Processos Revolucionários
Plínio Salgado
II - PROCESSOS REVOLUCIONÁRIOS
Mecânica das Revoluções - No decurso deste estudo, falaremos, por vezes, nos erros das revoluções. Erros da Reforma, erros do Humanismo e da Revolução Francesa. É preciso deixar bem claro, entretanto, que o nosso conceito do erro (para o efeito do que estamos demonstrando) não envolve um sentido moral, mas um senso mecânico. Erro, por assim dizer, passível de consideração e de cálculo. Erro no sentido matemático, não no sentido moral. Erro como demonstração mesmo do mundo à parte da ideia e do pensamento.
Erro como resultado da energia autónoma do Espírito, na sua interferência sobre o desenvolvimento das forças da matéria.
Todo erro traz um princípio de verdade. Podemos, até certo ponto, afirmar que a verdade é todo o mundo objetivo em si, e o erro é essencialmente subjetivo (Entre o bem e o mal, só a consciência esclarece e só o livre arbítrio decide. O mundo é como é, por conseguinte, exprime a verdade. É a inocência cósmica, com a qual comunga a inocência das almas virginais). Se há erro é porque existe um mundo subjetivo autónomo. O jogo desses dois mundos é que cria a permanência da revolução.
Revolução é tendência de harmonização de dois mundos. É procura de um equilíbrio.
Aspiração ao repouso - As sociedades, como tudo o que obedece às leis do movimento aspiram ao repouso, considerado este como uma harmonia dos movimentos. O repouso não pode ser a imobilidade, mas o equilíbrio.
Tudo tende ao equilíbrio, porque o equilíbrio é a integridade, é a forma do repouso no movimento.
Essa lei impera sobre os astros como sobre as moléculas e os átomos.
A gravitação das esferas é o repouso na marcha permanente, do mesmo modo que a vibração dos iónios. Existe, pois, no mundo da matéria e da energia, um sentido de movimento que a inconsciência da matéria desconhece porque se origina de um princípio de Inteligência, única fonte da Ideia, transformada em ação nos limites da matéria e da força.
À objeção de que, neste caso, não se compreenderiam desequilíbrios no mundo objetivo, uma vez que este vem dirigido por uma Inteligência Universal, responderíamos que tais desequilíbrios não existem realmente em relação ao absoluto da Inteligência Ordenadora dos sistemas de movimento, mas existem em referência ao relativo do Espírito Humano e no concernente aos interesses do Homem.
O Homem e a Natureza - O interesse de afirmação do Homem é que se opõe ao desinteresse das energias cegas da natureza. O Homem é essencialmente modificador e o âmbito de sua ação abrange não só o mundo exterior, mas o seu próprio mundo interior. É o grande poder modificador e, até certos limites, criador, que lhe foi outorgado por Deus, quando lhe deu inteligência e vontade.
Caráter ético das Revoluções - O Homem é, pois, autónomo e criador, capaz de interferir e modificar aspetos da Natureza e da Sociedade. Nesta, a seguirmos o critério naturalista da vida, não haveria desequilíbrios, de um modo absoluto: a luta dos seres, o domínio dos mais fortes não alteraria o ritmo universal da matéria, nem interessaria o sentido matemático do movimento cósmico. As Revoluções, sejam de que natureza forem, têm, logicamente, um caráter ético, uma finalidade moral. Todas as revoluções são actos ideais, porque toda a alteração da marcha social pressupõe a autonomia da Ideia, o seu valor intrínseco, a sua prevalência sobre as forças desencadeadas pelo determinismo dos factos (A maior contradição do comunismo está justamente aí. Partindo do materialismo, para ser lógico deveria "deixar correr o barco". Os liberais são muito mais materialistas, pois se submetem ao evolucionismo. Dizendo-se revolucionários, os marxistas contradizem a sua concepção do mundo. Contrariam o aforisma de Leibniz adotado pelo evolucionismo: a natureza não dá saltos. Seu processo de luta põe por terra sua doutrina). Revolução e materialismo são antinomia chocante. A chamada revolução marxista, baseada num conceito materialista da existência é, portanto, uma contrarrevolução.
Direitos e Deveres - O Homem é centro de movimentos, ao mesmo tempo que é parte de um sistema de movimentos. Como centro de movimentos, deve, forçosamente, gravitar, em torno dele, uma série de coisas que lhe são atributos, direitos; como parte de um sistema geral, o Homem tem de gravitar para um centro que, por sua vez, lhe impõe deveres em relação aos componentes daquele sistema.
A Sociedade só pode funcionar sem angústias, quando esse equilíbrio é perfeito, quando os contrários se harmonizam, tendo os direitos, como centro, o Homem, e tendo os deveres, como centro, a própria finalidade humana, o princípio gerador do mundo da Matéria e da Força e do mundo da Afirmação e da Negação, numa palavra - Deus.
A crise contemporânea é o resultado de um erro filosófico derivado da concepção científica do mundo. O Renascimento abriu ao Homem os horizontes da ciência. Vieram os métodos de investigação, poderosos e felizes. Mas a mentalidade humana, à força de experimentação e do critério científico, sofreu um deslocamento do sentido totalista do Universo. Com o correr do século mais recente, a concepção integral (que aliás não chegou a ser uma realidade completa na Idade Média e no Estado anterior à Revolução Francesa) veio cedendo terreno ao espírito desagregador. E a uma Humanidade que considera o mundo segundo a síntese, tivemos uma Humanidade que o considerou segundo a análise.
[No Estado Medieval havia o sentido totalitário no que concernia às "formas sociais", porém não se verificava o mesmo no referente aos "movimentos sociais". Aquele Estado correspondia à concepção astronómica de Ptolomeu e Estrabão, como o Estado Liberal corresponde a Copérnico e Kepler. O Estado Integralista, posterior a Henry Poincaré, corresponde a uma concepção total de formas e movimentos. No Estado Medieval, a Nação era o rei. A frase de Luiz XIV: "l’Etat c'est moi", exprime um conceito de soberania baseado no monarca, centralizador, em torno do qual giravam as classes (nobreza, clero e povo). A Revolução Francesa criou a soberania do povo, meramente política, abandonando à desordem as expressões económicas e espirituais. O marxismo unilateral encara apenas a parte económica. O integralismo é a síntese e a harmonia de todas as formas e movimentos.]
Análise e Síntese - Essa fisionomia do Pensamento moderno tem significação profunda em relação às consequências políticas do nosso tempo.
A análise deduz suas conclusões dos elementos fracionários. O processo mental da generalização, que dela procede, é uma imitação do processo mental de conclusão, que deriva da síntese. A filosofia baseada na experiência incide no erro que imputa à filosofia baseada na consideração dos fenómenos totais, porque parte aprioristicamente de hipóteses, cuja revisão ela mesma pratica, segundo o desenvolvimento da técnica experimental.
Ao senso de síntese de uma Humanidade que segundo ele se organizou, embora com erros, sucedeu um senso de análise, que procedeu a fragmentação de todos os elementos do mundo, indo de Copérnico e Kepler a Sigismundo Freud, indo das leis das proporções definidas ou múltiplas de Dalton e Proust, às mais recentes investigações dos eletrões.
A concepção totalitária do mundo, baseada na Eterna Verdade que o agnosticismo moderno considera simples hipótese, foi substituída pelo conceito científico do Universo, que desarmou a inteligência em face de todas as conclusões decorrentes de numerosíssimas hipóteses.
O Mundo das Hipóteses - Vemos o homem pretendendo deduzir uma tese de simples corolários do problema universal; e como os corolários se multiplicam, como as verdades se revezam, e como o aparelho e o laboratório reservam, dia a dia, novas surpresas, novas revelações, cancelamentos de verdades transitórias, revisão de conhecimentos, temos o Homem e seus movimentos na Sociedade e no Universo subordinados ao domínio das hipóteses.
A instabilidade desse critério hipotético multiplica os ritmos do pensamento filosófico, sociológico e político: dessa maneira deixamos de ter uma sociedade humana em permanência uniforme e matemática de movimentos, para termos uma sociedade complexa e difusa, com ritmos de vida numerosos, engendrados por hipóteses numerosas (Farias Brito, nas páginas de "A verdade como regra das ações" desdobra de maneira impressionante a confusão a que a filosofia, escravizada à volúvel ciência, lançou o mundo contemporâneo).
É o estilhaçamento do Ser Pensante a chocar-se naquela zona do conhecimento em que a contingência do experimentalismo esbarra com o Enigma Absoluto do Universo. Mas será hoje, partindo da própria multiplicidade das hipóteses, que iremos (através da apreciação da relatividade dos fenómenos) atingir novamente o Absoluto.
Centralização económica e decentralização intelectual — A quebra do sentido de unidade espiritual determinou, no transcurso do último século, a fragmentação da Inteligência Humana e seu consequente desprestígio em face de uma unidade econômica, cada vez maior.
A crise contemporânea provém exatamente da discordância dos dois sistemas:
1º — as concepções filosóficas, éticas, jurídicas e estéticas, tendendo a uma decentralização fragmentária, à multiplicação de feudos mentais em contínua destruição mútua e em subdivisões progressivas;
2º — as forças económicas agregando-se progressivamente, submetendo-se a crescente uniformidade de ritmo, moldando-se a "standards" universalizantes e objetivando uma perfeita unidade (É tão impressionante o contraste entre a marcha contínua, sistemática, da pluralidade para a unidade financeira, dentro do ritmo capitalista, e a marcha da unidade para a pluralidade espiritual, dentro do liberalismo, que muitos, com fundamento, são levados a crer num metódico trabalho secreto de ocultas forças interessadas no predomínio da casta financeira).
Inversão de valores — Como consequência, tivemos:
a) a decadência dos valores espirituais;
b) a ascendência dos valores económicos.
Estes hipertrofiaram-se e deflagraram a cega expansão de suas energias acumuladas, arruinando toda a concepção ética da sociedade.
Verifica-se hoje o desequilíbrio, o desenvolvimento do ângulo mal pressentido ao alvorecer do grande século do individualismo e do liberalismo.
Por isso, a Revolução (direito sagrado do Espírito, interferência da Ideia Autónoma, golpe de Homens Superiores animados pela soberana força do Pensamento) é hoje, como foi sempre, universal.
O fenómeno revolucionário - A Revolução é fenómeno cíclico, mas é também fenômeno permanente. É cíclico na sua interferência, é permanente na sua elaboração.
Em contraposição ao conceito exclusivo do materialismo histórico, reivindicamos, para a Revolução, o seu caráter ético. Sustentamos o primado da Ideia. A Ideia precedeu o desenvolvimento das forças materiais da sociedade, porque estas mesmas obedeceram ao seu impulso inicial na Revolução anterior. Foi devido ao erro da própria Ideia (erro que confirma a sua natureza subjetiva independente do mundo exterior e dos impositivos circunstanciais) que o estado de desequilíbrio se gerou. Não tomando o erro segundo a concepção moral, (Evidente o meu pensamento: estou estudando o "erro" simplesmente do ponto de vista do que podemos chamar a "mecânica social". É um prisma; é um capítulo; é um aspeto que não exclui os outros, dos quais não estou tratando agora) mas segundo o conceito mecânico, adjudicamo-lo à própria Ideia, explicando, por essa forma, a necessidade e permanência do fenómeno revolucionário.
Nem por isso deixamos de aceitar e proclamar o valor intrínseco da Ideia, a exatidão de seus lineamentos essenciais. O erro não é de substância, nem é intencional, mas refere-se ao valor dinâmico do desenvolvimento da Ideia transformada em Fato.
A Ideia Revolucionária é sempre de ordem moral: compreende uma concepção de justiça e de equilíbrio que é presente em todos os movimentos da História. No fundo, todas as revoluções significam a mesma coisa. A tradução da Ideia, a sua versão em fato histórico é que se apresenta suscetível de erro.
Esse erro de cálculo é que determina as situações de desequilíbrio em que é preciso interferir novamente a Ideia Revolucionária.
Caracteres circunstanciais da Revolução – Eis porque consideramos a Revolução:
1.º) - em elaboração autónoma e subjetiva permanente;
2.º) - em função objetiva cíclica;
3.º) - subordinada às aspirações do Espírito e não aos imperativos da matéria;
4.º) - significativa do anseio de aperfeiçoamento do Homem no que ele tem de superior na sua essência.
Negamos, pois, a capacidade absoluta da Ideia - Força, mas afirmamos o seu valor relativo e predominante sobre a Ideia - Facto.
Negamos ao determinismo histórico um valor absoluto, como o compreendem os transformistas, os evolucionistas, os críticos materialistas; mas consideramo-lo segundo a sua relatividade.
Aceitamos a precedência, a permanência e a prevalência de um conceito moral supremo, fonte da energia revolucionária e expressão da finalidade superior do Homem.
Consideramos a inteligência humana como um fenómeno relativo, sujeito a erros de cálculo, erros matemáticos e não morais, (O que há de moral no espírito humano foi-lhe transmitido pela revelação e pela tradição; a inteligência aumenta o poder da clareza do senso moral, mas na elaboração permanente de forças próprias exteriorizadoras daquele senso moral, ela erra, traduz erradamente a ideia profunda do bem, da verdade e do belo. Claro que não me refiro aos casos onde entra a má-fé, o propósito preconcebido e perverso de transmitir o mal) em razão de cujos efeitos se possibiliza a dinâmica social.
Espírito, Matéria e Força - Não se compreende um mundo parado, cristalizado numa forma definitiva. A concepção integral das expressões do Espírito, da Matéria e da Força repele a ideia do repouso absoluto, assim como da ciência experimental absoluta. A filosofia integral engendra a unidade dos sistemas subordinando-se ao relativismo dos movimentos. Porque o movimento absoluto seria a negação do movimento e o mundo se manifesta na perpétua mobilidade.
Eis porque a permanência da Revolução é fenómeno espiritual e necessário no sistema do mundo.
O seu progresso subordina-se imediatamente ao relativismo da inteligência na consideração do absoluto.
[negritos acrescentados]
Plínio Salgado, "II - Processos Revolucionários", in Psicologia da Revolução, 1933; 4ª ed., 1953, pp. 21-29.
[...]
IV - SIMULTANEIDADE DOS FACTORES OPERANTES
...
Em meio à simultaneidade dos fatores operantes nos períodos críticos das revoluções vencedores, é necessário que apareça, afinal, o intérprete de todas as angústias, o enviado do Futuro, o homem capaz de desferir o golpe de Brumário.
Evidente o sentido em que tomamos a atitude de Bonaparte.
Na Rússia contemporânea, essa atitude denominou-se o golpe de Outubro. Na Itália, marcha sobre Roma. Na Alemanha, a vitória nazista. Rejeitando o sentido dessas três atitudes, cumpre que assumamos a nossa, genuinamente brasileira, interpretando os anseios do nosso povo em face da desordem em que vivemos.
Plínio Salgado in Psicologia da Revolução, 1933; 4ª ed., 1953, pp. 49-50
As duas Nações - Quem quiser compreender o povo brasileiro, tem, preliminarmente, que separar as duas nações, as quais coexistem no país, e representam, cada uma, o resultado de uma revolução distinta.
O Brasil letrado, dos literatos, dos juristas, dos cientistas, dos grandes industriais e comerciantes, dos políticos e diretores de partidos - esse Brasil procede do século XIX; é o Brasil constitucionalista, liberal, democrático, cientista, romântico, retórico.
O outro Brasil, dos aglomerados municipais, das populações disseminadas pelo imenso território, das massas proletarizadas, dos bandos sertanejos, — esse procede do século XVI; é o Brasil individualista, aventuroso, feiticista por índole, acomodatício às injunções patriarcais ou imperativos caudilhescos.
O primeiro é o Brasil formal; o segundo, o Brasil essencial.
Ambos são revolucionários; mas enquanto o primeiro recebeu da Europa uma revolução já domesticada pelas reações éticas e jurídicas do constitucionalismo, o segundo, tendo-se isolado quatrocentos anos do mundo, desenvolveu, a seu modo, a ideia da revolução, que apenas subconscientemente inquietava a civilização do mundo ocidental.
O Brasil das cidades maiores era uma expressão da "ideia revolucionária" oriunda do "fato revolucionário europeu"; o Brasil inculto, das populações interiores, era uma expressão do "fato revolucionário", oriundo da "ideia revolucionária", ideia nascente no alvorecer do século XVI e traduzida em bruto na terra selvagem.
Plínio Salgado in Psicologia da Revolução, 1933; 4ª ed., 1953, pp. 129-130
O Brasil letrado, dos literatos, dos juristas, dos cientistas, dos grandes industriais e comerciantes, dos políticos e diretores de partidos - esse Brasil procede do século XIX; é o Brasil constitucionalista, liberal, democrático, cientista, romântico, retórico.
O outro Brasil, dos aglomerados municipais, das populações disseminadas pelo imenso território, das massas proletarizadas, dos bandos sertanejos, — esse procede do século XVI; é o Brasil individualista, aventuroso, feiticista por índole, acomodatício às injunções patriarcais ou imperativos caudilhescos.
O primeiro é o Brasil formal; o segundo, o Brasil essencial.
Ambos são revolucionários; mas enquanto o primeiro recebeu da Europa uma revolução já domesticada pelas reações éticas e jurídicas do constitucionalismo, o segundo, tendo-se isolado quatrocentos anos do mundo, desenvolveu, a seu modo, a ideia da revolução, que apenas subconscientemente inquietava a civilização do mundo ocidental.
O Brasil das cidades maiores era uma expressão da "ideia revolucionária" oriunda do "fato revolucionário europeu"; o Brasil inculto, das populações interiores, era uma expressão do "fato revolucionário", oriundo da "ideia revolucionária", ideia nascente no alvorecer do século XVI e traduzida em bruto na terra selvagem.
Plínio Salgado in Psicologia da Revolução, 1933; 4ª ed., 1953, pp. 129-130