O JuIz do Povo
Luís de Almeida Braga
A Nação é de todos, mas o Estado é hoje dos partidos políticos. A Lei de 27 de Julho de 1822, ao estabelecer a forma da eleição das câmaras municipais, excluiu os representantes dos trabalhadores dos Ofícios (dos “mesteres”, como então se dizia). As corporações dos mesteres protestaram, mas os liberais da época não admitiram entraves à “liberdade do trabalho”, que consideravam condição para o desenvolvimento económico. A intenção seria a de colocar em competição os patrões da mesma indústria, mas o que resultou foi sobretudo antagonismo e competição entre patrões e operários, entre detentores do capital e aqueles que possuíam apenas a sua força de trabalho. Os operários eram a maioria, mas o poder financeiro estava nas mãos dos patrões. Uma intervenção estrangeira acabou por decidir a contenda. Logo após a vitória dos liberais na guerra civil (1831-34), pelo Decreto de 7 de Maio de 1834, foram extintos os lugares de Juiz e Procuradores do Povo, Mesteres, Casa dos Vinte e quatro, e os Grémios dos diferentes Ofícios. A Nação continuaria a ser de todos, mas foi então que o controlo do Estado passou para as mãos dos partidos políticos e de seus financiadores.
Excerto de "A Lei do Trabalho" in Paixão e Graça da Terra, 3ª edição, Lisboa, 1948, pp. 160-174.
[...]
O Juiz do Povo — «o muito honrado Juiz do Povo», como se usava chamar-lhe — arrogava-se a qualidade de chefe do terceiro estado e era o seu natural representante. As suas atribuições não estavam perfeitamente regulamentadas. Falta o diploma fundamental da sua criação. Sabe-se que tinha faculdade para poder prender e ordenar o levantamento de auto a quem lhe desobedecesse e que uma das suas obrigações consistia em levar à presença do Rei e da Câmara quaisquer petições que o povo lhe fizesse e a Casa dos Vinte e Quatro perfilhasse. O Juiz do Povo e o seu escrivão falavam e ouviam a El-Rei; os mesteres tratavam e ouviam aos companheiros de seus ofícios.
Entre as prerrogativas do Juiz do Povo destacava-se a de falar ao Soberano nas audiências principais do sábado, que eram as dos fidalgos e ministros, e nas ocasiões de Cortes e de juramentos de príncipes acompanhava El-Rei de perto, conservando-se em pé, da parte direita, acima dos bancos dos Arcebispos e Bispos, como os oficiais da Casa Real. No primeiro de Janeiro assistia à missa no Paço, próximo do arco da capela-mor, da parte do Evangelho, dando a mão direita à tribuna real.
Em dia de Reis, já às oito horas da manhã estava no Paço para acompanhar o Monarca à sua capela; depois incorporava-se com a Corte, entre os titulares e os moços da câmara, levando seu escrivão à esquerda. Sentado El-Rei, o Juiz do Povo ficava defronte do trono real.
Nada há agora que se assemelhe às regalias que o Juiz do Povo, pelo povo, gozava.
Ele era, junto do Rei, o observador atento e constante do que podia interessar à gente humilde da Nação. Eleito diretamente pelas classes populares, a que sempre pertencia (o primeiro Juiz do Povo de que ficou memória, Afonso Anes Penedo, saiu dos tanoeiros) nunca o Estado cuidou de intervir ou influir sequer na eleição, deveras livre e certa. Era tanta a importância do Juiz do Povo, e tais privilégios disfrutava, que não havia quem não o acatasse respeitosamente, nem sei de vontade forte que não lhe cedesse. À sua voz se abriam imediatamente as portas do Paço Real, se lhe franqueavam todas as entradas.
Na rua, o Rei parava para o atender. E por ser de pressa e de cuidado o que tinha a contar, muitas vezes o Monarca voltou atrás, para o ouvir com melhor atenção.
Ah! digam-me: — quantas voltas, e rodeios, e favores, não é necessário pedir, dar e andar, para no dia de hoje chegar à fala com o Chefe do Estado?
Antigamente, o Juiz do Povo ia direito à câmara do Rei; agora perde-se o povo nas ante-câmaras das repartições!
O valor nacional dessa magistratura revelou-se bem naqueles dias formosos das guerras da Restauração.
Como se tivesse tornado conhecido que o Marquês de Saint-Roman estava em Lisboa, encarregado pelo Rei-Sol de enredar as negociações da paz entre Castela e Portugal, foi o Juiz do Povo até ele, a avisá-lo de que, se continuasse a opor-se à realização das esperanças portuguesas, a sua pessoa não se acharia mais em segurança. E o hábil diplomata não pensou senão em dizer, alto e claro, que Luis XIV desejava a paz e por ela se esforçava.
Nunca El-Rei Dom João IV deixou de manifestar o maior respeito e afeto por esta veneranda instituição, à qual chamava carinhosamente a sua Casa dos Vinte e Quatro.
Sentindo que entrava na agonia, mandou o Soberano chamar os conselheiros de Estado, os presidentes dos tribunais régios, os altos dignitários, os prelados das ordens religiosas, o cabido da Sé, o Senado da Câmara de Lisboa, o Juiz do Povo e seu escrivão. A todos pediu humildemente perdão de algum agravo, que porventura dele tivessem recebido, disse-lhes como trabalhara para que o reino fosse bem regulado e certa a justiça, e lhes rogou não abrandassem no zelo e no amor de conservar e defender a sua terra. E estendendo a mão ao Juiz do Povo, que ajoelhara aos pés da cama, acrescentou: «Meu Juiz do Povo, meus homens bons, bem conheço o muito que me amais e todo este povo, e que sois muito solícitos em meu serviço e zelosos do bem comum. Eu também me alegrava muito todas as vezes que vos via, assim como a vossos antecessores e homens do povo, porque tenho de vós outros grande satisfação».
Entre o povo e o rei houve sempre entranhada estima. Bartolomeu Pereira, que foi escrivão do povo, e cerieiro de seu ofício, deixou contado no cuidadoso livro que para sua curiosidade compôs e para remédio da nossa fez imprimir o Doutor Teixeira de Carvalho, que pretendendo El-Rei partir para uma caçada, fora ele escrivão com o Juiz do Povo rogar-lhe que não fosse. Respondeu o Rei que não lhe tirassem esse gosto, que era matá-lo.
Concordaram o juiz e o escrivão «Visto o gosto de Sua Majestade, vá embora, com condição que não corra muito». Prometeu o Rei que faria o que lhe recomendavam.
«E logo na mesma tarde — informa o escrivão —fomos beijar a mão à Rainha nossa Senhora. Ela nos fez muita mercê. Pedindo-lhe que não deixasse ir a Sua Majestade à caça, respondeu que, se o tirávamos disso que era dar-lhe desgosto, e que agradecia o cuidado que tínhamos de Sua Majestade».
Depois anota com ingénuo enlevo, denunciador do sentido familiar da nossa realeza:
«Foi à caça e veio. Matou um porco e uma porca e mandou a porca à Rainha e o porco ao Juiz do Povo».
Foi no reinado do Senhor Dom Miguel I que pela última vez o Juiz do Povo teve modo de fazer valer a sua autoridade.
Indo de Queluz para Caxias, El-Rei caiu desastradamente. Depressa recolheu a Palácio, e os alvissareiros puseram a correr a má nova de que o Monarca estava em perigo de vida. Já a cidade se alevantava em gritos, cuidando-o moribundo; ninguém sabia ao certo o que se passava. Então alguém lembrou os direitos do Juiz do Povo e que se recorresse a ele. E logo o Juiz do Povo, erguendo na mão a vara vermelha, em que o desenho do escudo da Câmara reluzia, se dirigiu à porta do Paço, endireitou pela escada, atravessou as salas, e só se deteve junto do leito onde estava o Rei. Por seus olhos o viu. Disse-lhe a inquietação do povo, seus desejos e sua pena. Depois chegou-se a uma janela, e de lá, no comovido silêncio que subia ansioso, afirmou ter achado El-Rei com vida, relativamente bem disposto e livre de qualquer complicação que fizesse recear um resultado funesto.
Reboaram as aclamações; e os vivas, os gritos de alegria alongaram-se no ar como labaredas.
Mas já a filosofia revolucionária andava a acorrentar o trabalho à tirania capitalista. E o racionalismo abstrato de Pombal tomava finalmente corpo no Decreto de 7 de Maio de 1834.
Duas penadas rápidas deitaram por terra o edifício das Corporações em Portugal. Um só artigo de lei bastou para deixar sem amparo a gente baixa da Nação. Dizia assim a letra liberal do Decreto, que vale bem a pena recordar, porque ali, como em claríssimo espelho, se reflete a Carta Constitucional, toda garrida com os seus lacinhos azuis e brancos, a ajeitar o Estado à moda de França, pelo figurino romântico de Rousseau.
Eis o Decreto:
«Não se coadunando com os princípios da Carta Constitucional da Monarquia, base, em que devem assentar todas as disposições Legislativas, a instituição do Juiz e Procuradores do Povo, Mesteres, Casa dos Vinte e quatro, e classificação dos diferentes Grémios; outros tantos estorvos à Indústria Nacional, que para medrar, muito carece da liberdade, que a desenvolva, e da proteção, que a defenda: Hei por bem, em Nome da Rainha, decretar o seguinte:
Artigo 1.º- Ficam extintos os lugares de Juiz, e Procuradores do Povo, Mesteres, Casa dos Vinte e quatro, e os Grémios dos diferentes Ofícios.
Artigo 2.º - As Câmaras Municipais darão as providencias que julgarem mais acertadas para se levar a efeito o disposto do Artigo 1° sem inconveniente do serviço publico. E se algumas dessas providencias excederem suas atribuições, Me consultarão para as tomar na consideração que merecem.
Artigo 3.°— Ficam revogadas todas as leis em contrario, como se delas fizesse expressa, e declarada menção.
O Ministro e Secretario d'Estado dos negócios do Reino, assim o tenha entendido, e faça executar.
Palácio do Ramalhão, em 7 de Maio de 1834.
-D. Pedro, Duque de Bragança, - Bento Pereira do Carmo»... que já ninguém sabe quem foi...
Nada mais! É a aplicação acabada do princípio individualista da liberdade de trabalho, que os economistas do tempo davam como regresso ao direito natural da humanidade e como condição do seu desenvolvimento económico, mas que só veio a criar o mais furioso antagonismo entre os patrões da mesma indústria, e sobretudo entre eles e os seus operários.
Já a carta de Lei de 27 de Julho de 1822, estabelecendo a forma da eleição das câmaras municipais, se apressara a excluir delas os representantes dos mesteres. Nessa ocasião ainda lhes foi dado protestar, por se lhes não permitir fazer parte da corporação concelhia, como no tempo do extinto Senado; mas o Soberano Congresso, que trazia nas mãos as cadeias da Liberdade, resolveu que os procuradores dos mesteres não podiam mais continuar com exercício nas Câmaras, por ser contrário à Constituição e à Nova Lei eleitoral!
Sujeitando-me ao risco de parecer malicioso o confronto, cedo ao gosto de recordar a Carta (por certo inconstitucional) em que El-Rei Dom João III satisfaz ao rogo do nobre povo de Guimarães e aí ordena e estabelece os ofícios na administração municipal:
«Dom João por Graça de Deus Rey de Portugal e dos Algarves, da quem e dalém mar em África, senhor da Guiné etc. A quantos esta minha carta virem, faço saber que nos capítulos particulares que a vila de Guimarães me enviou por seus procuradores a estas Côrtes que ora fiz nesta cidade de Évora (são as Cortes de 1535), me enviaram dizer, que pera bom regimento e governança da dita vila era necessário haver em ela Mesteres como havia em outras vilas do meu Reino de sua qualidade, pedindo-me por mercê lhos quisesse conceder, e visto seu requerimento por lhes nisso fazer mercê, me praz que na dita vila de Guimarães haja doze pessoas dos Mesteres, posto que em algumas cidades de meu Reino haja vinte e quatro, as quais doze pessoas se elegerão pela maneira seguinte». Diz como se há de proceder à eleição, e depois, entre outras regras, determina: «E tanto que a eleição dos ditos doze for feita, logo os ditos doze se ajuntarão, e elegerão entre si dois homens de bem quais sentirem que são de melhor consciência e entender, e que as cousas do Povo saibam requerer bem e como a ele cumprir e com toda a temperança. Os dois procuradores, que assim dos ditos doze forem eleitos, estarão na Câmara da dita vila de Guimarães nas razões e autos que se nela fizerem, e lhe será dado assento apartado da dita mesa, em fronte dela, assim como estão os das outras vilas, e os Juízes e Vereadores e procuradores da dita vila quando houverem de dar alguns ofícios, que por regimento e minhas ordenações a dita Câmara pode dar, sempre mandarão chamar as pessoas honradas que soem de andar nos ofícios da dita Câmara, e com eles, e com os ditos dois procuradores, os darão a mais vozes a quem sentirem que para isso é mais apto e suficiente. Os ditos dois procuradores serão presentes e darão vozes no entregar dos contratos dos aforamentos, emprazamentos e arrendamentos que por a dita vila forem feitos a alguma pessoa ou pessoas, coisa que seja que a dita vila possa fazer, e nas rendas e trespasses, e na arrecadação das rendas que á dita vila pertencem; e sem eles se não fará coisa alguma do sobre dito. Os oficiais da Câmara da dita vila não poderão fazer posturas nem ordenações, nem prometerão nem darão serviços, nem porão tenças algumas, em caso que licença tenham para as porem, nem outros alguns cargos, sem serem chamados os doze dos ditos Misteres, e o que com eles se assentar e a mais vozes for acordado, assignarão no tal acordão.
«Quando quer que se houverem de tomar as contas das despesas que a Vila mandar fazer, assim das rendas dela, como fintas e taxas, serão requeridos os ditos doze mesteres a que elejam uma pessoa, que por parte do Povo esteja presente ao tomar delas, para por eles requerer o que a bem de sua justiça entender. E mando aos Juízes, Vereador e procurador da dita Vila de Guimarães, que recebam aos ditos Mesteres por eleição dos ditos doze, e os ouçam, quando por parte do dito Povo alguma coisa que a ele toque à dita Câmara forem requerer e os mandem chamar para as coisas que nesta minha Carta tenho declarado, e a que eles hajam de ser presentes, e assim deixem fazer os ditos dois procuradores e os tenham na dita Câmara, e dêm assento nela segundo atrás é dito, e lhes deixem dar suas vozes como nesta Carta é contido».
Pela Carta Constitucional do Senhor Dom Pedro, doada em nome da Soberania do Povo, o povo é apartado do poder, e nunca mais um sapateiro ou ferreiro, em cem anos de liberdade velhaca, subiu as escadas da Câmara para ser ouvido sobre os negócios do município; pela carta de El-Rei Dom João III, ditada em nome de Deus, fonte de todo o poder, o povo é chamado ao exercício das funções públicas e o seu voto colhido em tudo quanto interesse à vida municipal.
Convém recordar a composição do Senado da Câmara de Lisboa para entender bem como em Portugal todas as classes sociais colaboravam em união estreita. Naqueles tempos, que os historiadores da escola liberal, enfeudados à doutrina da guerra civil dos partidos políticos, querem mostrar de escura soberba e debaixo dela o povo só desprezado e humilhado pela fidalguia, no Senado da Câmara de Lisboa o povo tinha lugar, e livre direito de discussão e emenda, em frente da maior nobreza do reino, — a nobreza da espada e a das letras.
O Senado da Câmara de Lisboa, em que assistiam os quatro procuradores dos mesteres, era formado por um Presidente, fidalgo ilustre, seis vereadores, que eram Desembargadores do melhor predicamento e que haviam primeiro servido na Casa da Suplicação - o maior tribunal das Justiças do reino -, um Escrivão, que sempre era fidalgo, e dois procuradores da cidade por provimento de El-Rei.
De meu conhecimento, tiveram procuradores dos mesteres na administração municipal, além de Lisboa e Guimarães, Castelo Branco, Abrantes, Tomar, Leiria, Santarém, Elvas, Arraiolos, Borba, Loulé, Tavira, Setúbal, Coimbra, Porto, Évora, Viana do Castelo, Viseu, Lamego, Angra e Goa.
[...]
(negritos acrecentados)
O Juiz do Povo — «o muito honrado Juiz do Povo», como se usava chamar-lhe — arrogava-se a qualidade de chefe do terceiro estado e era o seu natural representante. As suas atribuições não estavam perfeitamente regulamentadas. Falta o diploma fundamental da sua criação. Sabe-se que tinha faculdade para poder prender e ordenar o levantamento de auto a quem lhe desobedecesse e que uma das suas obrigações consistia em levar à presença do Rei e da Câmara quaisquer petições que o povo lhe fizesse e a Casa dos Vinte e Quatro perfilhasse. O Juiz do Povo e o seu escrivão falavam e ouviam a El-Rei; os mesteres tratavam e ouviam aos companheiros de seus ofícios.
Entre as prerrogativas do Juiz do Povo destacava-se a de falar ao Soberano nas audiências principais do sábado, que eram as dos fidalgos e ministros, e nas ocasiões de Cortes e de juramentos de príncipes acompanhava El-Rei de perto, conservando-se em pé, da parte direita, acima dos bancos dos Arcebispos e Bispos, como os oficiais da Casa Real. No primeiro de Janeiro assistia à missa no Paço, próximo do arco da capela-mor, da parte do Evangelho, dando a mão direita à tribuna real.
Em dia de Reis, já às oito horas da manhã estava no Paço para acompanhar o Monarca à sua capela; depois incorporava-se com a Corte, entre os titulares e os moços da câmara, levando seu escrivão à esquerda. Sentado El-Rei, o Juiz do Povo ficava defronte do trono real.
Nada há agora que se assemelhe às regalias que o Juiz do Povo, pelo povo, gozava.
Ele era, junto do Rei, o observador atento e constante do que podia interessar à gente humilde da Nação. Eleito diretamente pelas classes populares, a que sempre pertencia (o primeiro Juiz do Povo de que ficou memória, Afonso Anes Penedo, saiu dos tanoeiros) nunca o Estado cuidou de intervir ou influir sequer na eleição, deveras livre e certa. Era tanta a importância do Juiz do Povo, e tais privilégios disfrutava, que não havia quem não o acatasse respeitosamente, nem sei de vontade forte que não lhe cedesse. À sua voz se abriam imediatamente as portas do Paço Real, se lhe franqueavam todas as entradas.
Na rua, o Rei parava para o atender. E por ser de pressa e de cuidado o que tinha a contar, muitas vezes o Monarca voltou atrás, para o ouvir com melhor atenção.
Ah! digam-me: — quantas voltas, e rodeios, e favores, não é necessário pedir, dar e andar, para no dia de hoje chegar à fala com o Chefe do Estado?
Antigamente, o Juiz do Povo ia direito à câmara do Rei; agora perde-se o povo nas ante-câmaras das repartições!
O valor nacional dessa magistratura revelou-se bem naqueles dias formosos das guerras da Restauração.
Como se tivesse tornado conhecido que o Marquês de Saint-Roman estava em Lisboa, encarregado pelo Rei-Sol de enredar as negociações da paz entre Castela e Portugal, foi o Juiz do Povo até ele, a avisá-lo de que, se continuasse a opor-se à realização das esperanças portuguesas, a sua pessoa não se acharia mais em segurança. E o hábil diplomata não pensou senão em dizer, alto e claro, que Luis XIV desejava a paz e por ela se esforçava.
Nunca El-Rei Dom João IV deixou de manifestar o maior respeito e afeto por esta veneranda instituição, à qual chamava carinhosamente a sua Casa dos Vinte e Quatro.
Sentindo que entrava na agonia, mandou o Soberano chamar os conselheiros de Estado, os presidentes dos tribunais régios, os altos dignitários, os prelados das ordens religiosas, o cabido da Sé, o Senado da Câmara de Lisboa, o Juiz do Povo e seu escrivão. A todos pediu humildemente perdão de algum agravo, que porventura dele tivessem recebido, disse-lhes como trabalhara para que o reino fosse bem regulado e certa a justiça, e lhes rogou não abrandassem no zelo e no amor de conservar e defender a sua terra. E estendendo a mão ao Juiz do Povo, que ajoelhara aos pés da cama, acrescentou: «Meu Juiz do Povo, meus homens bons, bem conheço o muito que me amais e todo este povo, e que sois muito solícitos em meu serviço e zelosos do bem comum. Eu também me alegrava muito todas as vezes que vos via, assim como a vossos antecessores e homens do povo, porque tenho de vós outros grande satisfação».
Entre o povo e o rei houve sempre entranhada estima. Bartolomeu Pereira, que foi escrivão do povo, e cerieiro de seu ofício, deixou contado no cuidadoso livro que para sua curiosidade compôs e para remédio da nossa fez imprimir o Doutor Teixeira de Carvalho, que pretendendo El-Rei partir para uma caçada, fora ele escrivão com o Juiz do Povo rogar-lhe que não fosse. Respondeu o Rei que não lhe tirassem esse gosto, que era matá-lo.
Concordaram o juiz e o escrivão «Visto o gosto de Sua Majestade, vá embora, com condição que não corra muito». Prometeu o Rei que faria o que lhe recomendavam.
«E logo na mesma tarde — informa o escrivão —fomos beijar a mão à Rainha nossa Senhora. Ela nos fez muita mercê. Pedindo-lhe que não deixasse ir a Sua Majestade à caça, respondeu que, se o tirávamos disso que era dar-lhe desgosto, e que agradecia o cuidado que tínhamos de Sua Majestade».
Depois anota com ingénuo enlevo, denunciador do sentido familiar da nossa realeza:
«Foi à caça e veio. Matou um porco e uma porca e mandou a porca à Rainha e o porco ao Juiz do Povo».
Foi no reinado do Senhor Dom Miguel I que pela última vez o Juiz do Povo teve modo de fazer valer a sua autoridade.
Indo de Queluz para Caxias, El-Rei caiu desastradamente. Depressa recolheu a Palácio, e os alvissareiros puseram a correr a má nova de que o Monarca estava em perigo de vida. Já a cidade se alevantava em gritos, cuidando-o moribundo; ninguém sabia ao certo o que se passava. Então alguém lembrou os direitos do Juiz do Povo e que se recorresse a ele. E logo o Juiz do Povo, erguendo na mão a vara vermelha, em que o desenho do escudo da Câmara reluzia, se dirigiu à porta do Paço, endireitou pela escada, atravessou as salas, e só se deteve junto do leito onde estava o Rei. Por seus olhos o viu. Disse-lhe a inquietação do povo, seus desejos e sua pena. Depois chegou-se a uma janela, e de lá, no comovido silêncio que subia ansioso, afirmou ter achado El-Rei com vida, relativamente bem disposto e livre de qualquer complicação que fizesse recear um resultado funesto.
Reboaram as aclamações; e os vivas, os gritos de alegria alongaram-se no ar como labaredas.
Mas já a filosofia revolucionária andava a acorrentar o trabalho à tirania capitalista. E o racionalismo abstrato de Pombal tomava finalmente corpo no Decreto de 7 de Maio de 1834.
Duas penadas rápidas deitaram por terra o edifício das Corporações em Portugal. Um só artigo de lei bastou para deixar sem amparo a gente baixa da Nação. Dizia assim a letra liberal do Decreto, que vale bem a pena recordar, porque ali, como em claríssimo espelho, se reflete a Carta Constitucional, toda garrida com os seus lacinhos azuis e brancos, a ajeitar o Estado à moda de França, pelo figurino romântico de Rousseau.
Eis o Decreto:
«Não se coadunando com os princípios da Carta Constitucional da Monarquia, base, em que devem assentar todas as disposições Legislativas, a instituição do Juiz e Procuradores do Povo, Mesteres, Casa dos Vinte e quatro, e classificação dos diferentes Grémios; outros tantos estorvos à Indústria Nacional, que para medrar, muito carece da liberdade, que a desenvolva, e da proteção, que a defenda: Hei por bem, em Nome da Rainha, decretar o seguinte:
Artigo 1.º- Ficam extintos os lugares de Juiz, e Procuradores do Povo, Mesteres, Casa dos Vinte e quatro, e os Grémios dos diferentes Ofícios.
Artigo 2.º - As Câmaras Municipais darão as providencias que julgarem mais acertadas para se levar a efeito o disposto do Artigo 1° sem inconveniente do serviço publico. E se algumas dessas providencias excederem suas atribuições, Me consultarão para as tomar na consideração que merecem.
Artigo 3.°— Ficam revogadas todas as leis em contrario, como se delas fizesse expressa, e declarada menção.
O Ministro e Secretario d'Estado dos negócios do Reino, assim o tenha entendido, e faça executar.
Palácio do Ramalhão, em 7 de Maio de 1834.
-D. Pedro, Duque de Bragança, - Bento Pereira do Carmo»... que já ninguém sabe quem foi...
Nada mais! É a aplicação acabada do princípio individualista da liberdade de trabalho, que os economistas do tempo davam como regresso ao direito natural da humanidade e como condição do seu desenvolvimento económico, mas que só veio a criar o mais furioso antagonismo entre os patrões da mesma indústria, e sobretudo entre eles e os seus operários.
Já a carta de Lei de 27 de Julho de 1822, estabelecendo a forma da eleição das câmaras municipais, se apressara a excluir delas os representantes dos mesteres. Nessa ocasião ainda lhes foi dado protestar, por se lhes não permitir fazer parte da corporação concelhia, como no tempo do extinto Senado; mas o Soberano Congresso, que trazia nas mãos as cadeias da Liberdade, resolveu que os procuradores dos mesteres não podiam mais continuar com exercício nas Câmaras, por ser contrário à Constituição e à Nova Lei eleitoral!
Sujeitando-me ao risco de parecer malicioso o confronto, cedo ao gosto de recordar a Carta (por certo inconstitucional) em que El-Rei Dom João III satisfaz ao rogo do nobre povo de Guimarães e aí ordena e estabelece os ofícios na administração municipal:
«Dom João por Graça de Deus Rey de Portugal e dos Algarves, da quem e dalém mar em África, senhor da Guiné etc. A quantos esta minha carta virem, faço saber que nos capítulos particulares que a vila de Guimarães me enviou por seus procuradores a estas Côrtes que ora fiz nesta cidade de Évora (são as Cortes de 1535), me enviaram dizer, que pera bom regimento e governança da dita vila era necessário haver em ela Mesteres como havia em outras vilas do meu Reino de sua qualidade, pedindo-me por mercê lhos quisesse conceder, e visto seu requerimento por lhes nisso fazer mercê, me praz que na dita vila de Guimarães haja doze pessoas dos Mesteres, posto que em algumas cidades de meu Reino haja vinte e quatro, as quais doze pessoas se elegerão pela maneira seguinte». Diz como se há de proceder à eleição, e depois, entre outras regras, determina: «E tanto que a eleição dos ditos doze for feita, logo os ditos doze se ajuntarão, e elegerão entre si dois homens de bem quais sentirem que são de melhor consciência e entender, e que as cousas do Povo saibam requerer bem e como a ele cumprir e com toda a temperança. Os dois procuradores, que assim dos ditos doze forem eleitos, estarão na Câmara da dita vila de Guimarães nas razões e autos que se nela fizerem, e lhe será dado assento apartado da dita mesa, em fronte dela, assim como estão os das outras vilas, e os Juízes e Vereadores e procuradores da dita vila quando houverem de dar alguns ofícios, que por regimento e minhas ordenações a dita Câmara pode dar, sempre mandarão chamar as pessoas honradas que soem de andar nos ofícios da dita Câmara, e com eles, e com os ditos dois procuradores, os darão a mais vozes a quem sentirem que para isso é mais apto e suficiente. Os ditos dois procuradores serão presentes e darão vozes no entregar dos contratos dos aforamentos, emprazamentos e arrendamentos que por a dita vila forem feitos a alguma pessoa ou pessoas, coisa que seja que a dita vila possa fazer, e nas rendas e trespasses, e na arrecadação das rendas que á dita vila pertencem; e sem eles se não fará coisa alguma do sobre dito. Os oficiais da Câmara da dita vila não poderão fazer posturas nem ordenações, nem prometerão nem darão serviços, nem porão tenças algumas, em caso que licença tenham para as porem, nem outros alguns cargos, sem serem chamados os doze dos ditos Misteres, e o que com eles se assentar e a mais vozes for acordado, assignarão no tal acordão.
«Quando quer que se houverem de tomar as contas das despesas que a Vila mandar fazer, assim das rendas dela, como fintas e taxas, serão requeridos os ditos doze mesteres a que elejam uma pessoa, que por parte do Povo esteja presente ao tomar delas, para por eles requerer o que a bem de sua justiça entender. E mando aos Juízes, Vereador e procurador da dita Vila de Guimarães, que recebam aos ditos Mesteres por eleição dos ditos doze, e os ouçam, quando por parte do dito Povo alguma coisa que a ele toque à dita Câmara forem requerer e os mandem chamar para as coisas que nesta minha Carta tenho declarado, e a que eles hajam de ser presentes, e assim deixem fazer os ditos dois procuradores e os tenham na dita Câmara, e dêm assento nela segundo atrás é dito, e lhes deixem dar suas vozes como nesta Carta é contido».
Pela Carta Constitucional do Senhor Dom Pedro, doada em nome da Soberania do Povo, o povo é apartado do poder, e nunca mais um sapateiro ou ferreiro, em cem anos de liberdade velhaca, subiu as escadas da Câmara para ser ouvido sobre os negócios do município; pela carta de El-Rei Dom João III, ditada em nome de Deus, fonte de todo o poder, o povo é chamado ao exercício das funções públicas e o seu voto colhido em tudo quanto interesse à vida municipal.
Convém recordar a composição do Senado da Câmara de Lisboa para entender bem como em Portugal todas as classes sociais colaboravam em união estreita. Naqueles tempos, que os historiadores da escola liberal, enfeudados à doutrina da guerra civil dos partidos políticos, querem mostrar de escura soberba e debaixo dela o povo só desprezado e humilhado pela fidalguia, no Senado da Câmara de Lisboa o povo tinha lugar, e livre direito de discussão e emenda, em frente da maior nobreza do reino, — a nobreza da espada e a das letras.
O Senado da Câmara de Lisboa, em que assistiam os quatro procuradores dos mesteres, era formado por um Presidente, fidalgo ilustre, seis vereadores, que eram Desembargadores do melhor predicamento e que haviam primeiro servido na Casa da Suplicação - o maior tribunal das Justiças do reino -, um Escrivão, que sempre era fidalgo, e dois procuradores da cidade por provimento de El-Rei.
De meu conhecimento, tiveram procuradores dos mesteres na administração municipal, além de Lisboa e Guimarães, Castelo Branco, Abrantes, Tomar, Leiria, Santarém, Elvas, Arraiolos, Borba, Loulé, Tavira, Setúbal, Coimbra, Porto, Évora, Viana do Castelo, Viseu, Lamego, Angra e Goa.
[...]
(negritos acrecentados)