Estudo in "Roubo de Europa", poema de AntÓnio Sardinha
Luís de Almeida Braga
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Europa! Europa! (E já te não avisto !)
Não ouves esta voz que por ti chama?! Onde ficou o lábaro de Cristo ? Onde deixaste, Europa, a tua flama? |
Perante a ameaça angustiosa que a civilização greco-latina e cristã sofria, a Musa de António Sardinha levantou neste poema o pregão eterno dos valores ocidentais.
Se o Ocidente entrou em decadência, não é no Oriente que poderemos achar os necessários meios de renovação. O segredo dessa renovação havemos de ir buscá-lo aos princípios que em outro tempo deram ao Ocidente força, riqueza e grandeza espiritual. Não será nunca no Oriente, fabuloso e estranho, que a civilização greco-latina há-de encontrar energias para ressurgir os seus decaídos valores; - há uma formidável sementeira de esperança nas grandes épocas da história ocidental. |
Não sei ocultar a comoção dolorosa que se apodera de mim ao ter de inscrever algumas palavras, ainda por ordem de António Sardinha, no frontão de este poema.
Estávamos ambos no exílio quando Sardinha, a tremer pelo destino da civilização ocidental, sentiu e rimou os versos que ai vão.
Pouco depois largava eu de jornada para as terras moças da América, que o Cruzeiro do Sul abençoa. Ia em festa o coração. E em festa, iluminado por todos os fogos da esperança, o trazia eu no regresso, cativo do amor que ordena a vida, entregue ao doce enlevo de assentar a pedra da lareira.
Foi então que António Sardinha, pondo o seu peito contra o meu peito no abraço fundo das boas-vindas, me entregou aberto na página de guarda o livro que eu vira formar, também em horas de turbação, sugestivamente intitulado Quando as nascentes despertam..., e onde anunciava que para este poema eu teria de escrever um estudo.
Outros trabalhos nos ocuparam logo. A morte surpreendeu-o na carreira. E só agora volto a ler os versos, tão apaixonadamente compostos quando na flor da idade andavamos longe e saudosos da terra!
Tudo é diferente do que era então. Já não escreverei o pedido estudo. Porque não me habituo à perda do amigo dilecto, falta-me a serenidade precisa para expor e julgar o seu pensamento.
Tenho o manuscrito diante de mim, e distraído em tantas e tão contrárias recordações nem acerto sequer a enfeixar essas doze folhas de papel, por onde a letra rasgada, ampla e forte de António Sardinha se atropela e corre, como se a febre da inspiração a tivesse ganhado também a ela e ali estivesse testemunhando, na pressa com que foi traçada, a facilidade a que Lamartine chamava a graça do génio!
Dir-se-ia que este poema saiu da pena de António Sardinha como um grito da alma.
Outra vez os Bárbaros batiam às portas de Roma. A guerra, inutilmente longa, fechava por um tratado que embaraçava a paz. E na confusão económica e política, que logo se gerou, os perfumes da Ásia derramavam-se pelo mundo.
A Europa ia morrer. Já a loucura do Oriente a invadia. Maeterlinck, Romain Rolland, Keyserling cobriam de flores o altar de Mahatma Gandhi. Como na alvorada do Romantismo, Loti e Barrès abalavam também, e perdiam-se nos grandes caminhos do deserto.
Spengler decretava a falência do Ocidente, e de entre as ruínas fazia surgir, imaculada e viva, a alma asiática da nova Rússia.
Nunca, nem nas mais sombrias horas da guerra, houvera motivo para tanta aflição.
Como o dragão do Apocalipse, varrendo as estrelas com a cauda incendiada, o Eslavo arrastava atrás de si, por entre a neve e a chuva, através dos campos desolados, as sórdidas multidões acurraladas a Este.
E Spartacus triunfava na Alemanha!
Europa! Europa! (E já te não avisto !)
Não ouves esta voz que por ti chama?!
Onde ficou o lábaro de Cristo ?
Onde deixaste, Europa, a tua flama?
Perante a ameaça angustiosa que a civilização greco-latina e cristã sofria, a Musa de António Sardinha levantou neste poema o pregão eterno dos valores ocidentais.
Se o Ocidente entrou em decadência, não é no Oriente que poderemos achar os necessários meios de renovação. O segredo dessa renovação havemos de ir buscá-lo aos princípios que em outro tempo deram ao Ocidente força, riqueza e grandeza espiritual.
Não será nunca no Oriente, fabuloso e estranho, que a civilização greco-latina há-de encontrar energias para ressurgir os seus decaídos valores; - há uma formidável sementeira de esperança nas grandes épocas da história ocidental.
Não pretendo inculcar assim, - nem esse era o voto de António Sardinha -, o regresso a formas de vida passadas; desejo apenas dizer, como ele queria, que é indispensável procurar inspiração
nas fontes vitais da nossa raça e da nossa cultura, de modo a extrair delas as suas ideias expressivas, para as bem poder aplicar depois à moderna existência individual e colectiva.
É a Ásia, embebida em sonhos de kif e de ópio, a imagem inquieta da sensualidade, da anarquia espiritual, do panteísmo infecundo e aniquilador. Para a civilização greco-latina e cristã, toda feita de claridade, de harmonia, de ordem e estabilidade, as ideias asiáticas são veneno que corrompe e mata.
Ai de nós que nas sombras do crepúsculo andamos a colher as flores do mal!
Partiu-se a cadeia de oiro da tradição latina. Na forja de Vulcano o fogo das paixões dá tempera ao ferro com que o Socialismo e o Capitalismo dominam o mundo, e Vénus, como outrora da espuma do mar, surge, nua e branca, à tona do coração da gente.
Tomou a Bolsa o lugar da Igreja. O homem separou-se de Deus. Vencer e gozar são os mandamentos da lei segundo a nova tábua. Como a espiritualidade religiosa e a vontade, a sensibilidade estética e as curiosidades do espírito tratam de escapar também à ordem cristã. O egoísmo individualista ganha foros de sistema social. E o Estado adoece do mal de Ariel!
A cultura helénica e o império romano tinham feito do mundo inteiro uma só cidade. As fronteiras da Europa estendiam-se do cabo Poente aos jardins da Madrugada, iam até onde se ouvisse o nome de César e houvesse convivas para o banquete de Platão, até onde um verso de Virgílio medisse a palavra e a voz de S. Paulo comandasse o exército das almas.
A lepra de Lutero devastou o reino de Deus. Desfeita em migalhas a Cristandade, o liberalismo e o individualismo foram minando a Arte, a Moral, o Estado.
Causa determinante do enfraquecimento atual do Ocidente, o individualismo é a negação de tudo o que é superior à personalidade, e é, portanto, a redução da civilização, em todas as esferas da atividade, aos seus elementos puramente humanos.
Não achará a felicidade na terra quem abaixar os olhos do Céu. A tradição ocidental só poderá reconstituir-se tomando novamente forma religiosa, que é força cristã, não só porque, sem pôr de parte a origem divina da Igreja, todas as outras são estranhas à mentalidade ocidental, mas também porque apenas no Cristianismo, ou mais rigorosamente, no Catolicismo, se encontram no Ocidente os restos da ordem tradicional que sobrevive ainda.
Foram sempre os espíritos indisciplinados, anárquicos e heréticos, quem abriu o Ocidente aos ventos da Ásia.
Ainda não se tinha cerrado o século IV e já Prisciliano, chamado por S. Jerónimo Zoroastris magi studiosissimum, punha o interesse da vida nas partes noturnas da alma; depois Nestório desencadeia os apetites da rebelião; mais tarde é Frederico II, fronteiro-mor do averroísmo; era ontem Schopenhauer e Dostoievski; era Antero de Quental, saboreando no idealismo germânico a peçonha da metafisica hindu, que lhe concedia a liberdade de morrer para consumir o seu próprio pensamento; são hoje Romain Rolland, Keyserling, os discípulos de Bergson, os alunos de Freud e de Spengler.
Todos eles, inimigos da Igreja Católica, são inimigos da Inteligência e da tradição greco-latina. Ajoelhados diante da Ásia monstruosa, que ao mesmo tempo renegou a Deus e ao homem, repetem em coro a oração de Mefistófeles: — eu sou o espírito que nega incessantemente!
E porque a Europa é o espírito que afirma, tem na Cruz de Cristo o emblema da certeza e da vida.
Eis novamente o caos tumultuário,
negando os claros dons que tu semeias...
Ó madre antiga, embora no Calvário,
não passes o teu facho a mãos alheias!
Antes de Henri Massis ter deduzido a sua vibrante «Defesa do Ocidente», compôs António Sardinha este poema, que bem podia chamar-se a canção de gesta da Europa.
Na recolhida sombra do jardim o azulejo desbotado repetia o desenho de Veroneso.
Junto às ribeiras do mar, na campina florecida, a filha de Agenor apascenta os rebanhos do rei.
Com suas donzelas anda em folguedos, às correrias, a tecer ramilhetes, a compor grinaldas.
Ajoelha o touro aos pés da Infanta. Lambe-lhe as mãos, amima-a, beija-a. E no olhar tão languido, que a envolve toda, cuida ver a Infanta o mar e o céu...
Deixa-se a Infanta levar por aqueles modos brandos. A ternura ilude-a. Cede, complacente, aos maliciosos afagos do touro amoroso, em que se transformou o deus namorador. E lá vai, lá vai a bela Europa, enliada e cega, por entre as ondas bravas. Ao dar conta do logro quer voltar para traz, e suplica, implora, desfeitos os cabelos, soltos os vestidos... Mas nada já detém o fugitivo amante !
À luz meiga do entardecer tomam vulto as cores. Dobra o mar as ondas. E as ondas cantam...
O dia caiu adormecido. Por escondidos caminhos a noite avança cautelosamente. Parece que Deus acaricia as coisas e que as coisas vão falar!
O Poeta está atento. Sobre os olhos, fechados um instante, passa a asa de um beijo.
Parou a vida. Só o quadro se move.
Não é já o touro mitológico, abrasado em furor e amor, que ali corre agora para arrastar até junto do álamo lendário a donzelinha tímida.
Tem sentido novo o passo antigo da fábula. Remida por Cristo, a Europa quebra o feitiço que a levava presa ao dorso do touro. Está livre e pura. Para evitar enganos toma por bandeira o sinal da cruz. O lume da fé subiu-lhe ao coração. E nessa chama viva resplandece o espírito de Deus, e o espírito de Deus se espalha pela terra!
Perdeu o conto o lascivo aroma que Ovídio lhe entornou. O sentimento cristão de António Sardinha, acordando as ocultas raizes da poesia clássica, tornava maior e mais nobre o significado da fábula.
Bem claro revelou o seu propósito no Poema da carne nua, de Quando as nascentes despertam...
Atado ao loureiro venerando, Sebastião tombou exânime. No corpo belo, que a morte envolve, o Espirito desabrocha.
Cedeu o Herói o seu lugar ao Santo,
- é já bem outra a antiga formosura!
O lírio puro suplantou o acanto,
fez-se espiral a linha inerte e dura!
Agora, o amor de Júpiter passou também. Cingida a coroa imperial, a Europa não se entretêm mais a enastrar capelas à beira das ondas enganadoras. Pertence-lhe o governo do mundo.
Por isso o Poeta se afligia ao ver que a paz protestante, concluída em Versailhes, lhe pusera em farrapos o vestido de gala. E ansiadamente perguntava:
Que vento de desgraça te procura
e sobre ti, sinistro, se condensa ?
Sardinha nasceu para a poesia sob o signo do simbolismo. Cedo porém se libertou do culto exclusivo da forma e se desgostou do verso harmonioso e dificil.
Por aquele tempo a poesia ambicionava ser música:
De la musique avant toute chose,
De la musique encore et toujours,
prescrevia Verlaine; e a música, guiada por Berlioz e Wagner, tinha a pretensão de ser literatura.
O romantismo individualista dava no ramo extremo o extremo fruto.
Aos 15 anos entoava António Sardinha os seus primeiros versos, e na capelinha estreita onde nossas lindas crenças, a amorável feição dos nossos costumes, o fundo sentir do povo à roda da lareira. Ensina-lhe Sá de Miranda as regras severas que têm de seguir os que pretendem viver à lei da nobreza da poesia; Manuel da Silva Gaio comunica-lhe a aspiração messiânica da raça; reza com Maurice Barrès o Oficio de Defuntos, para aprender que sobre os túmulos é que os berços se embalam com mais segurança; e Louis Mercier, lá de um cantinho sumido da Gália, onde o sol de Paris não chegava, revela-lhe o lirismo das coisas quotidianas.
Achados assim os motivos tradicionais da poesia, ganha o seu verso a inflexão clássica. Não o quebra mais em ritmos bruscos, nem a voluptuosidade do vocábulo o atormenta. Quer exprimir os sentimentos da Grei, fundir no seu espírito o espírito português.
Ouvi-o todos vós, raça de heroes,
e do intimo valor de que inda sois
largai frotas de novo à roxa Aurora...
Talvez que a pobre Pátria agonizante,
revendo-se entre as águas do Levante,
ressurja em si o Portugal d'outrora!
Refloresce numa primavera sem par o velho cepo adormecido. Paisagens da terra natal, lembranças familiares, lendas e superstições, tudo o que possa ajuda-lo a reconstituir o fundo psicológico da raça o preocupa e seduz.
Essa é a chave maravilhosa do sentido animador da sua inspiração, que ensaia o voo em o Tronco reverdecido (Lisboa, 1910) e se afirma amplamente em A Epopeia da Planície (Coimbra, 1915).
Ali, o Poeta ainda por vezes se mostra sensível ao que lisonjeia e acaricia os olhos e o espírito.
Mas em Quando as nascentes despertam... (Lisboa, 1921) a sua inspiração surge mais forte, é mais viril a sua sensibilidade.
Qual a causa desta renovação intima? Foi antes de tudo a dor do exílio, que ao sacudir-lhe o coração fez vibrar nele as suas fibras mais delicadas e mais profundas. Como a terra aberta pela charrua, a alma do Poeta foi revolvida pela saudade, e a saudade a deixou arroteada para novas e fecundas sementes.
A sensibilidade afina-se. A melancolia, que a certas horas se apodera dele, é mais intensa que nunca, mas ao mesmo tempo, é também mais serena, mais vigorosa.
O Poeta debruça-se sobre as fontes da vida, e, examinando-se, compreende que os melhores sentimentos do coração humano, os mais generosos, que conduzem e alimentam a nossa acção moral, são também a essência de toda a verdadeira e nobre poesia.
Se é certo que há artes para as quais a forma conta mais do que a matéria, a verdade é que na poesia a matéria é mais preciosa do que a forma, porque é feita de pensamento e de sentimento.
Onde não existe nem alto pensamento nem sentimento verdadeiro não há poesia.
Os versos de António Sardinha são a perfeita ilustração do que digo. Se não temesse alongar esta notícia, gostava de insistir sobre o apertado laço que prende a poesia de Sardinha aos seus ensaios de história, de critica e de filosofia política.
Dominado pelo respeito da ordem, que constrói e conserva, ele mesmo publicou o segredo do seu jardim interior quando, nas páginas liminares de Ao ritmo da Ampulheta, escreveu no tom de quem se confessa: «as nossas campanhas nacionalistas desceram das Letras à Política, - subiram da Acção à atmosfera diáfana das Ideias». Tradição política e tradição literária são anéis da mesma cadeia, reflexos da mesma verdade.
Cantar foi ainda para Sardinha um modo de servir. Os seus versos são também política, no significado augusto da palavra. Fundador de cidades, — seria o título que melhor quadrava à sua ambição.
A imagem da pátria obstinadamente o acompanha, e ela lhe disciplina a imaginação, lhe ordena a sensibilidade, o leva a emparceirar o sentimento e a razão, segundo o sentido e a forma da nossa índole nacional. Os sonetos que compõem o volume inédito, denominado ao gosto de Camões, - Pequena Casa Lusitana, - são um ideário de patriotismo, a exaltação lírica do génio português.
Duas vezes romano, pelo talento e pela fé, António Sardinha tomou para si e exercitou como ninguém a vocação apostólica de Portugal. Cabia-lhe bem à cabeceira da pedra tumular o epitáfio escolhido por Veuillot, - tão semelhante a ele no ardor combativo, no brilho das ideias, na iluminada esperança que ambos impuseram, como se tivessem na mão a lança do Arcanjo:
Ne défendez pas ma mémoire,
Si la haine sur moi s'abat:
Je suis content, j'ai ma victoire;
J'ai combattu le bon combat.
O entusiasmo, que no seu sentido exacto é sopro divino e que foi talvez o dom mais rico da privilegiada natureza de António Sardinha, alargou a visão da sua arte, vivificou-a A Terra e o Sangue enlaçam-se num só amor. E é então que, na soledade do desterro, António Sardinha entra mais completamente na verdade do seu coração.
Na Corte da Saudade (Coimbra, 1922) repete Sardinha as passadas sonolentas de Sancho II, trá-lo Portugal alucinado:
Meu coração de lusitano antigo
bateu às portas de Toledo, - a estranha.
Mais rôto e ensanguentado que um mendigo,
só a Saudade os passos lhe acompanha.
Pois a Saudade ali me deu abrigo,
ao pé do Tejo que a Toledo banha.
Levava os dias a falar comigo,
como um pastor com outro na montanha.
Em todo o mundo há terra portuguesa,
desde que a alma a tenha na lembrança
e a sirva sempre com fervor igual.
Talvez por isso, em horas de tristeza,
eu pude à sua amada semelhança
criar p'ra mim um novo Portugal!
A saudade devora-o. Do céu imóvel, na tardinha queda, que pungitiva angústia vem tombando agora!
Chuva da tarde, - melodia mansa,
desejos vagos de chorar baixinho...
Toda a pena da ausência canta e chora nos sonetos de amor de a Chuva da tarde (Coimbra, 1923) - relicário de bem querer, alta flor de ternura onde o beijo do outono pousou as graças da primavera!
Estão os anjos de joelhos, mas ai! o coração do Poeta não tem mais alegria. Não lhe sai do pensamento aquela história triste: Era uma vez um menino (Lisboa, 1926).
A morte do seu filho único abriu no peito de Sardinha uma chaga, que para sempre ficou sangrando. A vontade do Senhor não foi, porém, recebida a gritos, com palavras duras; como no quadro da Anunciação, humildemente a acatou, buscando contentamento na sua própria dor.
Enxuga-lhe as lágrimas a oração:
Não chores, Filha, não chores,
— aceita, alegre, o destino.
As mágoas, mesmo as piores,
sabem a um gosto divino!
Cobriu-te a dor de suores,
eu sei, eu bem imagino!
Mas sofre angústias maiores,
se a gente chora, o Menino!
Anjo de Deus inocente,
não vês que o choro da gente
só servirá p'ra o molhar?
Depois, molhadas as penas
das suas azas pequenas,
como é que ele há-de voar?
Praticada assim, a poesia é jarro de água e fatia de pão no cárcere da vida. Não a poderá dispensar um povo como o nosso, para quem o canto sai tão naturalmente da alma como da flor o perfume.
Falta a Deus e ao Sangue quem faz da poesia passatempo elegante, jogo do espírito, vão exercício de palavras e de rimas.
Poesia é dom divino. Reveladora do mistério do Ser, a poesia torna sensível a beleza da alma. Basta uma rima, às vezes, para encher de luz a vigília dos filósofos. Le scepticisme est mauvais conducteur de la poésie, notou o exorcizado Jean Cocteau. E logo esclareceu: C'est pourquoi la poésie touche peu en France, pays malin.
António Sardinha guardou sempre do simbolismo o sentido do mistério das coisas, mas tendo sabido reconciliar as potências da imaginação e da sensibilidade, a carne e o espírito, não se deixou enredar nas subtis e superficiais impressões dos mestres franceses. Sardinha foi mais além, penetrou na consciência das coisas, isto é, descobriu nas coisas o segredo dos laços obscuros e invisíveis que as prendem à nossa vida humana.
Põe o ouvido à escuta e não há voz que lhe escape. Rumor que suba do chão ou grito que chegue do passado, tudo o que tem carácter de duração e de eternidade acorda um eco no seu coração.
E no seu coração essas vozes ocultas, repercutindo longamente, conferem a tudo quanto vive o valor das coisas eternas. Dai a importância atribuída pelo Poeta ao que poderia parecer extinto aqueles que passam os dias nas alamedas desertas, a contemplar-se na água das fontes, e o fervoroso empenho por ele posto sempre em ligar o presente ao passado, direi melhor, em encontrar o passado no presente.
Tudo o que vive para perpetuar a vida o comoveu e encantou. Mas se António Sardinha conseguiu ver assim as coisas sob o aspecto de eternidade, foi porque ao seu amor da terra misturou o profundo sentimento religioso que o aquecia.
Não quis Sardinha à natureza apenas pelas suas graças pitorescas e externas, que distraem os sentidos; é a sua beleza moral que o deleita, exalta-o a grandiosidade dos sentimentos que ela inspira.
Amo as paisagens quando são latinas
— paisagens de aquedutos e colinas,
explicava ele.
A sua vista não se limita nos limites da paisagem; passa para lá da estreita linha da visão humana. O seu horizonte alargava-se até às fronteiras do infinito, e o seu pensamento atingia as regiões mais altas e mais puras.
No melhor momento do seu voo partiu-se a asa do Poeta, a sua voz calou-se. Não importa! Os seus versos, que são a imagem fiel da sua profunda e rica sensibilidade, revelam-nos alguma coisa ainda mais bela do que o sonho de poesia que o alimentou: — a ascensão da sua alma!
Casa das Quintães.
Tadim, Páscoa de 1931.
LUÍS DE ALMEIDA BRAGA
[negritos acrescentados]
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