Dor e Amor de Portugal - "Acuso!"
Luís de Almeida Braga
A ninguém escapa que o regime [«Estado Novo»] é apenas um indivíduo em fatal declínio, e que tudo se dissolverá com o seu desaparecimento
Condeno o sistema político que está a arrastar-nos para a pior catástrofe da nossa História
Condeno o sistema político que está a arrastar-nos para a pior catástrofe da nossa História
Em 1958, Luís de Almeida Braga surgiu ao lado de Rolão Preto e de Vieira de Almeida - todos destacados e conhecidos monárquicos - na Comissão Nacional de Candidatura do General Humberto Delgado à presidência da República. Eis alguns estratos significativos da entrevista concedida por Luís de Almeida Braga ao Diário de Lisboa, publicada em 30 de Maio de 1958 sob o título "ACUSO!", e que começou com a seguinte pergunta:
" - Nota-se nos meios políticos vivo interesse em conhecer a sua opinião na actual conjuntura da vida nacional. Quer dizer-nos o que pensa?
" - Para quê? Em hora mais própria para a acção do que para pregações, certo núncio apostólico longamente desfiava diante de Afonso III o lento rosário de subtis conceitos. E disse-lhe o rei: - «Frei Nicolau, para que gastar mais discursos? O tempo de arrazoar já lá vai». Também agora me parece que passou o tempo de dissertar. Quando a censura veda a clara expressão do pensamento e se chega ao extremo de ser proibido não só entregar ao público o resultado do estudo sincero, do leal conselho, do reparo justo, mas até se apreende o que apenas constitui ainda vago projecto, talvez nunca efectivado, como aconteceu com os apontamentos de Maria Archer para um livro sobre o primeiro julgamento de Henrique Galvão, tão-somente, a quem não tem mais armas do que a palavra e a pena, só pode encerrar-se em duro silêncio, como sinal de castigo e desprezo.
" - Não será essa uma atitude de renúncia ao combate?
" - Não! É uma forma altiva de protesto, reduto impenetrável para preservação da dignidade mental, defesa sagrada dos direitos do espírito. É no silêncio que se prepara o fogo que tempera as almas dos povos.
" - Aí está a confessar-se o doutrinário e o lutador. Vê-se que condena o presente e confia no futuro.
" - Sim. Condeno o híbrido sistema político, tirânico e vingativo, que está a arrastar-nos para a pior catástrofe da nossa História. A ninguém escapa que o regime é apenas um indivíduo, em fatal declínio, e que tudo se dissolverá com o seu desaparecimento. (...) Por maior que seja o génio de um homem, é sempre insuficiente para, por si só e para além da sua vida, manter a ordem e a segurança do Estado. Sem um princípio que a proteja, surdamente a Sociedade se dissolve. Compreendendo-o assim, dizia o Conde de Chambord, apresentando-se à sucessão do trono de França: - Ma personne n’est rien; mon principe est tout. Aqui, escamoteiam-se os princípios para que avulte a pessoa que os encabeça. Deste modo se forma a idolatria da autoridade, o materialismo da obediência passiva. (...) Se uma nação chega a este ponto, está madura para todas as desgraças. E esta é a minha dor...
" - Contudo, os partidários do regime apresentam como exemplar a gerência financeira...
" - Confundindo liberdade com desordem, força com brutalidade, o Estado Novo há muito se revelou incapaz de conciliar a autoridade e a liberdade. O Estado Novo é, afinal, a expressão política de problemas não resolvidos. Tendo começado por ser uma ditadura administrativa, manhosamente se transformou em ditadura policíaca, contrária ao destino moral e pessoal do homem. A onda das despesas públicas alastra assustadoramente e o custo da vida atinge preços de fome. Não temos pão nem trabalho para toda a gente. A emigração é sangria continuada e destruidora de energias inúteis. Descuram-se obras modestas, para gastar à larga em coisas de espaventosa propaganda de ocasião, em banquetes e bailes, em cortejos e cartazes de mil cores. (...) "A actual situação política sofre essencialmente da perda de consciência, tanto da sua razão de ser como dos princípios que devem reger as instituições. (...) Querem eleições e não querem partidos, como se votar não fosse tomar partido! (...) Diz a Constituição que a opinião política constitui uma força social e um elemento fundamental da política e da administração (artº. 22), e não se consente à opinião pública manifestar-se claramente. Apregoam-se as vantagens da continuidade do poder, e evita-se até a reeleição do Chefe de Estado...
"Nesta altura o sr. Dr. Luís de Almeida Braga, erguendo a voz, afirma:
" - Tantas contradições não podem deixar de exercer efeitos destrutivos no corpo social: são como veneno num organismo. E à sua volta levanta-se mesmo o problema da sinceridade. Por isso acuso o Estado Novo de ter desvirtuado a doutrina corporativa, tornando-a uma grosseira teia de burocratas opíparos e de fiscais demagogos, que dificultam o trabalho em vez de o facilitar; acuso-o de ter aniquilado o que restava das antigas liberdades municipais; acuso-o de ter instituido uma censura permanente, irresponsável e absurda; acuso-o de ter autorisado que os presos sejam agredidos, desde que se anunciou a utilidade dos «safanões a tempo»; acuso-o de ter exagerado as tributações para empregar esse dinheiro, que é verdadeiro sangue, em obras espalhafatosas e falsas propagandas de merecimentos pessoais; acuso-o de em tantas oportunidades fáceis ter desprezado a terra cativa de Olivença, ao contrário do generalíssimo Franco, que sem descanso reclama Gibraltar; acuso-o de ter falseado o texto da Constituição, impossibilitando a honrada convivência dos Portugueses; (...) acuso-o de ter criado entre nós o culto nietzcheano do super-homem; (...) acuso-o de ter estabelecido o Partido Único, - invenção danada do comunismo -, e de com ele e por ele embaraçar a solução do problema político português! (...) A Legião corresponde à Guarda Vermelha da Rússia comunista: é a milícia do Partido Único. Puramente de traça e acção comunista é a chamada «União Nacional», a que não falta nenhum dos caracteres de partido único, por mais que os apaniguados, com palavras vãs, se consumam a negá-lo. Reconheceu-o o insuspeito Mihaïl Manoïlesco [tb Manoilesco] em seu exacto livro Le Parti Unique. (...) Manoïlesco é autor muito escutado e louvado nos nossos meios governamentais, que lhe pediram a lição contida no volume intitulado Le Siècle du Corporatisme. Perguntando o que é partido único, ele próprio respondeu: - C’est un parti politique ayant seul - de fait e de droit - la liberté d’action politique dans un pays et constituant, ainsi, une institution fondamentale du régime. Depois, mostrando que o partido único se manifestou de maneira sensivelmente análoga na Itália e na Alemanha, na Rússia e na Turquia, o professor Manoïlesco apresenta a «União Nacional» como exemplo acabado de partido único. A «União Nacional» não tem o monopólio legal da acção política, mas tem o monopólio de facto. (...) Democracia! A mais prostituída das palavras em todas as línguas, nos tristes dias de agora! São democratas os comunistas, são democratas os fiéis aos descaídos princípios da Revolução Francesa de 89, e são democratas os jacobinos totalitários: Hitler e Mussolini. Há a democracia formalista e a democracia orgânica, a democracia personalista e a democracia histórica da Suissa, há a democracia dos países monárquicos do Norte da Europa e a democracia turbulenta das repúblicas sul-americanas, há a democracia política e a democracia social, a democracia legalista, tradicionalista, espiritualista da Inglaterra e a democracia racionalista, arbitrária e invejosa, a democracia cristã e a democracia anticristã, - que sei eu... (...) Na bela definição de Ortega y Gasset, a essência da democracia é o diálogo com o adversário. Mas este diálogo não o autorizam as leis vigentes. E eu tenho que deixar de ser homem, o homem que renuncia à livre expressão do seu pensamento, à liberdade da palavra escrita. Porque reivindico as responsabilidades na criação e na divulgação da doutrina que alimentou esses que grosseiramente a deturparam para melhor a trair, me insurjo e revolto contra tanta confusão e tanto ludíbrio.
"- Continua então monárquico?
" - Para me declarar monárquico não peço licença ao rei nem aos bobos da corte. E não será qualquer menino do Coro, no intervalo do exercício do turíbulo, que me há-de negar consentimento para que eu diga, quando e onde quiser, tranquilamente ou ao repelão, os princípios que professo. Nada me importa ficar de mal com o rei, se estiver de bem com os mais ocultos anseios da Nação. Tomei como regra de vida política o animoso dístico antigo: Pro rege saepe, pro patria semper. A dedicação ao rei é condicional; o amor à Pátria não tem limitações. Os reis passam e com eles somem-se os cortesãos que os atraiçoaram atrozmente, ou não os desenganando os injuriaram atrozmente. Ai do rei a quem as graças do rival no Poder subjugaram o ânimo! Recordo o aviso de Sá de Miranda, o homem de antes quebrar que torcer, ao rei D. João III:
Um rei ao reino convém.
Vemos que alumia o Mundo
Um sol, um Deus o sustém.
Certa a queda e o fim tem
O reino onde há rei segundo
"Não é menos luminosa a sentença do brando Bernardes em Os últimos fins do homem que «As monarquias não as destrói tanto o inimigo com as mãos armadas, como o Príncipe com as mãos cruzadas». Muitas vezes a prudência é covardia. (...)
"Não falemos mais dos erros e das violências da 1ª República. Certo os teve, e grandes. Mas o Estado Novo não lhes ficou atrás na opressão e na intolerância. E isto diz quem ofereceu o peito às balas dos contrários e viu destroçada, por maus republicanos desse tempo, a casa de seus pais. Gostava de saber se quem acusa os desvarios da 1ª República padeceu por os combater, pois vejo empenhados em abocanhá-la alguns que em seus desmandos tomaram activa parte. (...)
" - No entanto espalhou-se que certo sector monárquico, ligado à Situação, espera que a evolução natural do regime leve à restauração do trono...
" - Insistindo esses monárquicos em esperar que o sr. Presidente do Conselho restaure a Monarquia, dirigem-lhe grave e consciente ofensa, pois julgam capaz de rasgar e trair a Constituição republicana que ele mesmo preparou, ditou e fez jurar, e mostram não ter lido aquela sua firme e clara advertência: «O que eu peço aos monárquicos, ou o que lhes aconselho, é que se disponham a ingressar na vida do Estado sem a ideia falsa e perigosa de que colaborar com a actual situação é dar um passo para a realização do seu ideal respeitável»
"O Estado Novo pode ser um vago sentimento de Estado, não é uma doutrina precisa de Estado. Caminha para a Monarquia e foge da Monarquia, conserva a República e teme a República, ora cedendo aos seus princípios, ora contrariando-os. Este equívoco perverso ser-lhe-á fatal. Com Mussolini e Hitler tivemos já a demonstração, levada às suas extremas consequências, do que pode dar um sistema encarnado num homem que despreza a realidade. (...)
"- Como entende, então, que deve ordenar-se o País?
"Entendo como sempre, sem o mais leve desvio ao que em dia já longínquo formulei, que na autonomia dos municípios, na sistematização profissional livre, no poder pessoal do rei dentro da esfera própria como fiador supremo das liberdades públicas, na aceitação honesta da Doutrina Católica para base da educação nas famílias, nas escolas e no convívio social, estão as grandes linhas que podem contribuir para a verdadeira restauração de Portugal. (...) "À luz destes princípios, tão sumariamente expostos (...) ainda creio, com o ardor dos vinte anos, que Portugal, quebradas para sempre as algemas que o atormentam e liberto do cativeiro em que jaz, há-de por fim reerguer-se com honra e glória.
"- Consola ouvir falar com tão firme esperança e ardente amor...
"- Custe o que custar, é preciso fazer de Portugal uma pátria livre para homens livres.Sinto que a minha vida não está mais em segurança. Vejo, e não tremo, que os idólatras buscam pôr-lhe termo. A seguir ao julgamento de Henrique Galvão muitas ameaças cobardes me foram dirigidas, a coberto de cauteloso anonimato. Agora as repetem enfurecidamente. Não importa. Como Ramiro de Maetzu aos sicários que o derrubaram, direi que também estes, embrutecidos pelo ódio, não sabem por que me matam, e eu sei que morro por querer restituir ao povo português, no verso formoso de Camões, a lusitana antiga liberdade!".
(In Luís de Almeida Braga, Espada ao Sol, Lisboa, Biblioteca do Pensamento Político, 1969, pp. 193-207)
" - Nota-se nos meios políticos vivo interesse em conhecer a sua opinião na actual conjuntura da vida nacional. Quer dizer-nos o que pensa?
" - Para quê? Em hora mais própria para a acção do que para pregações, certo núncio apostólico longamente desfiava diante de Afonso III o lento rosário de subtis conceitos. E disse-lhe o rei: - «Frei Nicolau, para que gastar mais discursos? O tempo de arrazoar já lá vai». Também agora me parece que passou o tempo de dissertar. Quando a censura veda a clara expressão do pensamento e se chega ao extremo de ser proibido não só entregar ao público o resultado do estudo sincero, do leal conselho, do reparo justo, mas até se apreende o que apenas constitui ainda vago projecto, talvez nunca efectivado, como aconteceu com os apontamentos de Maria Archer para um livro sobre o primeiro julgamento de Henrique Galvão, tão-somente, a quem não tem mais armas do que a palavra e a pena, só pode encerrar-se em duro silêncio, como sinal de castigo e desprezo.
" - Não será essa uma atitude de renúncia ao combate?
" - Não! É uma forma altiva de protesto, reduto impenetrável para preservação da dignidade mental, defesa sagrada dos direitos do espírito. É no silêncio que se prepara o fogo que tempera as almas dos povos.
" - Aí está a confessar-se o doutrinário e o lutador. Vê-se que condena o presente e confia no futuro.
" - Sim. Condeno o híbrido sistema político, tirânico e vingativo, que está a arrastar-nos para a pior catástrofe da nossa História. A ninguém escapa que o regime é apenas um indivíduo, em fatal declínio, e que tudo se dissolverá com o seu desaparecimento. (...) Por maior que seja o génio de um homem, é sempre insuficiente para, por si só e para além da sua vida, manter a ordem e a segurança do Estado. Sem um princípio que a proteja, surdamente a Sociedade se dissolve. Compreendendo-o assim, dizia o Conde de Chambord, apresentando-se à sucessão do trono de França: - Ma personne n’est rien; mon principe est tout. Aqui, escamoteiam-se os princípios para que avulte a pessoa que os encabeça. Deste modo se forma a idolatria da autoridade, o materialismo da obediência passiva. (...) Se uma nação chega a este ponto, está madura para todas as desgraças. E esta é a minha dor...
" - Contudo, os partidários do regime apresentam como exemplar a gerência financeira...
" - Confundindo liberdade com desordem, força com brutalidade, o Estado Novo há muito se revelou incapaz de conciliar a autoridade e a liberdade. O Estado Novo é, afinal, a expressão política de problemas não resolvidos. Tendo começado por ser uma ditadura administrativa, manhosamente se transformou em ditadura policíaca, contrária ao destino moral e pessoal do homem. A onda das despesas públicas alastra assustadoramente e o custo da vida atinge preços de fome. Não temos pão nem trabalho para toda a gente. A emigração é sangria continuada e destruidora de energias inúteis. Descuram-se obras modestas, para gastar à larga em coisas de espaventosa propaganda de ocasião, em banquetes e bailes, em cortejos e cartazes de mil cores. (...) "A actual situação política sofre essencialmente da perda de consciência, tanto da sua razão de ser como dos princípios que devem reger as instituições. (...) Querem eleições e não querem partidos, como se votar não fosse tomar partido! (...) Diz a Constituição que a opinião política constitui uma força social e um elemento fundamental da política e da administração (artº. 22), e não se consente à opinião pública manifestar-se claramente. Apregoam-se as vantagens da continuidade do poder, e evita-se até a reeleição do Chefe de Estado...
"Nesta altura o sr. Dr. Luís de Almeida Braga, erguendo a voz, afirma:
" - Tantas contradições não podem deixar de exercer efeitos destrutivos no corpo social: são como veneno num organismo. E à sua volta levanta-se mesmo o problema da sinceridade. Por isso acuso o Estado Novo de ter desvirtuado a doutrina corporativa, tornando-a uma grosseira teia de burocratas opíparos e de fiscais demagogos, que dificultam o trabalho em vez de o facilitar; acuso-o de ter aniquilado o que restava das antigas liberdades municipais; acuso-o de ter instituido uma censura permanente, irresponsável e absurda; acuso-o de ter autorisado que os presos sejam agredidos, desde que se anunciou a utilidade dos «safanões a tempo»; acuso-o de ter exagerado as tributações para empregar esse dinheiro, que é verdadeiro sangue, em obras espalhafatosas e falsas propagandas de merecimentos pessoais; acuso-o de em tantas oportunidades fáceis ter desprezado a terra cativa de Olivença, ao contrário do generalíssimo Franco, que sem descanso reclama Gibraltar; acuso-o de ter falseado o texto da Constituição, impossibilitando a honrada convivência dos Portugueses; (...) acuso-o de ter criado entre nós o culto nietzcheano do super-homem; (...) acuso-o de ter estabelecido o Partido Único, - invenção danada do comunismo -, e de com ele e por ele embaraçar a solução do problema político português! (...) A Legião corresponde à Guarda Vermelha da Rússia comunista: é a milícia do Partido Único. Puramente de traça e acção comunista é a chamada «União Nacional», a que não falta nenhum dos caracteres de partido único, por mais que os apaniguados, com palavras vãs, se consumam a negá-lo. Reconheceu-o o insuspeito Mihaïl Manoïlesco [tb Manoilesco] em seu exacto livro Le Parti Unique. (...) Manoïlesco é autor muito escutado e louvado nos nossos meios governamentais, que lhe pediram a lição contida no volume intitulado Le Siècle du Corporatisme. Perguntando o que é partido único, ele próprio respondeu: - C’est un parti politique ayant seul - de fait e de droit - la liberté d’action politique dans un pays et constituant, ainsi, une institution fondamentale du régime. Depois, mostrando que o partido único se manifestou de maneira sensivelmente análoga na Itália e na Alemanha, na Rússia e na Turquia, o professor Manoïlesco apresenta a «União Nacional» como exemplo acabado de partido único. A «União Nacional» não tem o monopólio legal da acção política, mas tem o monopólio de facto. (...) Democracia! A mais prostituída das palavras em todas as línguas, nos tristes dias de agora! São democratas os comunistas, são democratas os fiéis aos descaídos princípios da Revolução Francesa de 89, e são democratas os jacobinos totalitários: Hitler e Mussolini. Há a democracia formalista e a democracia orgânica, a democracia personalista e a democracia histórica da Suissa, há a democracia dos países monárquicos do Norte da Europa e a democracia turbulenta das repúblicas sul-americanas, há a democracia política e a democracia social, a democracia legalista, tradicionalista, espiritualista da Inglaterra e a democracia racionalista, arbitrária e invejosa, a democracia cristã e a democracia anticristã, - que sei eu... (...) Na bela definição de Ortega y Gasset, a essência da democracia é o diálogo com o adversário. Mas este diálogo não o autorizam as leis vigentes. E eu tenho que deixar de ser homem, o homem que renuncia à livre expressão do seu pensamento, à liberdade da palavra escrita. Porque reivindico as responsabilidades na criação e na divulgação da doutrina que alimentou esses que grosseiramente a deturparam para melhor a trair, me insurjo e revolto contra tanta confusão e tanto ludíbrio.
"- Continua então monárquico?
" - Para me declarar monárquico não peço licença ao rei nem aos bobos da corte. E não será qualquer menino do Coro, no intervalo do exercício do turíbulo, que me há-de negar consentimento para que eu diga, quando e onde quiser, tranquilamente ou ao repelão, os princípios que professo. Nada me importa ficar de mal com o rei, se estiver de bem com os mais ocultos anseios da Nação. Tomei como regra de vida política o animoso dístico antigo: Pro rege saepe, pro patria semper. A dedicação ao rei é condicional; o amor à Pátria não tem limitações. Os reis passam e com eles somem-se os cortesãos que os atraiçoaram atrozmente, ou não os desenganando os injuriaram atrozmente. Ai do rei a quem as graças do rival no Poder subjugaram o ânimo! Recordo o aviso de Sá de Miranda, o homem de antes quebrar que torcer, ao rei D. João III:
Um rei ao reino convém.
Vemos que alumia o Mundo
Um sol, um Deus o sustém.
Certa a queda e o fim tem
O reino onde há rei segundo
"Não é menos luminosa a sentença do brando Bernardes em Os últimos fins do homem que «As monarquias não as destrói tanto o inimigo com as mãos armadas, como o Príncipe com as mãos cruzadas». Muitas vezes a prudência é covardia. (...)
"Não falemos mais dos erros e das violências da 1ª República. Certo os teve, e grandes. Mas o Estado Novo não lhes ficou atrás na opressão e na intolerância. E isto diz quem ofereceu o peito às balas dos contrários e viu destroçada, por maus republicanos desse tempo, a casa de seus pais. Gostava de saber se quem acusa os desvarios da 1ª República padeceu por os combater, pois vejo empenhados em abocanhá-la alguns que em seus desmandos tomaram activa parte. (...)
" - No entanto espalhou-se que certo sector monárquico, ligado à Situação, espera que a evolução natural do regime leve à restauração do trono...
" - Insistindo esses monárquicos em esperar que o sr. Presidente do Conselho restaure a Monarquia, dirigem-lhe grave e consciente ofensa, pois julgam capaz de rasgar e trair a Constituição republicana que ele mesmo preparou, ditou e fez jurar, e mostram não ter lido aquela sua firme e clara advertência: «O que eu peço aos monárquicos, ou o que lhes aconselho, é que se disponham a ingressar na vida do Estado sem a ideia falsa e perigosa de que colaborar com a actual situação é dar um passo para a realização do seu ideal respeitável»
"O Estado Novo pode ser um vago sentimento de Estado, não é uma doutrina precisa de Estado. Caminha para a Monarquia e foge da Monarquia, conserva a República e teme a República, ora cedendo aos seus princípios, ora contrariando-os. Este equívoco perverso ser-lhe-á fatal. Com Mussolini e Hitler tivemos já a demonstração, levada às suas extremas consequências, do que pode dar um sistema encarnado num homem que despreza a realidade. (...)
"- Como entende, então, que deve ordenar-se o País?
"Entendo como sempre, sem o mais leve desvio ao que em dia já longínquo formulei, que na autonomia dos municípios, na sistematização profissional livre, no poder pessoal do rei dentro da esfera própria como fiador supremo das liberdades públicas, na aceitação honesta da Doutrina Católica para base da educação nas famílias, nas escolas e no convívio social, estão as grandes linhas que podem contribuir para a verdadeira restauração de Portugal. (...) "À luz destes princípios, tão sumariamente expostos (...) ainda creio, com o ardor dos vinte anos, que Portugal, quebradas para sempre as algemas que o atormentam e liberto do cativeiro em que jaz, há-de por fim reerguer-se com honra e glória.
"- Consola ouvir falar com tão firme esperança e ardente amor...
"- Custe o que custar, é preciso fazer de Portugal uma pátria livre para homens livres.Sinto que a minha vida não está mais em segurança. Vejo, e não tremo, que os idólatras buscam pôr-lhe termo. A seguir ao julgamento de Henrique Galvão muitas ameaças cobardes me foram dirigidas, a coberto de cauteloso anonimato. Agora as repetem enfurecidamente. Não importa. Como Ramiro de Maetzu aos sicários que o derrubaram, direi que também estes, embrutecidos pelo ódio, não sabem por que me matam, e eu sei que morro por querer restituir ao povo português, no verso formoso de Camões, a lusitana antiga liberdade!".
(In Luís de Almeida Braga, Espada ao Sol, Lisboa, Biblioteca do Pensamento Político, 1969, pp. 193-207)