas. Até nos seus escritores mais representativos passa uma sede
abstrusa de coisas vagas e inconcebidas que marcam bem a mentalidade de um
povo primitivo e sonhador. É do povo primitivo e sonhador que eu me receio nesta
hora em que uma ideia dissolvente lhe atravessa o cérebro...
O que é seguro é que desde que o soldado se tornou cidadão eu não vejo
mais possibilidade de uma extensa e intensa actividade militar. Problemas
aparecem mais imediatos e mais instantes – problemas de ordem económica interna
que empurrarão a Rússia para o pandemónio de uma desagregação irreparável.
Antes dos Romanoff, a Rússia praticava, no seu particularismo social, instituições
mais republicanas que autocráticas. Regressa a Rússia a esse estádio de transição?
Verificar-se-á assim que a democracia é uma forma inferior da vida colectiva, só
natural nos povos em formação ou nas nacionalidades em decrepitude. No
aluimento da autoridade central, desmantela-se todo aquele enorme corpo, dando
lugar, quem sabe?, a pequenas autonomias provinciais, com cujo funcionamento só
o vizinho aproveitará...
Não riam, senhores democratas! Confirmadas pelos factos as regras da
nossa doutrina, os nossos olhos vão verificar a verdade delas com uma experiência
a mais e uma ilusão a menos. E não resta dúvida a ninguém de que, se há
iluminações festivas pelo acontecimento, essas iluminações só de Berlim poderão
partir!
Na morte do Senhor
Nesta hora ensombrada da história reapodera-se de nós o mesmo desalento, a
mesma inquietação de viver, que o mundo antigo padeceu às vésperas do seu
declínio. O orgulho das inteligências desenvolve a secura dos corações. Perdeu-se
nas almas a sede ardente da imortalidade e os nossos olhos já se não abrem senão
para as visões impuras dos sentidos. Todo um ciclo vão de vãs filosofias conclui
assim na dolorosa tristeza contemporânea, que não é a tristeza segundo Deus, mas
a tristeza segundo o Século, a qual, na palavra sublime do Apóstolo, unicamente
gera a morte.
«Por que razão se enfureceram as gentes e conceberam os Povos os mais
fantásticos projectos?» – pergunta a voz amargurada do Salmista logo no começo
do drama da Paixão. «Ajuntaram-se e conspiraram os Reis e Príncipes da Terra
contra o seu Senhor e contra o seu Cristo. Rompamos a sua cadeia (disseram) e
expulsemos de nós o seu jugo.» Romperam-se as cadeias que o Senhor nos
impusera e o jugo de Cristo foi expulso de nós.
Pois correndo atrás de uma ventura ilusória cada vez nos sentimos mais
diminuídos e mais revoltados! Temos ânsias de libertação. A áspide da soberba
morde-nos dentro, no mais íntimo dos nossos desejos. Mas, ai!, em que é que
termina esse sonho de vaidade insensata e de insatisfação indominável? O
pessimismo do tempo é o seu fruto legítimo. Ufanos do nosso delírio, concebemos
fantásticos projectos, os projectos fantásticos da letra dolorida do Salmista. Não
queremos servir nem uma dedicação nem uma disciplina. Não conseguimos,
porém, vencer o círculo inexorável em que a vida nos encerra inexoravelmente.
Porque não aceitamos a lei transfiguradora do Amor, cedemos, esmagados, perante
a força de outra lei mais rude, a lei da Fatalidade.
A lei da Fatalidade insensibilizou o mundo antigo, que, tal como o nosso,
se dissolveu na mentira dourada das aparências. Se conheceu o brilho de uma
cultura superior, a antiguidade clássica não conheceu a grandeza moral, que é a
semente fecunda de verdadeira civilização. A cidade grega assentava apenas no
conceito material da existência. Possuía por base a escravidão e a tirania por cume.
A consciência era sacrificada no indivíduo, ou aos caprichos do déspota, ou à
vontade oligárquica de uma casta. Enganam-se no mais crasso dos erros os que por
um criticismo medíocre opõem às verdades cristãs o esplendor naturalista do
pensamento pagão. «Os ensinamentos de Sócrates e os diálogos de Platão, diz-se,
fazem esquecer as parábolas de Jesus», escreve o positivista Georges Deherme.
«Talvez para um intelectual na sua livraria, mas não para a Humanidade.»
E Georges Deherme acrescenta: «Dissipemos as abstracções com que se
compraz o orgulho cerebral, deixemos os livros, comparemos no seu apogeu a
civilização greco-romana e a civilização francesa. De um lado, os ilotas, a
escravatura, todas as prostituições, o circo (em média, segundo Laurentie, 30.000
vidas humanas imoladas ao prazer anualmente), do outro lado, a admirável
instituição da Cavalaria, as escolas gratuitas, os hospitais, a loucura santíssima da
caridade, o culto da Virgem Maria.» De facto, tanto em Aristóteles, como em
Platão, o Divino, exclusivamente na dureza se fundamenta a razão inflexível do
Estado. Para Aristóteles, o privilégio do homem livre é a ociosidade, o infanticídio
é permitido e o aborto olhado como um acto lícito. E se a um pai pertence o direito
de vida e morte sobre os filhos, já lhe não pertence o direito de os educar. Do
Estagirita descende a escola laica de absorção por parte do Estado das funções
educadoras, que, pelo contrário, devem ser sempre pautadas pelo ambiente
doméstico. Mas o mundo antigo via na família um organismo inútil e, por vezes,
distinto dos interesses supremos da comunidade. Nem tudo floria com as rosas de
Anacreonte perfumando o sono das Musas na vinha de mestre Horácio!
A serenidade helénica é fundida de egoísmo e de indiferença. Aproveite-se
o instante que passa na areia livre da ampulheta! Vem de seguida o enebriamento
dos sentidos, na certeza implacável do fim que a todos nos espera. O que há de
mais nobre na Antiguidade é o estoicismo. Mas o estoicismo não é senão uma
renúncia desdenhosa e impotente, toda secura de coração e de inteligência.
Petrónio, mandando abrir as veias no meio de um festim, simboliza o negativismo
filosófico da Antiguidade, a quem faltava a aspiração de um destino imortal. Assim
se atiram para a morte também os emancipados da nossa época, que Ibsen e
D‟Annunzio procuram elevar a uma espécie de super-humanidade em tantas das
suas criações literárias. Lembramo-nos em Ibsen de Hedda Gabler e em Annunzio
de Giorgio Aurispa. O suicídio arvora-se em doutrina redentora sempre que a
chama espiritualista desfalece dentro de nós, e nada mais nos resta senão sorver até
ao último sorvo a taça bem exígua do prazer e da ilusão.
O Cristianismo apareceu, pois, no desfazer de uma curva da história. A
transformação por que ele renova a natureza degradada do homem, numa passagem
de São Paulo se contém e define. «Só os pagãos é que não têm esperança!»,
exclama o Apóstolo, falando das promessas infalíveis de Cristo. A Esperança é o
sentimento purificador que baptiza a face da Terra. O sofrimento e a morte
encheram-se de um significado. E, desde que reside em cada um de nós uma alma
resgatada pelo sangue de Jesus, os escravos e os senhores confundem-se na mesma
ânsia de salvação e na confraternidade dos mesmos sacramentos. Roma, céptica,
incrédula, não perseguiu os cristãos porque eles trouxessem consigo uma religião
diversa do politeísmo que o império professava. Roma faria até lugar a essa
religião nos seus altares, se os mandamentos, saídos da tragédia do Calvário, não
representassem para a estrutura do Império o maior dos abalos sociais.
Com razão observa o insigne Godefroid Kurth que a história da
humanidade está partida em duas vertentes. Do fundo das idades cresce uma,
[43]pedregosa e lenta, para o cimo do monte em que Jesus expirou. A outra desce de lá
e dirige-se para o futuro com a procissão dos séculos cristãos. A sociedade, o que
hoje é nos seus alicerces mais sólidos, deve-o ao Cristianismo. Podem os povos
formar os mais fantásticos projectos e conspirar contra o jugo paternal de Cristo.
Mas as condições eternas da sua felicidade e da sua segurança não repousam em
outros fundamentos. «Por muito que tenhamos errado e seja qual for a distância
que nos separa do nosso modelo, a civilização da moderna Europa cresceu à
sombra da Cruz e o que nela existe de melhor respira ainda o espírito do
Crucificado.» Eis como se exprime, do outro lado do mar, o grande almirante
Mahan no seu livro A salvação da raça branca, não hesitando em chamar ao
Cristianismo a única regra eficaz de „resistência ao mal‟
.
Na tremenda expiação em que se debate o nosso continente enlutado, o
renascimento para o Senhor será o prémio obtido pelo holocausto de tanta vítima
inocente. Porque formámos fantásticos projectos, o Senhor nos castigou „com uma
vara de ferro‟, quebrando-nos „como um vaso de argila‟. Mas a meditação do
grande drama litúrgico que a Igreja comemora hoje, debruçada para a frialdade de
um túmulo, recorda-nos que, mesmo quando por um pouco se acende a ira de
Deus, são bem-aventurados os que se voltam para Ele com inteira confiança. Eu
não sei que catástrofes formidáveis se reservam ainda para o nosso espanto e para a
nossa dor. Mas se tudo houver de vir abaixo num tumulto de Juízo-Final, não nos
esqueçamos nunca de que, colocada entre a agonia dissoluta do Império Romano e
a anárquica das invasões bárbaras, a Igreja guardou com poderes de milagre o
património sagrado das gerações e por suas próprias mãos restaurou a sociedade
que parecia pulverizada para sempre.
O espírito universitário
Eu não compreendo como haja ainda alguém neste país que considere o espírito
universitário como um elemento seguro de educação nacional. Confunde-se a
Universidade – organização destinada a preparar a cultura geral da Nação, com a
mentalidade que abusivamente se apossou dela e abusivamente a pretende
representar. Quando falo do espírito universitário, refiro-me àquele que marca com
mais vigor a influência dessa alma parens, que devia ser uma Universidade, na
acidentada vida pública da nossa pobre terra. Compreende-se desde já que seja o
espírito jurídico, porquanto, dado o carácter experimental e imediato do ensino
professado nas outras Faculdades, a acção social que dele resulta é logo corrigida e
limitada pela sua natureza estritamente técnica e profissional.
Do ensino do Direito é que nós nos devemos recear, porque ao ensino do
Direito, através da mania legislativa e da formação kantista dos seus cultores, é que
a Europa agradece a instabilidade revolucionária do último século. Nós vemos,
realmente, os juristas participarem de todas as tentativas de inovação política e
económica, serem eles os mais decididos apóstolos da ilusória regeneração de que
a Democracia se pretende sempre acompanhar. Enganam-se os que supõem os
juristas inclinados às verdades tradicionais.
As verdades tradicionais são factos nascidos de uma longa elaboração
histórica, que não se comporta nas normas rígidas em que o jurisconsulto procura
por via de regra enfeixar e simplificar a marcha complexíssima da sociedade. A
sociedade é para o jurista um tipo único e abstracto. O jurista, arvorado em
legislador, tende por isso a realizar esse tipo, que a Democracia lhe oferece como
nenhum outro sistema de filosofia política. Eis porque o Direito, em vez de
[45]exprimir a sociedade, passa assim despoticamente a determiná-la. É o que nos
demonstrará um relance rápido pelo desenvolvimento social da Europa.
A Europa moderna constitui-se baseada na família e na propriedade, ao
contacto maternal da Igreja. Com o Costume, interpretando as necessidades da
existência em comum, se deu origem ao direito foraleiro tão fecundo e tão rico na
sua amplitude e na sua maleabilidade. Aparecem, porém, os Legistas a desenterrar
das ruínas do mundo clássico o formalismo já cadaverizado da jurisprudência
romana. O divórcio entre a sociedade constituída e o abuso cesarista do Estado
começa então. As realidades municipais e corporativas, surgidas da estrutura
comunitária da Idade Média, desnaturam-se pela excessiva concentração das
atribuições do Estado. Os Juristas, sobrepondo-se às realidades, preparam de longe
os alvores da Revolução, que não foi senão um episódio da grande revolução
iniciada no século XIII pelo triunfo perturbador do romanismo.
O direito romano só conhecia o Indivíduo e o Estado. Correspondia a uma
fase social já ultrapassada, que à viva força se impôs a uma sociedade de condição
diversa e dirigida já por outros ditames. Debalde a Igreja protestou pela voz dos
Canonistas contra as cavilações dos Jurisconsultos. A Inglaterra, se escapou à
ruptura violenta da sua continuidade orgânica, deveu-o ao belo instinto de defesa
que a colocou em guarda contra os Legistas. A ideia abstracta da colectividade, a
sua construção racionalista, predominou pelo contrário no continente europeu. Daí
veio o absolutismo dos Reis, que, encarnando-se no Estado-Pessoa, abre a porta
aos delírios da Revolução que consagram o mesmo abuso do Estado, tornado agora
irresponsável pela irresponsabilidade natural dos regimes de sufrágio.
No romanismo se filia uma das causas mais poderosas da decadência de
Portugal. A unificação absolutista da Renascença é entre nós possível pela
influência larga dos nossos jurisconsultos. Eles predominam desaforadamente na
[46]direcção das coisas públicas, a ponto de mais de uma vez os povos em côrtes
pedirem ao Rei o encerramento dos Estudos Gerais. Durante o nosso século XVII
são eles o maior entrave ao aproveitamento das belas energias que a guerra da
Aclamação suscitara nesse magnífico despertar da alma secular da Raça. E mais
tarde, quando chegue a hora da política geométrica e ferozmente unilateralista do
marquês de Pombal, quem é que nós encontramos a sustentar-lhe os caprichos da
sua ditadura nefasta senão os legistas e sempre os legistas?
Depois, com o importar das modas da França, escusado é salientar a
preponderância dos juristas, com a Universidade à frente, na desnacionalização do
país, revolvido de baixo para cima no furor sistemático de tudo se reformar, de
tudo se demolir. Plurimae leges, pessima respublica – dizia a boa sapiência antiga.
E o que foram os juristas para Portugal noventa anos de mentira constitucionalista
e de contínua improvização legislativa o estão bradando aos céus de uma maneira
que a ninguém é lícito desconhecer.
Filho da Universidade, levei cinco anos a desempoeirar-me de todas as
ideologias e de todos os Kantismos com que durante outros cinco anos a
Universidade me enevoara o cérebro. Filhos da Universidade, e até seus
professores, são em boa parte aqueles que têm arrastado Portugal à situação
desgraçada em que nós o vemos, quase tão próximo da morte. Não sei de
eloquência maior, na sua singeleza, do que este espectáculo ruinoso, para que
continuemos a acreditar ainda no nacionalismo do espírito universitário. O jurista
dispõe de uma mentalidade excessivamente especializada, agindo sempre pelo
raciocínio e não utilizando nunca a necessária correcção da história. O seu método,
sendo um método dedutivo, e não indutivo, condu-lo forçosamente a encarar o
Direito como anterior à sociedade. Daqui resulta o natural apoio que o espírito
jurídico dispensa à democracia que lhe fornece – insisto, racionalmente –
instituições mais conformes com esse tipo abstracto de sociedade que tão querido
lhe costuma ser.
Com que razão Cheysson, discípulo de Le Play, escreveu um dia que os
juristas sofriam a superstição do direito existente! A superstição do direito
existente obriga os juristas a uma subalternização da inteligência à letra parada dos
textos, onde, como Topsius nas suas folhas longínquas da Síria, o comentário não
deixa nunca de revolver as maiores extravagâncias de interpretação. Sabe-se que
uma faculdade levada ao exagero se deforma e mutila, tornando-se depressa em
valor negativo. É o que sucede com os juristas, quando, mentalidades especiosas e
enclaustradas numa floresta densa de subjectivismos, nos surgem com imponência
sacerdotal, «ares de convívio diário com os deuses, a discorrer da constituição do
Estado» ou do conceito da soberania. Ora aqui está o ponto fraco do ensino do
Direito, por onde ele se transforma num agente de profunda depreciação
intelectual.
No seu tempo, Varrão contara duzentas e oitenta e oito teorias sobre o bem
supremo. No nosso tempo não sei quantas haja em direito político sobre matéria
constitucional. Com que vigor Augusto Comte não castiga por esse
pedantocratismo impertinente o que ele chama o «mandarinato universitário»!
A construção do Estado! O conceito da soberania! Deixando ao capricho
da opinião individual o exame de factos, que só como factos se podem examinar,
sucede dentro de pouco que a nossa personalidade, acidental e instável nas suas
manifestações, domina e altera anarquicamente as regras eternas da colectividade.
É no que conclui o estudo do Direito, não como meio mas como fim.
O parlamentarismo é disso a prova evidente, o parlamentarismo que os
juristas aceitam com respeito dogmático, na sua submissão a quantas teias de
aranha dimanaram da ideologia desgrenhada dos Imortais Princípios. Se foram os
[48]professores de Direito da Alemanha, com Weisshaupt à frente, quem facilitou o
advento da Revolução pela propaganda do iluminismo maçónico do século XVIII,
não nos admiramos, pois, que os seus representantes mentais lhes não rejeitassem a
herança!
Eis porque é necessário defender a Universidade, organização destinada a
preparar a cultura geral do país, contra o espírito de desnacionalização que ali se
alberga. Levantamos hoje o nosso grito, iniciando um combate que será um dos
mais afervorados no nosso desejo de servir a Pátria. É preciso que haja uma
inteligência nacional – e essa inteligência não existirá enquanto não existirem
mestres capazes de a formarem e dirigirem. Porque outro não tem sido o nosso mal,
é que nós nos achamos dispostos a não permitir que ele se continue encobrindo
com manto de seda. Viva a Universidade, mas guerra ao espírito universitário!
O Brasil
Comemoremos a data gloriosa da descoberta do Brasil, com uma vista geral sobre
o que o Brasil representa como criação do génio português. O Brasil o que é nos
seus traços fundamentais, deve-o primeiramente aos Jesuítas, e, depois, a esse Rei
tão injustamente caricaturado que foi D. João VI. Um outro Rei de Portugal, não
menos incompreendido no seu alto espírito político, viu no Brasil a nossa „vaca de
leite‟
. Refiro-me a D. João IV, que na sua célebre entrevista com o cavalheiro de
Jant, esclareceu com uma visão admirável qual seria o futuro da nossa acção
marítima, se um dia, apoiados a valer na nossa colónia americana, pudéssemos
transformar o Atlântico num mar exclusivamente português. E é de justiça não
esquecer D. João III, que só pela colonização do Brasil mereceu do insuspeito
Oliveira Martins uma defesa com tanto de sincera como de reparadora.
Ninguém ignora que, descoberto o Brasil, o problema do seu povoamento
só foi resolvido a princípio pela metrópole com levas de degredados. Elementos
ociosos e parasitários, em nada contribuiram para o cultivo das terras, nem para o
desenvolvimento da colonização. Em rixas constantes, procuraram apenas viver da
expoliação do indígena, que sofreu verdadeiramente uma caça de morte debaixo de
todos os sentidos. A vastidão territorial das capitanias, por outro lado, dava lugar
ao afrouxamento da autoridade e a extorsões e excessos a que de Lisboa se torna
impossível acudir. A chegada dos Jesuítas, como missionários, é que marca o início
de uma vida melhor para a colónia. Nos livros dos senhores J. Lúcio de Azevedo e
Moreira Teles, respectivamente Os Jesuítas no Grão-Pará e Notas de Estudo, se
encontra debatido o assunto com um critério histórico notabilíssimo, a que me é
agradável prestar homenagem.
[55]Os Padres da Companhia manifestaram-se logo pela protecção aos naturais.
Conseguiram mais tarde escritos pontifícios, proibindo energicamente o comércio
de escravos. Os grandes inimigos dos Jesuítas foram por isso os colonos, que,
apoiados na escravatura, se dedicavam à plantação e ao cultivo da cana de açúcar.
Propriamente a agricultura não se desenvolve senão quando os Jesuítas prendem os
índios ao solo e ao trabalho, realizando esse esforço admirável dos „aldeamentos‟
,
destinados a desaparecer diante da insensatez da administração pombalina.
Oiçamos João Ribeiro na sua História do Brasil: «Pombal, transviado talvez por
informações falsas e por arreigado ódio contra os Jesuítas, pela extemporânea
expulsão deles, deu, sob mais de um aspecto, sensível golpe nas importantes
colónias de Portugal; e no que diz respeito aos índios, sem dúvida alguma,
preparou-lhes a ruína civil e aquela triste e irremediável condição em que hoje em
dia vemos a raça vermelha nessas terras.»
Com efeito, o regime de grossos monopólios e das companhias
majestáticas a que o Marquês submeteu a nossa colónia da América, representou
para ela um recuo gravíssimo na sua prosperidade e na sua marcha civilizadora.
«Só a grande vitalidade da colónia, escreve o Sr. Moreira Telles pôde resistir aos
desvarios desta sinistra administração pombalina, cuja rede sugadora dos
monopólios arrastou para a metrópole benefícios e riquezas a troco de vexames e
miséria para o Brasil escravizado.»
Mais de meio século corrido, é que o Brasil entraria francamente no
caminho da sua força e do seu legítimo desenvolvimento com a saída para a
América do Príncipe Regente e da côrte de Lisboa. Eis aqui um acto político
extraordinário de D. João VI, que não só nos salvou a independência, como aluíu
por completo as aspirações imperialistas de Napoleão! Não se trata de uma fuga,
nos dizeres correntios dos nossos historiadores. Já D. Pedro da Cunha aconselhara
ao Prior do Crato a retirada para o Brasil. Igualmente a aconselhou a D. João IV,
numa hora bem amarga, a infatigável iniciativa do Padre António Vieira. E
ninguém ignora que, por ocasião da guerra derivada do chamado Pacto de Família,
Pombal teve no Tejo preparada a frota que levaria o Rei e a sua casa para as
paragens distantes do Amazonas. Essa saída da côrte de Lisboa para a América
pertence ao nosso velho património político. E tanto Napoleão a receava que, na
sua correspondência para Junot, é a ideia que mais o preocupa e que ele mais receia
ver realizada.
Pois a mudança da Dinastia para o Rio fez surgir na vida amodorrada da
colónia uma sociedade nova, modelo à europeia, com escolas e academias,
acompanhada dos consequentes progressos comerciais e sociais. Oliveira Lima,
que trocou pela adesão ao Príncipe Pretendente a fortuna brilhante de uma brilhante
carreira diplomática – Oliveira Lima, na sua obra Dom João VI no Brasil, reabilita
com nobreza este caluniado monarca, vendo nele o impulso rasgado e consciente
que arrancou a terra de Santa-Cruz do seu estado hesitante de colónia para lhe abrir
os horizontes de uma nacionalidade futura. A emancipação era fatal, nada a evitaria
num decurso maior ou menor de tempo. Quiseram as circunstâncias que o laço com
a metrópole se rompesse debaixo do ceptro de D. Pedro, e não como um acto de
pura e simples rebelião republicana. A esse facto se atribui até a relativa
estabilidade do Brasil na sua formação orgânica, uma vez que a comparemos com
as demais nações hispânicas da América.
Bem sei que o Império cedeu – e cedeu para se transformar numa república
federal, como se semelhante modificação houvesse de fornecer razões aos que
supõem a Democracia um sistema superior de governo. Eu poderia demonstrar que
o Brasil, em cuja divisão em Estados revive quase a antiga jurisdição das
capitanias, não representa de modo algum uma verificação democrática.
Admitamos, porém, que o seja. Sê-lo-á então pela lei de ciência política que
reconhece a Democracia como uma fase de transição nos países novos, enquanto
[57]que é uma regressão patológica nos povos já entrados numa adiantada curva
histórica. Por isso mesmo, porque a Monarquia corresponde a um período mais
definido de maturação, é que o Império no Brasil, por extemporâneo, caíu sem
grandes raízes no ânimo das populações.
Dizia-o em 1889 Eduardo Prado, por exemplo, ao observar: «Quem estudar
a história do Brasil independente verá a desproporção entre a civilização real do
país e o adiantamento das suas instituições, originando um desequilíbrio sensível
ainda hoje.»
Mas não é esse o aspecto do Brasil que na data da sua descoberta nós
outros, portugueses, devemos ter em vista. Pátria livre, filha da nossa Pátria, «só
pelas grandes qualidades colonizadoras dos portugueses – reconhece Eduardo
Prado –
, pela fecundidade da sua aliança com a raça indígena que eles tiveram de
subjugar à força de coragem e valentia, é que o Brasil pôde ser feito, apesar de
todos os erros do governo de Portugal». Lembrêmo-lo nós com desvanecimento,
olhando ao consórcio que porventura uma política sábia haja de conseguir amanhã
entre os destinos das duas nacionalidades. Pensou-o el-rei D. Carlos, digno
continuador de uma dinastia para quem a valorização externa de Portugal traduziu
sempre a mais intensa preocupação da sua actividade. Ao Portugal de amanhã, ao
Portugal Restaurado cumpre efectivar a alta aspiração do egrégio Monarca. O
sonho de D. João IV, considerando o Atlântico um lago português, talvez que ainda
um dia se veja realizado!
Os Jesuítas e as Letras
Não se trata do célebre opúsculo do Padre José Agostinho de Macedo, mas trata-se
da mesma questão de que já ele se ocupava. Alguém me pergunta de longe qual a
responsabilidade dos Jesuítas na decadência das nossas letras ao longo do século
XVII e sobretudo durante o século seguinte. Eu sei! É a velha calúnia histórica
mantida pela insuficiência de espírito crítico naqueles que, simbolizados em
Mendes dos Remédios e em outros congéneres burocratas do pensamento, não
fazem senão repetir em miseráveis compêndios de fancaria todos os odientos
lugares-comuns em que a sua inteligência subalterna e apagada se compraz
admiravelmente, quando mais não seja pela lei do menor esforço!
Complexo em demasia, este problema dos Jesuítas e da sua acção na
decadência do nosso património literário mal pode ser abordado, como tema
fugitivo, nas fugitivas palavras de um artigo de jornal. No entanto, assente-se logo
de entrada que não os Jesuítas, mas sim a prática subserviente do Humanismo é
que contribuíu para o definhamento sensível da nossa literatura, principalmente da
nossa poesia. Surge-nos com isto uma questão gravíssima, a da Renascença. A
Renascença é para Portugal, de um modo geral e debaixo de todos os pontos de
vista, uma crise de profunda desnacionalização. Os Jesuítas aparecem entre nós na
altura em que as nossas empresas ultramarinas nos lançam na carreira doida da
perdição. Traduzindo o admirável movimento eclesiástico da Contra-Reforma, a
Companhia de Jesus vai ao encontro do Humanismo e aproveita-o na sua missão
educadora como alto elemento pedagógico. «Os Jesuítas – escreve Joseph
Ageorges – resolveram magníficamente o caso de consciência do humanismo.
Souberam compreender que é preciso não hostilizar a cultura intelectual, mas
utilizá-la em benefício da religião.»
[59]Todavia, se o Humanismo significava e significa na pedagogia uma
poderosa disciplina de formação mental, já o seu ideal literário não correspondia à
nossa natureza fundamentalmente emotiva. Essa emotividade fez de nós um povo
de líricos que nos Cancioneiros e nas novelas de Cavalaria se retrata com
fidelidade e com paixão. Uma coisa são as humanidades como meio, outra coisa
são as humanidades como fim. As humanidades como meio constituem um dos
mais fortes valores educativos. As humanidades como fim, num país cuja noção de
sentimento e de gosto se houvera definido colectivamente já em período anterior,
conduzem de uma maneira inevitável ao artifício e ao pedantismo, tal como hoje
em dia a teoria da arte pela arte nesses curiosos parvenus da vida de letras que
usam de dar pelo nome de Estetas.
No seu volume Ruine du monde antique, o grande espírito de Georges
Sorel aponta com luminosidade as consequências desastrosas da cultura clássica,
como os romanos da decadência a praticavam e como a praticaram depois, na
Renascença, os receptadores da herança humanista. «Cultura de retóricos, cultura
de diletantes, cultura formalista e vazia, onde os alunos, habituados a discorrer
sobre temas desprovidos de todo o senso real e fora de todo o conhecimento
positivo, não podem tornar-se senão beaux-esprits, capazes de discutir num salão
de omni re scibili, mas impotentes para todo o trabalho produtivo, como para toda a
criação verdadeiramente espiritual». Foi este falso conceito da cultura clássica que
deu mais tarde o gongorismo, o marinismo, enfim, as formas preciosas e ultras em
que as letras se desvirilizaram, optando pela cópia servil dos modelos que, como
cânones intangíveis, as arcádias poéticas nos ofereciam na Antiguidade.
Entende-se já que os Jesuítas, longe de serem uma causa dessa degradação,
não representam senão uma das suas muitas vítimas. Observar-se-á que aos Jesuítas
pertencia a direcção literária da mocidade. Assim é, sem dúvida. Mas deles se
poderá dizer o que já Garrett, numa larga intuição, dissera de El-Rei D. João V: «A
[60]culpa não foi sua, mas do século, se de tão mau gosto eram as letras que protegia.»
A culpa não foi também dos Jesuítas. E a prova de que não foi, achamo-la nós em
França. Em França, por motivos de ordem vária, cujo exame não nos é agora
possível, a cultura clássica, além de coincidir com a estabilização da nação e da
língua, em vez de degenerar numa cultura retórica e formalista, manteve-se sempre
uma cultura humana em todos os campos. Daí o século XVII marcar o apogeu
intelectual da França e com figuras que deveram exactamente aos Jesuítas a
conformação das suas inteligências.
Oiçamos o depoimento de Gabriel Compayré, que não é nada favorável à
Companhia, na sua Histoire de la Pédagogie: «No fim do século XVII, os Jesuítas
podiam inscrever, no quadro de honra das suas classes, cem nomes ilustres, entre
outros Condé e Luxembourg, Fléchier e Bossuet, Lamoignon e Séguier, Descartes,
Corneille e Molière.» Se Corneille, Descartes, Bossuet e Molière foram discípulos
dos Jesuítas e ao mesmo tempo marcam nas suas individualidades uma das maiores
plenitudes do génio francês, há que reconhecer não pertencer entre nós aos Jesuítas
a responsabilidade da nossa depressão intelectual.
De resto, embora caluniado, o nosso século XVII é também um grande
século, século de prosistas e de filósofos, em que o Suarismo e um D. Francisco
Manuel de Melo nos revestem de linhas intelectuais altamente europeístas.
São outros os motivos da nossa decadência no número dos quais se destaca
o natural esgotamento que a aventura de Além-Mar nos custou.
Mas acentue-se que, ainda assim, muito devemos intelectualmente aos
Jesuítas. Basta falar no Padre Manuel Godinho, no Padre João de Lucena, no Padre
António Vieira. Basta falar no desenvolvimento que eles deram à instrução popular
e preparatória. A sua obra como missionários assinala-se também nos domínios da
ciência. Não têm conto as memórias e relações geográficas que nos legaram. Foi
[61]mundial a célebre Gramática do Padre Manuel Álvares de que em 1859 se
apontavam 150 edições. Outra gramática, a do Padre Diogo de Melo e Meneses,
viu-se traduzida em francês e adoptada lá fora como compêndio no ensino da
língua latina. Muito contribuiram os Jesuítas para o conhecimento dos idiomas
orientais. É de um Jesuíta de apelido Rodrigues a melhor gramática antiga de
japonês. Em Portugal professaram várias disciplinas, além de Jesuítas nossos,
muito ilustres, os afamados padres Molina e Suárez – um em Évora, o outro em
Coimbra. Testemunho insuspeito é o da Introdução do Dicionário da Língua
Portuguesa, publicado em 1791 pela Academia Real das Ciências. Aí se confessa
que «a idade mais elegante da nossa língua deve considerar-se desde o ano de 1540
em que começaram a ler na Universidade de Coimbra os insignes mestres, que el-
rei D. João III nela estabeleceu».
Termino. O assunto fica apenas aflorado. Mas esse moço integralista que
de longe me consulta com a sua alma ardente de bom português, e a quem tão tarde
respondo, já tem com que se defender do pobre „primário‟ que lhe procura
envenenar o cérebro com ideias mentirosas!
Santo António
Não é o santo menineiro do nosso calendário que eu venho lembrar à homenagem
de quantos se não esqueceram ainda de Santo António de Lisboa. Esse pertence à
devoção ingénua do povo, com os cravos florindo no escuro e o mistério profundo
do Solstício enchendo de perturbações indizíveis o coração das raparigas. Guarde-
lhes o glorioso Taumaturgo a pureza dos seus alvoroços – fiador de bons
casamentos, poder de prodígio que recupera as coisas perdidas e afugenta as
malícias do Demónio! Com uma lágrima sentida de saudade eu o entrego à
evocação longínqua da minha infância, lá numa vila distante em que ia adorá-lo por
mão de uma velha tia numa igreja hoje caída – piedade para as igrejas de Portugal!
–, pelas tardinhas lentas de novena, com o rosmaninho embalsamando-lhe o altar.
Porque é do Outro, do que ficou na história e que encheu o mundo com os clarões
admiráveis da sua virtude e da sua inteligência, que nós nos devemos recordar. Ao
Santo António da lenda todos o conhecem, desde o milagre das bilhas quebradas
até ao seu alistamento no exército português, onde ganhou as dragonas de tenente-
coronel. Já não acontece o mesmo com o místico assombroso do século XIII, que
proclamado «Vaso do Espírito Santo» pela consciência religiosa do seu tempo, foi
um dos maiores luzeiros da Cristandade medieval.
No declínio cada vez maior da baixa superstição racionalista, a verdadeira
ciência, instituindo o misticismo como uma experiência positiva, leva-nos hoje,
independentemente de toda a ideia teológica, a encarar a realidade moral que é um
Santo como uma realidade psíquica superior. Passou já a corrente, tanto tempo em
moda depois dos trabalhos de Charcot, que considerava os Santos como uma
manifestação típica de histeria, como um puro fenómeno hospitalar. Agora com o
impulso dado à observação psicológica pela visão penetrante de William James, os
[67]estudos místicos dentro do ponto de vista científico aumentam de hora para hora,
confirmando quanto experimentalmente se pode confirmar a definição que a
teologia nos apresenta dos Santos. Num pequeno volume, Hysterie et sainteté, o
doutor Lavraud, professor na Faculdade Livre de Medicina em Lille, prova-nos que
os Santos não são nada uma anomalia, tendo-os antes como o produto de uma
vontade firmemente exercida e caracterizada pela mais absoluta unidade de vida
interior.
Registemos esta conclusão do ilustre sábio, esquecidos como não estamos
da ignomínia que sobre a figura excelsa de Nun‟Álvares procurou lançar há anos a
desonestidade de um diagnóstico retrospectivo. E interessante seria continuar no
exame do assunto, se ele não crescesse para além dos limites que forçosamente me
aprisionam. Basta que o enunciemos, solicitando para ele a atenção intelectual de
quem se preocupa com as elevadas coisas do espírito. Assim compreenderemos
melhor a acção social dos nossos Santos, que não são apenas nomes venerados no
fundo das capelas, mas expressões altamente representativas da alma nacional, de
que brotaram como flores supremas.
No agiológio português, Santo António marca uma das mais erguidas
revelações do génio da nossa raça. No maravilhoso movimento de renovação
espiritual que foi durante a Idade Média o franciscanismo, Santo António é a
colaboração prestada pela nossa pequena pátria a uma das mais belas épocas da
história do Ocidente. Trocando pelo burel grosseiro de frade-menor a sua murça
roçagante de cónego de Santo Agostinho, Santo António sente-se arrebatado pelo
ardor apostólico que o vai em breve tornar o verbo vivo das Escrituras. Arde em
sede de martírio, ambicionando a sorte padecida pelos cinco mártires de Marrocos.
É para ali que António se dirige no desejo insofrido de padecer também tormento
em testemunho das verdades cristãs. Santo António iniciava assim o caminho do
[68]Portugal vindouro que na dilatação da Fé encontraria a razão universal do seu
imperialismo.
Dilatar a Fé é, ainda agora, dilatar a civilização. No tocante exame de
consciência que é Le voyage du Centurion, Ernesto Psichari escreve: «Por isso o
viajante sobre a terra de África, faça o que ele fizer e seja ele quem for, é sempre
Cristóvão com o seu grosso cajado, transportando perto da cabeça curvada o
menino com o globo e a auréola de luz invisível.» Nós assistimos à ressurreição do
mesmo conceito de Cristandade na pena de um dos mais aclamados escritores
militares do presente. Refiro-me ao americano Mahan que, perante os perigos em
que o futuro da raça branca se embrenha e dificulta, não trepida em apontar ao
século XX «que a grande tarefa que altamente se impõe ao mundo da Cristandade
civilizada, a sua grande missão que é necessário cumprir, para não desaparecer,
consiste em receber no seu seio e educar no seu próprio ideal essas antigas e
diferentes civilizações... a cuja frente se alinham a China, a Índia e o Japão».
Santo António teve, quanto a nós, a adivinhação dessa nossa vocação
histórica. Desgarrando das areias amadas de Portugal, traçava-nos pelo seu
exemplo a estrada do futuro. E se o dedo de Deus o desviou da palma augustíssima
do martírio, foi porque um alto destino, um destino mais fecundo e mais edificante,
o aguardava na Itália, já purificada pelo cristianismo consolador de São Francisco
de Assis.
Na dureza das lutas medievais, que tornaram a Itália a casa paterna da dor,
na expressão formidável de Dante, a paz só se conheceu com a submissão
voluntária espalhada nas almas pela palavra humilde do Poverello. A Igreja cura-se
por ele de uma das suas crises mais graves. E o florescimento da poesia e da arte
diz-nos quanta frescura e alegria salutar o esposo da Senhora Pobreza não
derramou a mãos ambas em torno de si. Pois no florescimento da religião
[69]franciscana, se São Francisco é o divino Mestre, Santo António é o novo São
Paulo.
Pregando a primeira vez por obediência, a chama do Espírito Santo abrasa-
o tão arrebatadoramente, que São Francisco, desvanecido, ao chegar-lhe a fama
dessa oração, não se teve em si que não exclamasse: «Já temos um bispo!» Bem
depressa Santo António é cognominado por Gregório IX «Arca do Testamento».
Ensina teologia em várias cátedras. Do alto do púlpito, a sua língua, como uma
flama, fustiga a simonia e a corrupção, não havendo auditório que não se curve às
rajadas dominadoras da sua eloquência. Professa teologia em Bolonha, com
Rolando Bandinelli, mais tarde Alexandre IV. Montpellier e Tolosa escutaram
também os ensinamentos de António. E Renan quer que o Cantico delle Creature,
de São Francisco, fosse posto em verso por tão grande português. Se na santidade e
na fé militante deixava de si um sinal luminoso, até o lirismo da raça lhe emprestou
as suas asas bem rasgadas!
É este o Santo António que intelectual e socialmente nós temos que
comemorar e que conhecer. Revigorar-lhe o culto não é indiferente para honra da
pátria nem para o decaído marasmo que nos entenebrece como um eclipse já longo
demais. Clamemos por todas as nossas energias, por todos os títulos da existência
para nos restituirmos à consciência perdida da nossa finalidade. Os Santos são na
vida dos povos o índice dos seus merecimentos espirituais. Possam perante Deus
valer, mais que os nossos crimes, as virtudes dos nossos Santos! E que Santo
António de Lisboa, oficial condecorado do exército português, nos conduza de
novo ao caminho da salvação, como, de cima da sua mulinha branca, nos conduziu
à vitória na batalha do Buçaco!
Pátria e Monarquia
Este problema da identificação da Pátria com a Monarquia, ninguém o colocou
melhor do que o insigne Alberto Sampaio. Em nota à sua monumental monografia
– As ‘vilas’ do norte de Portugal – escreve esse malogrado espírito que entre nós
foi o único tocado pela influência salutar de Fustel de Coulanges: «Formado pela
educação histórica, é ele (o génio da raça, na sua própria frase), quem organiza a
vida social; sobre esta, nada pode a acção do governo, decisiva pelo contrário na
vida nacional.» De facto, assim é. A aptidão comunitária da gente que subsistiu,
através de tantas invasões no noroeste peninsular, veio, pelo andar dos séculos, a
traduzir o belo instinto nacionalista, que tornou possível a formação de Portugal.
No entanto, as qualidades naturais da raça não vingariam nunca, se às tendências
expansivas o Estado não acabasse por lhes conferir uma finalidade e uma
consciência. É aqui que a Monarquia intervém, realizando pelo egoísmo dinástico a
consolidação definitiva da Pátria, saída já do protoplasma primitivo e entrada enfim
na sua fase de diferenciação jurídica e política.
São-me sugeridas as presentes reflexões pelo debate levantado em pleno
Parlamento sobre a obra colonizadora da Monarquia no Brasil. O sectarismo da
maioria pronto atalhou que não fôra a Monarquia, mas sim a Pátria, que no Brasil
nos criara um segundo Portugal. Claro que a Monarquia – ideia de regime,
bandeira de partido – é uma novidade de importação que só aparece em Portugal
quando a divisão moral do século passado provocou, pelo advento dos princípios
da Revolução, as lutas civis em que o equilíbrio das aspirações colectivas seria
substituído pela supremacia de uma opinião triunfante.
Antes disso, na sua completa significação,
„Monarquia‟ em Portugal valia o
mesmo que „Pátria‟
, de que era o órgão necessário à sua vitalidade, à sua
[71]independência e à sua duração. Confirmando o acordo das preferências obscuras da
nacionalidade com o prestígio e a soberania da Realeza, a nossa história
demonstra-nos que em transe nenhum a conveniência dinástica se mostrou
divergente ou antagónica da conveniência geral. Pode a Monarquia anteceder uma
nacionalidade. Mas nacionalidade sem Monarquia é que nós não vemos persistir e
fortificar-se na existência acidentada dos povos da velha Europa.
Compreende-se assim a inteira identificação da Pátria com a Monarquia. A
Pátria reflecte as maiores ou menores possibilidades de um agregado nacional para
o seu desenvolvimento e para a sua permanência. Esse desenvolvimento e essa
permanência é que se não obtêm sem que, no Estado constituído, a noção do
interesse de uma dinastia nos surja a desposar o interesse da comunidade. A
demonstração é fácil de se deduzir, se há quem lhe pretenda contestar a evidência.
Nos termos de Alberto Sampaio, a capacidade orgânica da nossa raça conseguira
estabelecer a vida colectiva. São os primórdios de uma nacionalidade, são os seus
alicerces mais seguros. É donde nasce a irresistível inclinação separatista que
Herculano nos assinala insuspeitamente ao observar que «é impossível deixar de
reconhecer na série dos factos que ilustram a história do estabelecimento da
independência portuguesa certo instinto da vida política individual nas populações
aquém do Minho, que já anuncia nelas a futura perseverança com que resistiram
desde então até hoje a assimilar-se ao resto da Espanha e a incorporar-se nela».
Elemento para contar, de nada nos serviria, entretanto, se a ambição de D.
Tareja, consubstanciada depois em D. Afonso Henriques, não desse origem a um
Estado lá onde vibrava, já em franco florescimento, o condicionalismo
indispensável para uma existência de povo livre. No dia em que um príncipe
desfralda o pendão da revolta, é Portugal que se emancipa. Possuindo um chefe,
possui na continuidade e na persistência desse esforço a acção inteligente e una,
[72]sem a qual não há poder que facilite a defesa na guerra e que garanta a autonomia
na paz.
Apesar de nos Opúsculos haver afirmado que «na história das instituições
os Povos da Península são mais velhos do que eles pensam», ninguém ignora que
Alexandre Herculano considerava Portugal unicamente um produto da política
exclusivista dos seus príncipes. «Obra a princípio de ambição e orgulho – comenta
o historiador –
, a desmembração dos dois condados do Porto e de Coimbra, veio
por milagres de prudência e energia a constituir, não a nação mais forte, mas
decerto a mais audaz da Europa nos fins do século XV.» De nada mais
careceríamos para testemunhar bem claramente quanto a Pátria anda ligada à
Monarquia, e quanto a Monarquia é a razão essencial de toda a sua glória e
viabilidade.
O mesmo juízo nos oferece Oliveira Martins, não obstante a sua funesta
teoria do Acaso, negando-nos criminosamente fundamentos de nacionalidade. Ora
se na visão restrita daqueles mesmos autores, para quem as nossas condições de
nação autónoma não se revestem de nenhuma explicação que não seja a de um
simples arranjo dinástico, a Monarquia é desta maneira apresentada como a força
íntima que gerou a Pátria, com dobrados motivos a temos nós que reconhecer e
aceitar como tal, olhando a que, sem ela, sem a sua decisão eficaz e rápida o
irredentismo do condado portucalense jamais iria além das debilitadas
reivindicações regionalistas da Galiza actual. Alberto Sampaio examinava, pois, o
problema com exactidão. Se a vida social já existia, a vida nacional não existiu,
enquanto não existiu um governo que lhe imprimisse forma e consistência.
Mas nós dissemos que pode a Monarquia anteceder uma nacionalidade.
Mas nacionalidade sem Monarquia é que não se descobre no desenho emaranhado
que são as origens das nacionalidades europeias, insistimos agora. Com efeito, em
[73]França a Monarquia antecede a Pátria cuja unificação começa lentamente, num
labor demorado e difícil, com a subida dos Capetos ao trono. Na verdade, só com
Henrique IV é que a França concretiza e fixa as linhas definitivas da sua
fisionomia. Também a Alemanha se arrastou através de um longo purgatório antes
de conhecer a unidade, porque lhe faltou a sequência dinástica, graças à qual –
depõe Lavisse – «outros países se constituiram em Estados que, a seguir, se
tornaram nacionalidades». Opostamente, duas nacionalidades, com as suas
características bem marcadas, bem assentes, acabaram por perder a independência
porque deixaram perder a monarquia no meio das discórdias intestinas. Refiro-me
– é de ver – à Hungria e à Polónia.
«Mas a Suíça?», perguntarão. Triste „placa giratória‟ da Europa, a Suíça
não é mais que a neutralização, a favor dos seus vizinhos poderosos, do antigo
caminho da Europa através da montanha. Sem política externa nem actividade
económica apreciável, a Suíça não é uma nação nem um Estado. É antes um
artifício, conservado e guardado pelas conveniências internacionais do nosso
continente, onde o que há de estrutural e de típico nada mais é do que a
sobrevivência de um cantonalismo tão arcaico como pitoresco.
Equacionada a questão no ponto em que a fixamos e que é rigorosamente o
verdadeiro, não é lícito atribuir à Monarquia o sentido partidário em que as
circunstâncias presentes a pretendem tomar. «Monarquia» equivale a «unidade da
nação» pela «unidade do poder». Admirável palavra a de Balzac, ao exclamar em
face do embarque de Carlos X em Cherburgo: «O Rei é a pátria encarnada, os reis
somos nós mesmos!» Porque o rei é a pátria encarnada, João de Barros, o antigo, o
das Décadas, escreveria em Quinhentos: «Grande glória é morrer por nossa Lei,
per nosso Rei, que são as mais justas causas de morrer. A Grei, que é a
congregação dos nossos parentes, amigos, e compatriotas, a que chamamos
república, celebra o nosso nome de geração em geração. O nome Português é por
[74]isso tão celebrado no mundo, a quem Deus deu este particular dom sobre todas as
outras Nações, Defensores da Fé, e leais ao serviço do seu Rei» (Década II, liv. 3.º,
cap. 3.º).
Sem essa identificação da Pátria com a Monarquia, quem, com os
primeiros Reis, atribuiria direcção às qualidades construtivas da raça, libertando a
terra e enraizando depois as populações? Um instante depois, quando uma
dispersão de soberania ameaça desfazer o reino herdado, quem o salva senão a
energia – tão caluniada por vezes – do alto político que foi D. Afonso II? Porque é
que a nacionalidade se abisma quase na morte ao declinar o século XIV? Porque
morre um rei e a sua sucessão é discutida. Sem dúvida, em 1384 são os concelhos
que iniciam o movimento resgatador. Mas sem um rei, sem a monarquia, esse
trecho da nossa epopeia municipal abortava em cenas avulsas de carnagem, com
todos os estigmas de uma verdadeira jacquerie, que Basílio Teles é o primeiro a
apontar. Porque há um rei, a Pátria entra no período magnífico de Quatrocentos.
Quem desenvolve a expansão, quem mantém o alto pensamento das Descobertas?
As unidades da raça afirmam-se, é certo; são a matéria-prima. Quem as adivinha e
estimula, porém? O Rei, sempre o Rei, que é na sua forma visível a Pátria bem
viva, bem personalizada.
Na hora em que se extingue a segunda Dinastia – porque a Pátria, exausta,
não consegue impor-se um rei natural –
, o ceptro arrasta consigo, na sua queda,
quase a perda da nossa independência. Mas tão depressa encontremos um Rei
natural, com a ressurreição da Monarquia é Portugal que ressurge. No regime de
unidade nacional em que a Pátria então vivia, os eruditos de Alcobaça designam as
suas Crónicas por Monarquia Lusitana, como nós escreveríamos hoje História de
Portugal. E consagrando essa estreita aliança, no renascimento do nosso
eruditismo, D. António Caetano de Sousa comporia a História genealógica da
Casa Real.
[75]Fica mais que evidente a razão por que o duque de Orleães ditou um dia a
sua fórmula célebre: «Tudo o que é nacional é nosso!» É que a Monarquia,
pairando acima das dissenções, mais alta e mais forte que os partidos, quando não
cria a pátria, é o único princípio que a conserva e glorifica. Na insurreição do
indivíduo contra a espécie, utilizando a frase célebre de Comte, não o quererão
assim as mentalidades mordidas do pior sectarismo. Quere-o, porém, a obra secular
da nossa história, que é a obra dos nossos Reis colaborando com a nossa raça.
Meditemos nós tão grande lição! Deixaram-nos ficar eles em morgadio o
património sagrado da terra portuguesa. Não foram perante as gerações senão os
seus administradores. «Procurador dos descaminhos do Reino», se intitularia de
uma vez espontaneamente, a si próprio, el-rei D. João IV.
Descaminha-se o Reino, porque não temos Rei. E porque não temos Rei, é
que a pátria está em perigo. Renove-se o velho consórcio de Portugal com a
Monarquia e logo haverá quem nos dirija e caminhe à nossa frente!
24 de Julho
A 24 de Julho de 1833 entrou em Lisboa o troço do exército liberal do comando do
conde de Vila-Flor, a seguir duque da Terceira. A hora é bem para o recordarmos,
quando todos nós nos sentimos vítimas do erro comum que um ano depois, em
Évora-Monte, expulsaria do trono português o seu verdadeiro rei, e quando a
situação externa criada hoje a Portugal pela força da guerra nos ensina claramente
como o governo de um país, divorciado por completo das suas aspirações e dos
seus interesses, pode em todo o caso figurar aos olhos do estrangeiro como o seu
governo legítimo. Foi o que sucedeu com a monarquia constitucional, filha da
Maçonaria e dos vícios piores da Revolução Francesa, e da qual a entrada em
Lisboa do duque da Terceira ia ser o primeiro passo para a sua aclimatação
definitiva.
As consequências do romantismo político em tantos espíritos
manifestamente sinceros apalpam-se agora no estado de desorganização em que
Portugal se debate. A república não nos teria dominado tão esmagadoramente, se o
individualismo revolucionário não nos houvesse enfraquecido de antemão a
resistência secular, substituindo as nossas instituições tradicionais por outras,
nascidas da pura teoria e só na pura teoria acreditadas. A nossa época oferece-nos
até inesperados pontos de contacto com essa época agitada de 33. A deposição
recente do rei Constantino mostra-nos como é fácil despojar um monarca do seu
direito, embora inteiramente identificado com o sentir do seu povo.
Eis o que sucedeu em 34 com D. Miguel. De modo nenhum Portugal o
atirou para o exílio. Atirou-o para o exílio a Quádrupla Aliança, tornada possível a
sua intervenção pela mudança ministerial que em Inglaterra levou os whigs ao
poder e, sobretudo, pela Revolução de Julho que em França lançou por terra a
[77]realeza de Carlos X. O curioso é que no tipo perfeito de político desnacionalizado
que é Venizélos nós encontramos sem dificuldade a representação viva de quantos
ideólogos se prestaram então em Portugal à ruína da sua pátria, unicamente por
homenagem a uma nefasta solidariedade internacional de princípios.
Condenada pela Europa liberal, a causa de D. Miguel dificilmente
subsistiria, conquanto a dedicação dos portugueses não faltasse ao seu infortúnio
admirável. Apressou-lhe, porém, o desenlace trágico a delação e a incompetência
que na política miguelista abriam caminho por toda a parte. São poucos os que se
salvam pela compreensão inteligente da situação. Salva-se talvez o visconde de
Santarém, salvam-se António Ribeiro Saraiva, o bispo de Viseu e José Acúrsio das
Neves. Honrado pelos ódios liberais, José Acúrsio das Neves, que ilustra com o seu
nome a história económica do nosso país, morreria num palheiro ao abandono,
debaixo da perseguição dos seus inimigos que nem a agonia lhe souberam
respeitar. O bispo de Viseu, D. Francisco Alexandre Lobo, conheceria a emigração
e quase o desacato ao carácter sagrado do seu ministério. Iludem-se os que supõem
nova em Portugal a sanha de vexames e de opressões que a república não fez mais
que ressuscitar dos fastos já esquecidos do nosso liberalismo. Basta lembrar a
extinção infamíssima das Ordens Religiosas, que Alexandre Herculano – um
sincero! – apostrofaria em páginas ardentes, ainda motivo profundo de comoção
em quem as lê. De resto, não é só minha a afirmação. Ramalho Ortigão, ao fim da
vida, perfilhava-a quando na Carta de um velho a um novo se expressa nestes
termos: «A obra liberal de 1834 – convém nunca o perder de vista – foi
inteiramente semelhante à obra republicana de 1910. Nos homens dessas duas
invasões é idêntico o espírito de violência, de anarquismo e de extorsão. Dá-se
todavia entre uns e outros uma considerável diferença de capacidade.»
A diferença que se dava – a Ramalho não escapava o facto – devia-se à
cultura humanista que conformara a mentalidade dos de 34. O individualismo
[78]revolucionário não lhes estava por isso no inconsciente, como observa algures, no
prefácio da sua notável conferência, O Parlamentarismo e o Teatro Moderno,
Hemetério Arantes. Parece que se tinham apropriado daquele conselho do
testamento de Camors, diz Hemetério Arantes: «être aristocrate pour notre compte
personnel et démocrate pour le compte d‟autrui». Mas na diminuição crescente da
cultura e na total dissolvência do pensamento pelo verbalismo fácil da comédia
política, o parlamentarismo, forte nos seus começos pelo apoio intelectual que as
disciplinas clássicas lhe prestavam, degenerou fatalmente no parlamentarismo de
hoje em dia, nado e criado, por mais que a maternidade se lhe recuse, no úbere
farto da Carta Constitucional.
Sem paradoxo nem exageros doutrinários, reconheçamos, pois, que a
república se proclamou em 1820, ganhando raízes fartas, pela corrupção económica
e pela venalidade dos caracteres, na aventura lastimável consumada em 1834.
Ninguém decerto ignora a vergonha a que a França nos sujeitou, mandando ao Tejo
a esquadra do barão de Roussin. E unicamente porquê? Unicamente porque se
julgara e punira em harmonia com as leis do Reino um súbdito francês, Edmond
Bonhomme, que cometera actos sacrílegos os mais repelentes dentro de uma igreja
em Quinta-Feira Santa. Soltou-se Bonhomme, pagou-se uma grande indemnização,
Roussin apresou várias unidades da nossa esquadra, nunca mais restituídas, e sobre
tudo isto os liberais aplaudiram delirantemente a violência sem nome. Tal como
agora, no entendimento universal da causa da Maçonaria sob a invocação retórica
do Direito, da Liberdade e da Justiça! Mas o mais interessante é saber quem era M.
Bonhomme. M. Bonhomme, morto em Lisboa de idade avançada, foi o sócio n.º 1
da Associação do Registo Civil. Eis a genealogia moral que, por intermédio de um
estrangeiro, liga a república que nos desgoverna ao constitucionalismo que nos
arruinou!
[79]A história desse período desgraçado, escrita inteiramente pelo partido
vencedor, precisa ser refundida, por falsa e por caluniosa. D. Miguel representa
precisamente a ideia que hoje triunfa por toda a parte, no florescimento
reaccionário da inteligência europeia. Não passa de um juízo faccioso e grosseiro o
juízo que reputa D. Miguel como representante do absolutismo mais cerrado e mais
brutal. Basta abrir um opúsculo intitulado Memorandum d’une conférence de A.R.
Saraiva, agent diplomatique portugais à Londres, sous le gouvernement de Don
Miguel, avec lord Grey, premier ministre de la Grande-Bretagne... para nos
convencermos, por um lado da conspiração diplomática que, tal como na Grécia,
privou da coroa a el-rei D. Miguel e, por outro lado, dos nobres intentos políticos
que animavam o soberano. «Mais aujourd‟hui le Roi lui-même est convaincu plus
que personne du devoir, en même temps que de la nécessité impérieuse, de rétablir,
en son plein exercice et fonctions naturelles, toute la belle organisation de notre
noble et admirable Constitution ancienne, purgée des formes absolues et
hétérogènes que le Pombalisme (en vertu d‟une sorte de dictature, peut-être
nécessaire dans les circonstances alors) y avait introduite, au milieu du siècle
dernier.»
Nesta passagem de Ribeiro Saraiva contém-se o significado perfeito da
política que a vitória de D. Miguel importava consigo. Importava consigo a
correcção do parlamentarismo pelo critério orgânico da representação territorial
(Três-Estados do Reino) e da representação técnica (Casa dos Vinte-e-Quatro).
Importava consigo a defesa da Família e da Propriedade contra os geometrismos
jurídicos plagiados ao Código-Napoleão. Importava consigo o prestígio da função
régia e o revigoramento da vida local e provincial. Importava ainda consigo, contra
os falsos conceitos de uma liberdade sem alcance real, a manutenção e a
inviolabilidade dessas outras liberdades que, expressas nas nossas velhas franquias
[80]municipais e corporativas, foram o segredo da estrutura formidável da antiga
sociedade.
Mas D. Miguel caíu. Na queda do Rei de Portugal surgiu uma realeza
bastarda, que a si própria se exautorava. É a hora dos tronos au rabais e dos
monarcas au bon marché – na ironia sangrenta de Balzac. A pátria
desnacionalizou-se, sem mais consistência que a de uma poeira solta de átomos. Os
resultados têmo-los em nós mesmos, na opressão que nos avilta e vitima. Só um
caminho nos resta, se não quisermos declarar tudo perdido, até a própria honra! É –
na fórmula brilhante de Maurras – realizar pela inteligência e pela vontade, com
firmeza e nitidez científicas, o que nossos avós realizaram pelo costume e pelo
sentimento. Outra coisa não será senão reatar o fio interrompido pela acção da
Quádrupla Aliança na jornada dolorosa de Évora-Monte.
Com essa certeza, bem iluminada e bem firme, suponho fechado para
sempre o longo parêntesis de que a data de 24 de Julho de 1833 foi o início fatal.
Assim o deseje a nossa Pátria, restituída ao vigor da sua tradição histórica, como o
desejam aqueles que apenas procuram torná-la mais livre e mais grandiosa!
O „Milagre‟ de Ourique
Nós não cuidamos de saber se nessa madrugada alta de Julho a imagem de Jesus-
Crucificado se destacou da luz hesitante da aurora e se sobre as asperezas extáticas
de uma charneca a palavra divina se ouviu, serena e forte, confiando a novas gentes
a instituição de novo reino. Nem vem para aqui igualmente o debate do largo
problema que à volta do feito de Ourique traz de há muito entretidos eruditos e
academias. O que nos importa agora é salientar, na permanência de uma tradição
que aparece envolta pelo halo doirado da lenda como o baptismo da nacionalidade,
a importância do seu significado histórico, de influência decisiva na vida e
grandeza de Portugal.
Não podemos hoje encarar a questão do milagre de Ourique com o critério
exterior, todo frio e circunscrito, através do qual Alexandre Herculano a encarou.
Herculano, com os preconceitos da sua época, nem sequer hesitou em a denunciar
como uma fraude habilidosa da nossa antiga mentalidade monástica. Então ainda a
psicologia se não constituíra como regra intelectual. E por mais que às vezes se
abuse do seu alcance, não há dúvida que na questão do milagre de Ourique ela nos
fornece uma ampla e inesperada claridade.
Por efeito das suas luzes, nós verificamos que o milagre de Ourique, tão
nitidamente gravado em horas difíceis na consciência de Portugal, não seria mais
que um „mito‟
, mas um „mito‟ com o valor social que Georges Sorel atribui aos
mitos. O mito – diz o filósofo das Réfléxions sur la violence – é uma expressão de
vontades energicamente tomadas e não, como a utopia, a tradução subjectiva de
uma vaga inquietação sentimental. É nos mitos que as aspirações fortemente
vincadas da alma colectiva se encarnam e consubstanciam, procurando projectar-se
[82]mais ao largo, no tempo e no espaço, cheias do desejo veemente que lhes imprime
unidade e duração.
Assim, «não existe na história nenhum povo grande, forte, próspero, no
qual não se descubram os sentimentos profundos e activos que se revelam por um
ideal, uma religião, um mito, uma fé», escreve Vilfredo Pareto. «Todo o povo em
quem estes sentimentos se enfraquecem está em via de decadência. Muitos povos
pequenos tornaram-se grandes porque tinham fé em si próprios. Um povo que
perde essa fé encontra-se próximo da ruína.» E Pareto acrescenta: «Abandonai a
história, se a observação vos agrada mais; e vêde o papel considerável que ainda
desempenham actualmente o mito da grande Alemanha, e o mito dos antepassados,
da dinastia e da pátria, nos Japoneses vitoriosos. Por toda a parte encontrareis
fenómenos semelhantes, por toda a parte e sobre motivos sem valor lógico e
absurdos tantas vezes, vós encontrareis esses sentimentos que são a grande força
donde resulta a forma e o desenvolvimento das sociedades.»
A transcrição de Vilfredo Pareto entrega-nos a interpretação positiva do
„milagre‟ de Ourique. Cientificamente não dispomos de dados para o negar em
absoluto, apesar de documentalmente só no século XV o começarmos a achar
referido. No entanto, não nos é lícito reputá-lo com inteligência leviana como uma
fraude simples de monges. A noção do valor social dos mitos explica-nos como a
crença unânime da nacionalidade nas promessas de Cristo a Afonso Henriques se
manifestou sempre um poderoso incentivo moral nas decaídas frequentes que o
nosso país sofreu e de que conseguiu acordar, puxado as mais das vezes por uma
energia tão repentina como surpreendente. É que no milagre de Ourique traduziu-se
a confiança de Portugal no seu destino imorredoiro. Nele tomava corpo concreto a
vocação histórica da nacionalidade. Eis porque o „milagre‟ de Ourique é um dos
aspectos mais vincados da religião da Esperança, filha do lirismo admirável da
[83]nossa raça e que no símbolo profundo do Encoberto depositou a maior das suas
criações.
Arrastado pelo ridículo e pela sátira, o Sebastianismo, graças ainda à
intervenção da crítica psicológica na história, apresenta-se para nós como uma
virtude – e nunca como um defeito – do temperamento nacional. Quem se
debruçou sobre as páginas tristes do governo filipino, sente palpitar aí a faúlha
ardente desse evangelho de redenção. É o momento em que, nas celas pensativas
de Alcobaça, Frei Bernardo de Brito, tão caluniado como incompreendido,
reelabora em proveito dos nossos pergaminhos de povo as miragens eruditas da
Renascença. Não inventa Frei Bernardo de Brito nem a vinda de Túbal, neto de
Noé, às Espanhas, nem o parentesco lustroso dos lusitanos com os deuses do
Olimpo, por parte de Lísias, filho de Baco. Unicamente, dando à estampa, durante
o domínio castelhano, a Monarquia Lusitana, reivindica para Portugal, sobre os
falsos cronicones de Frei Ânio de Viterbo e de Florián de Ocampo, os seus direitos
sagrados de nação, bem anteriores às pretensões de Castela, firmadas na suposta
doação de Afonso VI à nossa D. Tareja.
Toda a reabilitação de Frei Bernardo de Brito está numa passagem, mas
passagem profunda, do Manifesto do Reino de Portugal presentado à Santidade de
Urbano VIII N.S., em que as «três Nações, Portuguesa, Francesa, Catalã, mostram
o direito com que el-rei Dom João IIII, Nosso Senhor, possui seus Reinos, &
Senhorios de Portugal, e as razões, que há para se receber por seu Embaixador o
Ilustríssimo Bispo de Lamego» (Lisboa, 1643). Pois num documento de alcance
tão importante e de tão transcendente gravidade se afirma e declara com a
seriedade de uma alegação poderosíssima a nosso favor: «... Portugal em todos os
séculos se governou como supremo, & ilustrado sempre com o título de Reino: Frei
Bernardo de Brito raconta muitos Reis antes da vinda de Cristo.»
[84]Mas a índole da Monarquia Lusitana mais se justifica se nos lembrarmos
que, em todas as apologias redigidas pelos jurisconsultos seiscentistas em defesa da
nossa emancipação, o milagre de Ourique nos surge inalteravelmente ao lado dos
inevitáveis textos do bom direito cesáreo ou canónico, testemunhando a instituição
do Reino como um sucesso de origem divina.
No milagre de Ourique – nesse mito formidável que exprime a resistência
secular do nosso país à ameaça contínua da absorção espanhola e a certeza
inabalável de uma missão superior a cumprir – nós vemos as raízes místicas das
profecias do Bandarra, que são uma revivescência atávica da poesia profética de
Merlim, da falsificação sincera das Côrtes de Lamego, do Juramento de D. Afonso
Henriques e de quantas peças de estrutura idêntica prepararam e robusteceram no
inconsciente da nacionalidade o arranco libertador de 1640.
Já se entende agora como João Pinto Ribeiro, entre folhudos argumentos
jurídicos, se socorra da Visão de Esdras para encontrar nas Escrituras o Quinto
Império do Mundo personificado em Portugal. De igual maneira se entende já a
História do Futuro e a Clavis Prophetarum do Padre António Vieira – o Sonho
consorciado com a Acção. E não nos admiremos de se topar na Lusitania liberata,
de António de Sousa Macedo, ou nos Princípios do Reino de Portugal, de António
Pais Viegas, o milagre de Ourique representado em gravuras mais ou menos
perfeitas, com o «Volo in te et in semine tuo imperium mihi stabilire», descendo da
boca de Cristo para a figura prostrada do nosso primeiro monarca. Eis o que
Alexandre Herculano não percebeu, vítima dos vícios mentais da sua época, mas
que a interpretação filosófica que dos mitos nos oferece Georges Sorel nos leva a
aceitar, já debaixo de um outro critério.
Vendo, pois, no milagre de Ourique a confiança da nacionalidade na sua
sobrevivência imortal, o exame rápido da nossa história nos ensina que os factos
[85]correspondem realmente a tal interpretação. Não acontece outra coisa em
Seiscentos. É o que acontece na insurreição geral do País contra os Franceses. E na
crise orgânica da nacionalidade pela derrota do Miguelismo, é ainda o milagre de
Ourique que anima e eleva as esperanças caídas dos últimos depositários da
tradição nacional. Desde que a crença no milagre de Ourique se dissipou, dissipou-
se a crença na nossa finalidade, nunca mais houve um sentido colectivo na nossa
vida de povo. É necessário regressarmos ao estado de espírito que, como vocação
social, o milagre de Ourique significa, se quisermos levantar a cabeça e sermos
alguém no futuro!
É a lição que tiramos da guerra actual, no renascimento fortíssimo do
instinto nacionalista por toda a parte. A «mística» é hoje o mais vivo e o mais rico
agente psicológico dos povos em luta. Lembra-se a França da sua predestinação
para a vitória no «Vivat qui Francos diligit Christus!» do intróito da lei sálica ou
do Gesta Dei per Francos dos velhos cronicões medievos. A Alemanha excede-se
a si mesma, cheia das presunções teóricas do pan-germanismo, que, através da obra
de Woltman e de Chamberlain, consagra o homem loiro como o herdeiro do Ária,
raptor orbis, e o único fadado para o domínio do universo. E nós? Nós, de que
força vital nos ajudamos na hora baça que descai sobre a nacionalidade? Ajudêmo-
nos do pensamento secular dos nossos Maiores, em nome dos que lá longe morrem
batendo-se, e para fortaleza daqueles que dormem ainda no berço, não deixando
soçobrar, nem na fé nem na coragem, esta nossa Pátria querida que, não cabendo
mais na terra, até de Deus tirou o seu nascimento gloriosíssimo. Renovemos assim
pelo esforço unânime de todos num só o milagre passado de Ourique, sempre
presente na nossa história, para quem a souber meditar e sentir!
As "Linhas" de Elvas
Diz um livro velho que nessa manhã longínqua de Inverno o nevoeiro se fizera
cúmplice dos nossos. O exército castelhano acampava havia meses em frente a
Elvas sitiada, e lá dentro, na cidade, sofriam-se angústias dantescas tanto o cerco se
prolongava, áspero. Não se esquecem as palavras com que o conde da Ericeira as
descreve no seu Portugal Restaurado.
Ao espectro da guerra juntara-se o da peste, e já a fome desdobrava a sua
asa negra por sobre a heróica sentinela fronteiriça. Dias se apontaram em que o
número de mortos subiu a trezentos, «originando este excesso monstruosos efeitos»
– diz-nos o Clássico – porque os vivos perderam de sorte o horror aos defuntos, e
não sepultados, que nas guardas lhe serviam os corpos mortos de assento para
jogarem».
E a narrativa de espanto desenrola-se como um conto macabro, cheio das
tintas mais alucinadas de Poe: «De noite os soldados auxiliares e de ordenança que
não tinham quartel, nem conhecimento algum da praça, iam dormir aos alpendres
das igrejas, e a roupa dos cadáveres que estavam neles, lhes servia de cobertura, e
chegaram lastimosamente a faltar aos mortos aqueles sete palmos de terra para se
enterrarem, que sempre se teve por impossível suceder aos mais desgraçados;
porque fora da muralha não convinha dar-lhes sepultura, por não manifestar aos
castelhanos a falta de gente que havia na praça, nem tirá-los do engano em que
estavam, de que eram mais os soldados do que os mantimentos.»
Postada na raia, como verdadeira chave do Reino, Elvas sofria o mais duro
ataque à sua lealdade inquebrantável. D. João IV morrera anos antes, ganhando,
pelo seu tato habilíssimo, o tempo necessário para de um país sem defesa nem
recursos levantar o esforço admirável que ia florir dali a pouco, numa manhã de
[87]Janeiro, em que, nosso cúmplice, o nevoeiro se bateu por nós. Com a menoridade
de D. Afonso VI, achávamo-nos em regência. Era regente sua mãe, a rainha D.
Luísa de Gusmão.
São dois factos estes que demonstram a superioridade axiomática da
verdade monárquica. Mesmo em regência, no impedimento natural do poder
legítimo, a obra de D. João IV não sofreu nenhuma quebra na sua continuidade,
embora as rédeas do governo as conduzissem as mãos de uma senhora e embora
essa senhora fosse uma espanhola.
«Os reis não têm parentes» – já declarara dois séculos atrás a grande Isabel
a Católica. O interesse dinástico nacionaliza-os, realmente. Não falamos já de
exemplos bem palpitantes e à nossa vista, como contemporâneos que são. Refiro-
me ao caso dos Hohenzollern na Roménia. Mas até na época em que nós
travávamos o duelo sagrado da nossa independência, com rara energia o
demonstrava Ana de Áustria, irmã de Filipe IV, e mãe de Luís XIV, ao receber em
1641 os emissários de D. João IV. Francisco de Melo, um deles, não se conteve
que não lhe exprimisse a sua perplexidade pela maneira afectuosa e aberta com que
a rainha os acolhera. Volve-lhe logo Ana de Áustria numa resposta que ficou
famosa e que vale todo um compêndio de filosofia política: «É verdade que sou
irmã de Sua Majestade el-rei Filipe IV, mas não sou eu também mãe do Delfim?»
Adversária como era da política da casa de Áustria a política da casa de França,
Ana de Áustria, contra os ressentimentos do sangue, abraçava pela razão do Estado
a nossa causa, directamente identificada com a do trono de seu filho.
Outro tanto sucedia com D. Luísa de Gusmão. Dotada das mais raras
qualidades, ninguém que ame em consciência a história do nosso país pode ignorar
o juízo em que a reputava Luís XIV. A braços com dificuldades gravíssimas, D.
Luísa de Gusmão, no meio da intriga e do desnorteamento em que por vezes
[88]parecia submergir-se a unidade do poder, consegue, afinal, triunfar sempre e ser em
tudo a continuadora gloriosa da acção de seu marido. Momento particularmente
difícil aquele que a batalha das Linhas de Elvas epilogaria! Deprimira-nos deveras
o insucesso de João Mendes de Vasconcelos, obrigado a levantar o sítio de Badajoz
e a transpor o Guadiana, deixando na campanha para cima de um terço da nossa
gente, ainda que a dignidade das armas portuguesas se salvasse na escalada célebre
do forte de São Miguel. Como represália dirigida em pessoa por D. Luís de Haro,
primeiro ministro de Filipe, veio de seguida o cerco de Elvas. Governava-a D.
Sancho Manuel, o futuro herói do Ameixial.
Intrépida, a guarnição manteve-se com honra. Mas o assédio alongava-se e
a esperança de socorro bem pouco podia para vencer o flagelo que abafava numa
mortalha fúnebre a cidade, como que suspensa sobre a incerteza do seu destino. E
os dias passavam, lentos e escuros, com a linha inimiga fortificando-se cada vez
mais no colar dos outeiros vizinhos, passavam com a escassez e a penúria
aumentando de instante para instante e com a fúria da peste crescendo insaciável.
Os enfermos morriam de pura míngua e as galinhas, que rendiam o preço fabuloso
de sete mil réis – isto no século XVII –, chegaram por fim a atingir quase o custo
inexcedível da própria salvação. E, incansável, a peste não se fartava nunca! É esse
o capítulo pavoroso do cerco. «Nas igrejas já não cabiam mais cadáveres, nos
terraplanos das muralhas se sepultavam alguns, mas nos fossos não o podiam ser,
porque eram de pedra.»
Depois o conde da Ericeira acrescenta, pondo-nos na carne arrepios
inéditos de tragédia: «E por este respeito foram muitos corpos sepultados nos
ventres dos animais, porque, dos que conservavam algum tempo vivos faltando-
lhes totalmente o sustento, se alimentavam dos corpos mortos com lamentável
espectáculo.»
No entanto, sempre firme, sempre leal, Elvas resistia inabalavelmente
como verdadeira chave do Reino.
Conseguiu-se por entre dificuldades sem conta organizar o socorro. O
cerco durava ia já para três meses, quando D. António Luís de Meneses, à frente de
um pequeno troço de exército, saíu de Estremoz, resolvido a cortar as linhas
castelhanas e a libertar a praça do anel de ferro que a estrangulava. Os nossos
andariam à roda de 11.000 homens, a maior parte soldados bisonhos, mal
instruídos na arte da guerra, como tropas tiradas das Ordenanças concelhias.
Não há dúvida de que o papel importante no desfecho do assédio coube aos
Municípios da região, que enviaram os seus braços válidos, em auxílio de Elvas
sitiada, numa formidável revivescência desse formidável espírito local com que se
têm escrito as mais belas páginas da nossa história e que é o segredo fecundo da
alma da raça.
Um problema – e problema de toda a actualidade – se suscita aqui. Se a
organização miliciana dos nossos Concelhos permitiu em Seiscentos a derrota de
Luís de Haro, porque é que se combatem as democracias modernas na sua
tendência para assentar em semelhantes bases a defesa militar do Estado?
Efectivamente, à primeira vista, a observação é de peso. Destrói-se, porém,
depressa, se olharmos a que a guerra, dispondo embora de regras, representava
então, e de uma forma soberana, a interferência do elemento-homem, do valor-
indivíduo na decisão dos seus conflitos. Hoje, inteiramente revestida de um
carácter técnico, é uma ciência que se professa, e não uma série de proezas que se
praticam à doida, num turbilhonar de instintos delirantes e de sentimentos
elevados. Assim se compreende que a coragem pessoal dos franceses na guerra dos
nossos dias se traduza em actos imediatos de bravura. Mas falta-lhes a
continuidade e a coordenação, que só o conceito orgânico do exército permite e
[90]desenvolve, conceito incompatível de todo em todo com a concepção miliciana das
democracias.
Pois com as Ordenanças dos concelhos alto-alentejanos, D. António Luís
de Meneses se meteu ao caminho, ou da morte ou do triunfo. Janeiro de 1659, a 14.
Não me esqueço do livro velho denunciando-nos a cumplicidade do nevoeiro. O
nevoeiro, bom amigo desde que ao seu mistério confiámos o regresso do
Encoberto, envolvendo-nos então numa massa confusa, protegeu-nos contra o
adversário, incomparavelmente superior em municiamento e disciplina.
Demos connosco nos seus redutos, debaixo da capa parda da bruma.
Caímos em cheio e a valer. Na mancha densa da névoa, rufaram tambores de
súbito, de algum modo como na surpresa bíblica de Gedeão. O castelhano, iludido
nas indecisões da manhã, não se apercebeu a tempo da nossa ordem de batalha.
Tanto bastou para que as suas linhas se rompessem de pronto e pelo boqueirão
aberto se engolfassem os terços do conde de Mesquitela. Da praça, D. Sancho
Manuel carregava sobre o inimigo já desmoralizado, batendo-se à toa, sem nexo.
Alto, o sol límpido de Janeiro sacramentava-nos agora num esplendor de apoteose.
D. Luís de Haro, sangrando na ferida enorme da sua vaidade pisada, abandonara o
exército ao duque de São Germano, largando em desfilada para Badajoz. Já o sol
declinava. Na cidade, ao longo dos muros, como numa cruzada santa, passeara-se o
Santíssimo durante o estridor da batalha. Moribundos, os pestíferos erguiam-se dos
catres para contemplarem ainda, com as pupilas dilatadas, a hora do resgate,
descendo dos cabeços fronteiros. A vitória tivera a rapidez das vinganças divinas –
sintetiza algures o poeta Eduardo Vidal. De facto, as nossas perdas não passavam
de setecentos homens entre mortos e feridos. Os castelhanos, contando os
prisioneiros, abandonavam no campo cerca de onze mil baixas – tantas como o
pequeno exército saído de Estremoz para salvar a cidade em perigo.
[91]Mas que resta hoje da glória excepcional desse Janeiro de 1659? Sobre
uma colina silenciosa, um padrão silencioso. É bem o símbolo de Portugal
arrastando a sua agonia na impassibilidade sacrílega dos homens e das coisas!
Nun'Álvares
Foi ontem dia de Nun‟Álvares pela comemoração nacional do seu nascimento.
Essa figura erguida, uma das maiores da nossa história, é na sua dupla posição de
guerreiro e de santo a encarnação perfeita da alma de Portugal. Ninguém como ele
teve o gládio para manter a justiça e para defender a terra. Ninguém como ele
soube o poder do espírito quando se recolhe em Deus e não confia senão na força
superior de uma aspiração imortal! Entre a Espada e a Cruz decorreu feliz e
gloriosa a existência passada da nossa Pátria. À Espada e à Cruz nós
agradeceremos ainda o acto de milagre que nos há-de restituir ao caminho perdido
da nossa vocação de povo.
Sobre Nun‟Álvares pesa a ignorância imperdoável de quanto ele nos
merece como herói representativo da nacionalidade. Oliveira Martins surpreendeu-
o em acasos brilhantes do seu brilhantíssimo talento. Mas a compreensão total do
grande Condestabre não a soube abranger o historiador, enevoada a sua inteligência
pelas piores bastardias filosóficas. Um aspecto há, notável, no livro de Oliveira
Martins. É aquele em que o carácter do herói se destaca como formado moralmente
pela influência mística da Cavalaria nos seus votos permanentes de sacrifício e de
castidade. Oliveira Martins subtraíu-se assim, pela visão do que fôra a Idade
Média, às ideias dominantes no seu tempo, que consideravam os fenómenos
místicos, debaixo da influência intelectual de Charcot, como puras manifestações
patológicas. De resto, a Vida de Nun
’Álvares vale mais como subsídio para a
biografia mental do seu autor do que propriamente como o estudo que Portugal
deve ao extraordinário patrono da nossa independência.
Nas Crónicas – na singeleza gótica das suas páginas – é que nós podemos
sentir bem Nun‟Álvares em toda a sua plenitude e em todo o alvoroço do seu
[93]coração de Cavaleiro e de Monge. É um compromisso de honra, cujo não
cumprimento nos cobre a nós de vexame, redimirmos Nun‟Álvares das
falsificações literárias em que o seu nome se vê corrompido e corrompida a sua
acção virtuosa e salvadora. Junqueiro, num panfleto que é a desforra atávica da sua
ascendência israelita contra a nossa disciplina católica e monárquica, serviu-se do
Condestabre como do braço de anátema que o ódio político do poeta precisava de
armar na indignação retórica dos seus verbalismos truculentos. Depois, numa
página vergonhosa, um outro homem de letras tentou reduzir a estatura do
Condestabre à craveira deplorável de um impulsivo sem grandeza consciente,
quando não de um doido acabado e simples.
Era este precisamente o ponto sobre o qual eu desejaria insistir, não só para
lavar a memória de Nun‟Álvares do sacrilégio que a pretendeu enxovalhar, mas
para demonstrar como cientificamente as afirmações do senhor Júlio Dantas – é ao
senhor Júlio Dantas que me refiro – são erróneas e em todo indignas de quem
conviva as coisas elevadas da inteligência. Sei que não é assunto para o debate
rápido de uma pequena nota. Mas enunciando-o, embora de leve, não fujo a
declarar – a respeito do famoso libelo que uma fantasia censurável em quem se
supõe fazer obra de história colocou na boca do Cardeal Diabo durante o decurso
da beatificação de Nun‟Álvares – que ele não passa, o referido libelo, de um
reflexo cabotino dos ensinamentos da Salpêtrière acerca do misticismo e da
natureza das suas personificações. Ora o desenvolvimento dos estudos psicológicos
modificou completamente as observações de Charcot. Ninguém como os místicos
resolve e domina os conflitos da nossa vida moral, a que num livro recente,
L’hérédo, com tanto vigor de expressão Léon Daudet chamou o «drama interior».
Inegavelmente, desde que a terceira experiência ou «experiência religiosa»
foi instituída pelas necessidades indagadoras da própria psicologia, não é lícito já
pensar-se acerca dos Santos como pensaria M. Homais alinhando os boiões da sua
[94]botica em Ruão. William James abriu o caminho. E hoje já não têm conta os
trabalhos que, sem preocupações apologéticas, nos ajudam – debaixo de um
exclusivo critério experimental – a aproximar os Santos, como realidades vivas, da
concepção sobre-humana que neles nos apresenta a Teologia.
Nun‟Álvares encontra-se psicologicamente dentro desse juízo sereno e
reabilitador. Nem ele é o histérico, que um golpe de efeito sobre o público
procurou inculcar como tal, nem a sua genealogia, por carregada de estigmas que
se nos revelasse, constituiria motivo irremovível para uma condenação. Um médico
ilustre, o Dr. Ch. Fiessinger, demonstra-nos que o inconsciente se educa e que a
religião é precisamente o seu maior educador. A igual conclusão chegou
igualmente Léon Daudet.. De facto, nós não ignoramos que Santo Inácio de Loiola
era um colérico, São Francisco Xavier, um ambicioso, e o Poverello de Assis, um
gastador. A disciplina religiosa interveio. E do colérico saíu o disciplinador
admirável dos Exercícios Espirituais, do ambicioso o evangelizador das Índias e do
gastador o esposo amorável da Senhora Pobreza, beijando as chagas dos leprosos e
cantando ao Senhor Nosso-Deus o louvor de todas as criaturas.
A Igreja exige para a canonização, mais que os milagres, o «exercício
heróico» das virtudes cristãs. O «exercício heróico» das virtudes cristãs pressupõe
a afirmação da vontade. Se os Santos realmente não passassem de uma floração
hospitalar, de degenerados, mordidos de raivas epilépticas e com hiatos frequentes
de personalidade, a vontade desertá-los-ia, como abúlicos inevitáveis que seriam.
Escuso de ressaltar a unidade de vida e pensamento característica dos Santos, que
são essencialmente gigantes da vontade. A Santidade é assim uma introspecção
activa e constante do soi – como diria Daudet – sobre o moi, isto é, da parte
deliberativa e consciente do nosso ser sobre o tumulto de instintos em que a nossa
autonomia espiritual quase sempre naufraga.
Enganou-se, pois, o senhor Júlio Dantas, enganou-se, não só como escritor
mas até como médico, ao assegurar a degenerescência de Nun‟Álvares. A unidade
da sua existência moral é comprovada pelo testemunho das Crónicas. O epiléptico
não se descobre nele, porque a vontade no Condestabre é permanente e robusta. Há
uma continuidade de acção e de pensamento em Nun‟Álvares que nos enche de
assombro e dissipa toda e qualquer suspeita de desequilíbrio. Violento e
sanguinário? Mas eu inutilizo, logo que o senhor Júlio Dantas o deseje, a sua
acusação. Então, por ser casto? Mas hoje a medicina reconhece na castidade uma
virtude higiénica. Talvez porque no desfiar dos anos se recolheu a um convento e
vestiu a estamenha carmelita? Precisamente a isso responde a psicologia com a
terceira experiência», verificando no misticismo, quando superior, um poderoso
desenvolvimento da nossa individualidade.
Muito gostaria de me alongar com o interesse que a questão legitimamente
suscita. Raspando de sobre o Condestabre esse pingo de lama que, afinal, nem o
salpicou, os meus votos são para que a Festa a Nun’Álvares se torne um dos
objectivos mais ardentes do espírito patriótico. Adorêmo-lo nos altares e
aclamemo-lo nas praças! Nun‟Álvares mostra-nos com a espada terminando na
cruz que o patriotismo é uma virtude eminentemente cristã. Como cristãos não
consintamos jamais que nos roubem o Condestabre, traindo-o e abastardando-o
numa espécie de culto maçónico, tal como o que teima apagar a Camões, o poeta
do renascimento católico, fiel à Igreja e ao sentimento ortodoxo emanado do
concílio de Trento.
Juntemos os nossos esforços para que Nun‟Álvares tenha o seu dia, mas o
seu dia como Santo e como Herói, não separando nunca as duas faces da sua alma
admirável, que só se completam integradas uma na outra.
Juxta Crucem
No ano 60 da nossa era, ainda Porcius Festus, funcionário romano, não tinha do
Cristianismo outra ideia que não fosse a de uma disputa entre judeus acerca de um
certo Jesus defunto, do qual Paulo diz que não morreu, segundo as próprias
palavras dos Actos dos Apóstolos. No entanto, a influência da religião nascente
irradiava já pelo mundo, abrindo as avenidas a uma nova idade da história.
Ainda hoje, já quase duas vezes milenário o drama do Calvário, o erro de
Porcius Festus é o erro de muita gente. A influência do Cristianismo admite-se
como um incidente a mais na jornada religiosa da humanidade, sem que se atenda
no que esse facto representa de único e de transcendental. Eu francamente declaro
que o chamado „milagre grego‟ nunca me deslumbrou. A civilização helénica é o
racionalismo puro, é apenas a civilização da Linha. Escapa-lhe a essência íntima
das coisas, e à alma, na sua riqueza profunda e dolorida, mal a conviveu, a não ser
para a entregar aos anéis duríssimos da Fatalidade, no patético inexcedível da
Tragédia. Mergulhando as suas raízes no mistério, é o Egipto o laboratório sagrado,
onde, antes de Israel, Deus se adorou de mais perto, embora através da mentira dos
deuses. O destino do homem, a sua depuração e a sua segunda vida, transfigurada
no prémio das obras praticadas, foi no Egipto a base fundamental dos seus cultos
herméticos e soleníssimos.
Assim se reconhece o motivo porque o Cristianismo, surgido à sua hora,
reúne em si tanto elemento arrancado aos velhos ritos decaídos. Ecos adormentados
da revelação primitiva, neles ficara durando, embora corrompida, a mesma
lembrança de Deus que é Pai e Julgador. Miserável como nenhum outro povo da
antiguidade, a Israel caberia, pela consciência da desgraça do mundo, a
proclamação de uma alta justiça compensadora. Em todos, afinal, persistira, como
[97]flama débil, quase extinta, a adivinhação secreta de Aquele que nasceria de uma
Virgem para nos dar um Mandato Novo.
Quando Ele um dia chegou, os seus não no quiseram. É então que nós
contemplamos a razão sobrenatural do Cristianismo. Para que o „homem velho‟ se
despoje e liberte do erro original, participando da graça de Deus, Deus não hesita
em revestir-se de formas transitórias, em se amoldar à nossa carne caduca. Pela lei
do amor, eleva-nos, chama-nos até à posse de Si mesmo nos sacramentos. Nisto
reside a Redenção. Nenhuma outra religião a pregou e só no Cristianismo Jesus,
seu fundador, se prega a Ele próprio. A penitência se institui deste modo e uma
aurora inesperada amanhece para as consciências, caídas num pesadíssimo sono de
morte.
«Ignoradas pela antiguidade, que em frente da culpa não praticava senão
uma indulgência censurável ou um rigor sem piedade – escreve Godefroid Kurth –,
as instituições penitenciais foram nas mãos da Igreja o fermento poderoso por meio
do qual o mundo se levantou.» Disseminada em plena sociedade pagã, com a
escravidão à raiz e a tirania ao alto, a herança de Cristo, desde que concedia a todos
os homens uma alma, tornava-se a asa invencível com que se transporiam os
horizontes penosos da nossa penosíssima vida quotidiana. Foi um horror o agonizar
da Cidade antiga! Sem um caminho, sem uma finalidade, apenas com Séneca
debruçado para a nova lei que despontava, nada há melhor que se lhe compare do
que os paroxismos da idade contemporânea, levada entre o oiro e a licença para o
mesmo abismo inexorável em que o paganismo se despenhou. À distância nós
compreendemos agora porque é que Santo Agostinho, do seu leito de morte,
respondia, sereno, «Não é o fim, é o princípio!», aos que lhe gritavam, espavoridos,
vendo a cavalaria bárbara quebrar-se de encontro aos muros de Hipona, «Mas isto é
o fim do mundo!»
Achamo-nos, como outrora, ao voltar de uma página difícil da história.
Com o sentido materialista da existência, que as democracias divulgaram, a
sociedade deixou esmorecer o direito de Deus no egoísmo áspero dos corações.
«Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos tenho
amado» – disse o Senhor. Mas a voz do Senhor perdeu-se no tumulto das
babilónias dissolutas. Por isso nós nos vemos desfeitos como o vaso de argila, de
que fala o Salmista. Pareciam próximos os tempos anunciados pelo Filho do
Homem: «Quando o Filho do Homem vier, encontrará ele a fé sobre a Terra?»
A verdade de Cristo quase que voltava a ser uma disputa estéril, sobre «um
certo Jesus defunto, do qual Paulo afirma que está vivo» – segundo Porcius Festus,
funcionário romano. Mas a Cruz com os braços abertos assistiria ainda a um
calvário mais sangrento do que esse em que serviu de patíbulo. Pascal dissera-nos
uma vez que Jesus continuava em agonia até que o mundo se acabasse. E a agonia
de Jesus renasceu, espantosa, na agonia espantosa da guerra actual! Quando a
claridade suprema da civilização não tardaria a apagar-se, o sacrifício desceu,
ruidoso e opressivo, a purificá-la com o vento forte das hecatombes. «Non est
remissio sine sanguine!» E a letra das Escrituras cresce do fundo dos séculos e é
hoje uma sentença impressa a fogo no limiar da sociedade que estremece.
São Paulo aconselhava que não deixássemos extinguir o Espírito. Nós
padecemos os flagelos da expiação, porque o deixámos extinguir. O que é a
catástrofe, que nos pesa como o pior dos remorsos, senão o castigo do nosso
orgulho? Na insensatez do gozo e da opulência, só a Linha nos apaixonou, só com
a Força nos preocupámos. Captámos o Fogo, captámos a Água, quase que
transpusemos o Ar – a Matéria tornou-se a nossa prisioneira. Fora, porém, das
regras sagradas do Espírito, eis que a Matéria se desencadeia, e – oh!, o pavor de
uma civilização sem Deus, de uma civilização fria e calculista! – nós somos
esmagados por ela, nós que nos julgávamos ser os seus dominadores!
[99]E então, como na hora do Calvário, a agonia de Jesus repete-se. Repete-se
na paixão das trincheiras, com esse «cordeiro portador das faltas de todo um
povo», na frase admirável de Vallery-Rodot, que é nosso irmão, que é nosso filho,
que é nosso pai, que somos nós mesmos, combatendo de noite e de dia na poeira e
na lama. Metido no seu buraco, ele testemunha a Cristo no tormento sem-par de
uma civilização naufragando pelo defeito do seu excesso. Confessemos, pois, a
nossa culpa, abraçados à Cruz! Pecámos pela dureza – na loucura dos sentidos e na
vaidade do entendimento. Em resposta, no ar, a Matéria revolteia despedaçando o
homem, a quem não assiste mais a virtude invencível do Espírito. Se nada nos resta
senão a Esperança, é a Esperança que a Mãe do Senhor faz florescer por sobre os
Túmulos. Não sejamos como os pagãos que não têm esperança! – ensina o Ofício
dos Mortos.
E, ajoelhados ao pé da Cruz, na humanidade de Deus chagado, possamos
nós ainda aprender os caminhos que conduzem direitos à ressurreição junto d‟Ele!
Os Judeus e os Descobrimentos
Não podemos deixar de nos referir à conferência realizada na Sociedade da
Geografia sobre a acção civilizadora dos Judeus nos povos peninsulares. Foi
conferente o sábio rabino doutor Abrahan Yahuda, professor da Universidade de
Madrid. É um hóspede a quem se deve cortesia. E como hóspede, numa isenção a
que nos confessamos sensíveis, o senhor Abrahan Yahuda evitou quanto possível
abordar alguns factos da nossa história, em que o seu critério de israelita
dificilmente se combinaria com a interpretação rigorosa que é preciso dar-se-lhes,
em face do verdadeiro interesse nacional. Folgamos com isso, porque nos furta a
reparos irritantes, sendo-nos extremamente simpático o cuidado que presidiu à
conferência do senhor Abrahan Yahuda, toda ela inspirada no louvor da gente da
sua raça.
Ocupou-se principalmente o senhor Abrahan Yahuda da influência
hebraica no desenvolvimento científico entre nós. Dessa influência resultaria o
pensamento que determinou a nossa obra de descobridores e lhe obteve as
necessárias condições de segurança e de êxito. É, afinal, a tese do senhor Joaquim
Bensaúde no seu notável trabalho L’astronomie nautique au Portugal à l’époque
des grandes découvertes. Contra as opiniões até então defendidas, chegou o senhor
Bensaúde à conclusão rigorosa de que foi em Portugal, pela primeira vez no
Ocidente, que se puseram em prática na navegação os processos derivados da
observação dos astros. E simultaneamente o senhor Bensaúde demonstra-nos que
as tábuas náuticas utilizadas pelos nossos navegadores não eram tiradas, como se
supunha, das Ephemerides de Regiomontano, mas sim do Almanak perpetuum, de
Abraão Zacuto, que regera astronomia em Salamanca e mais tarde se passara a
Portugal.
As afirmações do senhor Joaquim Bensaúde derruem toda uma teoria de
escritores ilustres que, de Humboldt a Andrade Corvo, atribuíam a Martim de
Boémia a direcção científica das nossas empresas navais, sustentando-se
conjuntamente que de Nuremberg, afamada pelo fabrico de aparelhos
astronómicos, se importassem os instrumentos necessários para a boa direcção das
nossas expedições marítimas. Assim não nos custa muito a compreender que
Guilherme II, em 1905, quando da sua visita a Lisboa, se orgulhasse em plena
Sociedade de Geografia da colaboração da ciência alemã nos descobrimentos dos
portugueses.
A excelente monografia do senhor Bensaúde modificou a face do
problema. Mas, quanto a mim, não conseguiu resolvê-lo definitivamente. Ora,
como o senhor Abrahan Yahuda na sua conferência perfilha, ao que parece, as
conclusões do senhor Bensaúde, afigura-se-me ser este o ensejo próprio para lhes
opor os meus reparos. Efectivamente, não concordo com a interferência decisiva
dos judeus peninsulares nesse período áureo da nossa existência nacional, embora à
célebre Junta dos Estrólicos, que funcionava junto de el-rei D. João II,
pertencessem vários astrónomos hebreus. E não concordo porque, posta a questão
em termos gerais, é bom recordar que Renan, na Histoire générale et système
comparé des langues sémitiques, assegurava com a autoridade da sua larga
competência filológica que a raça semita se reconhece quase unicamente por
caracteres negativos. O semita individualiza-se, na verdade, não por qualidades
criadoras, que não possui, mas antes por preciosos recursos de assimilação que ele
valoriza excepcionalmente. Não dispõem assim de uma arte, ou de uma civilização,
no sentido alto da palavra. Não é outro o juízo de Renan, ao escrever no pequeno
estudo De la part des peuples sémitiques dans l’histoire de la civilisation que «o
negócio e a indústria foram pela primeira vez exercidos em grande escala pelos
povos semitas, ou, pelo menos, falando uma língua semita – os Fenícios. Na Idade
Média, os árabes e os judeus tornaram-se também os senhores do nosso comércio.
Todo o luxo europeu, desde a antiguidade até ao século XVII, veio-nos do Oriente.
Eu digo o luxo, e não a arte, porque de um ao outro está o infinito a separá-los».
Entende-se já porque eu não adiro incondicionalmente à tese do senhor
Bensaúde. O Ocidente possuía uma ciência náutica remotíssima, com memória na
Odisseia. A navegação aqui sobe aos fins do neolítico. É donde derivam as
tradições apagadas que enchem de mistério e encanto o périplo decalcado por
Rufus Festus Avienus na Ora Marítima. Claro que a essas tradições se ligaria
forçosamente uma arte de navegar. Não é por literatura que Séneca afirma não ser
Tule o ponto final do orbe (non erit terris ultima Thule), conforme o pretendia a
geografia antiga. O mar imenso, o Oceano sem limites, é nos Errores de Ulisses
que nos aparece pela primeira vez, se não me engano. E tão ocidentais são as
impressões contidas no Nostos, tão atlânticas elas são, que, localizado o poema de
Homero no declinar resplendente de Micenas, as moradas que lá encontramos
descritas não guardam em nada a sumptuosidade da casa típica dos Átridas! A
habitação de Ulisses é mais uma cabana nórdica, tal como no-la sugerem as sagas
medievais, do que o palácio de um rei, como o requinte egeano os sabia erigir.
Foi, pois, o Levante que recebeu o influxo ocidental no conhecimento das
coisas do mar. No descalabro da civilização do Cobre, quando nós mergulhamos na
sombra, para só ressurgirmos depois de Roma, alguma coisa subsistiria no entanto.
Subsistiria em forma de conto, em forma de superstição, naturalmente. É que ao
espírito empreendedor do ocidental correspondera, decerto, uma regra, como que
uma direcção, tirada do convívio dos astros na imensidão das águas. Com o
adiantamento das horas da história, essa herança perdida passa para o património
da astrologia. A astrologia é exercida na Idade Média, cavalheiresca e militante,
por judeus e árabes, visto que a defesa do europeísmo, expressa na fé da Igreja,
impunha aos cristãos o uso exclusivo da espada. Nós não ignoramos por outro lado
[103]que a chamada ciência hebraica e islamita não é mais do que uma apropriação da
filosofia clássica – na sua forma racionalista, o helenismo. É a altura de ouvirmos
de novo Renan.
«Fala-se muitas vezes de uma ciência e de uma filosofia árabe – observa
ele –
, e, na realidade, durante um século ou dois, na Idade Média, os árabes foram
nossos mestres, mas só enquanto não conhecemos os originais gregos. A ciência e
a filosofia árabe nunca deixaram de ser uma mesquinha tradução da ciência e da
filosofia grega. Desde que a Grécia autêntica despertou, essas míseras traduções
ficaram sem sentido e não foi sem razão que os filólogos da Renascença iniciaram
contra elas uma verdadeira cruzada. De resto, olhando de perto, essa ciência árabe
não tinha nada de árabe. O seu fundo é puramente grego, e entre os que a criaram
não se aponta um único semita. Eram espanhóis e persas, escrevendo o árabe. O
papel filosófico dos judeus na Idade Média é também o de simples intérpretes.
» A filosofia hebraica desta época é a filosofia árabe sem modificações.
Uma página de Roger Bacon encerra mais espírito científico do que toda essa
ciência em segunda mão, respeitável, sem dúvida, como um anel de tradição, mas
despida de grande originalidade.»
Fui longo de mais na transcrição de Renan. Mas o seu depoimento ajuda-
nos a invalidar a tese geral do rabino Yahuda e ensina-nos, muito particularmente,
como no caso das Descobertas a influência hebraica seria resumida, ao contrário do
que pretende o senhor Joaquim Bensaúde. Ninguém duvida que da Junta dos
Estrólicos faziam parte israelitas, físicos do Rei. Mas lá estava também o bispo de
Ceuta, D. Diogo Ortiz.
E tanto as minhas reflexões ao trabalho do senhor Bensaúde correspondem
ao aspecto definitivo do problema, que o astrolábio náutico não é mais que a
simplificação do astrolábio plano que os árabes recolheram dos gregos e
[104]introduziram na Península. De quem o recolheriam os gregos na sua indicação
originária senão das civilizações sepultas em Creta e em Micenas, da extinta
talassocracia do Egeu, impulsionada cá do Ocidente, talvez da misteriosa Társis de
mais de uma passagem da Bíblia? Assim não nos espanta que a construção do
primitivo astrolábio, que é o plano, se estude já minuciosamente nos Libros del
saber de astronomía, de Afonso-o-Sábio, de Castela. Há a acrescentar, ainda em
favor do meu ponto de vista, que, na necessidade de se ordenarem tábuas de
declinação do sol, para o efeito do cálculo das latitudes, do nosso D. João II é que
partira a ideia, encarregando ele os seus estrólicos de resolverem a dificuldade.
Muito mais teríamos a objectar à conferência do doutor Abrahan Yahuda
unicamente dentro do campo em que o ilustre rabino se colocou. Limitamo-nos a
aconselhar os curiosos do assunto a percorrerem com vagar os primeiros capítulos
da magnífica obra Estudos para a história dos cristãos-novos em Portugal,
publicada na Revista de História pelo senhor J. Lúcio de Azevedo. O senhor J.
Lúcio de Azevedo é dos poucos em Portugal que escrevem história e, tirando uma
ou outra tendência crítica do seu espírito, a maior parte das suas páginas poderiam
ser subscritas por um integralista. Folgo sinceramente de lhe prestar aqui a minha
homenagem. E quando outro motivo não houvesse, esse me bastava para que a
conferência do doutor Abrahan Yahuda deixasse no meu espírito a melhor das
lembranças.
Com João Coutinho
Quando eu entrei em Badajoz, desmaiava a tarde nas terras agachadas da raia. Era
já Maio, todo florido de giestas de ouro e de casulos roxos de rosmaninho. Para trás
ficara-me ondeando a maré larga das searas. Guardando a fronteira, do alto do seu
monte sagrado, Elvas atalaiava a linha do horizonte. Podia tirar-se um curso de
energia nacional, ao longo do chão rugoso em que o extremo de Portugal agoniza.
Palpita ali bem a alma centenária dos que morreram marcando a divisória do seu
sangue e do seu lar, tornando em lâmina aguda de espada o arado tosco da véspera!
Na planura sem sombras, com uma ou outra árvore esquecida, eu sentia
agitar-se alguma coisa que, embora viesse do vago, tinha, no entanto, um eco
profundo nas minhas veias, dentro da obscuridade enigmática em que as raízes do
meu ser mergulham. A courela bendita da pátria tomava voz nas minhas
reminiscências hereditárias. A raia já ficara transposta. Falavam-me outras gentes,
outros costumes. E sem rebuscar atitudes, naturalmente, instintivamente, voltei a
cabeça para Elvas, aureolada na distância, num mal disfarçado adeus.
Pensando em Barrès, meu professor de sensibilidade, assim entrei em
Badajoz. Na mole inexpressiva do casario gravava uma nota de energia crispada a
torre morena da Catedral. Aqui e além, farrapos de fortificação – ameias suspensas,
campanários derruídos. Dia de semana, com a população a espairecer os ares
amoráveis da noitinha. O rio, sujo, corria lento e bem disposto – não fosse ele o
Guadiana do conto que nós sabemos! –
, sendo a defesa mais forte da cidade.
Passavam carros com señoritas debruçando-se. Antes da ponte, com uma enorme
condecoração espalmada na farda vistosa, cruzámos com um militar vagaroso e
solene, passeando-se de espada numa mão e de bengala na outra. O cómico e o
sério – definição justa da alma espanhola! E o soneto de Tolentino acudiu-me de
[106]súbito à lembrança, tão depressa o carro bateu a arcaria da ponte: «Passei o rio que
tornou atrás, / se acaso é certo o que Camões nos diz, / em cuja ponte um bando de
aguazis / regista tudo quanto a gente traz.»
Sucedeu-se depois o emaranhado das ruas mesquinhas e antipáticas.
Torcendo por cotovelos inexplicáveis, apeámo-nos em frente da Sé, à porta do
Garrido. Eu ia visitar João Coutinho. Mandei o meu nome e, introduzido numa
saleta incrível, João Coutinho não se fez demorar.
João Coutinho é, como eu, alentejano e precisamente da mesma região.
Vem de uma velha linhagem, com as suas raízes agarradas por um longo trabalho
de séculos ao coração da terra em que nasceu. Refiro-me aos Fragosos de Sequeira,
senhores em Portalegre, do vínculo dos Fragosos e do morgado dos Sequeiras. Pelo
lado dos Sequeiras deve João de Azevedo Coutinho descender daquele D. Afonso
de Monroy, clavário da ordem de Calatrava, que seguiu primeiro o partido de
Isabel contra a „Excelente Senhora‟. Acomodado, depois, à bandeira da infeliz
princesa, passou-se a Portugal onde instituíu casa, que cedo se enlaçou com os
Sequeiras da Torre de Palma, no concelho de Monforte. D. Maria Marcelina
Fragoso de Sequeira Metelo e Monroy se chamava uma dama da família de João
Coutinho que se aliou no século XVIII com um dos representantes da minha, o
capitão José Pedro de Matos Mergulhão. Deste casamento nasceu o insigne
economista Joaquim Pedro Fragoso de Mota de Sequeira, sócio fundador da
Academia. Mais de uma afinidade, mais de um contraparentesco, nos aproximava.
Trocadas as primeiras palavras, João Coutinho, na robustez ciosa do seu aprumo, é
quem imediatamente o recorda. Falámos então da larga demanda que houve entre
os ascendentes de João Coutinho e o ramo que se enleava com os meus, por causa
do morgado de Fragoso.
João Coutinho revela-se conhecedor da sua história familiar, e, com uma
expressão de desgosto, alude ao túmulo de Gaspar Fragoso, filho desse António
Fragoso, cujas gentilezas nos conta Gaspar Correia nas Lendas da Índia – túmulo
que é um belo retalho arquitectónico, abandonado em Portalegre à profanação de
uma cavalariça.
E de impressão em impressão, a conversa toma o rumo do que mais de
perto nos tocava. Exilado, João Coutinho apurou no estrangeiro as suas ideias, e o
herói da epopeia africana completa-se agora com o político, possuidor de vistas
largas e documentadas.
A sua figura expansiva abre-se um pouco mais ainda, quando eu o
interrogo sobre o futuro de Portugal. Com o monóculo entre os dedos, cava-se-lhe
de súbito uma ruga de sofrimento. Mas, logo o olhar se lhe ilumina num corajoso
acto de esperança. Tudo se desfez, nada se reconstruíu! Quando Ministro da
Marinha, dos seus projectos, dos seus planos, deixados a um canto na papelada
inerte do ministério, ninguém se quis aproveitar. Lentamente, alguns renascem
agora, mal adaptados, cerzidos à força a uma realidade social que por natureza lhes
é hostil. E João Coutinho insiste, insiste no desejo de servir – de seu último alento
– pela pátria renovada e salva: «Se não fosse o meu pé, e se me quisessem, quem ia
comandar os marinheiros em África era eu!»
Suspende-se, melancólico. A noite descia – a noite dura de Castela, na
dureza de uma cidade incómoda e sem gracilidade. Procuro desanuviar a tortura
íntima que pesa agora sobre a fisionomia espelhada do herói. Digo-lhe como o seu
nome é querido, e como, de todos os que foram seus pares na glória e no sacrifício,
ele é o mais popular ainda. Veio avivar-lhe a antiga auréola a aventura romanesca
com que em 1913 conseguiu escapar-se às fúrias da jacobinagem. João Coutinho
sorri-se. É a sua vez de interrogar.
«E os rapazes? Nem você calcula como confio na geração nova! Merece-
me todo o carinho, merece-me todo o aplauso. Como vocês são outros!» E João
Coutinho evoca-me a mocidade do seu tempo. Valente, leal, mas deixada das
coisas sérias de meditação e de estudo. O resultado viu-se quando a hora da crise
apareceu, túmida de catástrofe.
«Por que não escreve as suas Memórias, senhor conselheiro?», lembro-lhe
eu.
«Talvez! Talvez!» – E daí a nada, como eu teimasse, gargalhava a
propósito da sua negação literária. «Imagine você que no meu exame de retórica, o
examinador era o pobre José Silvestre Ribeiro!, eu tive a habilidade de lhe arranjar
um alexandrino com dezasseis sílabas!»
Bom humanista, dado aos segredos e aos rigores da estilística, eu suponho
a cara de espanto de José Silvestre Ribeiro diante dessa diabrura de rapaz bem
disposto!
E João Coutinho volta ao seu entusiasmo pela obra da gente nova. Afirmo-
lhe também o nosso entusiasmo pelo seu prestígio de chefe. Esquiva-se, brincando
com o monóculo. E, olhando ao longe no passado, a conversa enche-se de traços
animados das suas campanhas. Nos Namarrais, por exemplo, João Coutinho
preparava-se no sossego do quadrado para a sua higiene matinal, para o seu banho.
De repente, o tiroteio irrompe do mato, entra-se em fogo vivo. João Coutinho não
se perturba. Salta para a frente dos seus homens e comanda o combate em toilette...
de Adão.
As anedotas sucedem-se, sucedem-se os episódios. Fixo um que me
comove. Avança-se pelo sertão debaixo de perigo numa caminhada exaustiva. João
Coutinho vê que uma praça da Armada sai da linha e afrouxa o passo. Corre a ela,
e apressa-a com a espada. Não tarda, porém, que o informem de que o marinheiro
[109]estava ferido. «Ó rapaz, desculpa!» E diante dos camaradas, estende-lhe a mão,
acrescentando: «Eu bem sabia que um marinheiro português nunca fica para trás.»
«Viva o nosso comandante!» E este grito, saído de todos, uniu-os à doida para uma
carga brilhante.
Sorrindo sempre, parece-me que João Coutinho talvez lute com uma
lágrima muito escondida. Considero-o novamente, na nobreza de uma vida, que é
dos mais lindos resumos das virtudes antigas da nossa raça. Soam badaladas na
Catedral. A noite avança. Estamos fora, na praça. O ar é hostil, hostis os rumores
que nos cercam. «Então quando entra, senhor Conselheiro?» «Sei lá, meu amigo!»,
E os ombros cairam-lhe numa frouxidão de cansaço.
Momentos depois despedíamo-nos e João Coutinho afastava-se numa
resignação de vencido. Vi-o, do carro, sumir-se no escuro, como uma sombra que
se apaga na noite.
Os cavalos pisaram com estrépito as calçadas de Badajoz. Senti no rosto
uma lufada mais fria. Ia, na ponte, com o Guadiana muito quieto lá em baixo. E só
então eu reparei que não chegara a sair de Portugal, porque a terra bendita da pátria
João de Azevedo Coutinho a continuava ali em Badajoz, à sombra da Catedral, na
meia sala modesta de um modesto hotel de província.
Ciência e Democracia
Ainda que tardios, não pode ficar sem comentários a conferência do senhor
Almeida Lima. Ela é representativa, em toda a sua miserável nudez intelectual, do
que, em verdade, se chamará a inteligência republicana. Não aludo já ao facto
pitoresco de um general se confessar enternecidamente democrata, ao cabo de uma
incruenta carreira militar. Basta-me que saliente as responsabilidades profissionais
do senhor Almeida Lima, para que, através das suas afirmações, a nada se reduza a
presunçosa reputação científica que porventura lhe advenha do seu título oficial de
professor.
O senhor Almeida Lima pertence àquele tipo dos „burocratas do
pensamento‟
, com tanta incisão definido por Georges Sorel. Eu não mando nas
coisas da instrução deste pobre país. Mas, em meu entender, depois das provas
públicas de outro dia, o senhor Almeida Lima deveria ser jubilado, e jubilado por
manifesta incapacidade mental.
É talvez desnecessário desfiar aqui toda a sociologia pré-histórica do
senhor Almeida Lima. Começou por se declarar optimista, concluindo, pelas
passadas de Jean-Jacques Rousseau, nas cantilenas conhecidas da Democracia.
Arcaico demi-savant, para quem a cultura da última metade do século que passou é
palavra escusada, o conferente da Mocidade Republicana não faltou a nenhum dos
lugares-comuns do estilo. É o seu hábito velho de repetidor, nem sempre feliz, de
quanto os outros escreveram e disseram vai quase para cem anos.
Assim, logo de entrada, com ar de sentença profunda, o senhor Almeida
Lima viu na democracia a realização terrena do mandamento de Cristo: «Amai-vos
uns aos outros». Míope decerto, o graduado conferente não logrou perceber que,
enquanto a Democracia se baseia na bondade natural do homem, o Cristianismo
[111]parte da sua culpa original. Porque o homem é bom e a sociedade é má, a
Democracia é logicamente a revolução permanente. Porque o homem é mau e a
sociedade é que o reprime e corrige, o Cristianismo, ao contrário da Democracia,
constitui a razão eterna de toda a ordem legítima e de toda a legítima autoridade.
De resto, o próprio Cristo o proclamou: «Não penseis que eu vim espalhar a paz
sobre a terra; eu vim trazer não a paz, mas a espada» (Mat., X,34). A índole
pessimista do Cristianismo, instituindo a disciplina e a penitência, está contida
neste versículo, que é a refutação acabada da ligeireza oratória do senhor Almeida
Lima.
Não ignoramos que o doutrinarismo democrático é uma heresia social,
nascida da secularização do espírito bíblico através da formação calvinista de
Rousseau. Ainda há pouco, numa curiosa brochura, Le péril mystique dans
l’inspiration des démocraties contemporaines, o publicista Ernesto Seillière
acentuava nitidamente as origens místicas da Democracia, ao mesmo tempo que
traçava o elogio da Igreja pelo seu misticismo racional e humano, reprimindo os
exageros e apontando-lhe quadros teológicos seguros. Saído desses quadros pela
via da Reforma, o subjectivismo frenético de Jean-Jacques Rousseau é na idade-
moderna o digno sucessor de quantas bastardias religiosas perturbaram e
ensanguentaram o admirável período medievo.
Verdadeira nulidade insuprível, era isto naturalmente o que queria dizer, lá
a seu modo, o professor Almeida Lima. Mas, coxeando sempre no raciocínio e no
argumento, a fraqueza da sua cultura desmascara-se com uma ingenuidade
primitiva, ao entrar no franco elogio da Revolução. O processo da Revolução
encontra-se hoje feito, desde Taine a Le Bon, sem falarmos de Balzac, de Comte e
de Le Play, para que nos demoremos a salientar as liberdades – chamemos-lhe
assim! – do senhor Almeida Lima que, segundo o costume dos seus cálculos
sempre errados, se lembrou de chamar «quarto estado» à gente miúda da burguesia
[112]que na antiga sociedade francesa constituíra um „estado‟ ou „braço‟
, sim, mas
„terceiro‟
, e não „quarto‟
. Mas há mais que examinar na conferência em questão.
São os fundamentos científicos com que o senhor Almeida Lima procura
estabelecer a superioridade teórica e prática da Democracia. «Os democratas são
evolucionistas», escreve Georges Valois no seu livro Le Cheval de Troie.
«Acreditam todos, com mais ou menos força, nesta doutrina (que se apoia sem a
menor razão, sem nenhum título, no darwinismo), segundo a qual todas as
instituições, em evolução desde as origens, tendem a um estado uniforme de que a
liberdade completa será a lei, repousando todas as convenções sobre o livre
entendimento.»
Eis a fotografia exacta do pensamento do nosso suposto homem de ciência.
Não é outra a tese que se esforçou por manter perante um auditório de fácil
contentamento. Deste modo, o senhor Almeida Lima fez acto de fé no mito já
decrépito e sem valimento, que é o Progresso Indefinido. Eis um problema
complicado, o do Progresso. Mas uma ligeira passagem de Vacher de Lapouge
talvez esclareça a semelhante respeito o senhor Almeida Lima. «E a lei do
progresso? Esta quimera do nosso tempo desvanecer-se-á amanhã. A fé no
progresso é um sonho paradisíaco. A antiguidade acomodou-se para viver o melhor
que pôde o seu presente, sem pensar em futurações longínquas. Cada geração
aspirava somente ao tempo em que a vida menos complicada tornava a luta menos
áspera... O Cristianismo, transportando para o futuro as delícias edénicas, encheu a
humanidade de sonhos de felicidade vindoira. Os filósofos modernos, rompendo
com o dogma, fizeram descer o paraíso à terra e julgaram entrevê-lo, de olhos
encantados, nas brumas dos séculos por vir.»
E Vacher de Lapouge continua, negando com ferocidade: «Eles invocaram
a grande Pitonisa, a ciência, e durante a metade do século as descobertas sucessivas
da Paleontologia embalaram-nos de esperança; porém, à medida que os dados
[113]científicos se tornavam mais precisos e mais numerosos, essa esperança evolava-se
a pouco e pouco, e o futuro parece que o sentíamos fechar-se.
» A Química, a Física, a Astronomia, a Geologia, a Paleontologia, a
Biologia, concordam nas suas conclusões definitivas. O sentimentalismo sonhador
da geração passada via nas ciências tantas profetizas como outras tantas felicidades
a desfrutar, quando são fúrias que mostram diante de nós, e sem cessar, cada vez
mais próximo, o abismo inevitável do nada. A dominar o seu coro diabólico, a
gargalhada de Mefistófeles sobe no infinito, sacudindo como crânios vazios os
mundos extintos que rolam na eterna obscuridade.» (Les sélections sociales.)
Mas os caminhos-de-ferro, a telegrafia sem fios, a aviação? – brada,
esgaseado, o senhor Almeida Lima. Se não existe o Progresso, existem pelo menos
os meus inventos!, acrescenta ainda o verdadeiro sábio. Devagar, mais devagar! A
definição da ciência deu-a Henrique Poincaré: é uma hipótese que a realidade
confirma. Não lhe exageremos, contudo, o alcance. Limita-se apenas ao mundo
material, ao mundo imediato dos sentidos. Não cria, verifica unicamente. «Fala-se
constantemente do renovamento que ela, ciência, traz consigo – observa Bourget –
,
sem se reflectir que esse renovamento não é senão a descoberta e a exploração de
factos que preexistem sobre a sua descoberta e que não são modificados pela sua
exploração. Antes que Watt constatasse a força expansiva do vapor, essa força
prodúzia-se. A criação da máquina a vapor não é, no sentido próprio, um facto
novo. É uma combinação de um facto imutável.» E Bourget refere-se à fórmula
que, num dos seus romances, Balzac coloca na boca de um matemático: «O homem
nunca inventou uma força. Dirige-a somente, e a ciência consiste em imitar a
natureza.»
Para que foi então o senhor Almeida Lima celebrar a democracia, fiado na
lei do Progresso? À sua concepção evolucionista opõe-se hoje a constância
[114]original dos seres, formulada por René Quinton. A democracia é o estado
inorgânico de uma sociedade primária ou, na hipótese pior, a queda irremediável de
uma civilização já sem estímulo de vida. O optimismo aprazível do aprazível
conferente não passa, no fim de contas, de uma boa e bem achada anedota. O
próprio Jean-Jacques o renegava – e com que cinismo, com que desenvoltura, santo
Deus! «Os homens são preguiçosos, vãos, inimigos de todo o espírito superior»,
medita ele no De l’homme. Aos medíocres, penetra-os uma raiva secreta contra os
sábios. Para que me persuada da inutilidade do esforço, eu adularei a vaidade do
estúpido, tornar-me-ei querido dos ignorantes. Serei eu seu mestre, eles os meus
discípulos, e o meu nome, consagrado pelos seus elogios, encherá o universo... Em
suma, declararei os homens bons, lisonjeando o desejo que eles têm de se
imaginarem assim.» Se o senhor Almeida Lima publicar a sua conferência, eis uma
epígrafe que eu lhe aconselho.
Ao inverso da especialização crescente a que a competência obriga, o
senhor Almeida Lima concluíu, pois, pela nivelação. De que serve então a Ciência?
Para que é Sua Excelência professor? Vejo-lhe já daqui o sorriso triunfante. A
nivelação, mas pela ascensão, responder-me-ia, se a sua omnipotência professoral
descesse até à minha escondida insignificância. Mas isso não é a democracia. A
democracia é a mediocridade, é a vitória do número, é a confusão de classes, o
regresso às origens.
A estátua do Marquês
As diversas irmandades maçónicas de Lisboa foram ontem ao topo da Avenida, de
avental e trolha, lançar a primeira pedra do monumento ao marquês de Pombal. Já
não falo do insulto estético que esse monumento virá a ser no futuro, em face do
projecto aprovado. Só lembrarei que Lisboa vai ter mais uma estátua e que, como
quase todas as estátuas que lhe decoram as pobres praças, não passará de uma triste
consagração de partido. Raras são, em verdade, as consagrações nacionais que em
Portugal se perpetuaram no monumento público. Vasco da Gama continua
esquecido, esquecido continua Nun'Álvares! Figuram, bem o sei, sobre o arco de
triunfo da rua Augusta. Mas ninguém dá por eles lá tão altos e só servem de
pretexto para acompanhar o próprio Marquês, que ao seu lado se perfila em
mármore do mais claro destes claros reinos fidelíssimos.
Verificamos assim com tristeza que a história do nosso país é sempre a
história escrita pelo partido vencedor. A verdade portuguesa ninguém a procura,
ninguém procura a justa compreensão do nosso passado. As consequências são
recolhidas na vilíssima decadência em que de dia para dia nos submergimos e de
que, primeiro do que ninguém, o marquês de Pombal é o responsável. Exactamente
aquela parte da sua obra em que ele mais contribuíu para a ruína de Portugal é que
os homens da Maçonaria se congregaram ontem para celebrar, imortalizando-o na
pedra morta de uma estátua. Se o saúdam como seu precursor, não se enganam,
decerto! Apesar das Apologias em que o marquês ao fim da vida acautelou perante
Deus e perante a posterioridade os desassossegos da sua consciência, Pombal,
como discípulo dos Enciclopedistas, cheio das maiores influências jansenistas e
regalistas, foi bem na nossa Pátria o batedor da Revolução.
Não o encaram como tal alguns espíritos simplistas que, vendo na sua
ditadura impertigada a aplicação completa do absolutismo em voga no século
XVIII, a consideram inteiramente em desacordo com as chamadas „ideias
progressivas‟ através das quais a divisa do novo monumento – Delenda reactio – o
pretende festejar. Pois enganam-se, e enganam-se com uma santa ingenuidade, os
que de boa-fé concebem na sua inteligência um Pombal mais do Trono e do Altar
do que das irmandades maçónicas, a quem de há muito serve de orago! Pombal
pertence à escola dos apelidados „reis-filósofos‟
, imperantes de bota-abaixo, que, imbuídos pelos torpes ideologismos da Enciclopédia, rasgaram na Europa o
caminho da Revolução pela sua política acentuadamente anticristã, pelo
individualismo despótico do Estado que, à maneira do modelo romano, se sobrepôs
discricionariamente à formação histórica das nacionalidades medievais. Era a
vitória definitiva dos Juristas que, na exaltação da autoridade do Príncipe, levavam
o Estado-Pessoa, encarnado no absolutismo, à tirania impessoal do Estado,
significada nas democracias modernas. Eis como o Absolutismo e o Liberalismo se
abraçam em apertado parentesco, porque um facilitou a jornada do outro,
embaraçando e garrotando na antiga sociedade as suas instituições tradicionais e
muito principalmente a autonomia das diversas classes, que, corpos intermediários
da colectividade, constituíam a sua resistência natural e a sua natural representação
perante o poder central.
Pombal marchava à vontade nessa corrente do seu século. A sua estada lá
fora descatolizara-o profundamente, dispondo-o a aceitar os princípios jansenistas
por intermédio do seu médico em Viena de Áustria. Embora não haja documento
da sua filiação na Maçonaria, fortes presunções nos obrigam a reputá-lo como
filiado, segundo o testemunho do Pe. Delvaux (Lettres du Portugal), que no-lo
apresenta por instalador de uma loja em Lisboa aí à volta de 1750. O que é seguro é
que a sua campanha contra os Jesuítas obedeceu a um plano preconcebido nas
[117]associações secretas, não sendo Pombal mais que um instrumento, confessado por
ele mesmo, nas mãos de agentes do estrangeiro. Mentalidade estreita e sectária,
Choiseul, que o utilizava sabiamente, mofava dele a toda a hora, dizendo com
frequência: «Esse senhor tem constantemente um jesuíta escarranchado no nariz!»
E o insuspeito Pinheiro Chagas não se contém que não descreva o fero ditador
numa penada feliz: «Para Pombal o carrasco foi sempre o grande meio de
governo.» Caricatural e majestático, o país pouco mais lhe pode agradecer do que a
reedificação de Lisboa. Nem é dele – está já hoje apurado – a frase conhecidíssima:
«Enterremos os mortos e cuidemos dos vivos!»
À condição agrícola de Portugal, firmada na propriedade e na família, quis
Pombal substituir um regime de monopólio e companhias, com base no capital e no
comércio. Abstracto todo o seu reformismo, é geométrico como a planta sobre a
qual ressuscitou Lisboa, caída por terra. Não acaba o conto das suas concussões e
das suas violências. Arruinou o Brasil, entregando-o à exploração de traficantes, de
cujos lucros por vezes partilhava. É dele a criação da Real Mesa Censória, que
tolheu a liberdade do pensamento, limitada sempre com benevolência pela velha
censura eclesiástica. As letras que, posto de parte o mau gosto da época, haviam
florescido com D. João V, sufocaram-se debaixo da luneta desconfiada do
Marquês, para só viverem no reinado seguinte pela fundação da Academia Real das
Ciências e da Biblioteca Pública. Esse reinado, sim que traduz uma tentativa séria
de valorização da nossa riqueza pública, a despeito das calúnias que o
desacreditam. Mas bastam só as Memórias Económicas da Academia para que a
verdade brade mais alto que quantas inexactidões a seu respeito correm impressas.
O processo do Marquês encontra-se instruído e concluso. À Inquisição
deu-lhe o tratamento de Majestade, fê-la quase uma pertença de família, como no-
lo prova o senhor Jordão de Freitas no seu interessante estudo O Marquês de
Pombal e o Santo Ofício da Inquisição. Os Autos-de-Fé executados durante o seu
[118]governo sobem a 61, em que saíram, pelo menos, 2.092 indivíduos, «sendo 2.003
penitenciados, 42 relaxados em carne (29 homens, 13 mulheres) e 47 relaxados em
estátua (37 homens e 10 mulheres)». Entre os relaxados em estátua figura o célebre
Cavaleiro de Oliveira, colaborador do Marquês na sua reforma do ensino, e que,
assim recompensado, gargalhava lá fora, em Londres, ao saber da notícia: «Nunca
senti tanto frio na minha vida como nesse dia!»
O próprio Pombal, como familiar do Santo Ofício, se apressou a ir em
pessoa denunciar à Inquisição o pobre Padre Malagrida. O suplício do Padre
Malagrida – um inválido e um bom! – encheu de repugnância a Europa. Voltaire
não se susteve que não exclamasse: «Ainsi l‟excès du ridicule et de l‟absurdité y
fut joint à l‟excès d‟horreur.» O excesso do ridículo juntou-se, efectivamente, ao
excesso do horror! E os dois excessos tornam-se maiores ainda se nos recordarmos
de que Pombal ordenara para a Inquisição um novo regimento, redigido debaixo da
sua dicção, onde no Título III do Livro II se trata largamente dos „Tormentos‟
.
De fugida fica bem emoldurado o ditador que ontem a Maçonaria correu a
consagrar, de avental e trolha, ao cimo da Avenida. Dois traços, para seu inteiro
julgamento, convém destacar ainda. É um o que se refere às maravilhas da sua
administração. O outro cifra-se no depoimento do Marquês acerca da expulsão dos
Jesuítas. A fábula da administração proba e previdente de Pombal acaba de destruí-
la um livro recente do senhor Alberto Teles. Em números redondos se prova que
dos lendários 78 a 80 milhões de cruzados, deixados por ele nos cofres públicos,
não ficaram finalmente senão 360.000 $ 000 no Cofre da reserva e 27.312 $ 335
réis em dinheiro no Erário. Quanto aos Jesuítas, perante os seus julgadores, assim
se expressava o Marquês em 1777:
«Declaro que tive sempre os Jesuítas por homens sábios, bons e úteis ao
Reino. Declaro que quanto lhes fiz, foi por ordem dos ministros de Espanha, tanto
[119]passados como presentes, e dos de França, principalmente de Choiseul, como
consta da carta que ele me escreveu a propósito da morte do Delfim. Também
foram instigadores os senhores F. e F., que foram os promotores dos rumores da
república do Paraguai, os que cunharam as moedas da tal república e que
escreveram a carta sobre a ilegitimidade do rei de Espanha, atribuindo-a ao Geral
da Companhia e fingindo a letra. Com o mesmo fim se procuraram excitar os
tumultos de Madrid, tendo por autores e cabeças F. e F., sendo, porém, mais os
concorrentes. Distribuíram-se para caluniar os Jesuítas trinta milhões, mandados a
F., distribuindo-os em muitas pensões anuais aos F. e F., e ainda a outros, como
consta dos atestados anualmente dados pelos supraditos, os quais se encontram no
meu arquivo n.º 13.»
Na sua hediondez é este o Pombal da História. Dele pouco desejávamos
para nós. Perseguidor da nobreza e do povo, o suplício dos Távoras e o incêndio da
Trafaria enegrecem-lhe a memória para sempre. É da sua pena a Dedução
cronológico-analítica. Daí descendem as velhas infâmias que, desenvolvidas e
cultivadas, escurecem todo o nosso passado. Quando o Marquês morreu, acharam-
lhe pedras no coração, que era desconforme. Tanto ódio alimentara consigo! Esse
ódio extravazou-se e alimenta ainda a seita antipatriótica e sacrílega que o venera.
Revestiu-se agora das formas duradoiras do mármore e quere solidificar-se
em monumento ao topo da Avenida. Que o restaurador de Lisboa seja lembrado,
admite-se. Mas já não se admite que o imponham como um dos varões máximos da
nacionalidade a um país que ele mais do que ninguém empurrou para a ruína!
Convidado para a festa de ontem, se tivesse aceitado o convite, não seriam outras
as palavras que eu lá pronunciaria!
Aljubarrota
Foi em 1385, numa segunda-feira, véspera de Santa Maria de Agosto. Os nossos
tinham jejuado duramente, segundo o preceito do dia, e a violência da Canícula
castigara-os com uma saraivada de fogo, queimando-lhes as gorjas e desfalecendo-
lhes os alentos. Se as forças morais não valessem mais do que o exército poderoso
do rei de Castela, a incerteza da vitória e a massa compacta do inimigo abateriam,
logo ao primeiro encontro, a gente da nossa terra, a quem animava uma alma
comum, de que a verdadeira consciência ardia na consciência do Condestabre. Os
homens do bom-saber e toda a quadratura de juristas que assistia ao Mestre, já
aclamado e coroado, pronunciara-se sempre abertamente, lá desde Abrantes, contra
a temeridade da batalha. Só Nun‟Álvares persistira – só Nun‟Álvares teimara,
cheio do sentido religioso de uma predestinação a cumprir. Se nós nos batíamos
debaixo das bênçãos da Igreja, fiéis ao Papa Urbano, legítimo senhor da Cadeira
Apostólica de Roma! Cismáticos, os castelhanos mereciam os raios da cólera de
Deus. Já o fradinho de Guimarães lhes anunciara o castigo. Chegava o momento de
ele cair do céu, nas pontas agudas das nossas lanças. E numa balbúrdia sem nome,
numa tropelada espessa de cavaleiros e peonagem, a batalha venceu-se sem se
saber como, quando desmaiava a tarde, em menos do suspiro de uma hora. Mais
uma vez o milagre descera, como na alva distante de Ourique, sobre os destinos
misteriosos de Portugal!
Aljubarrota rematava assim a crise orgânica da nacionalidade, a que o
instinto secreto da sua existência ia lançar para as lutas maiores do nosso
desenvolvimento. O país conformara-se lentamente, pacientemente, sobre o
admirável trabalho dos dinastas afonsinos. Submetido o último reduto muçulmano
– e com pequenas excepções nós precisamos de ver no muçulmanismo peninsular
mais um facto de religião e de civilização de que um facto de raça –
, submetido o
último reduto muçulmano na faixa acastelada dos Algarves, a condição agrícola de
Portugal começara a fortalecer-se através da sua intensa vida municipal e graças
aos grandes recursos sociais da Realeza mediévica. A unidade do Reino estava
conseguida, e não demoraria o instante em que, apertados entre o Atlântico de um
lado e o planalto castelhano do outro, as necessidades da expansão nos obrigariam
a abrir caminho – ou para nascente por terras de Espanha adentro, ou então mais
naturalmente para o domínio próximo das águas.
A política de D. Fernando reflecte já as exigências dessa necessidade. A
obra do seu reinado não se pode julgar tão nula e tão nefasta como à primeira vista
se nos manifesta, toda subordinada pelos historiadores à sua cega aventura de
amor. Nem a inconstância de D. Fernando significa apenas um defeito pessoal de
carácter. D. Fernando sofre na sua psicologia desencontrada as influências
contraditórias de toda a criatura que nasceu numa época de transição. É numa
época de transição que D. Fernando aparece.
A Idade Média, cavalheiresca e militante, vai ceder a uma outra idade do
mundo em que o direito aprendido em Bolonha pelos Letrados prevalecerá com o
individualismo amanhecente da Renascença contra a constituição tradicional da
sociedade. Fernão Lopes apercebeu-se do fenómeno ao escrever com observação
pasmada: «Porque se levantou outro mundo novo e outra geração de gentes?» É aí,
no reconhecimento de uma volta brusca da história, que não só nós descobrimos a
chave do carácter de D. Fernando, como também o sentido oculto da crise que
Aljubarrota epilogou.
Em meia-dúzia de linhas, incisivas e fortes como os medalhões antigos,
num livro que reputamos de bom, O Doutor Minerva, apesar do ar transitório do
título, e de certos critérios de racionalismo hoje arcaico, eis como se exprime
[122]Manuel Bento de Sousa acerca de D. Fernando: «Uma nova lei há a cumprir-se no
destino de Portugal – a expansão. Cabe isso a Fernando, o Formoso, que a sente,
mas erra-a.» Erra-a, porque, formado e governado pela influência marítima dos
litorais, se ao Oceano Portugal devia a sua vida e a sua independência, para o
Oceano se dilataria no prosseguimento natural da sua grandeza. O engano fatal
surgirá mais tarde quando ao império do Mar e à posse de Marrocos nós
substituirmos a loucura do Oriente. E a psicologia da era que para a nossa pátria se
estreia em Aljubarrota, ainda Manuel Bento de Sousa a traceja com uma
penetração superior: «Os grandes homens que a hão-de entender (à expansão) vêm
um reinado mais tarde. A expansão deve fazer-se para o mar, e D. Fernando
intenta-a para o continente. As riquezas de Portugal despejam-se nas fortalezas de
Castela, as boas moedas de D. Pedro vão correr no Aragão, refundidas em peças
aragonesas. O rei não está à altura dos seus destinos.» E Manuel Bento de Sousa
fecha o seu juízo, afirmando sensatamente de D. Fernando: «Tem o instinto, mas
não tem a ideia; tem a aspiração, mas não tem a compreensão.»
A pretensão de D. Fernando ao trono de Castela não é, pois, a leviandade
que geralmente se supõe. Obedecia a uma política certa do rei, que tão bem serviu
em tantos pontos a causa do seu país. Basta lembrar a lei das Sesmarias e a criação
da bolsa ou caixa de seguros para mareantes. Também a figura de D. Leonor Teles
carece de ser examinada dentro do seu tempo. Ela não é a mulher diabólica que o
romantismo dos nossos historiadores nos pintou retoricamente, nem tudo o que há
escrito a seu respeito nos merece fidedignidade absoluta. A história pratica-se e
estuda-se como história. Não é com mentalidade de agora que se apreciam e
interpretam circunstâncias de ontem. Já Stendhal dizia dos tempos feudais que não
ser-se morto e ter no Inverno uma boa vestimenta de pele era para a maioria da
gente no século décimo a felicidade suprema. Em breves palavras, Stendhal
resolvia o problema do feudalismo contra as declamações sentimentais dos que
[123]defrontam a questão, colocando-a em relação a si próprios, centenas de anos
depois. Não sucede coisa diversa com D. Leonor Teles. Primeiro, nós conhecêmo-
la através da opinião do partido que a venceu. Em seguida, ninguém a julga em
harmonia com a corrente política de que ela foi portadora na sua ambição
desensofrida.
O drama ensanguentado que se soluciona com a subida da segunda dinastia
ao poder só hoje é possível olhá-lo debaixo do ponto de vista nacional. A Pátria
como conceito moral e social não existia ainda então definida, nem na consciência
nem no Estado. O que existia era o interesse soberano do rei realizando consigo o
soberano interesse do agregado. O que existia era um estádio preliminar de
nacionalismo, de que a nacionalidade consciente derivaria depois. Não é assim a
indignação patriótica que atira os municípios do Sul e a populaça de Lisboa sobre o
invasor castelhano. É antes o eterno dualismo que nunca nos deixou amalgamar
com o povo vizinho, tomando relevo e fôlego com fogosa violência. Na atitude dos
concelhos transtaganos manifestava-se igualmente a razão local, que é a base e a
força de toda a nossa história. Quem meditar um pouco o Cronista verá que as
alterações de 1384 traduzem até um sopro formidável de anarquia, que os limites
tradicionais da Religião e da Realeza unificaram através do pensamento de
Nun‟Álvares e do Mestre para um desígnio que só em poucos tomava sentido e
direcção. As convulsões de 1384 são os sinais do individualismo desordenado da
Renascença que na crise orgânica da nacionalidade servirão para a libertar, por
mercê daquelas duas formidáveis disciplinas, desviados para o exterior. Tanto é
como pensamos que Basílio Teles chega a encarar a vitória do Mestre de Aviz
como a sobreposição das províncias do Sul, erráticas, semitas, desenraizadas, ao
Norte agrário, preso à terra e à conformação hereditária da raça.
Não me é fácil inutilizar aqui a tese do ilustre publicista. Salientamo-la
unicamente para mostrar que não cabe o nome de „traidores‟ aos partidários de D. Leonor e de sua filha a rainha D. Beatriz. A Pátria, repito, não existia então
moralmente, eticamente. Ia concretizar-se mais tarde em Quatrocentos na
expressão da assombrosa reciprocidade colectiva que Nuno Gonçalves fixou para
sempre nas suas tábuas imortais. O que estava então em presença era, de um lado, o
tumulto das vilas – com um fundamento de diferenciação histórica para com o
castelhano e com um fundamento de diferenciação social para com a nobreza
detentora da autoridade e da terra – e do outro lado a mesma nobreza, vivendo a
sua educação medieval no culto da honra e obrigada pelo juramento aos direitos de
D. Beatriz, que representava, com efeito, a legitimidade. Eis o único critério que
nos entrega a compreensão desse conflito mais trágico do que nós imaginamos e a
que só a missão admirável de Nun‟Álvares – a missão de um herói, mandado por
Deus – conseguiu encontrar a solução necessária.
Saído da nobreza, D. Nuno tira dela as virtudes precisas para acudir à crise
de que depende a sorte do Portugal futuro e aproveita o vento incendiário da
rebelião que nos parece devorar para assentar solidamente a independência da
nossa terra. Tal é a vocação desse herói extraordinário, que, como Joana d‟Arc, é
um verdadeiro enviado providencial.
Portugal rompia, deste modo, do seu nacionalismo instintivo para a
categoria já estável de uma nacionalidade, graças à acção iluminada do
Condestabre. Os juristas conferem-lhe depois os atributos reais do Direito,
assinalando-lhe um princípio e uma finalidade. Aljubarrota marca a passagem de
uma fase embrionária e latente da Pátria para a sua maioridade reconhecida, de
agora em diante, nos vínculos recíprocos do sangue e da terra. A Grei vai surgir do
choque doloroso de uma hora mais longa do que as longas passadas de um século.
E Portugal atira-se para o caminho do engrandecimento, com o seu génio já
clarificado na vocação colectiva da nacionalidade se conhece e possui enfim.
[125]Não é outra a lição de Aljubarrota, cuja lembrança Portugal nos manda que
a meditemos, para honra nossa e louvor dos nossos Maiores. É hoje tão incerto
como então o nosso destino. Mas um acto de fé naquele alto esforço de outrora,
que dorme dentro de nós o sono do Encoberto, vivificará talvez, no sonambulismo
vergonhoso em que nos estagnamos, as energias de milagre que nunca nos
faltaram, sempre que para elas houve alguém que apelasse. É esse o encargo que
pertence à mocidade do nosso país mais do que a ninguém.
Não nos amedrontem os negrumes de que se carrega o dia de amanhã! A
estrada a pisar-se é só uma e já Deus nos fez a mercê de nos ensinar qual ela seja.
Se os perigos, aumentando, nos procuram como ferros de espada, tanto melhor! A
nossa existência encher-se-á de um sabor de virtude e de heroísmo, por onde há-de
regressar à nossa terra o património esquecido da sua glória e da sua grandeza. Só
assim seremos dignos da pátria que nos foi transmitida como um bem de família e
que, como um bem de família, é preciso defender e conservar!
No Forte da Graça
Contam os jornais que, ao dar entrada no forte da Graça, o senhor Afonso Costa
exprimiu desejos de conhecer a história de Elvas. Suponho que já lhe cobrirão a
estreita mesa de trabalho algumas brochuras ignoradas, onde, ligados à glória da
sua pequenina pátria local, ficaram impressos para sempre dois ou três nomes
amigos, que eu desde bem cedo aprendi a venerar.
Mas que dirão essas páginas a um estrangeiro da nossa tradição, que outra
coisa não fez durante uma existência perdida senão desmenti-la e espezinhá-la?
Debruçado das varandas da sua cela, Afonso Costa há-de sentir que toda a
paisagem o acusa, e cresce para ele, interpretando o sentir de quantos passaram e
na pedra morena da velha cidadela fronteiriça deixaram insculpido o seu gosto
heróico em serem obedientes até na sepultura. Assim, se na meia sonolência da sua
sensibilidade moral, as leis supremas do sangue podem erguer ainda a voz, Afonso
Costa talvez se esteja a estas horas confessando a si próprio como réu de traição
imperdoável.
*
É áspero o Dezembro alentejano, com noites piores do que uma jornada sem termo.
Excitado, na chaga do seu orgulho abatido, Afonso Costa pede ao dia seguinte que
lhe traga uma promessa de esperança. E o dia vem, o dia corre, some-se em
golfadas de sangue contra o mistério da charneca, abrindo de novo as portas à
noite, mais densa, mais carregada. Imóveis, as brochuras aguardam. Folheia-as
impaciente aquele que foi senhor dos nossos destinos. Como letras de fogo, salta-
lhe logo à vista a divisa heráldica da cidade, que lá em baixo é uma pasta negra
com luzinhas pestanejando. «Custodi nos, Domine, ut pupilla oculi!» Chave do
Reino, crispada numa ruga belicosa da raia, como um louvor perpétuo da Terra e
[127]dos Mortos, Elvas resume-se na singeleza da sua epopeia nessa legenda admirável:
«Guarda-nos, Senhor, como a menina dos olhos!» É bem o Portugal de outros
tempos, arrojado e crente, proclamando a certeza da sua fé no evangelho eterno da
sua lealdade!
Volta de novo a manhã a bater às vidraças do prisioneiro. Familiarizou-se
mais com a paisagem, distingue-lhe já com curiosidade os traços hostis. Além, na
planície arrastada e calva, cantam rosáceas longínquas em chão que já não é nosso.
São os revérberos da Catedral de Badajoz. Cristas esfumadas apontam a nobreza
romana de Mérida, com a paixão dolorida de Santa Eulália morrendo mártir na
doce inocência dos seus doze anos. É sempre Castela, com povoaçõezinhas
disfarçadas nas tremuras da bruma – Montijo, à distância, cheia da evocação
formidável da batalha de Seiscentos, mais perto, aldeolas calmas, não esquecidas
ainda da espada generosa de Nuño-Madruga. E o horizonte escancara-se, com o
Forte pairando sobre a névoa da encosta.
A serra de Olivença diz-nos de lá adeus. E mais inclinada para o coração
da paisagem, Elvas traça na cristandade primitiva da manhã o seu abaluartado
cinzento, coroado pela pinha alvíssima do casario. O olivedo fecha-se-lhe à volta
como um bosque sagrado, enquanto o aqueduto, galopando de um salto rápido o
vale oprimido, desaparece, airoso e severo, numa dobra escondida da muralha.
Afonso Costa inquieta-se, alguma coisa se lhe rasga dentro do peito, adivinhando
como que um gesto de repulsão nas árvores cobertas ainda da mantilha da geada,
nos montes que se perfilam à luz embrulhada do Inverno, na cidade que desperta
com sinos repicando entre toques de clarins. E imóveis, sobre a mesa, as brochuras
aguardam.
«Custodi nos, Domine, ut pupillam oculi!» Na sua exaltação de insónia,
Afonso Costa tenta adormecer sobre essas páginas abertas. Como um pecador
[128]amarrado ao seu pecado, a leitura toma-lhe a vontade para lhe corporizar os
sentimentos. Ele sabe já que ali tudo significa submissão, unindo os Vivos e os
Mortos no mesmo pensamento comum de continuar a herança legada. Ele sabe já
que Elvas entra no curso vagaroso da nossa história com um rei arrancando-a ao
mouro e sendo o primeiro a atirar-se aos fossos para melhor a ganhar. Um
cavaleiro expõe a sua vida para que não perigue a vida do Rei. E Afonso Costa
sofre num remordimento secreto de consciência. Porque estremece Afonso Costa?
Que lhe recordará a dedicação de Afonso Mendes de Sarracines? Levanta-se depois
um outro rei, gritando na sua gaguez shakespereana entre os muros da sua estimada
vila de Elvas, que as gentes miúdas dos concelhos não são mais vilões, são como
os demais „honrados e bons cidadãos‟ dos seus reinos. E Afonso Costa abrange a
perfídia das suas palavras de mentira. Vozeiam de seguida os longos assédios. Fala
a procissão honesta dos mesteirais e dos vereadores elevando para os que viessem
mais tarde a fábrica custosa do aqueduto. Come-se pão de bagaço. Há peste, há
sede e há fome. Mas a cidade não se rende, cheia de confiança em Deus e de
fidelidade ao Rei. «Custodi nos, Domine, ut pupillam oculi!»
Até mesmo no cume, onde ele, curvado por uma acção invisível, já não
pode arrancar os olhos da leitura de condenação – até mesmo nesse cume uma
ermidinha se construiu. Construiu-a a viuvez apaixonada de uma rapariguinha de
dezoito anos, de quem seria bisneto o homem que nos levou à Índia. E as brochuras
desprezadas mandam agora com soberania em quem as solicitou por simples
desenfado, tocadas de uma como que hipnose dominadora.
Afonso Costa obedece-lhes, na escuridão enorme do seu drama íntimo.
Aprende por elas a decifrar a paisagem, mais cerrada, mais enigmática. Ao voltar
para a calçada do Forte, ensinam-lhe onde os Franceses espingardearam um padre,
que lhes resistiu, com dignidade, enquanto os maçãos lhes abriam o caminho.
Além, em frente, contempla-o o outeiro das Linhas de Elvas com o seu padrão e a
[129]sua capela rústica. Projecta-se no seu dia de prisioneiro um esmagamento de
alucinação. E na sombra do crepúsculo que avança, avança um cortejo de vultos
indizíveis, mais silenciosos e mais espectrais que os da profecia de Cristo à hora do
Juízo-Último.
São os Bispos da cidade que resgatavam os cativos e a defenderam do
inimigo. São todos os que morreram no sinal da Cruz, confessando os seus Lares e
os seus Altares, com as feridas abrindo em beiço, como rosas carnudas. São as
mães que rezando e cantando deram virtude e força à energia invencível da nossa
raça. É a poeira dos cemitérios – a população anónima dos túmulos, alma oculta de
que se socorre e anima a grande alma de Portugal. Crescem do vago, sobem no
vago, como que ao assalto da fortaleza pasmada. É a história de Elvas que responde
ao apelo de quem a quis conhecer.
Fora da comunidade dos Vivos e dos Mortos, Afonso Costa, num terror
supersticioso que o envergonha e excede, compreende enfim que uma pátria
inteira, desde a raiz dos séculos, o excomunga e repele.
Só na noite que desce e se avoluma como um desfecho de tragédia, uma
sombra o procura, hesitante. No castigo do seu pecado, Afonso Costa adivinha um
irmão. Vagueia no mesmo silêncio de réprobo, sem que a morte lhe conceda o
repouso que a vida lhe negou. É agora um companheiro para a agonia espantosa do
seu julgamento. Porque o cortejo singular cavalgou já as muralhas da cidadela,
numa ira calada, mas inexorável. Com os pulsos molhados no suor dos
moribundos, Afonso Costa ampara-se ao fantasma ignorado, e precipita-se com ele
para sempre na confusão sem remédio em que tudo se perde e termina...
*
Mostrou o senhor Afonso Costa desejos de conhecer a história de Elvas. Já
conhecerá a esta hora a da fortaleza em que o recolheram. E então é escusado
[130]lembrar lhe que ali morreu prisioneiro Manuel Inácio Martins Pamplona, duas
vezes traidor ao seu rei, depois de ser traidor outras tantas à sua pátria.
Natal
Voltou de novo a tremeluzir sobre a face da terra a estrelinha misteriosa do
Presépio. Como há perto de dois mil anos, é essa a única promessa de claridade
com que o coração do homem poderá sempre, em verdade, contar! Só ela nos fala
da paz que paira acima da vida, e, porque é mais alta que as coisas do mundo, aos
Anjos coube anunciá-la na noite de resgate que hoje se recorda. Cume supremo da
história, a história libertou-se da escravidão original na hora em que a Deus
aprouve revestir-Se da nossa carne, para melhor nos salvar. Não é outro o sentido
admirável do mistério da Redenção! Meditêmo-lo como pensadores, antes que o
adoremos nas lajes das igrejas, com as mãos erguidas para o Santuário. A
dignidade humana só se reconhece nos laços que a ligam ao seu destino imortal no
momento em que uma Virgem dá à luz no estábulo miserável de Belém.
De longe, por caminhos transviados, ansiosamente o mundo esperara a sua
entrada na comunidade perdida do Senhor. Sibilas e Profetas, todos em coro,
contemplavam para além das idades o reinado do Menino que nasceria de um
ventre nunca violado. Mesmo através da mentira dos deuses, a Antiguidade, tocada
da primitiva revelação obscurecida, amava e procurava ao verdadeiro Deus. Esse
Menino que havia de nascer para transfiguração do mundo, até os Drúidas, à
sombra dos carvalhos solenes O aguardavam, elevando altares à Virgem que O
traria nos flancos intactos. «Um Menino nos foi dado e Ele nasceu para nós!», diz a
palavra litúrgica. E porque o bafo amorável de Deus beijava a face da terra, a terra
se reconciliava, purificada, na alma dos homens, enquanto os Anjos celebravam a
Paz pela altura.
Hoje como ontem, que a Paz, descendo das alturas, amanheça sobre a
tragédia universal em que a lei de Cristo se despedaça e em cada peito desperta,
[132]violento, o gorila das cavernas soturnas! Se o exemplo do Infante, nascido em
Belém, nos comovesse na inocência doce do seu sorriso, quem é pai uma vez e viu
uma criança brincando no berço, não teria mais alento para atirar a sua acha de
ferro contra o pai de outra criança, contra os pais de tantas crianças! Não é do
Senhor o século em que vivemos, endurecidos na cobiça do ouro, insensibilizados
pelos apetites da vaidade e da luxúria. Porque nos esquecemos que o nosso corpo
representa a Jesus, com Jesus assumindo a nossa mortal condição, que Natal de
tristeza e de sombras não é este em que, no giro dos quadrantes, os Anjos tornaram
a anunciar de novo a Paz pelas alturas, entre as glórias devidas a Deus que nos
resgatou?! E, no entanto, o horizonte é mais negro e, sob a gelidez da noite, não são
as pegadas infantis que se adivinham. São antes poças de sangue coalhado debaixo
da inquietação dolorida dos Céus. Parece até que as tábuas do Presépio se aplanam
numa cruz gigantesca, abrindo os seus braços desconformes, de polo a polo, num
Calvário enorme – num Calvário infinito, num Calvário sem remédio!
*
Natal! Natal! E não soarão pelas quebradas desse Portugal adiante os sinos alegres
da matriz, levando às famílias em festa a sua voz portadora das costumadas
venturas. Nesta noite, noite do Menino, noite do madeiro flamejando, ninguém
encontrará de vigília o Portugal cristão de outras eras, o Portugal dos descantes à
beira do Presépio, com figuras toscas de barro repetindo toscamente a legenda doce
da Natividade. Se Jesus vier em camisinha, na sua estrada branca de luar e geada,
achará as cozinhas apagadas, desertas as vastas chaminés, num silêncio de luto, que
lhe há-de pesar no beicito surpreendido. Portugal, fora de si, deixou Portugal e
meteu-se às longas jornadas sem-fim, com a saudade repartida entre o sertão
africano e as terras inóspitas da França estrangeira.
[133]Natal! Natal! Não pensarão os bambinos na surpresa que Jesus lhes
deixará, de passagem, no sapatinho esquecido, curvados para a visão amorável de
um ausente diluído à distância que eles quereriam que o Menino lhes trouxesse
como um presente celeste. Também a Virgem se não sentirá contente entre as
mulheres, no prazer aureolado da sua maternidade. Choram as Esposas, soluçam as
Mães. E por todas elas, no rosário das suas lágrimas e na amargura das suas
orações, Maria antecipa a tortura sem nome das Sete-Espadas, à hora trágica da
morte do Senhor. Fica o Presépio às escuras, como se o Templo ruísse, e lá dentro,
na treva, fosse como que o velatório imenso de uma imensa necrópole.
Natal! Natal! Anda a tristeza de braço trocado com a miséria! E é de
tristeza e de miséria o nosso Natal de sacrificados, caladas as roncas, mudas as
cantigas ao Menino, sem os toros robustos que nem o cajado de São Cristóvão,
entoando os louvores do Lume sobre a pedra patriarcal da lareira. Tudo emigrou,
tudo se exilou, até as velhas histórias dos Judeus e de Herodes, em roda apertada os
da casa, com as mãos estendidas para o conforto álacre das grandes chamas
tutelares. No alto das torres o galo descura o aviso da Missa. Só há choros
comprimidos na penumbra dos rostos, pedindo ao sono que os abrigue,
misericordioso, nas dobras das suas asas misericordiosíssimas...
*
Natal! Natal! E enquanto os Anjos cantam a Paz pelas Alturas, avistam-se
cadáveres de pupilas paradas para os astros, como espelhos mágicos espreitando a
marcha do Tempo. Debalde as mãos se afilam para Deus, debalde imploram por
nós os Círios e as Hóstias, os Lares e os Altares. A fatalidade continua a apertar-
nos no seu anel inexorável. Não se adivinha na palidez da noite a caravana
alvoroçada do Menino. Só se adivinha o espectro da desolação, o lamento surdo da
fome. Que, lá longe, a pátria acorde nessas pequeninas pátrias, feitas de uma
[134]fogueira acesa e de soldados em grupo amparando-se à generosidade amiga do
fogo. Sejam para eles, ao menos, nesta noite todos os sonhos bons das crianças de
Portugal! E como se os tocasse a virtude perdida da inocência, que a estrelinha de
Belém tremeluza sobre as suas cabeças exaustas e lhes dê a comer do pão da
esperança no seu calvário de cordeiros vendidos, conduzindo ao ombro o pecado
sanguinolento de uma raça.
Natal! Natal! Mas quando é que em Portugal ele tornará a sorrir outra vez?
[135]Um Vereador
Silenciosamente, na sua obra animada da mais pura filosofia contra-revolucionária,
nós temos que saudar em António Lino Neto um dos raros cérebros construtivos do
nosso país. A sua intervenção como vereador no problema momentoso das
subsistências é apenas um episódio numa longa vida de trabalho, inteiramente
dedicada ao amor de Portugal no que ele possui de mais firme e de mais sagrado: a
Religião e o Município. Olhemos para trás. E na mediocridade dourada em que o
Constitucionalismo se subverteu, bem cedo a figura mental de António Lino Neto
se nos apresenta fora de toda a formação partidária, desde logo afirmando as
tendências predilectas da sua inteligência.
É da linhagem varonil dos Le Play e dos La Tour du Pin, o Dr. António
Lino Neto. Ele significa até para nós, tradicionalistas, um dos esforços mais
conscientes e mais aturados que anteciparam o nosso. Amanhã, quando na história
das ideias portuguesas se procurarem as raízes do nosso movimento, António Lino
Neto há-de figurar na ala escolhida dos nossos mais próximos parentes espirituais.
São admiráveis os intuitos nacionalistas em que a sua actividade mental se inspirou
sempre. Vontade nitidamente norteada por aqueles sólidos princípios que, não
sendo os do século, são os de todos os séculos, António Lino Neto, na Questão
agrária e na Questão administrativa, deixou-nos lançadas as bases da nossa futura
reorganização social. Não nos surpreende por isso a superior afirmação da sua
competência verdadeiramente excepcional, tão depressa um ensejo se lhe ofereceu
para que ela se manifestasse em todo o magnífico vigor dos seus vigorosos
recursos.
Eu não escrevo o nome de António Lino Neto sem uma certa emoção.
Lembra-me ele os meus começos literários num apagado liceu de província,
[136]quando com o aflorar da adolescência despertavam em mim as primeiras tentações
da publicidade. Foi António Lino Neto quem então me acolheu com palavras de
incitamento e de conselho, não me tendo eu ainda esquecido dessa hora em que
importunamente o roubei aos seus hábitos de monge laborioso para lhe confiar o
plano de um livro, do livro com que nós sonhamos aos catorze anos e que é a
miragem eterna atrás da qual corremos depois pela vida fora. Mais tarde, já de
posse de uma tendência mental, o meu pensamento viria a estabilizar-se no sentido
em que a obra de António Lino Neto se ilumina toda.
É preciso que o compreendamos na sua admirável biografia moral para que
a atitude de António Lino Neto na Câmara de Lisboa, apenas esboçada, se encha do
relevo que em justiça lhe é devido. Dizia eu que Lino Neto é da moldagem viva
dos Le Play, dos de Mun e dos La Tour du Pin. Como tal, impregnado dos mais
salutares ditames de sociologia católica, António Lino Neto não se inscreve de
modo nenhum pela constituição actual da sociedade. Quem leu e meditou as
páginas elevadas de A questão agrária, logo adivinhou nele, não um conservador,
mas um renovador. Acentuemos bem a diferença, porque é necessário hoje mais do
que nunca acentuá-la. Como conservador, António Lino Neto limitar-se-ia à
aceitação da ordem burguesa com todo o seu exagero capitalista, com todo o seu
individualismo dissolvente e anárquico. Tal é o caso dos da maioria em Portugal,
que se obstinam ainda em considerar a república como sendo um facto da rua, sem
de longe suporem que é antes a conclusão de um determinado estado-de-espírito.
Eis porque um tradicionalista, educado com firmeza nos ensinamentos da
experiência histórica, não poderá nunca enfeudar-se à classificação apática e sem
finalidade de conservador.
Olhando mais fundo para relacionar os efeitos com as causas, nós
reconhecemos que o desequilíbrio social deriva dos fermentos gerados e
[137]desenvolvidos pela Revolução Francesa. Contra o atomismo irreparável em que
pela herança de Jean-Jacques Rousseau se pulverizaram os Lares e as Oficinas, é
imperioso, como as coisas que o são, que nós restauremos a ordem cristã, de
natureza corporativa, em que a sociedade antiga se firmava indissoluvelmente.
Daí uma vista mais geral e mais larga do problema, que nem de leve se
satisfará com uma simples reforma na organização dos poderes do Estado. Não
basta uma mudança política para que o ritmo perdido volte a reger as
manifestações desconexas da colectividade. Torna-se urgentíssimo o ir-se sem
hesitação muito mais além, para que o mal se esconjure e a paz se conheça entre os
homens.
Renovador, e não conservador, o Dr. António Lino Neto é assim um
defensor das velhas ideias comunitárias que dão à terra e ao trabalho um lugar
proeminente, conferindo à propriedade uma função de destaque social. Não é
demais recordá-lo num momento em que o machado desbasta as florestas de
Portugal – piedade para as nossas árvores! – exercitando um direito que o
proprietário realmente não possui. Porque se o proprietário não é o detentor da
propriedade, segundo a fórmula avariada de um avariado economista, ele é
rigorosamente o seu conservador. Fixemos uma passagem célebre do marquês de
La Tour du Pin, recebida da boca veneranda de seu pai: «Preparando-me para lhe
suceder no bem da família, na terra avita, em que eu termino os meus dias, meu
pai deixou-me a seguinte lição: “Lembra-te sempre que perante Deus tu não serás
mais que o administrador desta terra, para interesse dos seus habitantes”
.» E o
grande Charles Maurras acrescenta: «Diante de Deus – isto é, em filosofia positiva
–, conforme à ordem e ao progresso humano, é uma bela verdade segundo a qual “a
propriedade constitui uma função social”. Os legistas da decadência romana,
debaixo de toda a espécie de influências perniciosas, tinham-no olvidado; mas toda
a sábia antiguidade romana e helénica, no seu período de força, professou
[138]semelhante verdade. Por ela se regulou toda a sociedade próspera. O proprietário
da casa dos antepassados era um administrador, um usufrutuário e um funcionário:
a falar verdade, não funcionário do Estado, mas mais profundamente da sociedade
e da natureza.»
Não é outro o conceito comunitarista de António Lino Neto. Ainda na
admirável definição de Charles Maurras, ele é bem um socialista naquele sentido
em que «a ideia de propriedade é penetrada pela ideia de sociedade». Meditemos
um pouco no seu exemplo e veremos que a Universidade o repeliu e o Parlamento
nunca o encontrou entre os seus. Escutam-no, porém, quantos em Portugal, fora
dos limites da ciência oficial e das fáceis canonizações partidárias, se debruçam
com ansiosa interrogação para os destinos duvidosos que nos esperam. Bem lhe
podemos chamar, e sem favor, um «preparador de energia nacional». Se a sua
Questão agrária fosse estudada e sentida como breviário das aspirações seculares
da nacionalidade, em outro grau de amplitude e de fervor patriótico se acharia
decerto em Portugal a consciência colectiva!
Desde a renovação das pequenas indústrias locais até ao regresso à terra,
fundamentado com medidas rigorosas contra o absentismo, e ao reconhecimento da
necessidade de uma nobreza rural, António Lino Neto é o fiador de muitas
reivindicações incluídas no património doutrinário do Integralismo. Na sua acção
como vereador, é Integralismo ainda que António Lino Neto realiza, inspirado nos
preceitos altos da sociologia cristã, que, mais uma vez o repetimos, nos manda ser
renovadores e não conservadores. Deve ser portanto fictício o aplauso de que os
políticos rodeiam a extraordinária iniciativa do ilustre professor. Não a sentem nem
a entendem, empenhados todos na discussão bizantina do voto obrigatório, com ou
sem bilhete de eleitor. Mas sentiram-na e entenderam-na logo os que nasceram
para abrir a Portugal uma nova era de esplendor e ventura. Connosco, como nosso
mestre aclamado, é que António Lino Neto se quererá. Campeão dos mais
[139]decididos do nosso municipalismo, ali, na Câmara de Lisboa, ele reabilitou a
dignidade perdida das antigas magistraturas concelhias. Há, enfim, em Portugal um
vereador! E porque sei que outro título de consagração pública não ambicionaria o
nobre espírito de António Lino Neto, é nesse que eu resumo toda a minha
admiração, por uma obra que é uma vida e por uma vida que é um exemplo.
Absolvo-me assim daquela hora já distante em que o fui roubar aos seus hábitos de
monge trabalhador, com o plano de um livro ardendo-me na cabeça e os mil
alvoroços da adolescência prometendo-me a glória para o dia seguinte.
[140]Mons. Ragonesi
Mons. Ragonesi atravessou a fronteira em Marvão, quase oito séculos de história
puderam mais nesse momento que quase oito anos de república. Não era só um
prelado ilustre que vinha honrar-nos com a sua visita inesperada. Como nos tempos
em que a comunidade da Fé valia pela comunidade da Civilização, dir-se-ia que a
claridade augustíssima de Roma entrava de novo na terra desamparada de Portugal,
que ao bafo da Igreja nascera e sob a sua asa inspiradora se fez tão grande e
gloriosa.
A figura de Mons. Ragonesi enche-se assim de um largo e forte
simbolismo, em que eu quero ver, como nas horas distantes em que o grémio de
Cristo marcava os limites da sociedade internacional, o legado apostólico
levantando aos povos, com o beijo da Paz, o interdito que os manchava como uma
lepra vil e ruim. Leproso roído da pior das gafas, Portugal sentiu remoçar-se,
seguramente, como nas águas de um segundo baptismo, mal o perfume da Igreja o
tocou de perto, no gesto grave de um núncio que entrava. Lá longe, sobre a linha da
raia, até a ossada heróica de Marvão estremeceria num apelo alvoroçado para a
vida. É que não há pedra nenhuma em Portugal – ou seja encosto de lareira,
repouso de altar ou tampa de sepultura – que não assinale o milagre supremo da
Cruz, em que os alicerces da nacionalidade se consagraram para a duração infinita
dos séculos. Saltariam de contentamento os outeiros, as fontes seriam coros de
alegria, como na letra exaltada do Salmista, cantando os louvores enternecidos do
Senhor. A Igreja passava. E com a Igreja passava a epopeia da Reconquista, o
esforço sem igual da Navegação, a alma inquieta e generosa de uma raça que bem
mereceu ser chamada a mais fiel de toda a Cristandade.
[141]Não é outra a força de Roma na doce espiritualidade do seu poder
invencível. Ela é a Cidade Eterna em que as gentes mais díspares do mundo se
congregam e amam comovidamente. Ela é a palavra ungida que reúne e congraça,
dando-nos no sentido do que é indissolúvel a compreensão do que é imortal.
Olhemos à roda, no desabar lutuoso que cobre de ruínas a Europa inteira. Só a
barca de Pedro se mantém, como outrora em Tiberíade, diante da fúria rija da
tormenta. Se há uma sociedade das nações, só na Igreja ela existe, porque só a
Igreja dispõe de um princípio universal que manda a todos os homens que se
abracem e estimem como irmãos.
Desse princípio foi portador Mons. Ragonesi. Mais uma vez a Igreja se
impôs no triunfo sereno da sua fraqueza desarmada. Uma pausa se abre na loucura
sangrenta da Pátria. Será duradoira? Não o creio. Mas o que é notável é a rara
coragem política que convidou Mons. Ragonesi a visitar Portugal. No desejo
sincero de se incorporar na aspiração da nacionalidade, procura a república
aproximar-se de Roma. Registemos o facto com as homenagens que em boa justiça
lhe são devidas. Mas reparemos que verdadeiramente não é o regime. É antes, e
apenas, a intervenção decidida do chefe do Estado.
Com o aplauso incondicional que neste ponto nos merece, observemos,
porém, que numa democracia o poder é electivo. Quem virá depois do senhor
doutor Sidónio Pais? A sua política religiosa não é da essência do regime, é
somente filha da sua vontade enérgica e sensata. O que sucederá por isso no
instante próximo ou remoto, mas em todo o caso certo, em que o senhor doutor
Sidónio Pais sair de Belém? As repúblicas europeias são de formação maçónica e
revolucionária. Mais que antimonárquicas, são anticatólicas. A Revolução
combateu a Monarquia quando se convenceu que a não podia separar da Igreja.
Luís XVI não foi só um rei decapitado, foi também um mártir da sua fé. Não nos
admiremos, pois, que o reatamento de relações com Roma não seja entre nós mais
[142]que uma efeméride breve enquanto o país se encontrar órfão dos seus chefes
naturais e legítimos.
Um pensador francês escreveu do Império que, se ele corrigia os efeitos,
deixava, no entanto, ficar de pé as causas. Ora, nas suas modestas proporções, é o
que em Portugal acontece. Pode o senhor doutor Sidónio Pais atenuar as
consequências da república, que é organicamente a desordem, pela sua deliberada
acção pessoal. No entanto, à base do regime, lá está sempre o seu vício incurável, o
seu defeito original. Cedo ou tarde aflorará à superfície. E então, na sua vesânia
destruidora, o radicalismo há-de ser de novo senhor, como forma natural que é das
democracias.
Assim no-lo ensina a história. E pelo que respeita às suas lições sobre a
política religiosa das repúblicas, convém notar que no fundo dos clubes secretos
talvez se não enferrujasse ainda a arma que prostrou García Moreno, nos degraus
da catedral de Quito...
García Moreno é, na verdade, o exemplo terrível que o sectarismo jacobino
nos põe diante da vista. A luta, no fundo, não é entre a Monarquia e a República, e
sim entre a Igreja e a Maçonaria. Observar-me-ão que República é o Brasil, que
República são os Estados Unidos. São-no, com efeito. Mas a observação depressa
se despe do seu aparente valor, se nos recordarmos que a república significou ali a
quebra do laço colonial em regiões desprovidas de passado histórico e
diferenciação social. No Brasil, até a queda do Império se explica pela diferença
entre o seu estado atrasado e a superioridade das suas instituições. Pelo menos, é
um escritor ilustre, Eduardo Prado, quem o afirma e com singular exactidão. De
sorte que, onde o radicalismo constitui a estrutura do sistema de governo, a
descatolização surge logo como sintoma evidente.
[143]Não conheceu a França, pelo menos, concretamente nos últimos tempos,
uma tragédia igual à de Quito. Contudo, o predomínio crescente da alma religiosa
da nação durante o presidencialato de Félix Faure, viu-se imediatamente sucedido
pelo sectarismo frio de Combes, não falando já do mistério em que o fim do
próprio Félix Faure persiste em continuar envolvido. Não nos iludamos. Ragonesi
em Portugal é uma bênção lançada sobre os destinos da nossa pobre terra. A pouco
mais se irá, e esse pouco mesmo seria tão passageiro como as rosas passageiras de
Malherbe. E isto, porque só a Monarquia, pelas virtudes da sua índole, será aliada
permanente da Igreja. Não é que a Igreja dependa da Monarquia. Mas é porque a
Monarquia só na Igreja encontra as garantias sólidas da sua conservação.
Regalista foi Pombal, febronista José de Áustria, galicano Luís XIV.
Todavia, a razão de ser da Realeza prevaleceu sobre a sua transitória política
religiosa. É o caso do Constitucionalismo. Expoliador das ordens religiosas, não o
vemos nós mais tarde abraçar os princípios repelidos, facilitando a aclimatação das
congregações que expulsara?
Maurras disse uma vez que a metade de Joana d‟Arc é a sagração de
Reims, a outra metade é a sua piedade, a sua vocação mística. Neste símbolo
admirável reside o consórcio da Coroa com a Tiara, do Trono com o Altar.
Henrique IV, introduzido na comunidade católica, preparou-se imediatamente para
restaurar a respublica christiana. É de Luís XIV, seu neto, a declaração oficial:
«Por toda a parte onde se implantam as flores de lis, implanta-se ao mesmo tempo
o estandarte da religião.» Eis uma divisa que apenas à Monarquia pertence. Eis
uma divisa que debalde um presidente de república procuraria arvorar. Deus salve
Portugal para que a inscreva novamente nos seus armoriais! E seja Mons.
Ragonesi, atravessando protocolarmente a fronteira de Marvão, o primeiro anúncio
de que não vem já longe a hora gloriosa em que retomaremos o curso interrompido
das nossas gloriosas tradições.
No Parlamento
Depois de quase oito anos de emigração na sua própria terra, vão os monárquicos
ter os seus representantes no Parlamento. A poucas horas da abertura do
Congresso, é bom que assinalemos o significado desse facto, que não é de modo
nenhum o de um simples acontecimento político. A Causa Monárquica,
consubstanciando em si o princípio que fez a nacionalidade e que lhe garantiu uma
vida tantas vezes secular, não pode ser por isso mesmo considerada como uma
causa de partido. É antes, e sobretudo, um princípio sem a inviabilidade do qual o
país não conhecerá a ordem estável e fecunda, necessária à sua tranquilidade e ao
seu desenvolvimento. Assim lho impõe o seu condicionalismo histórico. Assim o
determina o jogo daquelas leis naturais que são a força e o segredo da resistência
social.
Em face, pois, desta certeza que cada vez mais lhes fortifica o espírito e
lhes encaminha a convicção, os deputados realistas não vão ao Parlamento como
delegados de um partido, e sim como os intérpretes de uma verdadeira aspiração
nacional. Por falsa que seja a origem e a estrutura da representação parlamentar, ela
atenua-se nas actuais circunstâncias políticas do país que as últimas eleições
procuraram mais ou menos assumir. Situação confusa e delicada, era preciso que
na pessoa de um homem a segurança saísse garantida sem que fosse prejudicado ou
diminuído o direito histórico da nacionalidade à sua independência, de que o Rei, e
só o Rei, é o fiel depositário.
Vítimas da situação difícil em que se encontravam, os monárquicos foram
até ao máximo dos sacrifícios, não abandonando todavia a bandeira que mais do
que nunca carece de estar firme nas suas mãos. Se as exigências imediatas de
salvação pública lhes prescreviam um sacrifício temporário, esse sacrifício
[145]praticou-se com a mais bela das abnegações e o maior dos desinteresses. A sua
atitude continua no mesmo pé de lealdade e nela continuará até ao ponto que não
importar uma abdicação.
Eu bem sei que, consagrando o poder pessoal de um homem, o país, sem
inquirir de formas governamentais, consagrou a razão instintiva da sua formação
monárquica. Mais se não pode pedir aos seus representantes em Côrtes senão que
prossigam nas indicações expressas do sentir colectivo no dia já memorável de 28
de Abril passado. Não se trata, deste modo, de consolidar a república, fornecendo-
lhe meios legais de estabilização. O que é imperioso e indeclinável é que a nossa
aliança se mantenha, não com o chefe do Estado, encarnação de um regime que nos
é adverso, mas com a posição por ele criada e por nós amparada em benefício de
todos quantos somos portugueses e temos o encargo de uma pátria a defender e a
transmitir.
Mas se um tão melindroso dever nos cabe, cabe-nos também um outro, de
não menos transcendência e talvez de maior responsabilidade. A ordem não é um
homem, a ordem não nasce espontânea na sociedade. A ordem é palpavelmente um
princípio. «No dia em que assisti à queda desse grande colosso que foi o Império –
escreve Berryer –, eu compreendi bem que o poder de um homem, por maior que
seja o seu génio, é insuficiente para manter a ordem e a segurança do Estado.
Desde então eu reconheci que é necessário à sociedade um princípio que a proteja.»
E Berryer acrescenta noutra parte, num artigo seu da Gazette de France:
«A vontade nacional pode tudo, menos mudar a natureza das coisas e a ordem
imutável do universo. Ela pode fazer triunfar o princípio revolucionário,
declarando abolida a hereditariedade, declarando que, dada a insurreição vitoriosa,
dará leis à França. Ela pode fazer com que o poder ditatorial saído de uma
revolução se chame república, que esse poder prenda, deporte ou guilhotine os seus
[146]contraditores... mas ela não consegue que esse poder imprima à sociedade a ordem,
a liberdade, a paz, a segurança e a riqueza!» E porquê? Porque só na forma natural
em que se gerou e desenvolveu, a sociedade encontrará as virtudes perdidas da sua
perdida harmonia.
Perdeu-as também Portugal. Ciência experimental, eminentemente
positiva, a política tem na história o seu campo de acção, o largo domínio das suas
verificações. Sabe-se por isso que os povos, anarquizados pelo abandono das suas
instituições tradicionais, oscilam invariavelmente entre a demagogia mais brava e o
mais cerrado dos cesarismos. País de costumes brandos, o nosso país, desintegrado
dos seus justos moldes sociais, confirma e aplica a si mesmo essa lei invariável de
sociologia. Depois da demagogia, veio o cesarismo. Se a demagogia não foi das
mais bravas, o cesarismo que a suplantou também não é dos mais cerrados. Nestas
condições o equívoco se desenha e toma corpo.
Todos sentem que a ordem entre nós é provisória, que não passa de um
interinato, que é bem precário o título em que se fundamenta e legítima. Mas,
apesar de tudo, é a ordem. Ninguém inquire se a ordem é só a ordem das ruas, se a
ordem das ruas é apenas a repressão a tempo. Como do Império alguém disse que
suprimia as consequências mas deixava intactas as causas, o mesmo poderemos nós
dizer da situação presente em Portugal. Eis aqui o ponto em que é preciso insistir.
Eis aqui o ponto que, em bom exame de consciência, os deputados monárquicos
carecem de meditar demoradamente.
Se não nos é lícito comprometer pelo nosso procedimento na Câmara a
presente situação, também, para evitar confusões perigosas, não me parece que nos
seja permitido engrossar o equívoco, dando-lhe por nossa conta facilidades de larga
duração. Porque identificaram o problema da conservação imediata da sociedade
com o problema da organização do Estado, por duas vezes os monárquicos em
[147]França impossibilitaram o regresso do chefe natural do seu país. Foi em 48, pela
segunda república. Foi mais tarde, na assembleia nacional de Bordéus, trasladada
em seguida para Versalhes.
Em 48, liberais e tradicionalistas votaram para a presidência em Luís
Bonaparte como uma transição. Transição foi que deu o Segundo Império e o
desastre de 70. Em 71, a representação às Constituintes recaíu sensivelmente nos
elementos monárquicos mais em destaque. O erro repetiu-se, colaborando-se numa
república, que ingenuamente supuseram destinada a desaparecer.
Sirva-nos a França de ensinamento! Convocados para uma Câmara com
poderes de revisão constitucional, nós, monárquicos, nada temos que colaborar na
constituição da república. Só nos cumpre acompanhar a discussão, denunciando os
vícios orgânicos de que fatalmente enfermará e pondo a toda a hora em ressalva os
princípios que formam a herança gloriosa da Monarquia em Portugal. Há a questão
da propriedade, há a questão da família, há a questão da Igreja. Que a nossa
influência se concretize na orientação a imprimir nos debates, mas sempre com a
abstenção dos nossos votos. Governar fora do poder, pela monarquia da nossa
competência e da nossa conformidade de vistas, deve ser o nosso constante
objectivo. O país assim verá que só nós é que somos ordem, a ordem sem
condições, a ordem viabilizada e eternizada numa instituição que a produz e
preserva por obra das próprias leis naturais, se não quisermos dizer divinas.
É sobretudo a nossa aptidão governativa que se torna imperioso
demonstrar. Só se demonstra, não nos imiscuindo nas querelas intestinas do regime
– que nos importa que a república se chame parlamentarista ou presidencialista, se
é sempre a república? – mas atestando continuamente, a cada instante, que na nossa
capacidade, traduzida tanto na ausência dos obstrucionismos bulhentos, como na
apresentação quotidiana de trabalhos que nos acreditem como a única possibilidade
[148]efectiva da salvação da Pátria – é que se encontra a condição essencial dessa
existência desafogada e pacífica que o país procura há quase oito anos e que só a
monarquia lhe pode trazer – desde que seja uma Monarquia.
Tais são as reflexões que a abertura do Parlamento me sugere. Não me
parece ser outro o significado nacional da ida dos monárquicos à Câmara.
E agora?
Quando me atinge o grau elevado de febre que se apossou da sociedade portuguesa
nos últimos dias, lembro-me sempre daquelas grandes palavras de Le Play, ao
definir o seu país como uma liquidação em estado permanente. Na mesma
babilónia confusa ficámos nós, depois que uma bala prostrou em plena auréola de
glória a figura de Sidónio Pais, já além desfeita nas incertezas do túmulo.
Transviados da nossa velha experiência histórica, sem finalidade colectiva nem
consciência nacional, não passamos, na verdade, no solo da pátria, de uma poeira
revolta de indivíduos, que os ventos do caminho manobram ao seu bel-prazer. O
romantismo político cortou-nos as raízes morais e sentimentais, que nos prendiam,
através da continuidade das gerações, à essência eterna de Portugal. Todas as
vaidades nos tentaram, tal como um rebanho de mestiços, a turbulência tornou-se a
nossa lei natural. E assim não admira que, ao esboçar-se entre nós, pelas próprias
exigências da vida, um desejo indicativo de harmonia e de estabilidade, a ordem
nos aparecesse, como nos aparece nas comunidades primitivas, não como um
princípio, não como a resultante da sinergia social, mas como o mero atributo de
um homem, mas como um benefício saído do aço das espadas, por mercê de um
herói salvador.
Ora a Ordem não é a repressão. E, porque não nasce espontaneamente dos
factos em si, decerto que bem precária ela será se a sua existência andar ligada à
existência sempre frágil de quem quer que seja o seu mantenedor. Não o digo
apenas eu, cada vez mais confirmado num doutrinarismo que, pelo seu carácter
eminentemente positivo, de momento para momento se enche de razões triunfantes.
Dizem-no-lo os exemplos de toda a hora, tanto os do adormecido mundo clássico,
se lá os formos buscar, como na actualidade, sem falarmos na Revolução Francesa
e no advento de Bonaparte, as largas lições que há a recolher dos sucessos russos,
desde que baldadamente Kerensky pretendeu substituir à ordem antiga, à ordem
que derivava, não das vontades, mas das instituições, uma ordem sua, uma ordem
baseada somente no esforço e prestígio pessoal.
Bastantes vezes, elucidado pelos ensinamentos da história, nós mostrámos
à ilusão de toda a gente que a ordem, gerada pelo movimento de 8 de Dezembro,
não passava de uma ordem condicional e insubsistente, porque o seu eixo assentava
unicamente na energia, embora robusta, de um homem. Atrás de si tivera Napoleão
uma epopeia militar que o coroava irmão de Alexandre e de Aníbal, senão maior –
e Napoleão tombou, porque a sua obra era ele só, não fundamentava os seus
alicerces no consórcio de uma dinastia com a marcha larga dos séculos. De resto,
Napoleão adivinhava-o bem, se é verdadeira a frase que lhe atribuem num minuto
de desabafo: «Ah, não ser eu neto de mim mesmo!»
Apelando assim para essa admirável hereditariedade moral que torna
legítimo o poder e o associa indissoluvelmente aos destinos de um povo, a frase de
Napoleão envolvia consigo o reconhecimento preciso do que é a Monarquia como
penhor da ordem, mas da ordem natural, da ordem que não sai das baionetas, mas
que dimana, pronta e contínua, da boa reciprocidade entre todos os órgãos sociais.
Parece ser esta a altura para que, a propósito de Napoleão, eu me insurja contra um
erro corrente. É ele o que confunde, na sua assustadora leviandade de inteligência,
o Império com a Monarquia. Nada mais contraditório, nada mais antagónico!
Porque a democracia, pela sua índole dispersiva e atomística, tende
irremediavelmente para a dissolução fatal da sociedade, nós vemos sempre surgir
dela o cesarismo como seu filho dilecto e único. O cesarismo, de bastão ou de
ceptro, é sempre por isso a organização – se eu me explico bem – da democracia.
Foi-o com César em Roma, fôra-o já num ciclo anterior com os tiranos gregos. A
Revolução Francesa, mais tarde, persistiria nas suas diversas heresias políticas se
[151]Bonaparte não lhe imprimisse consistência com o seu pulso de ferro e a fama
irresistível das suas tantas vitórias.
Em ponto minúsculo, eis o que sucedeu entre nós com o Presidente Sidónio
Pais. A democracia de Lisboa afundava-se vítima do demagogismo, seu cancro
estrutural. Encarnando na sua dura necessidade esta lei fatal da história, Sidónio
Pais representou a ditadura inevitável em todo o regime sem coesão nem disciplina.
Mais do que nenhum, a república é-o por pecado original. Exactamente porque o é,
o cesarismo anda-lhe a tremer nos flancos. Mas se César é ditador, não é, porém,
Monarca. «O Império é uma reacção contra a Anarquia – observa algures Octávio
Tauxier, um dos modernos publicistas da Contra-Revolução –
, mas não é de modo
nenhum uma reacção contra as causas da Anarquia.» Não são outros os motivos
por que a ordem napoleónica, como toda e qualquer ordem cesarista, não é a
Ordem, mas uma ordem.
Inerente à razão pessoal que a determinou e manteve, também a ordem
criada em Portugal pelo 8 de Dezembro não era a Ordem. Usando dos termos com
que Tauxier caracteriza o Império, se ela suprimira os efeitos da anarquia, deixava,
no entanto, intactas as suas causas. A prova têmo-la à vista na afloração imediata
dos fermentos destrutivos que o Presidente Sidónio Pais conseguiu reter e subjugar,
mas que não extirpou, porque lho não permitiu nunca a sua própria mentalidade de
republicano. Daí a contradição em que se degladiava constantemente a sua
interessante psicologia de autoritário com as predilecções românticas que, em
relação ao problema político, lhe perturbavam por completo a visão esclarecida.
Montou Sidónio Pais um dia a cavalo e, rapidamente, ei-lo transitando de
uma penumbra mais que discreta para os destaques ruidosos da notoriedade. Logo
um equívoco lamentável se estabeleceu, e esse equívoco levou Sidónio Pais à
sepultura. Ansioso de ordem, o país aclamava nele a atitude rasgada que lhe
[152]garantira – ai de nós! –
, não a ordem, mas uma ordem, repito. Batendo-se pela
quimera gentil dos seus vinte anos, o Presidente sorria por entre as aclamações do
país à sua miragem de uma república generosa – se não ideal, como a de Platão,
pelo menos, tão habitável como ele, Sidónio Pais, a quisera e sonhara. Equívoco
duplo, não tardou a revelar-se em toda a extensão das suas consequências
gravíssimas. Enganava-se Sidónio Pais, quando, em face da missão para que o
destino o chamara, se julgava apenas com o encargo de consolidar e depurar a
república. Enganava-se Portugal em peso, quando supunha, esquecido da tutela
doce dos seus Reis, que a Ordem é uma série ininterrupta de golpes à poigne e que
só por si é bastante um homem para a assegurar. E agora? – pergunto eu,
logicamente, sem recriminações nem vanglórias, a quantos ainda há um mês
reputavam como resolvida a questão portuguesa. E agora? – é a sua resposta
perplexa, atónita, com Sidónio Pais nos Jerónimos e o país à beira de uma
convulsão, cuja amplitude eu me recuso a considerar devidamente.
Agora? Agora, como sempre, a Monarquia ou a morte! «Só o poder
legítimo e tradicional pode ser autoritário sem ser violento ou despótico»,
declarava em 1900 o duque de Orléans numa carta célebre a Paul Bourget.
Não é o poder que rompe do acaso, engendrado, como um cão, no encontro
de um sabre com os favores da rua. Esse poder, ou é Afonso Costa ou é Sidónio
Pais. Oligarquia jacobina ou magistratura consular, se uma atenua os efeitos da
outra, não os remedeia, porém. A tara da República é o demagogismo, e a
República não se melhora, senão destruindo-se. Tentou melhorá-la Sidónio Pais.
Com isso não fez mais do que armar o braço que o abateu. Até na sua morte
Sidónio Pais morreu como republicano. O direito de César é a sua popularidade.
Na hora em que Napoleão foi vencido, na mesma hora caíu. Na hora em que a
Sidónio Pais faltassem os aplausos do Forum, nessa hora o seu direito haveria
caducado. E assim, para o povo o prorrogar indefinidamente, num regime de
[153]opinião em que tudo é surpresa e interinidade, Sidónio Pais caminhou sem
hesitação para as balas do seu assassino, entregue apenas às forças cegas de uma
estrela, depressa eclipsada.
Com diversa noção do interesse nacional, dificilmente um rei jogaria a sua
vida com tão soberano desprendimento. Oferecê-la-ia pela Pátria, se a Pátria lha
exigisse. Mas nunca a trocaria pela temeridade admirável de um admirável gesto de
bravura porque acima das apoteoses passageiras da praça pública existiam as
responsabilidades indeclináveis da sua dinastia. Individualista como republicano, a
morte de Sidónio Pais foi a consagração suprema do individualismo. Morreu como
um varão da Antiguidade, morreu como um personagem máximo de d‟Annunzio,
na concepção naturalista dos heróis de Carlyle. Mas, da sua acção, o que ficou? O
que ficou da sua coragem estóica? O que ficou do seu filantropismo cismador?
Somente a memória do seu nome, e com ela, na boca de todos, esta pergunta
tremenda: «E agora?»
Sinal da Raça
Diante da exaltação magnífica do tenente Teófilo Duarte em Santa Maria de
Belém, reconheçamos que se não mirrou de todo em Portugal a nobre e sagrada
flor da Cavalaria! Numa sociedade como a nossa, levada pelos piores ventos de
desagregação, talvez que fique sem sentido o admirável impulso de um rapaz que
já fez da sua espada o mais galhardo e perigoso dos usos. Áspero e deserto como
uma charneca, não compreenderá o tempo presente o gesto alucinado do moço
oficial. Mas para quem se não perca nas frivolidades quotidianas da vida e goste de
alevantar os seus olhos para o alto, que inesperado movimento de tragédia se não
desprende da figura de Teófilo Duarte, erguendo-se, patética, na nave gloriosa que
viu o regresso triunfante dos Navegadores, sem esperar que se visse ainda teatro de
uma criação inverosímil de Shakespeare!
Modelado pela rijeza de uma velha gesta carolíngia, o rasgo de Teófilo
Duarte é já agora um símbolo, mobilizando os recursos morais de uma geração que
entrou na sua vigília de armas. Num vivo abraçado a um morto, passou mais que o
episódio comovedor que a nossa sensibilidade fixou para sempre. Passou a
comunhão de todos os Vivos com todos os Mortos, passou a unidade plena da
História, reatando os anéis esparsos da herança tradicional abandonada, numa
pátria que perdeu inteiramente o significado eterno da sua vocação. É onde Teófilo
Duarte deixou de pertencer aos nossos dias.
Ali, mesmo no templo manuelino, Teófilo Duarte seria um anacronismo,
uma espécie de sobrevivência curiosa, para o depoimento vacilante dos círios, até
para a ourivesaria brincada das pedras, dormindo o sono dos séculos. A
Renascença falara debaixo daquelas abóbadas solenes. E a Renascença, na orgia do
seu individualismo máximo, como Leonardo o sonhou e quis, só exprimiria
[155]indiferença soberana pela humildade cristã do herói que trocava o amor antigo da
Glória pela virtude mais humana e mais doce de servir, e servir com fidelidade.
Os loiros romanos não se ajeitavam decerto à beleza primitiva, sem atitude
nem linha, do lance dramático que perturbou por momentos a majestade suspensa
da Igreja. Alexandre e Trajano permaneceram impassíveis, nas reminiscências
clássicas dos colunelos quinhentistas, ao voar, desfeito, pela nave, o tampão de
cristal de uma urna funerária. Não vinha da luminosidade latina, cheia de medida e
de ritmo, o golpe rijo que soara pelo templo. Mais gótico, mais mediévico, se tinha
companheiros, na Távola-Redonda os acharia Teófilo Duarte, repetindo à meia luz
dos vitrais, sobre as lájeas dos Jerónimos, o encontro em Toledo de Martim de
Freitas com o cadáver do seu Rei.
Apenas, de entre o silêncio dos altares, o fantasma errante do Encoberto
poderia acolher, como sua, a angústia desesperada de Teófilo Duarte. Um estreito
parentesco o ligaria a ele, beijando com soluços fortes a mão do chefe inanimado,
ao outro, ao D. Sebastião da visita à Batalha, virado para a comitiva atónita, em
face da ossada do Príncipe Perfeito: «Este, sim! Este é que foi o melhor oficial do
seu ofício!»
Último cavaleiro de uma raça que não tardaria a arrastar o signo pesado
dos sonâmbulos, D. Sebastião acordaria logo do seu pó enregelado, tinindo com o
montante, como se houvéssemos atingido a hora de se cumprirem as profecias.
Porque o ceptro é seu de direito e o Desejado é quem reina em Portugal, país da
Esperança, à beira do Cabo Poente – bem merecia que elegesse para seu
Condestável o moço oficial que, na palidez de uma gente sem crenças nem rumo,
mais parece um fidalgo saído da criação da sua casa, do que uma energia
automática de soldado caminhando ao acaso pelas avenidas de um mundo já
próximo do fim. Mas por cima de tanta geração transviada, os seus braços apertam-
[156]se. Não esteve Teófilo Duarte em Alcácer, ao lado de Luís de Brito, para ouvir da
boca do Rei, empinado no seu corcel contra a moirama que crescia e ululava:
«Abracêmo-nos à bandeira e morramos sobre ela!» Continua a moirama a crescer,
e a bandeira ei-la de rojo. Que Teófilo Duarte a levante e assim terá obedecido ao
último cavaleiro de uma raça, em quem, por milagre de Deus, a nobre e antiga flor
da Cavalaria vai renascer na próxima manhã, como uma rosa mística abrindo
devagar.
«Homem duro e forte; e escolhido para sofrer grandes medos e trabalhos e
lazeiras por prol do bem comum...» – é como nas Ordenações Afonsinas se define
o Cavaleiro. O Cavaleiro é a justiça armada, é a imagem terrena de São Miguel-
Arcanjo, de capacete e lança. O herói pagão, reproduzindo para os espectáculos da
História o exemplo amoral de César, não é o Cavaleiro, que faz dos votos uma lei e
da fraqueza uma força. Carlyle emudece perante o Cavaleiro e debalde nos varões
de Plutarco se procura um tipo superior de humanidade, que de perto se lhe
assemelhe. Se Roma nos oferece o precursor do Cavaleiro, é nos mártires,
legionários aguerridos da fé, com São Sebastião trocando as suas insígnias
militares pela palma sempre verde do martírio.
Na cadeia infinita dos valores psíquicos é que reside o segredo misterioso
do heroísmo. O heroísmo, depurado e santificado pela Igreja, gerou a Cavalaria,
novo sacramento, com cerimonial larguíssimo no Pontificale-Romanum. A
essência cristã do martírio manteve-a a Igreja na ideia de sacrifício que o grau da
Cavalaria importa consigo. O Cavaleiro é o miles pacificus strenuus fidelis et Deo
devotus da oração litúrgica. Soldado pacífico e forte, ele é o escudo da paz e o
castigo de todo o poder violento. «Senhor Santo, Pai Omnipotente, Eterno Deus –
reza a voz inspirada da Igreja –
, Tu que és o Único que ordenas todas as coisas e as
dispões rectamente, por tua salutar disposição permitiste aos homens o uso da
espada sobre a terra e quiseste instituir a Ordem Militar para protecção do povo.»
[157]Instituída a Cavalaria para protecção do povo, é para protecção do povo
que existe o Exército, seu descendente legítimo.
Desde Ernesto Psichari, o centurião convertido, até Guynemer, o estranho
cavaleiro do Ar, trouxe-nos a Guerra uma revivescência assombrosa do espírito da
Cavalaria. O sacrifício penetrou na carne dos moços, e Deus de novo se reconheceu
entre o estridor das batalhas como o verdadeiro Senhor dos Exércitos. A vocação
militar, olvidada e diminuída pelos erros grosseiros da filosofia do século,
recuperou esplendidamente a sua dignidade sacramental. Aborrecem-na aqueles
que, na frase de Rabelais – e são a maioria –
, não passaram nunca de sacos por
onde entra e sai a comida. Mas quem sinta dentro de si a labareda inquieta da
Religião e da Pátria, não esquece que foi Longuinos, um soldado, o primeiro que
confessou a Cristo no cimo do Calvário.
Não há Pátria sem Exército, como não há Exército sem grandeza, sem
sublime. O sublime do Exército é o espírito da Cavalaria. Que o espírito da
Cavalaria voltou a visitar-nos, di-lo a cena espantosa de Belém. No mistério do seu
sangue, Teófilo Duarte é para o eclipse demorado da nacionalidade Portugal inteiro
que se baptiza outra vez. Nascido à raiz do Hermínio augusto, quem sabe se no
ardor do seu atavismo não ressuscita algum avô recuado que a si próprio se
imolasse junto à pira fumegante de Viriato?! Quem sabe se não acorda em Teófilo
Duarte a afamada celtibérica fides dos guerreiros peninsulares, que voluntariamente
os prendia entre si, obrigando-os a seguirem o chefe na morte?!
Adoçou a Cruz a fereza bárbara dos antigos costumes. Mas quando, em
Santiago de Coimbra, o Regente e o Conde de Abranches juravam pela Hóstia e
pelo Cálix não sobreviverem um ao outro, não era a celtibérica fides que refloria no
seu juramento, como o sinal invencível da Raça?
[158]Foi o sinal invencível da Raça que, em presença dos muros espectrais dos
Jerónimos, o tenente Teófilo Duarte testemunhou à face de Deus e dos homens
nestes dias amargos da Decadência. «Miles pacificus et strenuus» – a celtibérica
fides do seu tronco lusitano humanizou-se pelo conceito imposto por Cristo ao
sacrifício. Na dureza dos cultos primitivos o sacrifício entendia-se, cruento, porque
só a hecatombe libertava e redimia. Sem forçar com motivos literários a
significação de um acto que não é já de Teófilo Duarte, mas de toda a sua geração,
a celtibérica fides, renovada e ungida pelo espírito da Cavalaria, não é seguir os
chefes na morte, mas servir-lhes obra na vida. Não é outro o sacrifício, como Cristo
pregado na Cruz no-lo ensina, como no-lo ensina a solidariedade que os netos
devem ao pensamento dos Antepassados.
Subvertido o país na insânia romântica do individualismo, quebrou-se o elo
que encadeava os vivos aos mortos. Abraçado a um morto, aprendamos nós a lição
de Teófilo Duarte em Santa Maria de Belém, restaurando na nossa história a
celtibérica fides dos Avós, pelo regresso consciente e deliberado aos laços
tradicionais interrompidos. E, senhor dos beijos do sol, que é o claro amigo dos
heróis, não deixe nunca Teófilo Duarte de se recordar que Deus permitiu aos
homens o uso da espada sobre a terra para que a Ordem Militar se instituísse e com
ela o povo tivesse protecção.
[159]A moral da derrota
Quando Frei Luís de León voltou à sua cátedra de Salamanca, depois de uma
ausência demorada nos cárceres do Santo-Ofício, a turba rumorosa dos escolares
enchia a sala acanhada, para ouvir de novo essa abelha divina, interpretando, na
linguagem dos poetas e dos místicos, a letra sagrada das Escrituras. A cidade saíra
a recebê-lo na pompa só destinada aos seus grandes doutores. E comprimida agora
na aula modesta e ao longo do claustro suspenso na suspensão das próprias
respirações, conta-se que Frei Luís singelamente, contra a expectativa do seu
auditório, deu começo à lição com as palavras do costume: «Como íamos dizendo
no último dia...»
Fundamentando-se em razões mais ou menos plausíveis, parece haver hoje
quem conteste a veracidade do facto, que, todavia, uma tradição ininterrupta de
séculos acreditou como autêntico. Mas tivesse, ou não, o glorioso escritor
pronunciado a frase que se lhe atribui, a serenidade de espírito que ela
vigorosamente nos comunica não lhe pertence em património absoluto. Pertence,
como um sinal de consciência, a quantos, capazes de sofrerem paixão e morte pela
obra de resgate que Deus lhes apontou para sua vocação social, não ignoram nunca
que os homens passam depressa com o seu tropel de ódios, com o seu cortejo de
violências, mas que não passa jamais toda a afirmação que é feita com amor e
servida com sinceridade. Enquanto o ouro se funde e desaparece imediatamente na
provação a que por experiência o sujeitem, nós vemos sempre a verdade renascer
mais bela e mais forte, à flor dos seus eclipses, como se das emboscadas e das
deserções que lhe obstruem o caminho tirasse uma energia inesperada e fecunda.
Acusado e cuspido na fé que a sua inteligência abraçava e o seu
pensamento defendia, Frei Luís de León, regressando triunfante à cátedra da sua
[160]amada Salamanca, é um símbolo expressivo que gostosamente se depara à minha
pena para fixar a comovida alegria com que nós regressamos também ao nosso
posto, que é ao mesmo tempo cátedra e trincheira. Não nos desperdiçaremos a
invectivar os crimes que à roda do nosso silêncio se desenrolaram. E para as
omissões imperdoáveis de direcção que nos poderiam ter atirado para uma
catástrofe sem remédio, só buscaremos uma esponja em que se absorvam depressa.
Responsabilidades não as sentimos, felizmente, pesar sobre nós. O que sentimos é
a nossa hoste mais grossa e mais unida, talvez, porque a sua bandeira não é uma
pessoa, mas sim um princípio!
Há quatro anos que nas colunas de uma revista de parca tiragem o
Integralismo Lusitano lançava ao país os enunciados basilares da verdadeira
ressurreição nacional. Não recapitulo as jornadas já percorridas, nem tão-pouco
aludo à glória recente dos nossos companheiros, demonstrando como ninguém a
adesão total das suas existências à causa que, sendo da Pátria, é soberana nos
domínios da nossa vontade e das nossas aspirações. Santificada por heróis nos
campos da guerra europeia, na expiação colectiva de Monsanto, tão rica de um
oculto sentido espiritual, coube-lhe uma parte que orgulhosamente reclamamos
para nós: a parte do soldado, a parte da obediência, a parte do sacrifício.
O Pelicano deixou de ser assim um alto emblema heráldico, estilizando a
sua agonia contente sobre a cruz sangrenta de Cristo, para se tornar, em perpétua
transubstanciação connosco, numa espécie de eucaristia nova, que é carne com a
nossa carne e alma com a nossa alma. Não é outra a moral da derrota, regra
certíssima de conduta nos trabalhos futuros, aprendizado permanente de disciplina
e de renúncia, por onde a vitória há-de surgir, reparadora e linda, quando sejamos
dignos de repousar debaixo da vibração das suas grandes asas diáfanas!
[161]Ainda agora, ou condenados a penas extremas ou arrastando os seus passos
no exílio «sôbolos rios que vão em Babilónia», os nossos amigos – nós chamamos
nossos amigos, não só aos que professaram na comunhão integralista, mas a todos
os que, num admirável desprendimento à antiga, trouxeram às aras da Pátria a
semente invencível do seu holocausto e da sua fidelidade –
, ainda agora os nossos
amigos, ou presos, ou emigrados, são o penhor imorredoiro de que se acha de pé o
trono dos Reis de Portugal. O que é imperioso como o mais imperioso dos deveres
é que nunca mais nos atiremos para os acasos de uma luta suicida, levando
lealdade, abnegação, heroísmo, mas não levando a ideia política, não levando uma
mística, não levando a noção monárquica da Monarquia. «Os homens pensam
primeiro», observa algures Jacques Bainville no seu elucidativo breviário, Histoire
de trois générations. «Em seguida se determinam segundo a sua maneira de pensar.
Eis porque importa pensar bem. Os erros dos governos e dos povos são sempre os
erros da sua inteligência.» Era o que, por seu lado, já entendia Pascal, ao
aconselhar-nos que, como base de acção, nos esforçássemos sobretudo em «bien
penser».
Tais são os motivos por que se impõe, antes de mais nada, aos que
persistem em se confessar monárquicos – não por uma estreita pertinácia de
partido, mas por decisão deliberada da sua honestidade patriótica –, o ingresso
pronto nas fileiras do Integralismo Lusitano, para que o nosso movimento encontre
em terreno mais amplo as garantias de que carece para restaurar Portugal pela
Monarquia. Não lho ordena somente o ponto agudo que o problema português
atingiu.
Ordena-lho a própria defesa da sociedade, ameaçada de morte nos seus
alicerces mais fundos pela loucura sinistra que parece subverter o mundo inteiro.
[162]Materialista tanto na sua essência como nas suas formas variadas, a
civilização moderna está em crise. Em crise estão as democracias nossas
contemporâneas – ou se revistam com hipocrisia de manto e coroa, ou se
apresentem pitorescamente de sobrecasaca e chapéu alto. Obrigadas pelo
bolchevismo à conclusão legítima dos seus sofismas, já nada se segura no declive
rápido por onde se despenharam. Capitalismo, parlamentarismo, plutocracia e
burocracia, individualismo económico e individualismo social, não tardarão a
descer como larvas às trevas inferiores do sepulcro. Até o próprio Clemenceau,
alarmado, abertamente o proclama, reconhecendo a incapacidade da burguesia para
evitar ou atrasar a sua falência miserável.
Que resta, pois? Ou a ditadura de Lenine, que, na expressão vigorosa de
Vázquez de Mella, faz os ricos pobres, sem fazer os pobres ricos; ou a unidade
forte do Poder, restituindo o equilíbrio à velha Europa pela sua volta à ordem
tradicional bruscamente quebrada.
Escrevo de um país onde o Estado entrou em franca decomposição, porque
é o Estado democrático de toda a parte, com o acompanhamento inevitável das suas
clientelas insaciáveis e corruptoras. Mas aqui a nação resolve-se a retomar os seus
direitos contra as oligarquias preponderantes. E não demorará muito que a outra
Espanha – a Espanha que trabalha e quer viver – se sobreponha à Espanha que
politiqueia e que não é hoje mais do que um abcesso, já próximo da sua extirpação.
«A necessidade de varrer, e varrer bem – o sublinhado não é nosso – há-de
satisfazer-se no momento oportuno», prevenia La Correspondencia Militar logo
depois da queda voluntária de Maura. Ora o momento oportuno desenha-se perto,
se é que não desceu já para cá do horizonte. Apela para ele «a outra Espanha» – a
Espanha da política sábia da neutralidade, que lhe trouxe ouro e lhe poupou
sangue, a Espanha da actividade milagrosa dos sindicatos católico-agrários, a
[163]Espanha que se consagrou ao Coração de Jesus e que, pela boca do seu Rei, perante
uma assembleia de engenheiros, pedindo ao Monarca os elementos imprescindíveis
para um largo plano de alevantamento pátrio, não se acobardou em declarar que «a
Realeza é a tutela paternal dessas nobrezas espirituais – virtude, talento e valor –
em que se resumem os frutos excelsos de uma raça».
A hora é da Espanha – da Espanha caluniada, da Espanha da „legenda
negra‟
, mas que, sempre fiel a uma formidável estrutura histórica, descobriu nas
suas reservas hereditárias o segredo de um ressurgimento, em que ninguém
sonhava, vendo-a caída e inerme, como uma mulher de luto, quando os Estados
Unidos lhe arrebataram as derradeiras colónias no ano trágico de 98. E aonde, para
se salvar, irá a outra Espanha pedir apoio, senão às qualidades esquecidas das suas
instituições monárquicas, senão à unidade forte do Poder pela dissolução completa
do tipo napoleónico do Estado, que a estrangula, mutila e enfraquece? Eu creio que
da Península se levanta um vento novo, como se acordássemos outra vez para a
Cruzada. Já se estende para além dos Pirenéus. E a regência de um arquiduque,
devolvendo à Hungria, com o assentimento dos Aliados, a tranquilidade perdida, é
o primeiro indício da grande mudança que se dará no curso dos acontecimentos.
Assim se compreende que eu insista, e insista com urgência, para que os
monárquicos portugueses se acolham a uma bandeira, que é de todos, porque é da
Pátria. As nossas doutrinas, nascidas da experiência dos séculos, obtêm uma
confirmação consoladora nas angustiosas circunstâncias actuais. Só elas guardam
com o princípio que criou Portugal os quadros precisos para que a sindicalização
inevitável da sociedade se realize dentro do molde cristão e corporativo.
Renovadores que somos, sorriam-se de nós compassivamente os espíritos
progressivos da nossa terra. Pois, como exemplo, as soluções apresentadas por
Pequito Rebelo, numa campanha seguida de dois anos para a resolução da nossa
questão agrária, foram, de um modo geral, também as soluções apresentadas em
[164]Espanha pelo ilustre ministro do Fomento no ministério transacto de Maura, Sr.
Ossório y Gallardo, para a resolução do problema rural na Andaluzia.
Eis porque – «como íamos dizendo no último dia» – só na Monarquia
Orgânica, tradicional e antiparlamentarista reside a salvação da nossa Pátria.
Monarquia descentralizadora tanto no administrativo como no económico, é a
monarquia sempre moça dos Concelhos e da Casa dos Vinte-e-Quatro. Só ela
dispõe de recursos de força e de flexibilidade para que haja governos estáveis e
contínuos, sustentados e prestigiados pelo Rei na consecução do interesse nacional,
que é o interesse da sua dinastia. Sem governos estáveis e contínuos, actuando fora
da política e recrutados pelo critério técnico da competência nas classes
devidamente organizadas, a valorização de Portugal não é possível. No entanto, a
riqueza nacional é incalculável, embora, por desconhecida e inaproveitada, se
considere o nosso país como um país à beira da insolvência e da ruína.
A Nação reconstituída pelo Município e pela Província, a Família unificada
e enraizada pela indissolubilidade do matrimónio e pela vinculação da terra, a
Produção dignificada e emancipada pelo estatuto colectivo do Trabalho, com o Rei
velando ao alto sobre o tecido robusto dos lares e das oficinas, pela coordenação
interna da Pátria e pela manutenção do seu valimento externo – era o que dizíamos
no último dia, é o que continuamos dizendo sempre na flama ardente da nossa
ardente fé nacionalista!
A mim mesmo o repito, como numa oração recolhida, com a lua de Agosto
entrando-me pela janela aberta, e, vizinha vigilante e morena, a torre plateresca da
catedral de Badajoz marcando com os seus sinos a marcha lenta das minhas vigílias
de exilado. E porque Deus, poupando-me a golpes mais rudes, não quis que o meu
sangue corresse, que nunca a ausência me sirva de desculpa para que, lá longe, o
meu lugar permaneça deserto! Chamaram por mim, debruçado para a melancolia
[165]do Guadiana na tristeza desta paisagem só feita para a meditação das grandes
tristezas. E confessando a Raça com o meu ardor de lusitano, olhos pregados na
colina santa de Elvas – e dentro de alma, forte como nunca, a minha confiança nos
destinos eternos da Pátria – que a resposta seja repetir singelamente como Frei Luís
de León, de regresso à cátedra da sua amada Salamanca: «Ora, como íamos
dizendo no último dia...»
[166]Nocturno de São Silvestre
Não tardará talvez uma hora que na torre da catedral, minha vizinha, o relógio
anuncie pausadamente a entrada do Ano-Novo. À orla de 1920, eu quero lembrar
esse 1919 que vai desaparecer, deixando de si um rasto de ruínas e sangue, onde,
por braço da Morte, se passeia a Esperança, a boa semeadora infatigável. Como
nunca, a dois passos da terra ancestral da Pátria, eu sinto a tortura indefinível do
exílio! Mas também, como nunca, eu sinto o facto universal do Cristianismo,
fazendo-me, como membro vivo da Cidade de Deus, cidadão de todo o mundo que
reconheça e proclame Cristo. Sofro, bem o sei. No entanto, quando na catedral o
relógio disser que mais um ano morreu, a minha fé procurará as palavras vitoriosas
do Te-Deum, para exprimir a minha alegria infinita de haver nascido no tempo em
que nasci!
Não se revolta o meu egoísmo por ser de guerra e não de podre quietação a
era trágica que atravessamos. E na humildade da minha inteligência eu confesso
com orgulho este destino áspero que me associa ao grande drama da nossa época e
me torna a mim – pobre indivíduo de um momento – um valor incorporado na
marcha da história para a realização dos seus desígnios imortais. Como nunca, a
dignidade da Existência me visita na tristeza dos meus dias, e como nunca a
tristeza dos meus dias é uma tristeza forte, uma tristeza que alimenta e que
transfigura! Meditação da noite última do ano... Não me curvo, vencido, nem de
longe duvido do triunfo que já de além desdobra as suas enormes asas vingadoras.
Só os meus olhos se humedecem um pouco, na demanda de visões serenas, de
rostos amigos, onde se repousarem.
E, entretanto, os minutos avançam, como a fatalidade avança tecendo com
mãos ligeiras a teia espessa do irreparável. Desdobro-me – amplio-me na onda
[167]misteriosa e palpitante que sobe por mim acima. Meditação de São Silvestre,
meditação da noite última do ano... E o espectro do Ano-Mil – o espectro do
Milenário, espavorido diante das portas abertas do futuro – dir-se-ia que ressuscita
de novo, ao limiar de 1920. Traçando, então, o sinal da Cruz, afasto de mim a garra
diabólica da negação. Creio no Espírito sobre todas as coisas criadas e incriadas,
creio no Verbo feito Carne para nos remir e salvar. E o Espírito reinará com a
vinda do Senhor nascido para a sorte dura dos homens sobre as palhinhas
miseráveis de Belém.
Como na letra admirável do Salmo, os meus ossos humilhados estremecem
de júbilo. Eu creio! – Eu creio!
É um cântico de libertação o cântico que eu entôo, como David, diante da
Arca, à orla do ano que não tardará a romper, à cabeceira do outro que já resvala
para a confusão primitiva das origens. E, solene, o relógio entrou a falar do alto da
catedral.
Na comemoração dos vivos e dos mortos recolho-me à cadeia interminável
da geração de que provenho. Era uma vez... Era uma vez, uma vila clara, com
muralhas caídas, um lar honrado de lavradores, onde o arado alternava com a
espada. Com o suor sagrado dos velhos construtores de antigamente, essa família
se enraizava e durava. Foi árvore frondosa, bracejando devagar, mas bracejando
com vigor. Se lhe buscarem bem as ramadas, tanto as acharão devolvidas à terra,
de que haviam surgido obscuras e sem nome, como estilizadas já, a tintas
heráldicas, nos armoriais luzidíssimos do Reino.
Pois na jornada larga dos séculos, o lar que nos séculos se cimentava pela
virtude e pelo trabalho viu apagar-se o lume tutelar e sumirem-se no vago as
expressões serenas dos avós. Às vésperas de 1820, precisamente há cem anos.
Levado pelo mal da França, um moço fugira de casa, madrugada funda, ardendo
[168]todo na inquietação do vento novo. Acolheram-no no exército que, batendo as
tropas de Napoleão, recebia delas a bebedeira nefasta que nos prostraria depois.
Atrás do moço que fugira, ficava ao abandono a herdade paterna, meio
esquecida na melancolia nobre do montado – o fumo doméstico espiralando
debalde para o céu, nas arcas de vistosa pregaria amarela, com a farda agaloada das
ordenanças, os títulos venerandos do vínculo, repousando-se ao lado das colchas
bordadas dos grandes dias. E o fogo no lar tornou-se cinza, e a cinza a pouco e
pouco se desfez e perdeu. Às vésperas de 1820, há cem anos precisamente.
Mas o ciclo funesto encerra-se decerto com o neto expiando no exílio o
pecado ingénuo do Antepassado. O pecado que eu expio é o pecado que expia uma
nação inteira, pecado de entusiasmo, pecado de sensibilidade. Inclinemos a cabeça,
perante a lição formidável do Eterno! O indivíduo nada vale senão pela regra que
serve. Como o moço que fugiu na madrugada funda, também Portugal se rebelou
contra a disciplina doce que formava e garantia o segredo da sua bela alma
intransmissível. E na lareira imensa da nacionalidade a cinza se desfez e perdeu,
como se desfez e perdeu, a meio do montado alentejano, na casa abandonada em
que tantos do meu sangue viveram e morreram...
Meditação de São Silvestre, primeira vigília do Ano. Eu me persigno
confessando ao Deus de meus Pais, que é Pai de todos os Homens, Criador de
coisas criadas e incriadas. A névoa lá fora adelgaçou-se, como que deixando
transluzir uma poeira finíssima de luar. A escada de Jacob revela-se na noite
escura, para os que sabem elevar o pensamento bem alto. Encosto-me aos seus
degraus, e encontro com que embalar a minha amargura. E se o pecado do moço
que fugiu se der por expiado na minha expiação, que eu possa ainda um dia
reacender o lume, desfeito em cinza perdida, lá longe, na casa abandonada, a meio
do escampado alentejano!
[169]Nota final
Por encargo de piedoso afecto, coube-nos o destino triste de inventariar e ordenar o
abundante espólio literário de António Sardinha.
As páginas que formam o presente volume, são os artigos escritos pelo
nosso querido amigo morto, ao acaso dos acontecimentos, muitas vezes sobre a sua
mesa de redactor da Monarquia, no período político que vai de Fevereiro de 1917 a
Dezembro de 1919, correspondente à mais intensa propaganda do Integralismo
Lusitano.
Elas representam, portanto, caracterizadamente, a obra jornalística de
António Sardinha, na sua expressão mais sincera e impetuosa, no fulgor
espontâneo da crítica e do comentário doutrinal.
Lendo-se este livro, que tem um pouco a natureza de diário, bem se
compreende a distância que vai de um homem de pensamento a um escrevedor, de
um doutrinário a um pedante ou literato de indústria.
Por estas palavras que à nossa saudade parecem ainda quentes da sua alma,
ficam definidas, em sincera projecção, as duas faces mais salientes da sua figura de
pensador e de evangelista da Esperança.
Uns capítulos valem como depoimentos sobre os homens e as coisas do
nosso tempo, outros transmudaram-se em profecias em que se contraprova a
verdade da nossa doutrina na sua objectivação, muitos também acusam nele o
analista-vidente que tantas vezes ilumina de intuição factos e aspectos que a melhor
crítica deixara obscuros ou inexplicados.
[170]Na grande fragmentação destas páginas, subsiste a estrutura interna de um
tratado de bem servir a nossa Terra, escrito com o ardor de uma apologia, flama
sempre acesa em altos clarões de fé e de verdade.
Com elas, grava-se uma inscrição nova no cipo glorioso da sua passagem
por este mundo, que lêem através de lágrimas os seus companheiros de ontem e os
numerosos discípulos de hoje.
Desaparecido Ele, mortos os ressentimentos, dispersos os rumores que
latejavam aos seus golpes, a figura mental do nosso amigo engrandece-se cada vez
mais, e, sem atropelos nem violências, na serena justiça da morte, António
Sardinha sobe ao primeiro lugar no protesto da inteligência e da fé nacionalista
contra os tendeiros do pensamento, contra a superstição das ideias-feitas, contra os
falsos grandes-homens de Portugal.
A sua vida, todos o sabem hoje, passou-se num anseio permanente de
elevação espiritual, a preço daquela luta áspera que tantas vezes faz sangrar o
coração e que só terminou com o último alento da sua agonia.
Mas, como se a sua missão terrena não pudesse medir-se com os passos da
sua curta vida, ainda de além da morte ele continua a erguer o mais ardente facho
do nosso pensamento de resgate.
Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto
afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou
livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se rectifica a si
mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o
caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente
o seu erro, sem pecado de vaidade.
[171]Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e
de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.
*
O presente livro estava organizado e prefaciado, quando António Sardinha morreu.
Só agora pode ser publicado e cremos que em condições materiais que não
causarão desagrado aos leitores devotos do seu nome, como são motivo de
contentamento para nós no dever de honrar a sua memória por este encargo de
testamentaria espiritual.
Ao contrário dos que hão-de seguir-se, só havia que vigiar o trabalho da
impressão deste volume, embora o fizéssemos com a mágoa irremediável de que o
último retoque da mão do Autor não o deixasse ainda mais perfeito.
Os livros que até ao presente pudemos ordenar, reunindo estudos e ensaios
dispersos, agrupando e seleccionando poesias, irão sendo publicados, alguns deles
conforme o plano e os títulos revelados ainda pelo Autor.
São os seguintes:
POESIA:
Era uma vez um menino... (elegias);
Roubo de Europa (poema);
Pequena Casa Lusitana (sonetos);
Procissão de Cinzas & Outros Poemas.
PROSA:
À sombra dos Pórticos (novos ensaios);
[172]Durante a Fogueira (páginas da guerra);
De Vita et Moribus (casos e almas);
Purgatório das Ideias;
A prol do comum;
Da hera nas colunas;
O Processo de um Rei;
À Lareira de Castela (estudos peninsulares).
Lisboa, Outubro de 1926.
Rodrigues Cavalheiro.
Hipólito Raposo.
[173]ÍNDICE
Inscrição
Dedicatória
Eu, pecador, me confesso...
Alva da Páscoa
Do valor da Tradição
Monsieur Homais em Patmos
Jornada de uma ideia
A «Lenda Negra»
O velho Teófilo
A voz dos Bispos
A nova Rússia
Na morte do Senhor
O espírito universitário
A «Carta»
O Brasil
Os Jesuítas e as Letras
Évora-Monte
Santo António
Pátria e Monarquia
24 de Julho
O «milagre» de Ourique
As «Linhas de Elvas»
Nun‟Álvares
Juxta Crucem
Os Judeus e os Descobrimentos
Com João Coutinho
Ciência e Democracia
A estátua do Marquês
Aljubarrota
[174]No Forte da Graça
Um Vereador
Mons. Ragonesi
No Parlamento
E agora?
Sinal da Raça
A moral da derrota
Nocturno de São Silvestre
Nota final
[175]
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