António Sardinha (1887-1925) - Na Feira dos Mitos - Ideias e Factos (1ª ed., 1926)
O livro Na Feira dos Mitos - Ideias & Factos (1ª edição, 1926), reuniu textos publicados no jornal A Monarquia, entre Fevereiro de 1917 e Dezembro de 1919, correspondendo a um período político de intensa propaganda do Integralismo Lusitano e que António Sardinha identificou como as suas "primeiras páginas de voluntário da Reacção."
Este foi um volume póstumo, mas ainda organizado e preparado pelo Autor que, "ao olhar para trás, num exame rápido do caminho andado", em Novembro de 1921, escreveu o prefácio intitulado "EU, PECADOR, ME CONFESSO" onde, referindo-se à "anarquia mental" e ao "sibaritismo literário" dos seus vinte anos, escreveu: "Levanto as mãos ao Senhor, - eu que sou feito de barro grosseiro e impuro, por não me haver perdido nas estradas do Egito".
Em Outubro de 1926, os editores Hipólito Raposo e Rodrigues Cavalheiro, acrescentaram em "nota final": “Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se retifica a si mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente o seu erro, sem pecado de vaidade. Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.” (Rodrigues Cavalheiro e Hipólito Raposo in “Nota final”, Na Feira dos Mitos, 2ª edição, 1942, p. 314)
Pelo testemunho de Luís Chaves, soube-se uns anos depois que O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional (1915) foi um livro que, por pouco, não terá sido inutilizado: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que a obra "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38).
Em meados dos anos de 1960, vem a surgir uma literatura capciosa acerca do Integralismo Lusitano e, ao encerrar-se a década, em 1969, vem mesmo a ser desenterrado um livro que Sardinha tinha anulado e retirado de circulação: O Sentido Nacional duma Existência - António Tomás Pires e o Integralismo Lusitano (1913).
J.M.Q.
Este foi um volume póstumo, mas ainda organizado e preparado pelo Autor que, "ao olhar para trás, num exame rápido do caminho andado", em Novembro de 1921, escreveu o prefácio intitulado "EU, PECADOR, ME CONFESSO" onde, referindo-se à "anarquia mental" e ao "sibaritismo literário" dos seus vinte anos, escreveu: "Levanto as mãos ao Senhor, - eu que sou feito de barro grosseiro e impuro, por não me haver perdido nas estradas do Egito".
Em Outubro de 1926, os editores Hipólito Raposo e Rodrigues Cavalheiro, acrescentaram em "nota final": “Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se retifica a si mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente o seu erro, sem pecado de vaidade. Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.” (Rodrigues Cavalheiro e Hipólito Raposo in “Nota final”, Na Feira dos Mitos, 2ª edição, 1942, p. 314)
Pelo testemunho de Luís Chaves, soube-se uns anos depois que O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional (1915) foi um livro que, por pouco, não terá sido inutilizado: “muitas vezes António Sardinha se me queixou” de que a obra "se ressentiu da precipitação com que foi feito" (Luís Chaves, "Problemas étnicos", Política, nº 10, 10 de Janeiro de 1930, p. 38).
Em meados dos anos de 1960, vem a surgir uma literatura capciosa acerca do Integralismo Lusitano e, ao encerrar-se a década, em 1969, vem mesmo a ser desenterrado um livro que Sardinha tinha anulado e retirado de circulação: O Sentido Nacional duma Existência - António Tomás Pires e o Integralismo Lusitano (1913).
J.M.Q.
EU, PECADOR, ME CONFESSO...
Eis algumas linhas de prefácio, a título de esclarecimento. Gostaria de condensar-me naquela maneira arrepanhada e enérgica com que Paul Bourget costuma preludiar os seus volumes de «esparsos ». O intento do grande mestre da Contra-Revolução intelectual consiste inalteravelmente em nos demonstrar que, através das sugestões múltiplas da vida, nunca deixou de encontrar tema para robustecer a unidade do seu espírito na unidade sóbria dos dois princípios que lho fortificam e iluminam.
Esses princípios, já indicados por Balzac no pórtico de La Comédie Humaine, são o Catolicismo e a Realeza. Filho de uma época nefasta que rompeu, tanto nos factos como nas almas, o elo das verdades tradicionais, aos mesmos princípios me acolhi, também, quando procurei para as angústias do meu pensamento uma decisão definitiva e tranquilizadora. Venho duma longa geração de lavradores, que, pelo exercício da espada e do arado, conseguiram atingir as honras da pequena nobreza provinciana. Subiram, portanto, dentro da regra - ou sulcando de regos geométricos a herdade patrimonial, ou assentando-se, em vereação, graves e singelos, à roda da mesa antiga do Concelho. Sempre que perscruto as minhas raízes ancestrais, não me respondem outras vozes. Apenas um se destacou da série familiar, para correr as cavalhadas sentimentais do Romantismo.
Andou na Guerra Peninsular, foi talvez das lojas maçónicas, e, depois de aprender cirurgia com frades de S. João de Deus, meteu-se, debaixo da repulsão dos parentes, por campanhas duras, à vida duríssima dos hospitais de sangue. Tão perto de mim, nas transmissões mais directas da minha linhagem, creio bem que dele herdaria o estigma inquieto, que me levou ainda aprovar o veneno saboroso da Negação. Mas, sem dúvida, a ele pertence o golpe atirado ao coração duma ideia ou dum acontecimento que, sem fazer da minha forma intelectual um exercício de análise permanente, a caracteriza, no entanto, para a crítica, como trabalhada por um único desejo, - o de compreender e de relacionar.
Ao acordar assim para as batalhas largas do tradicionalismo português, se as forças misteriosas da hereditariedade, na lenta procissão dos meus avós rurais, me abriram as portas amplas da Religião e da Monarquia, ao romântico desordenado, que não se vexou de trocar a banda de seda das Ordenanças concelhias pelo bisturi inglório de cirurgião militar, eu posso e devo agradecer o senso do diagnóstico», que parece latejar nos comentários soltos que passaremos a ler.
“Qu'est ce donc que l'art? qu'est-ce que la beauté dans cette action brutale qu'est une opération?...” - interroga o notável operador francês Dr. Jean-Louis Faure no seu não menos notável opúsculo L'âme du chirurgien. "C'est la sobriété, c'est la précision dans le geste, c'est l'ordre dans le mouvement, c'est la puissance dans la continuité de l'action..." É a sobriedade, é a precisão no gesto, é a ordem no movimento o que a mim me encanta no escritor, que sendo um dissecador de tipos, participa como tal da lição em que o quadro célebre de Rembrandt se ilumina para a posteridade.
Apresentando com carinho o opúsculo do Dr. J.-L. Faure, como filho de cirurgião, Paul Bourget assinala jubilosamente a perfeita identidade que existe entre uma operação cirúrgica definida, porque é a ordem "no movimento", e a definição que do estilo nos legou, com os seus punhos de renda, o senhor de Buffon. "Le style n'est que l'ordre et le mouvement que l'on met dans ses pensées", - recorda Bourget, para logo acrescentar que "Flaubert, filho e irmão de médicos, amaria esse acordo de linguagem entre um mestre na arte de escrever e um mestre na arte de operar". E Bourget não se contém, sem concluir: "Tant il vrai qu'à travers la diversité des objets l'unité de l'intelligence demeure constante attestant ainsi, même à l'occasion des activités les plus spécialisées, semble-t-il, l'unité intime de l'Univers, l'unité de l'énergie sous toutes ses formes, qui fait, rencontre plus remarquable encore, le premier article du Credo: Credo in unum Deum".
Esses princípios, já indicados por Balzac no pórtico de La Comédie Humaine, são o Catolicismo e a Realeza. Filho de uma época nefasta que rompeu, tanto nos factos como nas almas, o elo das verdades tradicionais, aos mesmos princípios me acolhi, também, quando procurei para as angústias do meu pensamento uma decisão definitiva e tranquilizadora. Venho duma longa geração de lavradores, que, pelo exercício da espada e do arado, conseguiram atingir as honras da pequena nobreza provinciana. Subiram, portanto, dentro da regra - ou sulcando de regos geométricos a herdade patrimonial, ou assentando-se, em vereação, graves e singelos, à roda da mesa antiga do Concelho. Sempre que perscruto as minhas raízes ancestrais, não me respondem outras vozes. Apenas um se destacou da série familiar, para correr as cavalhadas sentimentais do Romantismo.
Andou na Guerra Peninsular, foi talvez das lojas maçónicas, e, depois de aprender cirurgia com frades de S. João de Deus, meteu-se, debaixo da repulsão dos parentes, por campanhas duras, à vida duríssima dos hospitais de sangue. Tão perto de mim, nas transmissões mais directas da minha linhagem, creio bem que dele herdaria o estigma inquieto, que me levou ainda aprovar o veneno saboroso da Negação. Mas, sem dúvida, a ele pertence o golpe atirado ao coração duma ideia ou dum acontecimento que, sem fazer da minha forma intelectual um exercício de análise permanente, a caracteriza, no entanto, para a crítica, como trabalhada por um único desejo, - o de compreender e de relacionar.
Ao acordar assim para as batalhas largas do tradicionalismo português, se as forças misteriosas da hereditariedade, na lenta procissão dos meus avós rurais, me abriram as portas amplas da Religião e da Monarquia, ao romântico desordenado, que não se vexou de trocar a banda de seda das Ordenanças concelhias pelo bisturi inglório de cirurgião militar, eu posso e devo agradecer o senso do diagnóstico», que parece latejar nos comentários soltos que passaremos a ler.
“Qu'est ce donc que l'art? qu'est-ce que la beauté dans cette action brutale qu'est une opération?...” - interroga o notável operador francês Dr. Jean-Louis Faure no seu não menos notável opúsculo L'âme du chirurgien. "C'est la sobriété, c'est la précision dans le geste, c'est l'ordre dans le mouvement, c'est la puissance dans la continuité de l'action..." É a sobriedade, é a precisão no gesto, é a ordem no movimento o que a mim me encanta no escritor, que sendo um dissecador de tipos, participa como tal da lição em que o quadro célebre de Rembrandt se ilumina para a posteridade.
Apresentando com carinho o opúsculo do Dr. J.-L. Faure, como filho de cirurgião, Paul Bourget assinala jubilosamente a perfeita identidade que existe entre uma operação cirúrgica definida, porque é a ordem "no movimento", e a definição que do estilo nos legou, com os seus punhos de renda, o senhor de Buffon. "Le style n'est que l'ordre et le mouvement que l'on met dans ses pensées", - recorda Bourget, para logo acrescentar que "Flaubert, filho e irmão de médicos, amaria esse acordo de linguagem entre um mestre na arte de escrever e um mestre na arte de operar". E Bourget não se contém, sem concluir: "Tant il vrai qu'à travers la diversité des objets l'unité de l'intelligence demeure constante attestant ainsi, même à l'occasion des activités les plus spécialisées, semble-t-il, l'unité intime de l'Univers, l'unité de l'énergie sous toutes ses formes, qui fait, rencontre plus remarquable encore, le premier article du Credo: Credo in unum Deum".
* * *
Ora porque, depois de Deus, foram decerto os meus Mortos que me lançaram na alma a semente inextinguível da Esperança, eu não os quero olvidar, à face do presente volume, onde recolho, melhor ou pior forjadas, segundo as necessidades do combate, as minhas primeiras páginas de voluntário da Reacção. Ao confessar-me coram populi voluntário da Reacção, proclamo, dentro daquele justo desvanecimento que até a Religião abençoa como estímulo humano necessário, o mais belo título da minha inteligência de estudioso e da minha sensibilidade de comunicativo. Graças aos que me precederam na sucessão intérmina da existência, não nasci nem para descrer, nem para duvidar. Palpita dentro de mim um intento modesto, mas sólido, de construir, que mesmo quando contempla o espectáculo melancólico de quaisquer ruínas, encontra sempre nelas motivos vitoriosos de afirmação e de confiança. Não me será talvez dado a mim, nem aos que comigo mais de cerca rezam e aguardam, levantar o grande edifício que já avistamos, erguido, com os olhos serenos da convicção para além da orla sangrenta em que tudo parece acabar nesta expectativa trágica de Apocalipse. Mas é com amor, é com enlevada dedicação, sem desânimo, nem arrependimento, que vamos preparando as pedras uma a uma, sem nos importarmos se a casa a refazer-se nos abrigará ainda, ou se mal veremos ressurgir, sobre a face dolorosa d a Terra, o desenho perdido dos antigos alicerces.
Escrevo numa tarde doirada de outono, - tarde translúcida de Advento. E precisamente, no azul profundo e acariciador, estampa-se a linha nobre dum aqueduto, como resumindo toda a paiisagem que me vai à roda. Pois nesse aqueduto dir-se-ia que se simboliza o meu esforço, - o esforço de quantos padecem a emigração na sua própria pátria para que amanhã, cedo ou tarde, o Portugal-Maior seja possível. Como o aqueduto que arranca, através do tempo, a sua caminhada secular para servir um destino que só aos outros aproveitará, assim nós, — os de agora, ao nascer, nascemos para reatar, por soobre as nossas desilusões e os nossos sacrificios, os anéis tradicionais criminosamente quebrados no breve instante duma só geração . E no delirio devastador em que nem a beleza do coração se salva, o nosso triunfo já não é pequeno, se considerarmos que somos os obreiros mandados por Deus ao trabalho anónimo, mas salutar, de não se permitir que morra na consciência da Raça a psique olvidada - pobre Silvaninha do rimance ! - que tirita lá dentro.
"Un principe triomphe, - dizia duma vez Berryer, - quand on l'applique et qu'il produit le bien ; il triomphe quand on applique le principe contraire et que ce principe produit le mal". Eis o que soberanamente se confirma ao repassar as páginas do livro presente.
Contemporâneas as primeiras do período mais agudo da Guerra, redigiram-se as últimas já no isolamento moral do exilio. Liga-as entre si o traço cronológico de pouco mais de dois anos. Mas que dois anos esses, cheios de drama, de experiências angustiosas, de rugidos de catástrofe?! Todavia, a serenidade com que me persigno, ao comeeço, em nome da Tradição, é a serenidade com que me persigno, ao final, ouvindo expirar, nos relógios de Badajoz, sem lareira, quase às portas de casa, a data terrível de 1919. Por isso, eu cometeria a mais vil das deserções se um momento só me considerasse um vencido!
A minha vitória a nossa vitória, é evidente nos domínios augustos do Espírito. Não é já um prémio alto de Deus ter razão numa babel confusa em que ninguém mais a tem? Levanto as mãos ao Senhor, - eu que sou feito de barro grosseiro e impuro, por não me haver perdido nas estradas do Egipto.
Antes, tranquilamente as passeei, à hora clara do sol, denunciando a mentira execrável dos seus ídolos.
Riram-se os da festa, dançando e afundando-se como aqueles bailarins do conto macabro. Mas numa quermesse de doidos é humaníssimo que aos loucos pareça loucura o falar alguém com acerto ...
*
Seja como for, ao olhar para trás, num exame rápido do caminho andado, só encontro conforto e incentivos para avançar cada vez mais. No total desnorteamento em que eu poderia ser um desnorteado também, volto a agradecer às minhas boas sombras tutelares a aancora que a tempo me salvou da onda crescendo, crescendo sempre.
As virtudes rurais da minha estirpe me resguardaram da anarquia mental a que loogicamente me dispunha o sibaritismo literário que aos meus vinte anos, por toda a parte, se respirava e alardeava. Pouco durou esse parentesis, quem sabe se de inquietação criadora? Hoje, creio e espero. E creio e espero, não só pela herança que me vem do meu sangue, mas em plena autonomia do meu pensamento. Não foi debalde que entre os meus houve alguém que se desgarrou dos velhos quadros famíliares para ir correr seduções imprevistas, na alucinação do vento novo que soprava. Tão perto de mim o sinto que talvez do seu pecado derive a paz de que neste momento me sinto singularmente penetrado. Porque sem o senso do diagnóstico», que a sua aventura depositou na minha hereditariedade bucólica, eu que sou por natureza um contemplativo, é provável que me tivesse transviado, como tantos, na atracção tumultuosa da feira dos Mitos!
Elvas, Quinta do Bispo.
16 de Novembro de 1921
Escrevo numa tarde doirada de outono, - tarde translúcida de Advento. E precisamente, no azul profundo e acariciador, estampa-se a linha nobre dum aqueduto, como resumindo toda a paiisagem que me vai à roda. Pois nesse aqueduto dir-se-ia que se simboliza o meu esforço, - o esforço de quantos padecem a emigração na sua própria pátria para que amanhã, cedo ou tarde, o Portugal-Maior seja possível. Como o aqueduto que arranca, através do tempo, a sua caminhada secular para servir um destino que só aos outros aproveitará, assim nós, — os de agora, ao nascer, nascemos para reatar, por soobre as nossas desilusões e os nossos sacrificios, os anéis tradicionais criminosamente quebrados no breve instante duma só geração . E no delirio devastador em que nem a beleza do coração se salva, o nosso triunfo já não é pequeno, se considerarmos que somos os obreiros mandados por Deus ao trabalho anónimo, mas salutar, de não se permitir que morra na consciência da Raça a psique olvidada - pobre Silvaninha do rimance ! - que tirita lá dentro.
"Un principe triomphe, - dizia duma vez Berryer, - quand on l'applique et qu'il produit le bien ; il triomphe quand on applique le principe contraire et que ce principe produit le mal". Eis o que soberanamente se confirma ao repassar as páginas do livro presente.
Contemporâneas as primeiras do período mais agudo da Guerra, redigiram-se as últimas já no isolamento moral do exilio. Liga-as entre si o traço cronológico de pouco mais de dois anos. Mas que dois anos esses, cheios de drama, de experiências angustiosas, de rugidos de catástrofe?! Todavia, a serenidade com que me persigno, ao comeeço, em nome da Tradição, é a serenidade com que me persigno, ao final, ouvindo expirar, nos relógios de Badajoz, sem lareira, quase às portas de casa, a data terrível de 1919. Por isso, eu cometeria a mais vil das deserções se um momento só me considerasse um vencido!
A minha vitória a nossa vitória, é evidente nos domínios augustos do Espírito. Não é já um prémio alto de Deus ter razão numa babel confusa em que ninguém mais a tem? Levanto as mãos ao Senhor, - eu que sou feito de barro grosseiro e impuro, por não me haver perdido nas estradas do Egipto.
Antes, tranquilamente as passeei, à hora clara do sol, denunciando a mentira execrável dos seus ídolos.
Riram-se os da festa, dançando e afundando-se como aqueles bailarins do conto macabro. Mas numa quermesse de doidos é humaníssimo que aos loucos pareça loucura o falar alguém com acerto ...
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Seja como for, ao olhar para trás, num exame rápido do caminho andado, só encontro conforto e incentivos para avançar cada vez mais. No total desnorteamento em que eu poderia ser um desnorteado também, volto a agradecer às minhas boas sombras tutelares a aancora que a tempo me salvou da onda crescendo, crescendo sempre.
As virtudes rurais da minha estirpe me resguardaram da anarquia mental a que loogicamente me dispunha o sibaritismo literário que aos meus vinte anos, por toda a parte, se respirava e alardeava. Pouco durou esse parentesis, quem sabe se de inquietação criadora? Hoje, creio e espero. E creio e espero, não só pela herança que me vem do meu sangue, mas em plena autonomia do meu pensamento. Não foi debalde que entre os meus houve alguém que se desgarrou dos velhos quadros famíliares para ir correr seduções imprevistas, na alucinação do vento novo que soprava. Tão perto de mim o sinto que talvez do seu pecado derive a paz de que neste momento me sinto singularmente penetrado. Porque sem o senso do diagnóstico», que a sua aventura depositou na minha hereditariedade bucólica, eu que sou por natureza um contemplativo, é provável que me tivesse transviado, como tantos, na atracção tumultuosa da feira dos Mitos!
Elvas, Quinta do Bispo.
16 de Novembro de 1921
NOTA FINAL (na edição de 1942, pp. 314-315)
Por encargo de piedoso afecto, coube-nos o destino triste de inventariar e ordenar o abundante espólio literário de António Sardinha.
As páginas que formam o presente volume, são os artigos escritos pelo nosso querido amigo morto, ao acaso dos acontecimentos, muitas vezes sobre a sua mesa de redactor da
Monarquia, no período político que vai de Fevereiro de 1917 a Dezembro de 1919, correspondente à mais intensa propaganda do Integralismo Lusitano.
Elas representam, portanto, caracterisadamente, a obra jornalística de António Sardinha, na sua expressão mais sincera e impetuosa, no fulgor espontâneo da crítica e do comentário doutrinal.
Lendo-se este livro, que tem um pouco a natureza de diário, bem se compreende a distância que vai de um homem de pensamento a um escrevedor, de um doutrinário a um pedante ou literato de indústria.
Por estas palavras que à nossa saudade parecem ainda quentes da sua alma , ficam definidas em sincera projecção, as duas faces mais salientes da sua figura de pensador e de evangelista da Esperança.
Uns capítulos valem como depoimentos sobre os homens e as coisas do nosso tempo, outros transmudaram-se em profecias em que se contraprova a verdade da nossa doutrina na sua objectivação, muitos também acusam nele o analista-vidente que tantas vezes ilumina de intuição factos e aspectos que a melhor crítica deixara obscuros ou inexplicados.
Na grande fragmentação destas páginas, subsiste a estrutura interna de um tratado de bem servir a nossa Terra, escrito com o ardor de uma apologia, flama sempre acesa em altos clarões de fé e de verdade.
C o m elas, grava-se uma inscrição nova no cipo glorioso da sua passagem por este mundo, que lêem através de lágrimas os seus companheiros de ontem e os numerosos discípulos de hoje. Desaparecido Êle , mortos os ressentimentos , dispersos os rumores que latejavam aos seus golpes, a figura mental do nosso amigo engrandece-se cada vez mais, e, sem atropelos nem violências, na serena justiça da morte, António Sardinha sobe ao primeiro lugar no protesto da inteligência e da fé nacionalista contra os tendeiros do pensamento, contra a superstição das idéias-feitas, contra os falsos grandes-homens de Portugal.
A sua vida, todos o sabem hoje, passou-se num anseio permanente de elevação espiritual, a preço daquela luta áspera que tantas vezes faz sangrar o coração e que só terminou com o último alento da sua agonia.
Mas, como se a sua missão terrena não pudesse medir-se com os passos da sua curta vida, ainda de além da morte ele continua a erguer o mais ardente facho do nosso pensamento de resgate.
Ao leitor atento das obras de António Sardinha, não escaparão decerto afirmações e atitudes que foram modificadas em diverso sentido em artigos ou livros posteriores. Em mais de um passo dos seus escritos, ele se rectifica a si mesmo, com a nobreza de quem, só buscando a verdade, abandona de boamente o caminho andado em vão, e com a humildade do cristão que confessa humanamente o seu erro, sem pecado de vaidade.
Até nestas reconsiderações, a sua vida foi um exemplo de coragem moral e de aprumada dignidade que sempre será oportuno recordar.
O presente livro estava organizado e prefaciado, quando António Sardinha morreu.
Só agora pode ser publicado e cremos que em condições materiais que não causarão desagrado aos leitores devotos do seu nome, como são motivo de contentamento para nós no dever de honrar a sua memória por este encargo de testamentaria espiritual. Ao contrário dos que hão-de seguir-se, só havia que vigiar o trabalho da impressão deste volume, embora o fizéssemos com a mágoa irremediável de que o último retoque da mão do Autor não o deixasse ainda mais perfeito. Os livros que até ao presente pudemos ordenar, reunindo estudos e ensaios dispersos, agrupando e seleccionando poesias, irão sendo publicados, alguns deles conforme o plano e os títulos revelados ainda pelo Autor.
São os seguintes:
POESIA:
Era uma vez um menino... (elegias);
Roubo de Europa (poema);
«Pequena Casa Lusitana» (sonetos);
Procissão de Cinzas & Outros Poemas.
PROSA :
À sombra dos Pórticos (novos ensaios);
Durante a Fogueira (páginas da guerra);
De Vita et Moribus (casos e almas);
Purgatório das Idéias;
A prol do comum;
Da hera nas colunas;
O Processo dum Rei;
À Lareira de Castela (estudos peninsulares).
Lisboa, Outubro de 1926
RODRIGUES CAVALHEIRO e HIPÓLITO RAPOSO.
(negritos acrescentados)
Do valor da Tradição
Monsieur Homais em Patmos
Jornada de uma ideia
A "Lenda Negra"
A voz dos Bispos
A nova Rússia
Na morte do Senhor
O espírito universitário
A «Carta»
O Brasil
Os Jesuítas e as Letras
Évora-Monte
Santo António
Pátria e Monarquia
24 de Julho
O «milagre» de Ourique
As "Linhas de Elvas"
Nun'Álvares
Juxta Crucem
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1926 - Na Feira dos Mitos - Ideias & Factos, Lisboa, 1926; 2ª edição, Porto, Edições GAMA, 1942. (pdf)