Éclogas de agora
Afonso Lopes Vieira
As Éclogas de Agora de Afonso Lopes Vieira (Edição de Autor, Setembro-Outubro de 1935, 36 páginas) foram "retiradas da distribuição" pouco depois de publicadas. David Mourão-Ferreira considerou-as “um dos primeiros espécimes, se não o primeiro […] daquilo a que muito depois viria a chamar-se a "poesia de resistência" ao Estado Novo (in Lâmpadas no escuro – de Herculano a Torga – ensaios, Lisboa, Arcádia, p. 132). Apesar da sua habitual toada adversa ao Integralismo Lusitano, Cecília Barreira reconheceu que ali se revela “uma vontade antitotalitária, um grito de revolta, uma intenção de mudança” (in Prefácio a Éclogas de Agora, Lisboa, Heuris, 1986, p. 7).
A Écloga II merece destaque. É ali que se define o tema central destas Éclogas, descrevendo-se os aspectos essenciais do combate dos Integralistas - Hipério [Hipólito Raposo], Antonius [António Sardinha], Cordário [Adriano Xavier Cordeiro], Brácaro [Luís de Almeida Braga], Monsário [Alberto de Monsaraz], Rebélio [José Pequito Rebelo, Josefo na Écloga IV], Lucius... - contra o estabelecimento da Salazarquia, aí apresentado em vivo contraste com a colaboração dos monárquicos ditos "constitucionais" - os "lobos azuis" - e dos dissidentes do Integralismo - os "lobos pérfidos" - que repetiam "em voz desentoada / canções da nossa avena" - Marcelo Caetano, Teotónio Pereira, Manuel Múrias, entre outros.
Na Écloga III, Oliveira Salazar - Lísbio, "o maioral dos gados lastimosos", "monteador acrídio" - é um citadino ao serviço dos usurários da capital. Na Écloga IV, a Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini e a Rússia comunista transformam as pessoas em peças de uma "horrorosa máquina" totalitária - "todos eles se espojam em novo culto hediondo".
Em suma, Afonso Lopes Vieira resume nestas Éclogas de agora (1935) a perspectiva e a atitude dos integralistas - era também a sua! - na resistência e oposição à "Ordem Nova" de Salazar.
Em 30 de Julho de 1930, no discurso intitulado "Princípios Fundamentais da Revolução Política", Oliveira Salazar expressara a concepção do Integralismo Lusitano acerca da representação da Nação no Estado: era necessário "abandonar uma ficção - o partido - para aproveitar uma realidade - a associação". Se assim fosse, ter-se-ia retomado o projeto constitucional do general Gomes da Costa - o programa do 28 de Maio - assente numa Câmara Legislativa constituída por delegações directas dos Municípios. Não foi, porém, esse o modelo adotado na Constituição que Salazar apresentou e fez referendar em 1933, onde foi acolhido o projecto constitucional proposto pelo grupo da Seara Nova - Câmara de Partidos (Legislativa) e Câmara Corporativa (Consultiva). Ao ser tornado público o projeto constitucional de Salazar, dois membros da Junta Central, Alberto de Monsaraz e Rolão Preto, assumem a direção do jornal A Revolução e lançam o Movimento Nacional-Sindicalista para vir a disputar as eleições partidárias. A adesão popular foi extraordinária, nunca antes vista em Portugal. Em Julho de 1934, Rolão Preto e Alberto de Monsaraz acabam sendo presos e desterrados para Espanha - "Monsário [Alberto Monsaraz] trespassado na peleja dos lobos, vive longe de nós, em terra alheia". A organização do Nacional-Sindicalismo é proibida. Em 6 de Novembro, a nova Lei Eleitoral veio por fim esclarecer o estatismo totalitário decalcado do fascismo, justificando o circulo nacional único, com lista completa, para garantir ao partido do governo o pleno dos deputados no parlamento: "A Nação ... forma um todo uno com o Estado e com ele integrado" [Decreto-lei 24:631]. As eleições realizaram-se em Dezembro, denunciadas como uma farsa pelos Nacional-Sindicalistas - o Congresso do partido único da União Nacional passou a funcionar como a Câmara Legislativa da 2ª República. Em Setembro-Outubro de 1935, Afonso Lopes Vieira iniciou a distribuição das Éclogas por amigos e conhecidos. Nesse mês de Outubro, forças militares da Itália fascista invadiram a Abissínia, abrindo-se definitivamente um novo capítulo histórico que virá a culminar na Segunda Grande Guerra (1939-1945).
J. M. Q.
A Écloga II merece destaque. É ali que se define o tema central destas Éclogas, descrevendo-se os aspectos essenciais do combate dos Integralistas - Hipério [Hipólito Raposo], Antonius [António Sardinha], Cordário [Adriano Xavier Cordeiro], Brácaro [Luís de Almeida Braga], Monsário [Alberto de Monsaraz], Rebélio [José Pequito Rebelo, Josefo na Écloga IV], Lucius... - contra o estabelecimento da Salazarquia, aí apresentado em vivo contraste com a colaboração dos monárquicos ditos "constitucionais" - os "lobos azuis" - e dos dissidentes do Integralismo - os "lobos pérfidos" - que repetiam "em voz desentoada / canções da nossa avena" - Marcelo Caetano, Teotónio Pereira, Manuel Múrias, entre outros.
Na Écloga III, Oliveira Salazar - Lísbio, "o maioral dos gados lastimosos", "monteador acrídio" - é um citadino ao serviço dos usurários da capital. Na Écloga IV, a Alemanha de Hitler, a Itália de Mussolini e a Rússia comunista transformam as pessoas em peças de uma "horrorosa máquina" totalitária - "todos eles se espojam em novo culto hediondo".
Em suma, Afonso Lopes Vieira resume nestas Éclogas de agora (1935) a perspectiva e a atitude dos integralistas - era também a sua! - na resistência e oposição à "Ordem Nova" de Salazar.
Em 30 de Julho de 1930, no discurso intitulado "Princípios Fundamentais da Revolução Política", Oliveira Salazar expressara a concepção do Integralismo Lusitano acerca da representação da Nação no Estado: era necessário "abandonar uma ficção - o partido - para aproveitar uma realidade - a associação". Se assim fosse, ter-se-ia retomado o projeto constitucional do general Gomes da Costa - o programa do 28 de Maio - assente numa Câmara Legislativa constituída por delegações directas dos Municípios. Não foi, porém, esse o modelo adotado na Constituição que Salazar apresentou e fez referendar em 1933, onde foi acolhido o projecto constitucional proposto pelo grupo da Seara Nova - Câmara de Partidos (Legislativa) e Câmara Corporativa (Consultiva). Ao ser tornado público o projeto constitucional de Salazar, dois membros da Junta Central, Alberto de Monsaraz e Rolão Preto, assumem a direção do jornal A Revolução e lançam o Movimento Nacional-Sindicalista para vir a disputar as eleições partidárias. A adesão popular foi extraordinária, nunca antes vista em Portugal. Em Julho de 1934, Rolão Preto e Alberto de Monsaraz acabam sendo presos e desterrados para Espanha - "Monsário [Alberto Monsaraz] trespassado na peleja dos lobos, vive longe de nós, em terra alheia". A organização do Nacional-Sindicalismo é proibida. Em 6 de Novembro, a nova Lei Eleitoral veio por fim esclarecer o estatismo totalitário decalcado do fascismo, justificando o circulo nacional único, com lista completa, para garantir ao partido do governo o pleno dos deputados no parlamento: "A Nação ... forma um todo uno com o Estado e com ele integrado" [Decreto-lei 24:631]. As eleições realizaram-se em Dezembro, denunciadas como uma farsa pelos Nacional-Sindicalistas - o Congresso do partido único da União Nacional passou a funcionar como a Câmara Legislativa da 2ª República. Em Setembro-Outubro de 1935, Afonso Lopes Vieira iniciou a distribuição das Éclogas por amigos e conhecidos. Nesse mês de Outubro, forças militares da Itália fascista invadiram a Abissínia, abrindo-se definitivamente um novo capítulo histórico que virá a culminar na Segunda Grande Guerra (1939-1945).
J. M. Q.
[ Tocando a temática do Integralismo Lusitano, reproduz-se aqui a Écloga em que Hipólito Raposo e Afonso Lopes Vieira são os interlocutores. Entre parêntesis rectos seguem algumas anotações para uma melhor clarificação do seu conteúdo histórico. Segue-se a reprodução integral das restantes Éclogas]
Écloga II
Interlocutores: HIPÉRIO [Hipólito Raposo] e VIVIANO [o Autor]
VIVIANO
Ó solidão, ditosa companhia
se no-la enche a consciência alegre!
Val-de-Lobos das almas que não vergam!
Exílio, pátria dos honrados homens!...
Quando emprego os meus olhos
em tudo o que é passado
louvo o alto destino
que nos deixou de banda entre os festeiros
das funções deste prado
para ficarmos firmes e leais,
alheios à festança
de tanta vã mentira,
de tanta dor do gado,
inimigos de tantos maiorais!...
Esse gado mesquinho defendemos
tantos anos seguidos,
levantando os cajados
contra os lobos que assaltam os rebanhos,
desde os lobos azuis [monárquicos "liberais-constitucionais", que forneceram ao Estado Novo o grosso da sua componente de apoiantes monárquicos]
(já muito desdentados)
té os vermelhos lobos [comunistas]
de perigosa goela!
E agora novos lobos [salazaristas]
com fereza gelada
devoram as ovelhas,
assaltam a manada,
mandando que nem brado ou voz se solte
por que não se importunem tais orelhas!...
Silêncio assim tão novo
jamais pesou nos prados;
os rebanhos arquejam sufocados,
e nós, zagais do povo,
já deixámos as frautas e as cantigas
para apertar o punho dos cajados.
Que razão tem, pastores,
que nos tolham a voz?
Quem poderá jamais justificá-lo?
Se o que foi feito por amor de nós
é bom, deixai-nos todos bendizê-lo,
se é mau, devemos todos condená-lo!...
Mordaças não convêm a lusas bocas;
e senão vêde aqueles
grandes zagais antigos,
glórias desta ribeira,
chamados Gil Vicente
e Luís de Camões
e padre António Vieira,
que todos foram bravos,
todos falaram rijo
na Portuguesa Língua forte e clara
ou no paço dos reis
ou no divino Poema
ou na defesa épica de escravos!...
E nós, zagais que fomos
os primeiros na luta destemida,
havemos de ficar assim calados,
mais medrosos que os gados,
como ovelha que bala de perdida?
E quem manda calar-nos?
Esses que se abrigavam
nas cabanas amigas
ou nas tocas seguras
quando se armavam cá no prado as brigas!...
Hipério, amigo forte,
peguemos outra vez nestes cajados
tão useiros ao jogo
e de novo saiamos
com bravura e ardil
a pelejar co’os lobos que ajudámos
a penetrar no fundo do redil!...
HIPÉRIO
Sim, Viviano amigo,
Quando recordo os nossos companheiros,
uns já mortos, os outros desterrados,
minha alma se enternece e se faz triste.
Quanto esforço que andámos dispendendo,
quanta renúncia aos cómodos da vida!
Quanta estúpida injúria recebida
desses próprios que andámos defendendo.
Lembra-me o alto Antonius [António Sardinha]
que do jardim da raia,
cidade forte e branca,
com a pressa de quem pressente a morte
tanta luz derramou por estes prados!
Outro morreu primeiro,
moço e de mente clara,
Cordário [Adriano Xavier Cordeiro] era o seu nome;
Brácaro [Luís de Almeida Braga], zagal fino
que se apurou em Flandres,
lá guarda solitário o seu rebanho;
Monsário [Alberto Monsaraz] trespassado
na peleja dos lobos,
vive longe de nós, em terra alheia;
Rebélio [José Pequito Rebelo] tão experto
nos profundos segredos da lavoura,
nunca foi por ninguém aproveitado;
Lucius [Afonso Lucas] foi salteado
e nos risos amargos se consola...
Meu Deus, que triste sorte!...
Todos no exílio, todos,
ou na pátria ou na morte.
VIVIANO
E tu próprio estiveste
preso em choupana agreste
donde não pude defender-te quando
maiorais, hoje lobos,
ouviram minha fala
que na ribeira Clara fui botando
[Referência ao julgamento de Hipólito Raposo no Tribunal de Santa Clara, de quem Afonso Lopes Vieira foi advogado de defesa]
HIPÉRIO
E tu mesmo, que foste perseguido
por furiosos zagais
quando cantaste esse zagal sem nome
que nas brigas de além morreu perdido.
[referência à prisão do Autor, por motivo da publicação da sua poesia "Ao Soldado Desconhecido (morto em França)", em Março de 1921.
Com efeito, os soldados - excelentes;
capitães, onde estais?
Certo é que sentimos o desterro
a que a nova alcateia nos condena,
a que repete em voz desentoada
canções da nossa avena !
[referência à tentativa de apropriação do legado político e cultural do Integralismo Lusitano por alguns ex-integralistas, colaboradores de Salazar: Marcelo Caetano, Pedro Teotónio Pereira, Manuel Múrias, entre outros]
E são lobos tão pérfidos no assalto,
tão matreiros, tão crus e tão gulosos,
que nos parece já que os outros lobos
em verdade eram menos perigosos!...
VIVIANO
Hipério, dizeis bem e eu mesmo o sinto;
os inimigos de antes muitas vezes
sendo brutais eram até corteses;
os de hoje são peçonha em água benta.
Mas os zagais mais moços
moços na idade, n’alma engelhadinhos -
que aprenderam connosco
a tocar e dançar, a serem homens,
quase todos estão daquela banda
donde a nós nos monteiam.
Ardente mocidade,
é mais feia a traição na tua idade
e horrendo que te comprem por traidora!
Por isso eu canto alegre,
sòzinho pelo prado:
Ó solidão, formosa companhia
se no-la enche o coração contente!
Não há luxo maior que o ser-se honrado.
HIPÉRIO
E pensar que lá longe
na estrangeira terra,
nesse exílio que dura há tantos anos,
vive aquele Pastor [O Senhor D. Duarte Nuno] que salvaria
estes campos da morte e da ruína
e dos lobos cruéis estas ovelhas!...
Pastor mais luso e nosso
outro se não conhece;
tem puras qualidades que rebrilham
entre as dos guardadores
da honra e da mantença das lavouras.
Ele é bravo e é pobre;
a nossa Língua fala
que um século vivido entre as alheias
jamais fez esquecida;
aprendeu na dureza
e alta dignidade
do pão do seu exílio
a saber como os pobres são honrados
quase só pelo serem,
e como o ventre obeso dos tiranos
do mando ou do dinheiro
é cousa dura e feia.
Se ele um dia viesse
aos nossos lusos prados
acabava-se a dança dos pastores
que são hóspedes caros ou ligeiros
da cabana onde em feno perfumado
se repolteriam todos,
monarcas da desordem
ou da vil tirania.
Oh! a danada dança,
dança desordenada!
Este espicaça o gado e açula os lobos;
esse é honrado e tapa os negros crimes;
aquele engorda e o gado está no fio;
outros querem livrar-se
e fugindo abandonam o rebanho...
Rendeiros todos são, nenhum é dono.
Pois como hão-de estimar a boa terra
quando a trazem de renda e a fatigam?
Um dia abalam - quem lhes faz as contas?
E se acaso um bom velho
de olhos azuis e de alma enamorada [Henrique de Paiva Couceiro]
se dispõe a guardar o gado solto,
os maus zagais do prado
vão e pegam-lhe fogo!
Quando virás um dia,
pastor que sejas dono e não rendeiro,
morador e não hóspede,
bem apegado à terra,
capaz de ter amor,
leal, nunca onzeneiro,
descendente daqueles que guardaram
as queridas ovelhas
sem jamais esfolá-las
nem à fome matá-las
nem à bruta tangê-las?...
VIVIANO
Amigo, que Pastor venha depressa
à terra sua e nossa
que com tanta mentira se esboroa
e com tão crua fome desfalece;
mas que sempre recorde
que descende dos ínclitos Pastores
que fizeram tão grande a nossa glória
porque amavam a terra
estimando-lhe a gente.
Mas que nunca se esqueça
de que provém do Mestre [O Mestre de Avis, Rei D. João I]
e do Segundo Joane [Rei D. João II].
O primeiro que foi senão o povo
coroado por chefe
e revendo-se todo
na sua própria imagem coroada?
Ó Fernão Lopes, conta
como os ventres ao sol
lá em Aljubarrota pelejavam! -
E Joane, «de fama sempiterna»,
destruiu, para bem desta lavoura,
as moagens que a terra devoravam!...
Que o Pastor que chamamos
assim como eles seja:
que respeite sem quebra
as nossas liberdades,
lembrando-se do verso que falando
Da Lusitana antiga liberdade
[Alusão às liberdades que os povos organizados nas comunas urbanas e nos concelhos rurais dispunham no reino de Portugal dos tempos medievais, retomando o formoso verso de Luís de Camões:
E Vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao Mundo por Deus, que todo o mande,
Para do Mundo a Deus dar parte grande
Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto I]
nos dá tamanha honra;
que toda a usura açaime
e o trabalho defenda;
que ame a lavoura, donde
um povo inteiro vive;
que não chame às províncias
do Além-mar colónias,
o que já é perdê-las;
[Alusão ao Acto Colonial (1930) e à ideologia colonialista das 1ª e 2ª Repúblicas, a que os integralistas se opunham]
que nunca ao pé consinta
as cortesãs beatas,
os duques descarados,
os condes financeiros,
a fim de que essa corte seja aquela
corte de alto esplendor
onde o chefe da Casa
dos vinte e quatro ofícios
penetre entre brandões que se acenderam
para honras lhe dar de Embaixador!
Afonso Lopes Vieira, Éclogas de agora, 1935
(fotografias do exemplar anotado da Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira, Leiria)
(fotografias do exemplar anotado da Biblioteca Municipal Afonso Lopes Vieira, Leiria)
a) Francisco Rodrigues Lobo
b) Afonso Lopes Vieira
c) Rio Lis
b) Afonso Lopes Vieira
c) Rio Lis
d) Dr. Américo Cortez Pinto
e) Maria José Jordão Cortez Pinto
f) Pintor Adriano Sousa Lopes
g) Guitte Sousa Lopes
h) Cândida Ayres de Magalhães
i) Acácio de Paiva
e) Maria José Jordão Cortez Pinto
f) Pintor Adriano Sousa Lopes
g) Guitte Sousa Lopes
h) Cândida Ayres de Magalhães
i) Acácio de Paiva
j) Maria da Piedade Moreira Freire
l) António Xavier Rodrigues Cordeiro, tio-avô de Afonso Lopes Vieira, proprietário da casa de Cortes.
m) António Feliciano de Castilho
l) António Xavier Rodrigues Cordeiro, tio-avô de Afonso Lopes Vieira, proprietário da casa de Cortes.
m) António Feliciano de Castilho
c) Dr. António Sardinha
d) Dr. Adriano Xavier Cordeiro
e) Dr. Luís de Almeida Braga
f) Dr. Alberto de Monsaraz
d) Dr. Adriano Xavier Cordeiro
e) Dr. Luís de Almeida Braga
f) Dr. Alberto de Monsaraz
g) Dr. José Pequito Rebelo
h) Dr. Afonso Lucas
i) Julgamento em Santa Clara do Dr. Hipólito Raposo de quem Afonso Lopes Vieira foi defensor.
j) Alusão à perseguição que sofreu por ter escrito a poesia "Ao Soldado Desconhecido (morto em França)", Março de 1921.
h) Dr. Afonso Lucas
i) Julgamento em Santa Clara do Dr. Hipólito Raposo de quem Afonso Lopes Vieira foi defensor.
j) Alusão à perseguição que sofreu por ter escrito a poesia "Ao Soldado Desconhecido (morto em França)", Março de 1921.
l) Senhor D. Duarte Nuno
m) Henrique de Paiva Couceiro
E Vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao Mundo por Deus, que todo o mande,
Para do Mundo a Deus dar parte grande
Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto I
a) Dr. Oliveira Salazar
b) Povo rural
b) Povo rural
c) Agatão Lança
a) Afonso Lopes Vieira
b) Dr. José Pequito Rebelo
c) Povo
b) Dr. José Pequito Rebelo
c) Povo
a) Alemanha de Hitler
b) Itália de Mussolini
c) Rússia comunista
b) Itália de Mussolini
c) Rússia comunista
a) Mousinho de Albuquerque
ECLOGA I
Interlocutores - LERENO [Francisco Rodrigues Lobo] UMBRO [Afonso Lopes Vieira]
Numa noite sem lua
por negras horas mortas
enquanto na cabana solitária
Umbro ouvia os segredos do silêncio
e o murmúrio tão próximo do Lísio
que corria na sombra,
ao pastor esquecido e desterrado
de súbito aparece a sombra do zagal
ilustre e melodioso
entre os de Portugal,
que a Vilante branquíssima cantara
na cantiga imortal.
LERENO
Voltas enfim aos nossos campos belos,
ao doce vale do Lísio,
Umbro, que há tanto tempo
tu por outros trocaras
para nos nossos formosos esquecê-los
voltas à terra verde, outeiro e vale,
que teus avós amaram, onde fortes, cantando, trabalharam,
e que este caro rio
de cristalino fio rega
tão fino e claro.
Porém triste te vejo
matando os tristes dias,
que para ti começam à tardinha,
apenas co'o desejo
de matá-los de pressa,
e pálido estendendo as mãos geladas
para lume perpétuo de fogueira
que mais que o sol te aqueça.
Zagal, ¿porque te calas e te encerras
num silêncio de morte
e foges ao convívio dos pastores?
¿Não amas a beleza destas terras?
¿Ou não tens olhos para ver zagalas?
¿Já não há prados, músicas e amores?
Se Dérito, esse amigo
e a pastora que é sua
querem levar-te a ver o céu e o rio,
tu, ingrato, recusas a terna companhia;
debalde Lariano,
o pastor que nos frescos prados brilha,
mais a zagala Gida
vêm das bandas do Tejo visitar-te
e te pedem que cantes e renasças:
Cândia, de voz formosa,
quer de longe animar-te;
Alécio, natural do Lísio brando
e cuja frauta clara alegre trina,
também cá veio ver-te
e oferecer-te louros com amizade fina.
¿Porque vives sozinho e sempre absorto?
Se muito bem fizeste em deixar os amigos mentirosos,
¿aos amigos fiéis descoroçoas?
Ah! que os deuses propícios
te mandem um sorriso
e ali se há-de então ver que não és morto.
Pois ¿nem sequer te lembra
que estas margens do Lísio
amoráveis te falam do passado?
Aqui nesta cabana
morreu, enfim cansado,
depois de ter amado,
depois de ter perdido
sua nobre pastora cuja morte
foi desastrosa e crua,
um pastor que era doce qual cordeiro
e cujas melodias que soavam
os ecos destes vales repetiam;
e aqui vieram vê-lo amigos e pastores celebrados
e o famoso zagal Castálio, o cego
cuja alma de luz resplandecia.
Ergue, pois, em voz clara,
que já tiveste um dia,
o louvor destes campos, destas águas;
se tens mágoas, com elas tece um canto,
se te alivia o pranto
desata-o corajoso:
e aprende sobretudo a amar a terra,
o bem que nunca passa,
que nos dá pão — a graça,
e vinho - essa alegria!
UMBRO
Ó Lereno, pastor que tanto admiro
e estes prados ilustras com teu nome,
em cujas mãos, tangendo
a melodia azul das pastorais
ficou a frauta rústica de Almeno,
o pastor mais famoso entre os pastores!
Não me fales de amores!
Um dia vi o amor - era medonho:
tinha olhos convulsos de anjo bebedo
e a máscara do ódio.
Não me fales da terra - é fome e ruína.
O pão bendito? Dá-se aos animais!...
A alegria do vinho?
Ele é luto e pobreza!
E a pródiga abastança
da portuguesa terra
faz morrer dia a dia,
em pálida agonia
que lhes apaga os olhos,
as crianças de fome que as consome
juntamente co'o ranho e co'os piolhos!...
Lereno, despe o trajo
da tua pastoral
e vai, sem arrabil,
como homem apenas,
ver a miséria negra desses campos
onde já não há danças nem cantares
e onde pesa a morrinha melancólica
dos apagados lares.
- Olha a nossa Bucólica!...
Põe os olhos no chão dessas ribeiras
- por onde os lindos pés alvíssimos e nus
de Vilante passaram
- e lembra-te que o próprio chão que sempre foi nosso
o não é desde agora.
Pertence ao novo deus que nos devora:
já não é de ninguém, o deus o come.
As cruíssimas coimas
do maioral dos gados lastimosos
o fez perder aos poucos
aos pobres que choravam,
— em vez de irem em cata
dos cajados nodosos!...
¿Onde estão os cajados portugueses
que algum dia se ergueram
Em defesa da honra e da justiça?
Marmeleiros lustrosos
e castanhos robustos,
¿onde estais, onde jaz adormentada
vossa força elegante
em justiceiros giros,
que não saís de novo
contra quem vem - o verso é de Os Lusíadas –
a despir e roubar o pobre povo?
O doce chão da Pátria
vê-lo-ás empenhado em mãos de usura:
já todo o Portugal,
do extremo norte ao sul
(menos a parte inchada de fartura),
pendurado se vê do Prego imenso
e do Prego pendendo se balança
do Minho verde até o Algarve azul! ...
Ó casais de Família
que dos avós se herdaram
e que seus netos mais que a vida adoram!
Mimos claros do pobre,
seu orgulho e sustento,
seu gosto e mantimento
e seus lindos amores,
cousa a que tanto quere
que não inveja campos de senhores
nem por eles trocara
a leira que lhe torna
a alma ditosa e avara.
— Vê-os agora à venda e desdenhados,
por vil preço ofertados,
leira amada e perdida!
E às portas dos casais
o lavrador arranca fundos ais
por essas terras cheias
do seu profundo amor,
e sente que lhe chupam sangue e suor
pelas sagradas veias!...
Vai as cidades onde
como em Ulíssia, a mais que todas falsa,
— de boca repintada
e por dentro esfaimada,
rolando no seu coche,
a manquejar descalça, -
vai lá, onde rebanhos lastimosos
encharcados em gafas, vivem sem ar nem luz
nos imundos currais.
Oh! os bairros de pus!
A tísica lhes crava as frias garras!
Oh! o medonho horror
de tanto cordeirinho morto em flor
quando dizem que o ouro abunda em barras!...
Olha os rebanhos trágicos que emigram
para campos longínquos,
abandonando os lares e metendo-se aos mares,
deixando silenciosas e desertas
sem lar com lume ou boca com cantiga
as aldeias natais
até que o desamparo e a fome nova
os torne a remeter à fome antiga!
Vai ver por essas terras
as mil hospedarias
onde aposentam, para que mais goze,
a grã Ceifeira nossa
que nos ceifa de quarto em quarto de hora,
de sorte que uma guerra
perpétua nos devora.
-Senhora (assim lhe dizem)
não façais cerimónia, a casa é vossa
e a fome que aí vai dá festa grossa
ao famoso apetite que nos tendes! –
E olha como definha
à míngua de ar, de luz, de pão e de água,
de comer, de lavar-se, de estimar-se, de poder respirar alegre e fundo
e se torna medrosa ou engelhada
esta gente de Luso
já de forças tão belas
que deu mundos ao mundo
e ao céu novas estrelas.
E, oh! coisa mais que todas vergonhosa!
Quando vires passar
os filhos dos zagais,
sabe que são matéria mui rendosa,
que de ensinar-lhe as danças
e as cantigas do prado
o cheíssimo Cofre se enche mais!...
Se peregrino fores
também hás-de encontrar
gordíssimos pastores
que te dirão que o prado resplandece
de searas, de vinha e de flores;
com semblantes risonhos
e ânimos confortados
hão-de mostrar-te altíssimas cabanas
e nas ribeiras os batéis armados
(palácios e batéis
feitos de fome e lágrimas),
mas a esses responde:
- Levanta mil palácios, mil castelos,
se lhe não pões espírito lá dentro
tudo isso é caliça:
arma nas águas mil batéis armados;
se não lhe pões espírito lá dentro
tudo isso é sucata!
Vai-te, Lereno ilustre!
Vai-te e não me apoquentes,
fora de aqui com a écloga, zagal!
De mentira é que morre Portugal
e tu próprio és mentira;
deixa-me e leva a pastoral e a lira!
Quanto a mim, sabes lá!
Vi secar o meu prado
e morrer-me o rebanho;
a pastora que amei, crua deixou-me:
um amigo que tive abandonou-me
pelos lobos cervais
e com eles caçou-me.
Traições, desilusões,
ingratidões, ladrões...
E tu, Lereno, ¿vens falar-me de bucólica poesia?
- Ouve na noite negra uivos de cães
que são a minha frauta e melodia!...
LERENO
Debaixo destes trajos de pastor
que a mentira letrada me vestiu,
fui homem que viveu,
que sofreu e que amou
e os bonecos da écloga moveu
para dizer o amor
e a dor que o consumiu.
Umbro, faze como eu:
com falas de zagais,
rebanhos, melodias,
teus males desafoga
e povoa a tristeza de teus dias;
na luz das madrugadas
tua anemia cora;
canta — as sombras espanta,
canta e rude peleja
contra os lobos famintos
do sangue das manadas.
Mais que nunca a poesia pastoral
no mundo e em Portugal
convém ao vosso tempo tão turbado...
—¿Que são os homens quási todos? Gado.
ECLOGA II
Interlocutores: Hipério [Hipólito Raposo] e Viviano [o Autor]
Viviano
Ó solidão, ditosa companhia
se no-la enche a consciência alegre!
Val-de-Lobos das almas que não vergam!
Exílio, pátria dos honrados homens!...
Quando emprego os meus olhos
em tudo o que é passado
louvo o alto destino
que nos deixou de banda entre os festeiros
das funções deste prado
para ficarmos firmes e leais,
alheios à festança
de tanta vã mentira,
de tanta dor do gado,
inimigos de tantos maiorais!...
Esse gado mesquinho defendemos
tantos anos seguidos,
levantando os cajados
contra os lobos que assaltam os rebanhos,
desde os lobos azuis [monárquicos “constitucionais”, que vieram a fornecer ao Estado Novo de Oliveira Salazar o grosso da sua componente de apoiantes monárquicos]
(já muito desdentados)
té os vermelhos lobos [comunistas]
de perigosa goela!
E agora novos lobos [corporativistas de Estado - Salazaristas]
com fereza gelada
devoram as ovelhas,
assaltam a manada,
mandando que nem brado ou voz se solte
por que não se importunem tais orelhas!...
Silêncio assim tão novo
jamais pesou nos prados;
os rebanhos arquejam sufocados,
e nós, zagais do povo,
já deixámos as frautas e as cantigas
para apertar o punho dos cajados.
Que razão tem, pastores,
que nos tolham a voz?
Quem poderá jamais justificá-lo?
Se o que foi feito por amor de nós
é bom, deixai-nos todos bendizê-lo,
se é mau, devemos todos condená-lo!...
Mordaças não convêm a lusas bocas;
e senão vêde aqueles
grandes zagais antigos,
glórias desta ribeira,
chamados Gil Vicente
e Luís de Camões
e padre António Vieira,
que todos foram bravos,
todos falaram rijo
na Portuguesa Língua forte e clara
ou no paço dos reis
ou no divino Poema
ou na defesa épica de escravos!...
E nós, zagais que fomos
os primeiros na luta destemida,
havemos de ficar assim calados,
mais medrosos que os gados,
como ovelha que bala de perdida?
E quem manda calar-nos?
Esses que se abrigavam
nas cabanas amigas
ou nas tocas seguras
quando se armavam cá no prado as brigas!...
Hipério, amigo forte,
peguemos outra vez nestes cajados
tão useiros ao jogo
e de novo saiamos
com bravura e ardil
a pelejar co’os lobos que ajudámos
a penetrar no fundo do redil!...
Hipério
Sim, Viviano amigo,
Quando recordo os nossos companheiros,
uns já mortos, os outros desterrados,
minha alma se enternece e se faz triste.
Quanto esforço que andámos dispendendo,
quanta renúncia aos cómodos da vida!
Quanta estúpida injúria recebida
desses próprios que andámos defendendo.
Lembra-me o alto Antonius [António Sardinha]
que do jardim da raia,
cidade forte e branca,
com a pressa de quem pressente a morte
tanta luz derramou por estes prados!
Outro morreu primeiro,
moço e de mente clara,
Cordário [Adriano Xavier Cordeiro] era o seu nome;
Brácaro [Luís de Almeida Braga], zagal fino
que se apurou em Flandres,
lá guarda solitário o seu rebanho;
Monsário [Alberto Monsaraz] trespassado
na peleja dos lobos,
vive longe de nós, em terra alheia;
Rebélio [José Pequito Rebelo] tão experto
nos profundos segredos da lavoura,
nunca foi por ninguém aproveitado;
Lucius [Afonso Lucas] foi salteado
e nos risos amargos se consola...
Meu Deus, que triste sorte!...
Todos no exílio, todos,
ou na pátria ou na morte.
Viviano
E tu próprio estiveste
preso em choupana agreste
donde não pude defender-te quando
maiorais, hoje lobos,
ouviram minha fala
que na ribeira Clara fui botando
[Referência ao julgamento de Hipólito Raposo no Tribunal de Santa Clara, de quem Afonso Lopes Vieira foi advogado de defesa]
Hipério
E tu mesmo, que foste perseguido
por furiosos zagais
quando cantaste esse zagal sem nome
que nas brigas de além morreu perdido.
[referência à prisão de Afonso Lopes Vieira, por motivo da publicação e apreensão da sua poesia "Ao Soldado Desconhecido (morto em França)", em Março de 1921.
Com efeito, os soldados - excelentes;
capitães, onde estais?
Certo é que sentimos o desterro
a que a nova alcateia nos condena,
a que repete em voz desentoada
canções da nossa avena !
[Referência à tentativa de apropriação do legado político e cultural do «Integralismo Lusitano» feita por alguns ex-integralistas, colaboradores de Salazar depois de 1929, Marcelo Caetano e Pedro Teotónio Pereira, entre outros]
E são lobos tão pérfidos no assalto,
tão matreiros, tão crus e tão gulosos,
que nos parece já que os outros lobos
em verdade eram menos perigosos!...
Viviano
Hipério, dizeis bem e eu mesmo o sinto;
os inimigos de antes muitas vezes
sendo brutais eram até corteses;
os de hoje são peçonha em água benta.
Mas os zagais mais moços
moços na idade, n’alma engelhadinhos -
que aprenderam connosco
a tocar e dançar, a serem homens,
quase todos estão daquela banda
donde a nós nos monteiam.
Ardente mocidade,
é mais feia a traição na tua idade
e horrendo que te comprem por traidora!
Por isso eu canto alegre,
sòzinho pelo prado:
Ó solidão, formosa companhia
se no-la enche o coração contente!
Não há luxo maior que o ser-se honrado.
Hipério
E pensar que lá longe
na estrangeira terra,
nesse exílio que dura há tantos anos,
vive aquele Pastor [O Rei, D. Duarte Nuno] que salvaria
estes campos da morte e da ruína
e dos lobos cruéis estas ovelhas!...
Pastor mais luso e nosso
outro se não conhece;
tem puras qualidades que rebrilham
entre as dos guardadores
da honra e da mantença das lavouras.
Ele é bravo e é pobre;
a nossa Língua fala
que um século vivido entre as alheias
jamais fez esquecida;
aprendeu na dureza
e alta dignidade
do pão do seu exílio
a saber como os pobres são honrados
quase só pelo serem,
e como o ventre obeso dos tiranos
do mando ou do dinheiro
é cousa dura e feia.
Se ele um dia viesse
aos nossos lusos prados
acabava-se a dança dos pastores
que são hóspedes caros ou ligeiros
da cabana onde em feno perfumado
se repolteriam todos,
monarcas da desordem
ou da vil tirania.
Oh! a danada dança,
dança desordenada!
Este espicaça o gado e açula os lobos;
esse é honrado e tapa os negros crimes;
aquele engorda e o gado está no fio;
outros querem livrar-se
e fugindo abandonam o rebanho...
Rendeiros todos são, nenhum é dono.
Pois como hão-de estimar a boa terra
quando a trazem de renda e a fatigam?
Um dia abalam - quem lhes faz as contas?
E se acaso um bom velho
de olhos azuis e de alma enamorada [Henrique de Paiva Couceiro]
se dispõe a guardar o gado solto,
os maus zagais do prado
vão e pegam-lhe fogo!
Quando virás um dia,
pastor que sejas dono e não rendeiro,
morador e não hóspede,
bem apegado à terra,
capaz de ter amor,
leal, nunca onzeneiro,
descendente daqueles que guardaram
as queridas ovelhas
sem jamais esfolá-las
nem à fome matá-las
nem à bruta tangê-las?...
Viviano
Amigo, que Pastor venha depressa
à terra sua e nossa
que com tanta mentira se esboroa
e com tão crua fome desfalece;
mas que sempre recorde
que descende dos ínclitos Pastores
que fizeram tão grande a nossa glória
porque amavam a terra
estimando-lhe a gente.
Mas que nunca se esqueça
de que provém do Mestre [O Mestre de Avis, Rei D. João I]
e do Segundo Joane [Rei D. João II].
O primeiro que foi senão o povo
coroado por chefe
e revendo-se todo
na sua própria imagem coroada?
Ó Fernão Lopes, conta
como os ventres ao sol
lá em Aljubarrota pelejavam! -
E Joane, «de fama sempiterna»,
destruiu, para bem desta lavoura,
as moagens que a terra devoravam!...
Que o Pastor que chamamos
assim como eles seja:
que respeite sem quebra
as nossas liberdades,
lembrando-se do verso que falando
Da Lusitana antiga liberdade
[Alusão às liberdades que os povos organizados nas comunas urbanas e nos concelhos rurais dispunham no reino de Portugal dos tempos medievais, retomando o formoso verso de Luís de Camões:
E Vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao Mundo por Deus, que todo o mande,
Para do Mundo a Deus dar parte grande
Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto I]
nos dá tamanha honra;
que toda a usura açaime
e o trabalho defenda;
que ame a lavoura, donde
um povo inteiro vive;
que não chame às províncias
do Além-mar colónias,
o que já é perdê-las;
[Alusão ao Acto Colonial (1930) e à ideologia colonialista das 1ª e 2ª Repúblicas, a que os integralistas se opunham]
que nunca ao pé consinta
as cortesãs beatas,
os duques descarados,
os condes financeiros,
a fim de que essa corte seja aquela
corte de alto esplendor
onde o chefe da Casa
dos vinte e quatro ofícios
penetre entre brandões que se acenderam
para honras lhe dar de Embaixador!
ECLOGA III
Interlocutores – LÍSBIO (Oliveira Salazar) E RUSTICO (povo rural)
LISBIO
Ó Rústico, repara
como o meu campo agora resplandece!
Nestes prados polidos
o rebanho feliz pasta ditoso
e eu sou espelho, inveja e flor e glória
dessa Europa mesquinha!...
RÚSTICO
Pois no meu campo, ó Lísbio,
as tetas do rebanho botam sangue,
e o rancho dos meus filhos chora de pura fome
junto ao celeiro cheio.
LISBIO
Rústico, só a Usura farta um homem
e sublima o Estado!
De mais, um campo para ser decente
há-de ser praça, rua ou alameda,
há-de estar bem calçado, e sem mostrar andrajos vergonhosos
de parras ou de espigas.
RÚSTICO
Sim, é meu grande crime
possuir ou cavar terra fecunda
donde me nasce fome,
é trabalhar na terra que te engorda
que enriquece usurários
e que me mata a mim que nela suo!
LÍSBIO
Vê como em mim floresce
esta bela Ordem Nova!
Vai longe aquele tempo
de rotunda má fama...
Agora a vida é nobre, a paz fecunda,
e as casas de penhores
cada vez mais prosperam.
RÚSTICO
Mal por mal, talvez fosse
melhor aquele tempo
em que um bravo Agatónio
à frente de um punhado de rapazes
se lançava a sorrir contra a metralha.
Isso inda era viril!
¿Onde é que estão agora
os teus símbolos de homem?
LÍSBIO
Deixa a vã caramunha,
vem ver as minhas festas
à cidade tornada vasto circo!
(Assim na Roma antiga
se embebedava a plebe).
Vem ver este meu povo alegre e rico;
—dou-lhe corda, ele marcha!...
RÚSTICO
Talvez um dia vamos,
nós, os Rústicos todos,
fazer-te aí a festa da Lavoura.
Seríamos milheiros e milheiros,
co'as mulheres e os filhos
— oh! que famosa marcha popular!... –
levando inscrito nos pendões ao vento
quanto nos custa o pão
e quanto andamos todos a ganhar!
Juntos co'a gente na famosa marcha
seguiriam os donos das Searas e Vinhas,
que em Portugal são traves destes lares
e eram fartura honesta
de gente sã e honrada;
connosco iriam, pois, os que recebem
o escárnio feroz dos teus ditames
que sobre nós se entorna;
e de mãos dadas, Amos e Criados
todos desfilariam
diante da tribuna, onde, radioso,
tu dirias, sorrindo para o lado:
- ... Este é o ditoso povo meu amado!...
Entanto rebentamos
até que cheque o dia em que aí três milhões
de enxadas portuguesas
abram a cova imensa em que se enterre
a tua judiaria!...
ECLOGA IV
Interlocutores - ALDO, JOSEFO E O VAQUEIRO
ALDO
Josefo amigo, olha
esses campos de Europa perturbados
e verás que jamais, dés que há rebanhos,
tal turbação se viu por esses prados;
pois nunca como agora
se viu o gado ansioso
em altos brados barregar por donos
e por donos bem duros,
a pedir que o tosquiem,
inda que o frio lhe anavalhe o lombo,
a desejar que os maiorais o tanjam
no tosquiado lombo às bordoadas!
Oh! surpresa tamanha
de zagais e vaqueiros!
São os próprios rebanhos que, balindo,
rompem com estas vozes:
- Ó pastores, ó deuses,
vossos rijos bordões nós adoramos
e quanto mais carneiros nos tornamos
tanto mais nossas almas se sublimam!...
JOSEFO
Sim, Aldo, o nosso tempo
é de-veras turbado
e, como dizes, os rebanhos hoje
perderam toda a graça e fantasia,
de sorte que os zagais
também se sentem gado.
¡Como era belo o tempo em que o rebanho
se compunha de inúmeras cabeças!
Hoje a cabeça é uma:
tem seus cornos, e pasta.
Já não vemos cabritos
que aos saltos se derramem
pelo prado viçoso;
os cabritos espertos
que enterneciam tanto
os olhos dos pastores
ei-los agora graves como chibos,
oh! que grande tristeza!
balindo pela ordem
e todos conformados,
já vorazes apenas desmamados,
sequiosos do mando que acorrente
sua ousada esperteza!
Os chibos, que entre o gado
mantinham sua força bem armada,
despojam-se da força
e querem ser ovelhas;
querem também um dono
que lhes esponte os cornos
e às varadas os leve;
e os carneiros monótonos, que sempre
foram gado tacanho
como tolos e dóceis,
acabaram por dar
a acarneirada alma
a todas as cabeças do rebanho!...
ALDO
É bem certo o que dizes
e senão considera
esses campos do norte na Zigfrânia, [Alemanha]
onde o «soberbo gado»
exulta sob o arrôxo ao som da música:
esses campos do Lácio, [Itália]
onde o zagal cesáreo [Mussolini]
atou num feixe as almas do rebanho
e fez num feixe os ossos do contrário;
e esses outros gelados campos brancos
onde ursos que outros ursos amestraram
fazem da vida um frio carril de aço... [URSS]
Todos eles se espojam em novo culto hediondo (mas talvez útil, lá, com essas reses)
e ou desfraldem bandeiras
ao vento, ao som dos hinos belicosos
ou quadriculem ásperas charnecas
com mil novelos de engenhosos fios,
o culto hediondo é o mesmo
e quem o rende não são já cabeças;
mas são apenas peças
duma horrorosa máquina!
Oh! espanto, oh! vergonha!
Não se quer que, paterno,
o pastor reja o gado
com liberal juízo e com doçura,
respeitando-lhe o gosto
das ervas e das fontes,
sabendo que ele sofre
ao assentar-lhe a vara:
- quer-se um deus ante cuja divindade
o rebanho co'a língua
lave o chão que ele pise!...
JOSEFO
Aldo, está-me lembrando
o que será um dia
a vida dos rebanhos
se vem a aperfeiçoar-se um pouco ainda
a arte dos guardadores.
Imagina um rebanho cuja vida inteirinha
fosse regida a toques de buzina.
Oh! que vida perfeita
e que conformidade superfina!...
Toca a buzina — à uma
os carneiros acordam:
soa-lhes novo toque
e os carneiros ditosos
aliviam seus ventres e bexigas;
outro toque lhes manda
que comecem pastando,
mas em cerradas, ordenadas filas
e com rações marcadas;
pelo toque de amar
cavalgam as ovelhas,
mas por espaço bem determinado,
a-fim-de que a descarga
ali se faça unida;
novo, toque lhes manda que meditem
e ei-los meditabundos;
outro toque permite que se cocem
e coçam-se a compasso;
se certo toque exige que se alegrem,
pulam, pincham e saltam!
Aos carneiros que tenham
barregar mais mimoso
determina-se, a bem da arte do canto,
que barreguem por notas comandadas;
se os tosquiam bem rasos
devem julgar-se pagos
porque essa lã derrama calor meigo
enquanto eles tremerão gelados;
se lhes dói, se têm fome, se têm sede,
que se calem, mas muito caladinhos,
sem publicar seus ais e seus queixumes;
se ao matadouro os levam
devem cantar um hino
em louvor do guisado que fornecem
com que se hão-de lamber gulosas bocas; finalmente os carneiros adormecem
porque o som da buzina assim comanda,
e o toque derradeiro Ihes inspira
o motivo dos sonhos...
Esta a vida perfeita
daquele felicíssimo rebanho
a quem couber a sorte
de ter quem lhe dirija a leda vida;
e invisível, pairando sobre as reses
tosquiadas, caladas, venturosas,
o dono omnipotente manipula
esta felicidade dirigida!...
- Amigo, meu, Vaqueiro,
¿e cá nos nossos prados?
O VAQUEIRO
Por estes prados cá da nossa terra
camisas - só as lavadas!
porque ao gado lusitano
não calham bem essas modas.
É doce tal o mel dessas colmeias,
mas se ruim pastor o pica
faz-se gado mosqueiro e forte marra!
E, se não, vede-me o jeito
que eu sempre tive, e que tenho,
quando um dia deixei o meu rebanho
e alegre como sou, simples e leal,
de meigo e de forte peito
fui visitar el-rei de Portugal.
Esse meu rei possuía
- vós o sabereis por certo –
um reino tão dilatado
que nunca nele se acabava o dia;
ele era o rei mais dourado,
eu o fidalgo do monte
que tem por taça a limpidez da fonte
e por vianda a amora do valado.
Ao meu rei, por tão ditoso,
um filho varão nascera
que a nós, zagais, enchera de alegria
porque esta terra que é nossa
por sua fiança o havia.
Fui, pois, levar-lhe os presentes
que a gente deste campo sempre oferta
— ovos e leite fresquinhos,
queijos e mel e bolinhos, -
e tão contente e tão seguro eu ia
de entrar na real cabana
que nem mandei meu recado
ao rei que lá residia;
levava a minha alegria
e o meu cajado.
Vai senão quando um mostrengo
dum guarda da portaria
me quer tolher a passagem,
me trata sem cortesia,
a mim que estava na casa
que eu minha também sentia
porque era a casa do povo
e a casa da monarquia.
Ah! rapazes! que punhada
dei na cara do tipo!... Mas, coitado,
ele não me conhecia;
e entrei na real cabana
tão zangado
que o disse mui declarado!
Depois voltou-me a alegria
a lá dei o meu recado...
Acreditem no Vaqueiro
de falas meigas e ousadas:
o gado luso é mosqueiro,
liberdades, dignidades,
- são sagradas!
ALDO
Consola o coração, Josefo amigo,
escutar o Vaqueiro!
Êle é o povo das ribeiras lusas.
Se um dia um estrangeiro
às nossas almas, por ser doutra raça,
o quiser ofender,
hás-de ver como acaba mal a graça!
Depois deste pastor,
outro, o grande na tuba
canora e belicosa
e na avena suavíssima do amor,
declarou cousa igual
num canto de zagal:
«Enquanto do seguro azambujeiro
nos pastores de Luso houver cajados,
...não temas tu, Frondélio companheiro,
que em algum tempo sejam subjugados.›
- Há sempre zambujeiro em Portugal!...
ECLOGA V
FALA UM SÓ PASTOR
Olho o prado onde os gados apascento
e curto me parece e assaz estreito,
pois com meus olhos este vale abranjo,
e do cimo do outeiro,
se me detenho a olhar,
abarco quási todo o campo em roda:
dum lado terras secas o limitam
(de lá nunca nos veio
bom casamento ou vento )
— mas do outro lado é o Mar!...
Desço então às areias
de ouro das nossas praias,
estendo os olhos pela imensidade,
embebedo-me ali de imensidões,
e com olhos de glória,
não só de saudade,
enxergo o além de imensos prados nossos
vastos como Nações!...
A Fé e o Império no-los foi criando
e tão nossos ficaram
pelo sangue, pela alma,
que até hoje por nossos se guardaram
entre ansiosas cobiças erriçadas
que os espreitam gulosas!
São as nossas províncias,
tão dentro da nossa alma
como as do prado curto onde vivemos:
mas se inda agora as temos
o devemos àqueles
cavaleiros heróicos de há trinta anos
que elevaram no mundo o nosso nome
em época tão triste,
quando as gentes de Luso cabeceavam
e essas gentes dormentes governavam
ora o gato dum velho
ora um advérbio morno.
Foram eles, os novos Amadises,
gentilíssimos ânimos
de modernos lusíadas
(alguns já nos morreram,
outros, o que é mais triste, envelheceram,
- mas há um sempre moço e sempre bravo!),
foram esses rapazes,
almas de paladinos,
que, numa Europa chata de caixeiros
e lojistas de Estado,
resgataram a nossa decadência
diante do mundo todo,
e fizeram com que esse
grão maioral do norte
que amava as artes bélicas
a seus braços chamasse e festejasse
o nosso grão Roupinho! [Mouzinho de Albuquerque]
Roupinho! meu patrício,
glória entre puras glórias,
alto deslumbramento
da minha juventude!
Filho desta província bem-amada
e toda toda toda povoada
de castelos, mosteiros e memórias!
Por ti, Roupinho, invoco
os lugares sagrados
desta piquena pátria que adoramos
na grande, a de confins ilimitados:
- Alcobaça, esse berço
de Portugal menino;
Batalha — o povo luta, o povo reza;
Tomar — o povo cresce, o povo embarca!
E à volta destas pedras
encharcadas em alma
o Pinhal do Rei canta
com as ondas do mar!...
Roupinho - Portugal
bem-nascido de novo,
cavaleiro, letrado e gentil-homem
tão fidalgo e tão próximo do povo
que eu o vi de jaqueta e chapéu largo,
enrolando um cigarro
e dizendo, com o seu sorriso
que era o dum intelectual
e o mais fino de todo o Portugal:
— Ah! como maça a gente o ser-se herói!...
Pois bem, Roupinho, ergue-te,
apruma essa cabeça
rebentada por balas que uma época
te disparou tão crua,
ergue-te e volta às terras
desse Além-mar que amaste,
onde brilhou a espada relumbrante,
que era feita de Espírito,
e onde o claro juízo
da tua mente de Governador
empregou tanto amor,
tanto puro heroísmo militante!
Vai, sombra épica e pura,
e verás os acrídios
que um monteador acrídio
apascenta mimosos
roerem essas terras que são suas
e não nossas, do povo,
e não tuas, herói!...
Verás brancos descalços
pedirem esmola a pretos;
ruínas nas fazendas
e pelas almas ruínas,
- mas a abarrotar de ouro o Banco negro!...
E pretos que não acham
conforto de remédios
em território nosso
e vão ao estrangeiro confortar-se
com remédios alheios!...
Quanto aos teus descendentes,
Roupinho, bás-de encontrar
fidalgos portugueses que jantando
co'a rainha do Congo,
nossa vassala e hóspeda,
Ihe apertarão as coxas,
de sorte que a rainha – uma educanda
antiga das Missões -
protesta, envergonhada:
-Senhor, eu sou uma mulher honrada!
Então, Roupinho, voltarás à pátria
e a tua sombra irá para o desterro.
Setembro - Outubro, 1935
Interlocutores - LERENO [Francisco Rodrigues Lobo] UMBRO [Afonso Lopes Vieira]
Numa noite sem lua
por negras horas mortas
enquanto na cabana solitária
Umbro ouvia os segredos do silêncio
e o murmúrio tão próximo do Lísio
que corria na sombra,
ao pastor esquecido e desterrado
de súbito aparece a sombra do zagal
ilustre e melodioso
entre os de Portugal,
que a Vilante branquíssima cantara
na cantiga imortal.
LERENO
Voltas enfim aos nossos campos belos,
ao doce vale do Lísio,
Umbro, que há tanto tempo
tu por outros trocaras
para nos nossos formosos esquecê-los
voltas à terra verde, outeiro e vale,
que teus avós amaram, onde fortes, cantando, trabalharam,
e que este caro rio
de cristalino fio rega
tão fino e claro.
Porém triste te vejo
matando os tristes dias,
que para ti começam à tardinha,
apenas co'o desejo
de matá-los de pressa,
e pálido estendendo as mãos geladas
para lume perpétuo de fogueira
que mais que o sol te aqueça.
Zagal, ¿porque te calas e te encerras
num silêncio de morte
e foges ao convívio dos pastores?
¿Não amas a beleza destas terras?
¿Ou não tens olhos para ver zagalas?
¿Já não há prados, músicas e amores?
Se Dérito, esse amigo
e a pastora que é sua
querem levar-te a ver o céu e o rio,
tu, ingrato, recusas a terna companhia;
debalde Lariano,
o pastor que nos frescos prados brilha,
mais a zagala Gida
vêm das bandas do Tejo visitar-te
e te pedem que cantes e renasças:
Cândia, de voz formosa,
quer de longe animar-te;
Alécio, natural do Lísio brando
e cuja frauta clara alegre trina,
também cá veio ver-te
e oferecer-te louros com amizade fina.
¿Porque vives sozinho e sempre absorto?
Se muito bem fizeste em deixar os amigos mentirosos,
¿aos amigos fiéis descoroçoas?
Ah! que os deuses propícios
te mandem um sorriso
e ali se há-de então ver que não és morto.
Pois ¿nem sequer te lembra
que estas margens do Lísio
amoráveis te falam do passado?
Aqui nesta cabana
morreu, enfim cansado,
depois de ter amado,
depois de ter perdido
sua nobre pastora cuja morte
foi desastrosa e crua,
um pastor que era doce qual cordeiro
e cujas melodias que soavam
os ecos destes vales repetiam;
e aqui vieram vê-lo amigos e pastores celebrados
e o famoso zagal Castálio, o cego
cuja alma de luz resplandecia.
Ergue, pois, em voz clara,
que já tiveste um dia,
o louvor destes campos, destas águas;
se tens mágoas, com elas tece um canto,
se te alivia o pranto
desata-o corajoso:
e aprende sobretudo a amar a terra,
o bem que nunca passa,
que nos dá pão — a graça,
e vinho - essa alegria!
UMBRO
Ó Lereno, pastor que tanto admiro
e estes prados ilustras com teu nome,
em cujas mãos, tangendo
a melodia azul das pastorais
ficou a frauta rústica de Almeno,
o pastor mais famoso entre os pastores!
Não me fales de amores!
Um dia vi o amor - era medonho:
tinha olhos convulsos de anjo bebedo
e a máscara do ódio.
Não me fales da terra - é fome e ruína.
O pão bendito? Dá-se aos animais!...
A alegria do vinho?
Ele é luto e pobreza!
E a pródiga abastança
da portuguesa terra
faz morrer dia a dia,
em pálida agonia
que lhes apaga os olhos,
as crianças de fome que as consome
juntamente co'o ranho e co'os piolhos!...
Lereno, despe o trajo
da tua pastoral
e vai, sem arrabil,
como homem apenas,
ver a miséria negra desses campos
onde já não há danças nem cantares
e onde pesa a morrinha melancólica
dos apagados lares.
- Olha a nossa Bucólica!...
Põe os olhos no chão dessas ribeiras
- por onde os lindos pés alvíssimos e nus
de Vilante passaram
- e lembra-te que o próprio chão que sempre foi nosso
o não é desde agora.
Pertence ao novo deus que nos devora:
já não é de ninguém, o deus o come.
As cruíssimas coimas
do maioral dos gados lastimosos
o fez perder aos poucos
aos pobres que choravam,
— em vez de irem em cata
dos cajados nodosos!...
¿Onde estão os cajados portugueses
que algum dia se ergueram
Em defesa da honra e da justiça?
Marmeleiros lustrosos
e castanhos robustos,
¿onde estais, onde jaz adormentada
vossa força elegante
em justiceiros giros,
que não saís de novo
contra quem vem - o verso é de Os Lusíadas –
a despir e roubar o pobre povo?
O doce chão da Pátria
vê-lo-ás empenhado em mãos de usura:
já todo o Portugal,
do extremo norte ao sul
(menos a parte inchada de fartura),
pendurado se vê do Prego imenso
e do Prego pendendo se balança
do Minho verde até o Algarve azul! ...
Ó casais de Família
que dos avós se herdaram
e que seus netos mais que a vida adoram!
Mimos claros do pobre,
seu orgulho e sustento,
seu gosto e mantimento
e seus lindos amores,
cousa a que tanto quere
que não inveja campos de senhores
nem por eles trocara
a leira que lhe torna
a alma ditosa e avara.
— Vê-os agora à venda e desdenhados,
por vil preço ofertados,
leira amada e perdida!
E às portas dos casais
o lavrador arranca fundos ais
por essas terras cheias
do seu profundo amor,
e sente que lhe chupam sangue e suor
pelas sagradas veias!...
Vai as cidades onde
como em Ulíssia, a mais que todas falsa,
— de boca repintada
e por dentro esfaimada,
rolando no seu coche,
a manquejar descalça, -
vai lá, onde rebanhos lastimosos
encharcados em gafas, vivem sem ar nem luz
nos imundos currais.
Oh! os bairros de pus!
A tísica lhes crava as frias garras!
Oh! o medonho horror
de tanto cordeirinho morto em flor
quando dizem que o ouro abunda em barras!...
Olha os rebanhos trágicos que emigram
para campos longínquos,
abandonando os lares e metendo-se aos mares,
deixando silenciosas e desertas
sem lar com lume ou boca com cantiga
as aldeias natais
até que o desamparo e a fome nova
os torne a remeter à fome antiga!
Vai ver por essas terras
as mil hospedarias
onde aposentam, para que mais goze,
a grã Ceifeira nossa
que nos ceifa de quarto em quarto de hora,
de sorte que uma guerra
perpétua nos devora.
-Senhora (assim lhe dizem)
não façais cerimónia, a casa é vossa
e a fome que aí vai dá festa grossa
ao famoso apetite que nos tendes! –
E olha como definha
à míngua de ar, de luz, de pão e de água,
de comer, de lavar-se, de estimar-se, de poder respirar alegre e fundo
e se torna medrosa ou engelhada
esta gente de Luso
já de forças tão belas
que deu mundos ao mundo
e ao céu novas estrelas.
E, oh! coisa mais que todas vergonhosa!
Quando vires passar
os filhos dos zagais,
sabe que são matéria mui rendosa,
que de ensinar-lhe as danças
e as cantigas do prado
o cheíssimo Cofre se enche mais!...
Se peregrino fores
também hás-de encontrar
gordíssimos pastores
que te dirão que o prado resplandece
de searas, de vinha e de flores;
com semblantes risonhos
e ânimos confortados
hão-de mostrar-te altíssimas cabanas
e nas ribeiras os batéis armados
(palácios e batéis
feitos de fome e lágrimas),
mas a esses responde:
- Levanta mil palácios, mil castelos,
se lhe não pões espírito lá dentro
tudo isso é caliça:
arma nas águas mil batéis armados;
se não lhe pões espírito lá dentro
tudo isso é sucata!
Vai-te, Lereno ilustre!
Vai-te e não me apoquentes,
fora de aqui com a écloga, zagal!
De mentira é que morre Portugal
e tu próprio és mentira;
deixa-me e leva a pastoral e a lira!
Quanto a mim, sabes lá!
Vi secar o meu prado
e morrer-me o rebanho;
a pastora que amei, crua deixou-me:
um amigo que tive abandonou-me
pelos lobos cervais
e com eles caçou-me.
Traições, desilusões,
ingratidões, ladrões...
E tu, Lereno, ¿vens falar-me de bucólica poesia?
- Ouve na noite negra uivos de cães
que são a minha frauta e melodia!...
LERENO
Debaixo destes trajos de pastor
que a mentira letrada me vestiu,
fui homem que viveu,
que sofreu e que amou
e os bonecos da écloga moveu
para dizer o amor
e a dor que o consumiu.
Umbro, faze como eu:
com falas de zagais,
rebanhos, melodias,
teus males desafoga
e povoa a tristeza de teus dias;
na luz das madrugadas
tua anemia cora;
canta — as sombras espanta,
canta e rude peleja
contra os lobos famintos
do sangue das manadas.
Mais que nunca a poesia pastoral
no mundo e em Portugal
convém ao vosso tempo tão turbado...
—¿Que são os homens quási todos? Gado.
ECLOGA II
Interlocutores: Hipério [Hipólito Raposo] e Viviano [o Autor]
Viviano
Ó solidão, ditosa companhia
se no-la enche a consciência alegre!
Val-de-Lobos das almas que não vergam!
Exílio, pátria dos honrados homens!...
Quando emprego os meus olhos
em tudo o que é passado
louvo o alto destino
que nos deixou de banda entre os festeiros
das funções deste prado
para ficarmos firmes e leais,
alheios à festança
de tanta vã mentira,
de tanta dor do gado,
inimigos de tantos maiorais!...
Esse gado mesquinho defendemos
tantos anos seguidos,
levantando os cajados
contra os lobos que assaltam os rebanhos,
desde os lobos azuis [monárquicos “constitucionais”, que vieram a fornecer ao Estado Novo de Oliveira Salazar o grosso da sua componente de apoiantes monárquicos]
(já muito desdentados)
té os vermelhos lobos [comunistas]
de perigosa goela!
E agora novos lobos [corporativistas de Estado - Salazaristas]
com fereza gelada
devoram as ovelhas,
assaltam a manada,
mandando que nem brado ou voz se solte
por que não se importunem tais orelhas!...
Silêncio assim tão novo
jamais pesou nos prados;
os rebanhos arquejam sufocados,
e nós, zagais do povo,
já deixámos as frautas e as cantigas
para apertar o punho dos cajados.
Que razão tem, pastores,
que nos tolham a voz?
Quem poderá jamais justificá-lo?
Se o que foi feito por amor de nós
é bom, deixai-nos todos bendizê-lo,
se é mau, devemos todos condená-lo!...
Mordaças não convêm a lusas bocas;
e senão vêde aqueles
grandes zagais antigos,
glórias desta ribeira,
chamados Gil Vicente
e Luís de Camões
e padre António Vieira,
que todos foram bravos,
todos falaram rijo
na Portuguesa Língua forte e clara
ou no paço dos reis
ou no divino Poema
ou na defesa épica de escravos!...
E nós, zagais que fomos
os primeiros na luta destemida,
havemos de ficar assim calados,
mais medrosos que os gados,
como ovelha que bala de perdida?
E quem manda calar-nos?
Esses que se abrigavam
nas cabanas amigas
ou nas tocas seguras
quando se armavam cá no prado as brigas!...
Hipério, amigo forte,
peguemos outra vez nestes cajados
tão useiros ao jogo
e de novo saiamos
com bravura e ardil
a pelejar co’os lobos que ajudámos
a penetrar no fundo do redil!...
Hipério
Sim, Viviano amigo,
Quando recordo os nossos companheiros,
uns já mortos, os outros desterrados,
minha alma se enternece e se faz triste.
Quanto esforço que andámos dispendendo,
quanta renúncia aos cómodos da vida!
Quanta estúpida injúria recebida
desses próprios que andámos defendendo.
Lembra-me o alto Antonius [António Sardinha]
que do jardim da raia,
cidade forte e branca,
com a pressa de quem pressente a morte
tanta luz derramou por estes prados!
Outro morreu primeiro,
moço e de mente clara,
Cordário [Adriano Xavier Cordeiro] era o seu nome;
Brácaro [Luís de Almeida Braga], zagal fino
que se apurou em Flandres,
lá guarda solitário o seu rebanho;
Monsário [Alberto Monsaraz] trespassado
na peleja dos lobos,
vive longe de nós, em terra alheia;
Rebélio [José Pequito Rebelo] tão experto
nos profundos segredos da lavoura,
nunca foi por ninguém aproveitado;
Lucius [Afonso Lucas] foi salteado
e nos risos amargos se consola...
Meu Deus, que triste sorte!...
Todos no exílio, todos,
ou na pátria ou na morte.
Viviano
E tu próprio estiveste
preso em choupana agreste
donde não pude defender-te quando
maiorais, hoje lobos,
ouviram minha fala
que na ribeira Clara fui botando
[Referência ao julgamento de Hipólito Raposo no Tribunal de Santa Clara, de quem Afonso Lopes Vieira foi advogado de defesa]
Hipério
E tu mesmo, que foste perseguido
por furiosos zagais
quando cantaste esse zagal sem nome
que nas brigas de além morreu perdido.
[referência à prisão de Afonso Lopes Vieira, por motivo da publicação e apreensão da sua poesia "Ao Soldado Desconhecido (morto em França)", em Março de 1921.
Com efeito, os soldados - excelentes;
capitães, onde estais?
Certo é que sentimos o desterro
a que a nova alcateia nos condena,
a que repete em voz desentoada
canções da nossa avena !
[Referência à tentativa de apropriação do legado político e cultural do «Integralismo Lusitano» feita por alguns ex-integralistas, colaboradores de Salazar depois de 1929, Marcelo Caetano e Pedro Teotónio Pereira, entre outros]
E são lobos tão pérfidos no assalto,
tão matreiros, tão crus e tão gulosos,
que nos parece já que os outros lobos
em verdade eram menos perigosos!...
Viviano
Hipério, dizeis bem e eu mesmo o sinto;
os inimigos de antes muitas vezes
sendo brutais eram até corteses;
os de hoje são peçonha em água benta.
Mas os zagais mais moços
moços na idade, n’alma engelhadinhos -
que aprenderam connosco
a tocar e dançar, a serem homens,
quase todos estão daquela banda
donde a nós nos monteiam.
Ardente mocidade,
é mais feia a traição na tua idade
e horrendo que te comprem por traidora!
Por isso eu canto alegre,
sòzinho pelo prado:
Ó solidão, formosa companhia
se no-la enche o coração contente!
Não há luxo maior que o ser-se honrado.
Hipério
E pensar que lá longe
na estrangeira terra,
nesse exílio que dura há tantos anos,
vive aquele Pastor [O Rei, D. Duarte Nuno] que salvaria
estes campos da morte e da ruína
e dos lobos cruéis estas ovelhas!...
Pastor mais luso e nosso
outro se não conhece;
tem puras qualidades que rebrilham
entre as dos guardadores
da honra e da mantença das lavouras.
Ele é bravo e é pobre;
a nossa Língua fala
que um século vivido entre as alheias
jamais fez esquecida;
aprendeu na dureza
e alta dignidade
do pão do seu exílio
a saber como os pobres são honrados
quase só pelo serem,
e como o ventre obeso dos tiranos
do mando ou do dinheiro
é cousa dura e feia.
Se ele um dia viesse
aos nossos lusos prados
acabava-se a dança dos pastores
que são hóspedes caros ou ligeiros
da cabana onde em feno perfumado
se repolteriam todos,
monarcas da desordem
ou da vil tirania.
Oh! a danada dança,
dança desordenada!
Este espicaça o gado e açula os lobos;
esse é honrado e tapa os negros crimes;
aquele engorda e o gado está no fio;
outros querem livrar-se
e fugindo abandonam o rebanho...
Rendeiros todos são, nenhum é dono.
Pois como hão-de estimar a boa terra
quando a trazem de renda e a fatigam?
Um dia abalam - quem lhes faz as contas?
E se acaso um bom velho
de olhos azuis e de alma enamorada [Henrique de Paiva Couceiro]
se dispõe a guardar o gado solto,
os maus zagais do prado
vão e pegam-lhe fogo!
Quando virás um dia,
pastor que sejas dono e não rendeiro,
morador e não hóspede,
bem apegado à terra,
capaz de ter amor,
leal, nunca onzeneiro,
descendente daqueles que guardaram
as queridas ovelhas
sem jamais esfolá-las
nem à fome matá-las
nem à bruta tangê-las?...
Viviano
Amigo, que Pastor venha depressa
à terra sua e nossa
que com tanta mentira se esboroa
e com tão crua fome desfalece;
mas que sempre recorde
que descende dos ínclitos Pastores
que fizeram tão grande a nossa glória
porque amavam a terra
estimando-lhe a gente.
Mas que nunca se esqueça
de que provém do Mestre [O Mestre de Avis, Rei D. João I]
e do Segundo Joane [Rei D. João II].
O primeiro que foi senão o povo
coroado por chefe
e revendo-se todo
na sua própria imagem coroada?
Ó Fernão Lopes, conta
como os ventres ao sol
lá em Aljubarrota pelejavam! -
E Joane, «de fama sempiterna»,
destruiu, para bem desta lavoura,
as moagens que a terra devoravam!...
Que o Pastor que chamamos
assim como eles seja:
que respeite sem quebra
as nossas liberdades,
lembrando-se do verso que falando
Da Lusitana antiga liberdade
[Alusão às liberdades que os povos organizados nas comunas urbanas e nos concelhos rurais dispunham no reino de Portugal dos tempos medievais, retomando o formoso verso de Luís de Camões:
E Vós, ó bem nascida segurança
Da lusitana antiga liberdade
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao Mundo por Deus, que todo o mande,
Para do Mundo a Deus dar parte grande
Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto I]
nos dá tamanha honra;
que toda a usura açaime
e o trabalho defenda;
que ame a lavoura, donde
um povo inteiro vive;
que não chame às províncias
do Além-mar colónias,
o que já é perdê-las;
[Alusão ao Acto Colonial (1930) e à ideologia colonialista das 1ª e 2ª Repúblicas, a que os integralistas se opunham]
que nunca ao pé consinta
as cortesãs beatas,
os duques descarados,
os condes financeiros,
a fim de que essa corte seja aquela
corte de alto esplendor
onde o chefe da Casa
dos vinte e quatro ofícios
penetre entre brandões que se acenderam
para honras lhe dar de Embaixador!
ECLOGA III
Interlocutores – LÍSBIO (Oliveira Salazar) E RUSTICO (povo rural)
LISBIO
Ó Rústico, repara
como o meu campo agora resplandece!
Nestes prados polidos
o rebanho feliz pasta ditoso
e eu sou espelho, inveja e flor e glória
dessa Europa mesquinha!...
RÚSTICO
Pois no meu campo, ó Lísbio,
as tetas do rebanho botam sangue,
e o rancho dos meus filhos chora de pura fome
junto ao celeiro cheio.
LISBIO
Rústico, só a Usura farta um homem
e sublima o Estado!
De mais, um campo para ser decente
há-de ser praça, rua ou alameda,
há-de estar bem calçado, e sem mostrar andrajos vergonhosos
de parras ou de espigas.
RÚSTICO
Sim, é meu grande crime
possuir ou cavar terra fecunda
donde me nasce fome,
é trabalhar na terra que te engorda
que enriquece usurários
e que me mata a mim que nela suo!
LÍSBIO
Vê como em mim floresce
esta bela Ordem Nova!
Vai longe aquele tempo
de rotunda má fama...
Agora a vida é nobre, a paz fecunda,
e as casas de penhores
cada vez mais prosperam.
RÚSTICO
Mal por mal, talvez fosse
melhor aquele tempo
em que um bravo Agatónio
à frente de um punhado de rapazes
se lançava a sorrir contra a metralha.
Isso inda era viril!
¿Onde é que estão agora
os teus símbolos de homem?
LÍSBIO
Deixa a vã caramunha,
vem ver as minhas festas
à cidade tornada vasto circo!
(Assim na Roma antiga
se embebedava a plebe).
Vem ver este meu povo alegre e rico;
—dou-lhe corda, ele marcha!...
RÚSTICO
Talvez um dia vamos,
nós, os Rústicos todos,
fazer-te aí a festa da Lavoura.
Seríamos milheiros e milheiros,
co'as mulheres e os filhos
— oh! que famosa marcha popular!... –
levando inscrito nos pendões ao vento
quanto nos custa o pão
e quanto andamos todos a ganhar!
Juntos co'a gente na famosa marcha
seguiriam os donos das Searas e Vinhas,
que em Portugal são traves destes lares
e eram fartura honesta
de gente sã e honrada;
connosco iriam, pois, os que recebem
o escárnio feroz dos teus ditames
que sobre nós se entorna;
e de mãos dadas, Amos e Criados
todos desfilariam
diante da tribuna, onde, radioso,
tu dirias, sorrindo para o lado:
- ... Este é o ditoso povo meu amado!...
Entanto rebentamos
até que cheque o dia em que aí três milhões
de enxadas portuguesas
abram a cova imensa em que se enterre
a tua judiaria!...
ECLOGA IV
Interlocutores - ALDO, JOSEFO E O VAQUEIRO
ALDO
Josefo amigo, olha
esses campos de Europa perturbados
e verás que jamais, dés que há rebanhos,
tal turbação se viu por esses prados;
pois nunca como agora
se viu o gado ansioso
em altos brados barregar por donos
e por donos bem duros,
a pedir que o tosquiem,
inda que o frio lhe anavalhe o lombo,
a desejar que os maiorais o tanjam
no tosquiado lombo às bordoadas!
Oh! surpresa tamanha
de zagais e vaqueiros!
São os próprios rebanhos que, balindo,
rompem com estas vozes:
- Ó pastores, ó deuses,
vossos rijos bordões nós adoramos
e quanto mais carneiros nos tornamos
tanto mais nossas almas se sublimam!...
JOSEFO
Sim, Aldo, o nosso tempo
é de-veras turbado
e, como dizes, os rebanhos hoje
perderam toda a graça e fantasia,
de sorte que os zagais
também se sentem gado.
¡Como era belo o tempo em que o rebanho
se compunha de inúmeras cabeças!
Hoje a cabeça é uma:
tem seus cornos, e pasta.
Já não vemos cabritos
que aos saltos se derramem
pelo prado viçoso;
os cabritos espertos
que enterneciam tanto
os olhos dos pastores
ei-los agora graves como chibos,
oh! que grande tristeza!
balindo pela ordem
e todos conformados,
já vorazes apenas desmamados,
sequiosos do mando que acorrente
sua ousada esperteza!
Os chibos, que entre o gado
mantinham sua força bem armada,
despojam-se da força
e querem ser ovelhas;
querem também um dono
que lhes esponte os cornos
e às varadas os leve;
e os carneiros monótonos, que sempre
foram gado tacanho
como tolos e dóceis,
acabaram por dar
a acarneirada alma
a todas as cabeças do rebanho!...
ALDO
É bem certo o que dizes
e senão considera
esses campos do norte na Zigfrânia, [Alemanha]
onde o «soberbo gado»
exulta sob o arrôxo ao som da música:
esses campos do Lácio, [Itália]
onde o zagal cesáreo [Mussolini]
atou num feixe as almas do rebanho
e fez num feixe os ossos do contrário;
e esses outros gelados campos brancos
onde ursos que outros ursos amestraram
fazem da vida um frio carril de aço... [URSS]
Todos eles se espojam em novo culto hediondo (mas talvez útil, lá, com essas reses)
e ou desfraldem bandeiras
ao vento, ao som dos hinos belicosos
ou quadriculem ásperas charnecas
com mil novelos de engenhosos fios,
o culto hediondo é o mesmo
e quem o rende não são já cabeças;
mas são apenas peças
duma horrorosa máquina!
Oh! espanto, oh! vergonha!
Não se quer que, paterno,
o pastor reja o gado
com liberal juízo e com doçura,
respeitando-lhe o gosto
das ervas e das fontes,
sabendo que ele sofre
ao assentar-lhe a vara:
- quer-se um deus ante cuja divindade
o rebanho co'a língua
lave o chão que ele pise!...
JOSEFO
Aldo, está-me lembrando
o que será um dia
a vida dos rebanhos
se vem a aperfeiçoar-se um pouco ainda
a arte dos guardadores.
Imagina um rebanho cuja vida inteirinha
fosse regida a toques de buzina.
Oh! que vida perfeita
e que conformidade superfina!...
Toca a buzina — à uma
os carneiros acordam:
soa-lhes novo toque
e os carneiros ditosos
aliviam seus ventres e bexigas;
outro toque lhes manda
que comecem pastando,
mas em cerradas, ordenadas filas
e com rações marcadas;
pelo toque de amar
cavalgam as ovelhas,
mas por espaço bem determinado,
a-fim-de que a descarga
ali se faça unida;
novo, toque lhes manda que meditem
e ei-los meditabundos;
outro toque permite que se cocem
e coçam-se a compasso;
se certo toque exige que se alegrem,
pulam, pincham e saltam!
Aos carneiros que tenham
barregar mais mimoso
determina-se, a bem da arte do canto,
que barreguem por notas comandadas;
se os tosquiam bem rasos
devem julgar-se pagos
porque essa lã derrama calor meigo
enquanto eles tremerão gelados;
se lhes dói, se têm fome, se têm sede,
que se calem, mas muito caladinhos,
sem publicar seus ais e seus queixumes;
se ao matadouro os levam
devem cantar um hino
em louvor do guisado que fornecem
com que se hão-de lamber gulosas bocas; finalmente os carneiros adormecem
porque o som da buzina assim comanda,
e o toque derradeiro Ihes inspira
o motivo dos sonhos...
Esta a vida perfeita
daquele felicíssimo rebanho
a quem couber a sorte
de ter quem lhe dirija a leda vida;
e invisível, pairando sobre as reses
tosquiadas, caladas, venturosas,
o dono omnipotente manipula
esta felicidade dirigida!...
- Amigo, meu, Vaqueiro,
¿e cá nos nossos prados?
O VAQUEIRO
Por estes prados cá da nossa terra
camisas - só as lavadas!
porque ao gado lusitano
não calham bem essas modas.
É doce tal o mel dessas colmeias,
mas se ruim pastor o pica
faz-se gado mosqueiro e forte marra!
E, se não, vede-me o jeito
que eu sempre tive, e que tenho,
quando um dia deixei o meu rebanho
e alegre como sou, simples e leal,
de meigo e de forte peito
fui visitar el-rei de Portugal.
Esse meu rei possuía
- vós o sabereis por certo –
um reino tão dilatado
que nunca nele se acabava o dia;
ele era o rei mais dourado,
eu o fidalgo do monte
que tem por taça a limpidez da fonte
e por vianda a amora do valado.
Ao meu rei, por tão ditoso,
um filho varão nascera
que a nós, zagais, enchera de alegria
porque esta terra que é nossa
por sua fiança o havia.
Fui, pois, levar-lhe os presentes
que a gente deste campo sempre oferta
— ovos e leite fresquinhos,
queijos e mel e bolinhos, -
e tão contente e tão seguro eu ia
de entrar na real cabana
que nem mandei meu recado
ao rei que lá residia;
levava a minha alegria
e o meu cajado.
Vai senão quando um mostrengo
dum guarda da portaria
me quer tolher a passagem,
me trata sem cortesia,
a mim que estava na casa
que eu minha também sentia
porque era a casa do povo
e a casa da monarquia.
Ah! rapazes! que punhada
dei na cara do tipo!... Mas, coitado,
ele não me conhecia;
e entrei na real cabana
tão zangado
que o disse mui declarado!
Depois voltou-me a alegria
a lá dei o meu recado...
Acreditem no Vaqueiro
de falas meigas e ousadas:
o gado luso é mosqueiro,
liberdades, dignidades,
- são sagradas!
ALDO
Consola o coração, Josefo amigo,
escutar o Vaqueiro!
Êle é o povo das ribeiras lusas.
Se um dia um estrangeiro
às nossas almas, por ser doutra raça,
o quiser ofender,
hás-de ver como acaba mal a graça!
Depois deste pastor,
outro, o grande na tuba
canora e belicosa
e na avena suavíssima do amor,
declarou cousa igual
num canto de zagal:
«Enquanto do seguro azambujeiro
nos pastores de Luso houver cajados,
...não temas tu, Frondélio companheiro,
que em algum tempo sejam subjugados.›
- Há sempre zambujeiro em Portugal!...
ECLOGA V
FALA UM SÓ PASTOR
Olho o prado onde os gados apascento
e curto me parece e assaz estreito,
pois com meus olhos este vale abranjo,
e do cimo do outeiro,
se me detenho a olhar,
abarco quási todo o campo em roda:
dum lado terras secas o limitam
(de lá nunca nos veio
bom casamento ou vento )
— mas do outro lado é o Mar!...
Desço então às areias
de ouro das nossas praias,
estendo os olhos pela imensidade,
embebedo-me ali de imensidões,
e com olhos de glória,
não só de saudade,
enxergo o além de imensos prados nossos
vastos como Nações!...
A Fé e o Império no-los foi criando
e tão nossos ficaram
pelo sangue, pela alma,
que até hoje por nossos se guardaram
entre ansiosas cobiças erriçadas
que os espreitam gulosas!
São as nossas províncias,
tão dentro da nossa alma
como as do prado curto onde vivemos:
mas se inda agora as temos
o devemos àqueles
cavaleiros heróicos de há trinta anos
que elevaram no mundo o nosso nome
em época tão triste,
quando as gentes de Luso cabeceavam
e essas gentes dormentes governavam
ora o gato dum velho
ora um advérbio morno.
Foram eles, os novos Amadises,
gentilíssimos ânimos
de modernos lusíadas
(alguns já nos morreram,
outros, o que é mais triste, envelheceram,
- mas há um sempre moço e sempre bravo!),
foram esses rapazes,
almas de paladinos,
que, numa Europa chata de caixeiros
e lojistas de Estado,
resgataram a nossa decadência
diante do mundo todo,
e fizeram com que esse
grão maioral do norte
que amava as artes bélicas
a seus braços chamasse e festejasse
o nosso grão Roupinho! [Mouzinho de Albuquerque]
Roupinho! meu patrício,
glória entre puras glórias,
alto deslumbramento
da minha juventude!
Filho desta província bem-amada
e toda toda toda povoada
de castelos, mosteiros e memórias!
Por ti, Roupinho, invoco
os lugares sagrados
desta piquena pátria que adoramos
na grande, a de confins ilimitados:
- Alcobaça, esse berço
de Portugal menino;
Batalha — o povo luta, o povo reza;
Tomar — o povo cresce, o povo embarca!
E à volta destas pedras
encharcadas em alma
o Pinhal do Rei canta
com as ondas do mar!...
Roupinho - Portugal
bem-nascido de novo,
cavaleiro, letrado e gentil-homem
tão fidalgo e tão próximo do povo
que eu o vi de jaqueta e chapéu largo,
enrolando um cigarro
e dizendo, com o seu sorriso
que era o dum intelectual
e o mais fino de todo o Portugal:
— Ah! como maça a gente o ser-se herói!...
Pois bem, Roupinho, ergue-te,
apruma essa cabeça
rebentada por balas que uma época
te disparou tão crua,
ergue-te e volta às terras
desse Além-mar que amaste,
onde brilhou a espada relumbrante,
que era feita de Espírito,
e onde o claro juízo
da tua mente de Governador
empregou tanto amor,
tanto puro heroísmo militante!
Vai, sombra épica e pura,
e verás os acrídios
que um monteador acrídio
apascenta mimosos
roerem essas terras que são suas
e não nossas, do povo,
e não tuas, herói!...
Verás brancos descalços
pedirem esmola a pretos;
ruínas nas fazendas
e pelas almas ruínas,
- mas a abarrotar de ouro o Banco negro!...
E pretos que não acham
conforto de remédios
em território nosso
e vão ao estrangeiro confortar-se
com remédios alheios!...
Quanto aos teus descendentes,
Roupinho, bás-de encontrar
fidalgos portugueses que jantando
co'a rainha do Congo,
nossa vassala e hóspeda,
Ihe apertarão as coxas,
de sorte que a rainha – uma educanda
antiga das Missões -
protesta, envergonhada:
-Senhor, eu sou uma mulher honrada!
Então, Roupinho, voltarás à pátria
e a tua sombra irá para o desterro.
Setembro - Outubro, 1935