PROJECTO DE CONSTITUIÇÃO DE 1823
Trata-se, como o leitor pode facilmente verificar, de uma verdadeira constituição no sentido moderno, presa por laços muito ténues à nossa tradição política... - Paulo Merêa, 1889-1977
O projecto de Constituição («Lei Fundamental») que adiante se reproduz foi durante muito tempo desconhecido (1) e vê hoje a luz pela primeira vez. Propunha-se publicá-lo o nosso querido amigo e saudoso colega Magalhães Collaço, que tivera a dita de o descobrir entre os papéis de Ricardo Raimundo Nogueira por ele adquiridos no final da sua infelizmente tão curta vida. À cativante deferência da Família fica o Boletim devendo a honra de o arquivar nas suas páginas.
Trata-se de uma colecção de manuscritos reunidos sob o rótulo «Lembranças e apontamentos para a formação da Carta de Lei», todos eles respeitantes ao projecto de Lei Fundamental elaborado pela Comissão para tal fim nomeada pelo Decreto de 18 de Junho de 1823, da qual fazia parte Ricardo Raimundo Nogueira, lente jubilado da Faculdade de Leis e reitor do Colégio dos Nobres, que
(1) Chegou mesmo a julgar-se que a Junta criada por D. João VI não redigira projecto algum. Vários autores a inculparam de comodismo ou pouco zelo, não faltando sequer quem, como José Liberato, apaixonadamente acusasse Palmela de ter adrede urdido toda a comédia para se dar falsos ares de liberal. Outros, é certo, se referem ao projecto de Constituição, mas em termos que mostram não o terem conhecido. Lopes Praça, na sua excelente Colecção de leis e subsídios para o estudo do Direito Constitucional Português (vol. II, Coimbra, 1894), não insere o Projecto, e apenas fugidiamente a ele alude. Não se lhe refere tão-pouco o próprio Magalhães Collaço no seu notável Ensaio sobre a inconstitucionalidade das leis (Coimbra, 1915), que aliás contém uma desenvolvida notícia histórica. Isso mostra que o texto adiante publicado era totalmente ignorado, e continuou a sê-lo até ao dia em que Magalhães Collaço deu com ele entre os papéis de Ricardo Raimundo Nogueira.
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foi o redactor do Projecto na sua forma inicial e o principal autor da redacção definitiva. Figuram na colecção várias notas e apontamentos, bem como bosquejos do Projecto, constituindo todo o maço um repertório de alto valor (2).
Poucos dias antes daquele em que a morte veio inexoravelmente arrebatá-lo, folheava Magalhães Collaço com mão sôfrega e justificado alvoroço esses papéis que uma fúnebre ironia da sorte lhe deparava in extremis, a ele que durante tanto tempo procurara debalde o projecto de 1823, de tão nutrido interesse para a história da época liberal, época que ele conhecia como raros e para a qual ia toda a simpatia de monárquico constitucional que se orgulhava intransigentemente de ser.
Mais uns meses de vida, e decerto ele teria valorizado o seu achado, utilizando-o numa dessas conferências em que era mestre e em que a segurança da doutrina tão deleitosamente se aliava a uma forma de cunho inconfundível. Quem melhor do que ele o saberia fazer, com o seu profundo conhecimento dos sucessos da época e a sua consumada competência de mestre im Direito Público!
Este ligeiro prefácio não pretende nem de longe substituir o comentário que Magalhães Collaço teria dedicado ao Projecto, mas tão somente servir-lhe de apresentação: recordar ao leitor as circunstâncias em que esse documento nasceu, fazer ressaltar os seus traços Fundamentais e dizer, em poucas palavras, qual foi o seu destino.
(2) Além do Projecto de Lei Fundamental, publicam-se em Apêndice outros dois rascunhos, também da pena de R. R. Nogueira, que se nos afiguram de especial interesse. O primeiro, notável pelo seu extenso preâmbulo, ficou sem dúvida interrompido, visto que os artigos que contém se referem exclusivamente às Cortes, enquanto no preâmbulo se diz que à restauração deste antigo corpo se acrescentarão «algumas outras (providências) que estejam em harmonia com as opiniões do século presente». O outro é o mais interessante, pois se inspira num pensamento original: a Junta votaria apenas seis bases, que constituiriam o teor da Carta de Lei; depois, convocar-se-iam as Cortes encarregadas de as desenvolver.
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Reportêmo-nos a esse mês de Junho de 1823, que marca o desmoronamento da obra revolucionária dos vintistas.
Em fins de maio tivera lugar a Vilafrancada. A 2 de junho os deputados interrompiam as suas sessões, lavrando um protesto contra qualquer alteração à Constituição de 22. No dia seguinte o próprio monarca dissolvia as Cortes e repudiava a Constituição. Finalmente, ainda no decurso do mesmo mês, medidas sucessivas foram traduzindo claramente uma política de reacção contra a obra de 1820.
Não fôra, todavia, varrida a ideia de uma constituição, carta constitucional ou lei fundamental, destinada a substituir o estatuto de 1822, consoante o conselho que de há muito vinha dando a D. João VI o leal conde de Palmela, agora o homem da situação. O rei mais do que uma vez se mostrou favorável à elaboração de uma lei desse género, e nada nos permite pôr em dúvida a sua sinceridade, tratando-se de uma aspiração cuja realização hábil lhe consentiria porventura acalmar os ânimos mediante uma transacção entre os dois partidos extremos.
A ideia não encontrava, contudo, simpatia entre os ministros. Se dermos fé a uma passagem autobiográfica de Palmela, era ele «dos poucos portugueses e o único ministro que então sinceramente desejava o estabelecimento do governo constitucional» (3).
A outorga de uma nova lei fundamental, à qual D. Miguel já aludia na sua proclamação de Vila Franca, foi prometida por D. João VI nas proclamações de 31 de Maio e 3 de Junho, e a 18 deste mesmo mês criava el-rei uma Junta para preparar o projecto da carta de lei fundamental da Monarquia Portuguesa.
(3) Maria Amália Vaz de Carvalho, Vida do duque de Palmela, vol. I, Lisboa, 1898, pág. 429.
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Neste decreto, anulava-se de direito a Constituição de 1822, declarando-a «fundada em vãs teorias, incompatíveis com os antigos hábitos, opiniões e necessidades do povo português» e «contraditória com o principio monárquico que aparentemente consagrava». Insistia-se, porém, no desejo de cumprir as promessas feitas, instaurando uma forma de governo que ao mesmo tempo consagrasse a autoridade real efectiva e garantisse os direitos individuais. Declarava-se, finalmente, que, não correspondendo ao seu intento a lei fundamental tradicional sem que se acomodasse «ao estado actual da civilização, às mútuas relações das diferentes partes de que se compõe a monarquia portuguesa e à forma dos governos representativos estabelecidos na Europa», devia a Comissão elaborar um projecto de nova lei fundamental, a qual, «regulada pelos sãos princípios de direito público, estabeleça em perfeita harmonia o exercício do poder supremo e a permanente segurança legal dos povos, franqueando os caminhos que devem conduzir a administração pública por melhoramentos progressivos ao grau de perfeição compatível com as instituições humanas» (4).
Os passos do Decreto de 18 de Junho que acabamos de transcrever bastam para justificar a forte suspeita de que ele tenha tido como redactor o próprio conde de Palmela, então ministro dos Negócios Estrangeiros (5). Acresce que o teor do decreto concorda essen-
(4) Documentos para a história das Cortes Gerais da nação Portuguesa, Tomo I, pág. 119. A seguir encontra-se a relação dos membros da Junta, nomeados na mesma data: António José Guião, arcebispo de Evora, Francisco de Borja Garção Stockler, Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, João de Sousa Pinto de Magalhães, José António Faria de Carvalho, José António de Oliveira Leite de Barros, José Joaquim Rodrigues de Bastos, José Maria Dantas Pereira, D. Manuel de Portugal, Manuel Vicente Teixeira de Carvalho, marquês de Olhão, monsenhor Gordo, Ricardo Raimundo Nogueira. Posteriormente, por aviso de 2 de Julho, foi acrescentado a esta lista o nome de José Basílio Rademaker (secretário).
(5) Que a nomeação da Junta foi iniciativa de Palmela, é ele próprio quem o assevera (Maria Amália, ob. e vol. cits., pág. 429).]
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cialmente com aquilo que este estadista comunicara em circular do dia 9 de Junho aos nossos representantes nas diversas potências e, em carta do mesmo mês, a Chateaubriand, ministro dos Negócios Estrangeiros de Luis XVIII (6).
A linguagem de qualquer destas peças era habilidosa e cauta, como as circunstâncias exigiam. Ele o confessa numa passagem dos seus apontamentos autobiográficos: «linguagem que os erros e o pecado original do partido revolucionário justificavam de sobra», mas por trás da qual estava «um princípio único - o desejo de ver estabelecer em Portugal o regime representativo» (7).
A Junta era presidida pelo ministro Palmela, que entretanto fora agraciado com o título de Marquês. O discurso que ele proferiu na primeira sessão, celebrada a 7 de Julho, é o desenvolvimento das ideias que já se continham no decreto. O orador insistiu sobretudo na crítica do movimento de 1820 e, quanto ao pensamento inspirador da nova lei fundamental, mostrou claramente que no seu espírito estavam, antes de mais nada, presentes as instituições inglesas e a Carta Constitucional francesa. As referências à nossa constituição histórica, essas eram principalmente destinadas a seduzir a massa conservadora (8).
O essencial da história da Junta - cujas sessões se realizaram no palácio do Rossio - é hoje do conhecimento público, porque consta
(6) Documentos cits., págs. 114 e 187.
(7) Maria Amália Vaz de Carvalho, ob. cit., pág. 429.
(8) O discurso de Palmela foi publicado pela primeira vez na Gazeta de 7 de Julho de 1823, n." 161, e pode ler-se nos citados Documentos, a págs. 781 e segs. Resposta a este discurso é porventura o «Código das leis fundamentais» que Alberto Carlos de Menezes apresentou em Julho ao monarca, no qual se declarava que a nossa constituição histórica assentava nas Cortes de Lamego, cujas leis D. João VI reconhecera no seu juramento, à semelhança de todos os seus predecessores. Vide Alberto Carlos de Menezes, Plano de Reforma dos Forais, pág. 242. Supomos que este «Código» não chegou a ser impresso, embora o autor tivesse essa intenção.
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das Memórias de um dos seus membros, Francisco Trigoso, dadas a lume em 1933 (9).
Segundo informa Trigoso, alguns dos membros, logo na primeira sessão, emitiram a opinião de que devia manter-se o governo absoluto, e não abandonaram nunca esta posição. Os outros, que constituiam a maioria, mostravam-se dispostos a dar execução do decreto, mas «diversificavam muito sobre o sistema e método por que havia de ser feita a nova lei». Dos projectos, em número de quatro, apresentados na sessão seguinte a pedido do Marquês, foi adoptado o de Ricardo Raimundo Nogueira, que passou a ser objecto de discussão em sucessivas sessões. (10)
Terminada a discussão «em fins de Agosto, ou já em Setembro», foi nomeada uma Comissão «para que, revendo as actas das sessões passadas, formasse o projecto inteiro da Carta, entrando não somente os artigos vencidos e já aprovados, mas aqueles que os da Comissão julgassem que se deveriam acrescentar e que depois se discutiriam na Junta». A Comissão era constituida pelo arcebispo de Évora (D. António José Guião), Francisco Trigoso e Ricardo Raimundo, devendo-se quase exclusivamente a este último o trabalho de revisão. O projecto assim revisto estava concluído em Setembro de 1823.
O texto que adiante se publica é, segundo parece, o fixado por Ricardo Raimundo Nogueira na sua última revisão, mas é-nos dado a conhecer sob a forma de rascunho, com numerosas emendas, das quais reproduzimos em nota as mais importantes.
Trata-se, como o leitor pode facilmente verificar, de uma verdadeira constituição no sentido moderno, presa por laços muito ténues
(9) Memorias de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, coordenadas por Ernesto Campos de Andrada e publicadas pela Imprensa da Universidade (Coimbra, 1933), págs, 184 e segs., 193 e segs.
(10) Em 4 de Julho foi Ricardo Raimundo Nogueira elevado ao eminente lugar de Conselheiro de Estado.
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à nossa tradição política, e não de uma acomodação das nossas instituições históricas às necessidades da nova sociedade.
Com efeito, não obstante a Comissão ter sido incumbida de actualizar, se assim podemos dizer, a lei fundamental da monarquia; não obstante o que Palmela dissera no seu discurso inaugural - que se não perderiam de vista «os institutos primevos do governo português» —; não obstante o redactor do Projecto apelar formalmente para estes institutos, o que o Projecto de facto nos oferece é a divisão dos poderes, é a função legislativa atribuída às Cortes com a sanção do rei, são duas câmaras, das quais uma, a dos deputados, eleita pela nação e emanada dos colégios eleitorais.
Houve o cuidado de imprimir à nova constituição um matiz conservador, visível sobretudo na composição da câmara alta - onde se reuniam as ordens do clero e da nobreza -, mas nem esta circunstância, nem o dizer-se que a monarquia continua sendo moderada «como sempre foi» ou que as cortes são compostas, «como sempre foram», dos três estados do reino, bastam para tirar ao projecto o carácter de constituição moderna. Moderada - isso, sim. A esse respeito é bem vincado o contraste com a Constituição de 22, da qual em todo o caso (note-se de passagem) se extrataram algumas disposições.
As três magnas questões - sistema unicameral ou bicameral, veto absoluto ou suspensivo, reconhecimento ou não do direito de dissolução - foram resolvidas de harmonia com a opinião moderada, traduzindo a corrente que poderíamos chamar dos constitucionais da direita. De um modo geral, pode afirmar-se que são grandes as afinidades com a Carta de Luis XVIII, que os autores do Projecto tiveram evidentemente presente (11).
(11) Entre os papéis de Ricardo Raimundo Nogueira figura uma tradução da Carta de Luís XVIII, com o título "Direitos públicos dos Franceses".
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Mas o projecto em questão está muito longe de exprimir a opinião definitiva da Junta.
Segundo as Memórias de Trigoso, o trabalho, uma vez concluído, foi remetido pela comissão revisora ao presidente da Junta... mas nunca mais se falou nele. Acrescenta Trigoso que o Marquês de Palmela lhe declarou a ele próprio que El-Rei se achava em grande embaraço, pois empenhara a sua palavra na promulgação de uma Carta Constitucional, mas reconhecia, por outro lado, que o projecto da Comissão «não se podia de maneira alguma adoptar».
De resto - é ainda Trigoso quem o afirma - já durante a discussão do Projecto, o marquês, que a princípio se mostrara francamente partidário do governo representativo, começara a vacilar, «não se atrevendo a dar voto, por ser Presidente». Também dos ofícios trocados entre ele e o nosso Embaixador em Madrid resulta claramente que já em Agosto de 1823 Palmela estava na disposição, não só de aguardar que acalmasse a efervescência dos espíritos em Espanha e Portugal, mas de preconizar uma Carta de Lei inteiramente deduzida das antigas leis e costumes da monarquia, pois «nas actuais circunstâncias não conviria dar aos sistema representativo todo o desenvolvimento que lhe dão as cartas constitucionais da França, dos Países Baixos, etc.» (12).
A explicação de tão prodigiosa mudança está, de facto, na forma por que se precipitaram as sucessos políticos, internos e externos, criando uma situação que Palmela se viu na obrigação de ponderar.
(12) - Ofício de 9 de Agosto ap. Despachos e correspondencia do Duque de Palmella, 1, Lisboa, 1851, pág. 247. Pelo seu lado, António de Saldanha, em carta de 28 do mesmo mês dirigida ao marquês de Palmela, levantava algumas dúvidas sobre a legalidade da projectada Constituição, uma vez que El-Rei jurara guardar os antigos foros da nação, portanto, implicitamente, não mudar as leis fundamentais sem convocar as antigas Cortes (no mesmo vol. de Despachos, págs. 238-239). Cf. instruções de Palmela ao Conde de Villa-Real de 25 de Agosto (cits. Despachos, págs. 251-252) e vide Luz Soriano, História da guerra civil, Tomo II, Parte I, págs. 282 e segs.
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Palavras dele próprio: «No momento da criação da Junta Preparatória esperava que ela pudesse satisfazer o seu fim, porque ainda era recente a promessa de El-Rei, porque a reacção nos negócios de Espanha ainda não tinha começado na sua fase violenta, e ainda se supunha que também ali seria cumprido o programa apresentado pelo Duque de Angoulême na proclamação de Andújar. Estas condições políticas foram-se todavia modificando, e a influência cada vez mais poderosa da Rainha e do seu partido, e a indiferença, a inércia, a inabilidade do partido moderado demonstrou-me evidentemente que eu não tinha força nem apoio para vencer esta corrente abertamente favorecida pelos agentes diplomáticos estrangeiros residentes em Lisboa» (13).
Para sair tant bien que mal desta embaraçosa situação, pensou-se então numa solução habilidosa que, sem renegar o decreto de 18 de Junho, desse satisfação à opinião tradicionalista (14), e, por
(13) Maria Amália Vaz de Carvalho, ob. e vol. cits., pág. 430. Cumpre a este propósito observar que, embora a princípio contássemos com a simpatia da Inglaterra e da França, o ministro dos estrangeiros desta última desde cedo exprimiu dúvidas sobre a oportunidade da outorga de uma Carta. É muito significativo o ofício de Julho de 1823 dirigido pelo Marques de Marialva a Palmela, no qual se relata a conversa havida com o visconde de Chateaubriand. O governo francês, embora não fazendo oposição ao projecto (uma vez que ele não reconhecesse a «soberania do povo»), não deixava de acautelar o governo português contra os perigos da concessão imediata duma carta constitucional, sobretudo em vista do estado da Espanha e enquanto não se conhecessem as modificações que tomaria o seu governo. «Nenhum inconveniente resultaria de se espaçar o trabalho da Junta (...), antes mais perfeita sairia uma obra tão importante, havendo suficiente tempo para a meditar». Vide o ofício, na íntegra, em Luz Soriano, História da guerra civil, Tomo VI, págs. 512-575.
(14) Na conversa acima referida entre Palmela e Francisco Trigoso, sugeriu o ministro que «talvez tudo se pudesse compor, se a nova Carta se reduzisse a muito poucos artigos e se se pudesse mostrar a conexão destes com o direito já antigamente estabelecido entre nós». A este respeito observa Trigoso que a ideia não era nova, «porque o Conde do Funchal acabava de a expender num pequeno livro que imprimira sobre as instituições políticas que a Portugal convinha adoptar, do qual [ 13 - 14 ] livro o Marquês de Palmela me tinha dado um exemplar» (Era a Introducção às Notas supprimidas em 1821 ou Raciocinio sobre o estado presente e futuro da Monarchia Portugueza, Londres, 1823).
Como Trigoso, em princípio, se mostrasse disposto a aceitar esta solução, Palmela encarregou-o de escrever uma Memória sobre o assunto. Esta Memória chegou a ser redigida (cfr. Inocêncio, T. II, pág. 461, n. 1420), mas o autor decidiu não a entregar, dado o rumo que as coisas estavam tomando.
Nos seus citados Apontamentos Palmela escreveu a este respeito o seguinte: «Restava-me a alternativa ou de abandonar toda a esperança de um resultado favorável, ou de me habilitar temporariamente a obter o restabelecimento das nossas antigas Cortes, as quais, uma vez que a sua reunião fosse periódica, e que os dois estados do Clero e da Nobreza se reunissem numa só câmara, serviriam ao menos de garantia contra o poder arbitrário que nos reduziria ao estado em que estávamos. Isto podia considerar-se como um quase cumprimento das promessas régias, e não encontraria, por ser fundado nas nossas antigas leis, oposição tão invencível como a promulgação duma lei constitucional nova» (Maria Amália, ob. e vol. cits., pág. 431).
Nos seus ofícios de 1 e 7 de Novembro ao Conde de Porto Santo, Palmela expende as mesmas ideias, chegando a declarar expressamente que, «sejam quais forem os seus sentimentos», não deve tratar-se «por agora» de novas instituições (Despachos e Correspondência cits., págs. 267 e 292). Possivelmente Palmela tinha conhecimento da carta escrita em fins de Outubro por Luís XVIII a Fernando VII, aconselhando-o a conceder uma amnistia e a outorgar uma Carla «fundada nas antigas instituições de Espanha». (Villa-Urrutia, Fernando VIl rey absoluto, pág. 82)
[ 14 ]
fim, dada a urgência de liquidar o assunto, resolveu o Governo, em meados de Dezembro, voltar a convocar « Junta, fiado em que ela se extinguiria a si própria, pronunciando-se contra a publicação de um novo estatuto constitucional (15).
(15) Trigoso, Memórias, pág. 193. Já no cit. ofício de 7 de Novembro ao Conde de Porto Santo Palmela declarava que a Junta só voltaria talvez a reunir-se para pôr ponto nos seus trabalhos, e em 14 do mesmo mês dizia-lhe mais claramente: «A Junta de que sou presidente vai fazer subir o seu voto, reduzido, atentas as circunstâncias, a aconselhar que, em S. M. julgando poder efectuar sem risco de perturbação (...) a convocação dos Três Estados na forma antiga, e sem mais prerrogativas do que as que sempre tiveram neste Reino, deve limitar-se meramente a essa prática, como a única legal e conforme ao juramento que prestou quando subiu ao trono e aos direitos legítimos dos seus sucessores (...). Creio que feito isto declarará El-Rei, por um decreto, que tomará em consideração, na forma e no tempo que melhor lhe parecer, o voto da Junta, e que esta fica dissolvida» (cits. Despachos, pág. 274). Temos de convir que, se outros eram os seus sentimentos, dificilmente os poderia disfarçar melhor!
[ 15 ]
Como era de esperar, as opiniões dividiram-se, mas acabou por ser aprovada por maioria uma minuta de consulta da autoria do arcebispo de Évora, na qual, em substância, e não obstante um artificioso esforço para salvar o decreto de 18 de Junho, se propunha ao monarca... que declarasse em vigor as antigas cortes portuguesas, as quais havia mais de um século se não reuniam. Esta resolução tem a data de 2 de Janeiro de 1824 e com ela findou, de forma pouco brilhante, a actividade da Junta (16).
Afinal, nem sequer este expediente conseguiu vingar, porque o monarca hesitou em lhe dar a sua sanção. A agitação dos ânimos era cada vez mais pronunciada, a influência do partido absolutista cada vez mais se fazia sentir, e foi só após a Abrilada que D. João VI
(16) Trigoso, ob. cit., págs. 194 e segs. A dar crédito ao que afirma Palmela, a maioria dos membros da Junta era agora «oposta a toda e qualquer modificação do regime absoluto», e não foi sem relutância que aprovou a consulta do arcebispo de Évora. Contra esta consulta votaram apenas cinco membros: Ricardo Raimundo Nogueira, Francisco Trigoso, José Maria Dantas, João Pinto de Magalhães e Rodrigues de Bastos (dois dos que sempre tinham votado a favor do governo representativo, D. Manuel de Portugal e o general Stockler, estavam no estrangeiro).
Embora se não conheça directamente o teor da resolução aprovada pela Junta, é natural que ele se ache reproduzido, sem grande alteração, no preâmbulo da Carta de Lei de 4 de Junho. Aí se diz, usando de um sofisma demasiado hábil, que S. M., ao manifestar no dec. de 18 de Junho a intenção de que a Carta de lei fundamental fosse acomodada à forma dos governos representativos estabelecidos na Europa, entendia apenas «que não podia deixar de haver uma representação nacional», mas que esta devia ser tal que estivesse em harmonia com os antigos usos da Nação, e que o ser «acomodada à forma de outros governos representativos» não significava que houvesse de ser idêntica! (Vide o texto completo em Lopes Praça, ob. e vol. cits., pág. 205).
[ 16 ]
se resolveu — ainda a solicitação de Palmela (17) - a convocar os três estados do reino (Carta de Lei de 4 de Junho de 1824) (18). Com esta decisão, para a qual se invocou expressamente o parecer da Junta (dissolvida no dia seguinte), procurou o rei cumprir, nos limites do possível, as suas reiteradas promessas. Criou-se mesmo uma nova junta destinada a preparar «sem perda de tempo» o projecto das instruções necessárias para tornar efectiva a lei de 4 de Junho e comunicou-se aos governos estrangeiros, por circular do dia 9, que S. M. ia dar com toda a brevidade uma carta de lei fundamental «fundada quanto possível sobre as antigas leis deste reino, aperfeiçoadas como pede o século em que vivemos e tendo em vista as instituições das outras monarquias constitucionais».
Conquanto não pareça, representam ainda assim estas medidas um rasgo de independência, dada a oposição que era de contar encontrassem junto das cortes aliadas (19). A atitude que estas desde logo assumiram patenteia bem quanto a atmosfera internacional era pouco propícia a qualquer medida deste género (20) e explica de sobejo a insistência com que Palmela teve de
(17) A intenção do marquês era, segundo ele afirmou, aproveitar a reunião dos Três Estados para dar a maior solenidade ao testamento que, na sua opinião, D. João VI devia fazer com o fim de pôr fora de dúvida as questões da sucessão ao trono e da Regência (Maria Amália, ob. cit., pág. 443).
(18) Esta carta de lei referendada pelo arcebispo de Évora, que então era ministro da justiça, acha-se reproduzida nos cits. Documentos para a hist. das Cortes gerais, I pág. 811, e também em Lopes Praça, ob. cit., vol, II, pág. 204.
(19) São mesmo dignos de nota os termos da circular na parte em que se refere às inovações exigidas pelos novos tempos e ao modelo das monarquias constitucionais. É uma linguagem que faz lembrar a do Decreto de 18 de Junho de 1823 e que flagrantemente contrasta com a da carta de lei publicada quatro dias antes. Compare-se, efectiva-mente, a passagem transcrita no texto com o raciocínio caviloso reproduzido acima na nota 16. O texto integral da circular de 9 de Junho pode ler-se nos cits. Despachos, pág. 229.
(20) O próprio gabinete de Paris não se nos mostrava favorável. Vide Soriano, Hist. da guerra civil, vol. II, Parte I, págs. 285-287.
[ 17 ]
recomendar aos seus agentes diplomáticos que tranquilizassem os respectivos governos sobre os termos moderados em que se ia realizar a reunião das cortes (21).
Em Janeiro de 1825 ainda Palmela afirma ao Conde de Porto Santo que «parece inevitável, tarde ou cedo, levar-se a efeito a convocação dos Três Estados do Reino, que S. M. nunca perde de vista, e que ansiosamente deseja verificar, para cumprir a sua Real Palavra, várias vezes repetida espontaneamente» (22). Mas o certo é que tudo continuou no mesmo pé, terminando o reinado sem se terem, ao menos, reunido as cortes tradicionais.
Tal é, bosquejado a traços largos, o quadro histórico-político em que se insere o abortado Projecto de Lei Fundamental.
(21) Vide Despachos cits., ofícios de 10 de Julho e 24 de Agosto, respectivamente a págs. 427 e segs. e a pág. 457. No primeiro destes ofícios põe-se bem em relevo a diferença fundamental entre o projecto de convocação das cortes e a «nova carta constitucional, como se tratava de fazer no ano passado». Veja-se também o Projecto de convocação dos Três Estados elaborado pela nova junta, o qual se inspira inteiramente no nosso direito público tradicional, cingindo-se estritamente às directrizes da carta de lei de 4 de Junho (cits. Despachos, pág. 474).
(22) Ofício de 10 de Janeiro, nos Despachos cits. págs. 526-527.
[negritos acrescentados]
Fonte:
Paulo Merêa - 1967_-_manuscrito_de_magalhães_collaço_com_prefácio_a_projecto_de_constituição_de_1823.pdf
Trata-se de uma colecção de manuscritos reunidos sob o rótulo «Lembranças e apontamentos para a formação da Carta de Lei», todos eles respeitantes ao projecto de Lei Fundamental elaborado pela Comissão para tal fim nomeada pelo Decreto de 18 de Junho de 1823, da qual fazia parte Ricardo Raimundo Nogueira, lente jubilado da Faculdade de Leis e reitor do Colégio dos Nobres, que
(1) Chegou mesmo a julgar-se que a Junta criada por D. João VI não redigira projecto algum. Vários autores a inculparam de comodismo ou pouco zelo, não faltando sequer quem, como José Liberato, apaixonadamente acusasse Palmela de ter adrede urdido toda a comédia para se dar falsos ares de liberal. Outros, é certo, se referem ao projecto de Constituição, mas em termos que mostram não o terem conhecido. Lopes Praça, na sua excelente Colecção de leis e subsídios para o estudo do Direito Constitucional Português (vol. II, Coimbra, 1894), não insere o Projecto, e apenas fugidiamente a ele alude. Não se lhe refere tão-pouco o próprio Magalhães Collaço no seu notável Ensaio sobre a inconstitucionalidade das leis (Coimbra, 1915), que aliás contém uma desenvolvida notícia histórica. Isso mostra que o texto adiante publicado era totalmente ignorado, e continuou a sê-lo até ao dia em que Magalhães Collaço deu com ele entre os papéis de Ricardo Raimundo Nogueira.
[ 6 ]
foi o redactor do Projecto na sua forma inicial e o principal autor da redacção definitiva. Figuram na colecção várias notas e apontamentos, bem como bosquejos do Projecto, constituindo todo o maço um repertório de alto valor (2).
Poucos dias antes daquele em que a morte veio inexoravelmente arrebatá-lo, folheava Magalhães Collaço com mão sôfrega e justificado alvoroço esses papéis que uma fúnebre ironia da sorte lhe deparava in extremis, a ele que durante tanto tempo procurara debalde o projecto de 1823, de tão nutrido interesse para a história da época liberal, época que ele conhecia como raros e para a qual ia toda a simpatia de monárquico constitucional que se orgulhava intransigentemente de ser.
Mais uns meses de vida, e decerto ele teria valorizado o seu achado, utilizando-o numa dessas conferências em que era mestre e em que a segurança da doutrina tão deleitosamente se aliava a uma forma de cunho inconfundível. Quem melhor do que ele o saberia fazer, com o seu profundo conhecimento dos sucessos da época e a sua consumada competência de mestre im Direito Público!
Este ligeiro prefácio não pretende nem de longe substituir o comentário que Magalhães Collaço teria dedicado ao Projecto, mas tão somente servir-lhe de apresentação: recordar ao leitor as circunstâncias em que esse documento nasceu, fazer ressaltar os seus traços Fundamentais e dizer, em poucas palavras, qual foi o seu destino.
(2) Além do Projecto de Lei Fundamental, publicam-se em Apêndice outros dois rascunhos, também da pena de R. R. Nogueira, que se nos afiguram de especial interesse. O primeiro, notável pelo seu extenso preâmbulo, ficou sem dúvida interrompido, visto que os artigos que contém se referem exclusivamente às Cortes, enquanto no preâmbulo se diz que à restauração deste antigo corpo se acrescentarão «algumas outras (providências) que estejam em harmonia com as opiniões do século presente». O outro é o mais interessante, pois se inspira num pensamento original: a Junta votaria apenas seis bases, que constituiriam o teor da Carta de Lei; depois, convocar-se-iam as Cortes encarregadas de as desenvolver.
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Reportêmo-nos a esse mês de Junho de 1823, que marca o desmoronamento da obra revolucionária dos vintistas.
Em fins de maio tivera lugar a Vilafrancada. A 2 de junho os deputados interrompiam as suas sessões, lavrando um protesto contra qualquer alteração à Constituição de 22. No dia seguinte o próprio monarca dissolvia as Cortes e repudiava a Constituição. Finalmente, ainda no decurso do mesmo mês, medidas sucessivas foram traduzindo claramente uma política de reacção contra a obra de 1820.
Não fôra, todavia, varrida a ideia de uma constituição, carta constitucional ou lei fundamental, destinada a substituir o estatuto de 1822, consoante o conselho que de há muito vinha dando a D. João VI o leal conde de Palmela, agora o homem da situação. O rei mais do que uma vez se mostrou favorável à elaboração de uma lei desse género, e nada nos permite pôr em dúvida a sua sinceridade, tratando-se de uma aspiração cuja realização hábil lhe consentiria porventura acalmar os ânimos mediante uma transacção entre os dois partidos extremos.
A ideia não encontrava, contudo, simpatia entre os ministros. Se dermos fé a uma passagem autobiográfica de Palmela, era ele «dos poucos portugueses e o único ministro que então sinceramente desejava o estabelecimento do governo constitucional» (3).
A outorga de uma nova lei fundamental, à qual D. Miguel já aludia na sua proclamação de Vila Franca, foi prometida por D. João VI nas proclamações de 31 de Maio e 3 de Junho, e a 18 deste mesmo mês criava el-rei uma Junta para preparar o projecto da carta de lei fundamental da Monarquia Portuguesa.
(3) Maria Amália Vaz de Carvalho, Vida do duque de Palmela, vol. I, Lisboa, 1898, pág. 429.
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Neste decreto, anulava-se de direito a Constituição de 1822, declarando-a «fundada em vãs teorias, incompatíveis com os antigos hábitos, opiniões e necessidades do povo português» e «contraditória com o principio monárquico que aparentemente consagrava». Insistia-se, porém, no desejo de cumprir as promessas feitas, instaurando uma forma de governo que ao mesmo tempo consagrasse a autoridade real efectiva e garantisse os direitos individuais. Declarava-se, finalmente, que, não correspondendo ao seu intento a lei fundamental tradicional sem que se acomodasse «ao estado actual da civilização, às mútuas relações das diferentes partes de que se compõe a monarquia portuguesa e à forma dos governos representativos estabelecidos na Europa», devia a Comissão elaborar um projecto de nova lei fundamental, a qual, «regulada pelos sãos princípios de direito público, estabeleça em perfeita harmonia o exercício do poder supremo e a permanente segurança legal dos povos, franqueando os caminhos que devem conduzir a administração pública por melhoramentos progressivos ao grau de perfeição compatível com as instituições humanas» (4).
Os passos do Decreto de 18 de Junho que acabamos de transcrever bastam para justificar a forte suspeita de que ele tenha tido como redactor o próprio conde de Palmela, então ministro dos Negócios Estrangeiros (5). Acresce que o teor do decreto concorda essen-
(4) Documentos para a história das Cortes Gerais da nação Portuguesa, Tomo I, pág. 119. A seguir encontra-se a relação dos membros da Junta, nomeados na mesma data: António José Guião, arcebispo de Evora, Francisco de Borja Garção Stockler, Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, João de Sousa Pinto de Magalhães, José António Faria de Carvalho, José António de Oliveira Leite de Barros, José Joaquim Rodrigues de Bastos, José Maria Dantas Pereira, D. Manuel de Portugal, Manuel Vicente Teixeira de Carvalho, marquês de Olhão, monsenhor Gordo, Ricardo Raimundo Nogueira. Posteriormente, por aviso de 2 de Julho, foi acrescentado a esta lista o nome de José Basílio Rademaker (secretário).
(5) Que a nomeação da Junta foi iniciativa de Palmela, é ele próprio quem o assevera (Maria Amália, ob. e vol. cits., pág. 429).]
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cialmente com aquilo que este estadista comunicara em circular do dia 9 de Junho aos nossos representantes nas diversas potências e, em carta do mesmo mês, a Chateaubriand, ministro dos Negócios Estrangeiros de Luis XVIII (6).
A linguagem de qualquer destas peças era habilidosa e cauta, como as circunstâncias exigiam. Ele o confessa numa passagem dos seus apontamentos autobiográficos: «linguagem que os erros e o pecado original do partido revolucionário justificavam de sobra», mas por trás da qual estava «um princípio único - o desejo de ver estabelecer em Portugal o regime representativo» (7).
A Junta era presidida pelo ministro Palmela, que entretanto fora agraciado com o título de Marquês. O discurso que ele proferiu na primeira sessão, celebrada a 7 de Julho, é o desenvolvimento das ideias que já se continham no decreto. O orador insistiu sobretudo na crítica do movimento de 1820 e, quanto ao pensamento inspirador da nova lei fundamental, mostrou claramente que no seu espírito estavam, antes de mais nada, presentes as instituições inglesas e a Carta Constitucional francesa. As referências à nossa constituição histórica, essas eram principalmente destinadas a seduzir a massa conservadora (8).
O essencial da história da Junta - cujas sessões se realizaram no palácio do Rossio - é hoje do conhecimento público, porque consta
(6) Documentos cits., págs. 114 e 187.
(7) Maria Amália Vaz de Carvalho, ob. cit., pág. 429.
(8) O discurso de Palmela foi publicado pela primeira vez na Gazeta de 7 de Julho de 1823, n." 161, e pode ler-se nos citados Documentos, a págs. 781 e segs. Resposta a este discurso é porventura o «Código das leis fundamentais» que Alberto Carlos de Menezes apresentou em Julho ao monarca, no qual se declarava que a nossa constituição histórica assentava nas Cortes de Lamego, cujas leis D. João VI reconhecera no seu juramento, à semelhança de todos os seus predecessores. Vide Alberto Carlos de Menezes, Plano de Reforma dos Forais, pág. 242. Supomos que este «Código» não chegou a ser impresso, embora o autor tivesse essa intenção.
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das Memórias de um dos seus membros, Francisco Trigoso, dadas a lume em 1933 (9).
Segundo informa Trigoso, alguns dos membros, logo na primeira sessão, emitiram a opinião de que devia manter-se o governo absoluto, e não abandonaram nunca esta posição. Os outros, que constituiam a maioria, mostravam-se dispostos a dar execução do decreto, mas «diversificavam muito sobre o sistema e método por que havia de ser feita a nova lei». Dos projectos, em número de quatro, apresentados na sessão seguinte a pedido do Marquês, foi adoptado o de Ricardo Raimundo Nogueira, que passou a ser objecto de discussão em sucessivas sessões. (10)
Terminada a discussão «em fins de Agosto, ou já em Setembro», foi nomeada uma Comissão «para que, revendo as actas das sessões passadas, formasse o projecto inteiro da Carta, entrando não somente os artigos vencidos e já aprovados, mas aqueles que os da Comissão julgassem que se deveriam acrescentar e que depois se discutiriam na Junta». A Comissão era constituida pelo arcebispo de Évora (D. António José Guião), Francisco Trigoso e Ricardo Raimundo, devendo-se quase exclusivamente a este último o trabalho de revisão. O projecto assim revisto estava concluído em Setembro de 1823.
O texto que adiante se publica é, segundo parece, o fixado por Ricardo Raimundo Nogueira na sua última revisão, mas é-nos dado a conhecer sob a forma de rascunho, com numerosas emendas, das quais reproduzimos em nota as mais importantes.
Trata-se, como o leitor pode facilmente verificar, de uma verdadeira constituição no sentido moderno, presa por laços muito ténues
(9) Memorias de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, coordenadas por Ernesto Campos de Andrada e publicadas pela Imprensa da Universidade (Coimbra, 1933), págs, 184 e segs., 193 e segs.
(10) Em 4 de Julho foi Ricardo Raimundo Nogueira elevado ao eminente lugar de Conselheiro de Estado.
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à nossa tradição política, e não de uma acomodação das nossas instituições históricas às necessidades da nova sociedade.
Com efeito, não obstante a Comissão ter sido incumbida de actualizar, se assim podemos dizer, a lei fundamental da monarquia; não obstante o que Palmela dissera no seu discurso inaugural - que se não perderiam de vista «os institutos primevos do governo português» —; não obstante o redactor do Projecto apelar formalmente para estes institutos, o que o Projecto de facto nos oferece é a divisão dos poderes, é a função legislativa atribuída às Cortes com a sanção do rei, são duas câmaras, das quais uma, a dos deputados, eleita pela nação e emanada dos colégios eleitorais.
Houve o cuidado de imprimir à nova constituição um matiz conservador, visível sobretudo na composição da câmara alta - onde se reuniam as ordens do clero e da nobreza -, mas nem esta circunstância, nem o dizer-se que a monarquia continua sendo moderada «como sempre foi» ou que as cortes são compostas, «como sempre foram», dos três estados do reino, bastam para tirar ao projecto o carácter de constituição moderna. Moderada - isso, sim. A esse respeito é bem vincado o contraste com a Constituição de 22, da qual em todo o caso (note-se de passagem) se extrataram algumas disposições.
As três magnas questões - sistema unicameral ou bicameral, veto absoluto ou suspensivo, reconhecimento ou não do direito de dissolução - foram resolvidas de harmonia com a opinião moderada, traduzindo a corrente que poderíamos chamar dos constitucionais da direita. De um modo geral, pode afirmar-se que são grandes as afinidades com a Carta de Luis XVIII, que os autores do Projecto tiveram evidentemente presente (11).
(11) Entre os papéis de Ricardo Raimundo Nogueira figura uma tradução da Carta de Luís XVIII, com o título "Direitos públicos dos Franceses".
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Mas o projecto em questão está muito longe de exprimir a opinião definitiva da Junta.
Segundo as Memórias de Trigoso, o trabalho, uma vez concluído, foi remetido pela comissão revisora ao presidente da Junta... mas nunca mais se falou nele. Acrescenta Trigoso que o Marquês de Palmela lhe declarou a ele próprio que El-Rei se achava em grande embaraço, pois empenhara a sua palavra na promulgação de uma Carta Constitucional, mas reconhecia, por outro lado, que o projecto da Comissão «não se podia de maneira alguma adoptar».
De resto - é ainda Trigoso quem o afirma - já durante a discussão do Projecto, o marquês, que a princípio se mostrara francamente partidário do governo representativo, começara a vacilar, «não se atrevendo a dar voto, por ser Presidente». Também dos ofícios trocados entre ele e o nosso Embaixador em Madrid resulta claramente que já em Agosto de 1823 Palmela estava na disposição, não só de aguardar que acalmasse a efervescência dos espíritos em Espanha e Portugal, mas de preconizar uma Carta de Lei inteiramente deduzida das antigas leis e costumes da monarquia, pois «nas actuais circunstâncias não conviria dar aos sistema representativo todo o desenvolvimento que lhe dão as cartas constitucionais da França, dos Países Baixos, etc.» (12).
A explicação de tão prodigiosa mudança está, de facto, na forma por que se precipitaram as sucessos políticos, internos e externos, criando uma situação que Palmela se viu na obrigação de ponderar.
(12) - Ofício de 9 de Agosto ap. Despachos e correspondencia do Duque de Palmella, 1, Lisboa, 1851, pág. 247. Pelo seu lado, António de Saldanha, em carta de 28 do mesmo mês dirigida ao marquês de Palmela, levantava algumas dúvidas sobre a legalidade da projectada Constituição, uma vez que El-Rei jurara guardar os antigos foros da nação, portanto, implicitamente, não mudar as leis fundamentais sem convocar as antigas Cortes (no mesmo vol. de Despachos, págs. 238-239). Cf. instruções de Palmela ao Conde de Villa-Real de 25 de Agosto (cits. Despachos, págs. 251-252) e vide Luz Soriano, História da guerra civil, Tomo II, Parte I, págs. 282 e segs.
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Palavras dele próprio: «No momento da criação da Junta Preparatória esperava que ela pudesse satisfazer o seu fim, porque ainda era recente a promessa de El-Rei, porque a reacção nos negócios de Espanha ainda não tinha começado na sua fase violenta, e ainda se supunha que também ali seria cumprido o programa apresentado pelo Duque de Angoulême na proclamação de Andújar. Estas condições políticas foram-se todavia modificando, e a influência cada vez mais poderosa da Rainha e do seu partido, e a indiferença, a inércia, a inabilidade do partido moderado demonstrou-me evidentemente que eu não tinha força nem apoio para vencer esta corrente abertamente favorecida pelos agentes diplomáticos estrangeiros residentes em Lisboa» (13).
Para sair tant bien que mal desta embaraçosa situação, pensou-se então numa solução habilidosa que, sem renegar o decreto de 18 de Junho, desse satisfação à opinião tradicionalista (14), e, por
(13) Maria Amália Vaz de Carvalho, ob. e vol. cits., pág. 430. Cumpre a este propósito observar que, embora a princípio contássemos com a simpatia da Inglaterra e da França, o ministro dos estrangeiros desta última desde cedo exprimiu dúvidas sobre a oportunidade da outorga de uma Carta. É muito significativo o ofício de Julho de 1823 dirigido pelo Marques de Marialva a Palmela, no qual se relata a conversa havida com o visconde de Chateaubriand. O governo francês, embora não fazendo oposição ao projecto (uma vez que ele não reconhecesse a «soberania do povo»), não deixava de acautelar o governo português contra os perigos da concessão imediata duma carta constitucional, sobretudo em vista do estado da Espanha e enquanto não se conhecessem as modificações que tomaria o seu governo. «Nenhum inconveniente resultaria de se espaçar o trabalho da Junta (...), antes mais perfeita sairia uma obra tão importante, havendo suficiente tempo para a meditar». Vide o ofício, na íntegra, em Luz Soriano, História da guerra civil, Tomo VI, págs. 512-575.
(14) Na conversa acima referida entre Palmela e Francisco Trigoso, sugeriu o ministro que «talvez tudo se pudesse compor, se a nova Carta se reduzisse a muito poucos artigos e se se pudesse mostrar a conexão destes com o direito já antigamente estabelecido entre nós». A este respeito observa Trigoso que a ideia não era nova, «porque o Conde do Funchal acabava de a expender num pequeno livro que imprimira sobre as instituições políticas que a Portugal convinha adoptar, do qual [ 13 - 14 ] livro o Marquês de Palmela me tinha dado um exemplar» (Era a Introducção às Notas supprimidas em 1821 ou Raciocinio sobre o estado presente e futuro da Monarchia Portugueza, Londres, 1823).
Como Trigoso, em princípio, se mostrasse disposto a aceitar esta solução, Palmela encarregou-o de escrever uma Memória sobre o assunto. Esta Memória chegou a ser redigida (cfr. Inocêncio, T. II, pág. 461, n. 1420), mas o autor decidiu não a entregar, dado o rumo que as coisas estavam tomando.
Nos seus citados Apontamentos Palmela escreveu a este respeito o seguinte: «Restava-me a alternativa ou de abandonar toda a esperança de um resultado favorável, ou de me habilitar temporariamente a obter o restabelecimento das nossas antigas Cortes, as quais, uma vez que a sua reunião fosse periódica, e que os dois estados do Clero e da Nobreza se reunissem numa só câmara, serviriam ao menos de garantia contra o poder arbitrário que nos reduziria ao estado em que estávamos. Isto podia considerar-se como um quase cumprimento das promessas régias, e não encontraria, por ser fundado nas nossas antigas leis, oposição tão invencível como a promulgação duma lei constitucional nova» (Maria Amália, ob. e vol. cits., pág. 431).
Nos seus ofícios de 1 e 7 de Novembro ao Conde de Porto Santo, Palmela expende as mesmas ideias, chegando a declarar expressamente que, «sejam quais forem os seus sentimentos», não deve tratar-se «por agora» de novas instituições (Despachos e Correspondência cits., págs. 267 e 292). Possivelmente Palmela tinha conhecimento da carta escrita em fins de Outubro por Luís XVIII a Fernando VII, aconselhando-o a conceder uma amnistia e a outorgar uma Carla «fundada nas antigas instituições de Espanha». (Villa-Urrutia, Fernando VIl rey absoluto, pág. 82)
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fim, dada a urgência de liquidar o assunto, resolveu o Governo, em meados de Dezembro, voltar a convocar « Junta, fiado em que ela se extinguiria a si própria, pronunciando-se contra a publicação de um novo estatuto constitucional (15).
(15) Trigoso, Memórias, pág. 193. Já no cit. ofício de 7 de Novembro ao Conde de Porto Santo Palmela declarava que a Junta só voltaria talvez a reunir-se para pôr ponto nos seus trabalhos, e em 14 do mesmo mês dizia-lhe mais claramente: «A Junta de que sou presidente vai fazer subir o seu voto, reduzido, atentas as circunstâncias, a aconselhar que, em S. M. julgando poder efectuar sem risco de perturbação (...) a convocação dos Três Estados na forma antiga, e sem mais prerrogativas do que as que sempre tiveram neste Reino, deve limitar-se meramente a essa prática, como a única legal e conforme ao juramento que prestou quando subiu ao trono e aos direitos legítimos dos seus sucessores (...). Creio que feito isto declarará El-Rei, por um decreto, que tomará em consideração, na forma e no tempo que melhor lhe parecer, o voto da Junta, e que esta fica dissolvida» (cits. Despachos, pág. 274). Temos de convir que, se outros eram os seus sentimentos, dificilmente os poderia disfarçar melhor!
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Como era de esperar, as opiniões dividiram-se, mas acabou por ser aprovada por maioria uma minuta de consulta da autoria do arcebispo de Évora, na qual, em substância, e não obstante um artificioso esforço para salvar o decreto de 18 de Junho, se propunha ao monarca... que declarasse em vigor as antigas cortes portuguesas, as quais havia mais de um século se não reuniam. Esta resolução tem a data de 2 de Janeiro de 1824 e com ela findou, de forma pouco brilhante, a actividade da Junta (16).
Afinal, nem sequer este expediente conseguiu vingar, porque o monarca hesitou em lhe dar a sua sanção. A agitação dos ânimos era cada vez mais pronunciada, a influência do partido absolutista cada vez mais se fazia sentir, e foi só após a Abrilada que D. João VI
(16) Trigoso, ob. cit., págs. 194 e segs. A dar crédito ao que afirma Palmela, a maioria dos membros da Junta era agora «oposta a toda e qualquer modificação do regime absoluto», e não foi sem relutância que aprovou a consulta do arcebispo de Évora. Contra esta consulta votaram apenas cinco membros: Ricardo Raimundo Nogueira, Francisco Trigoso, José Maria Dantas, João Pinto de Magalhães e Rodrigues de Bastos (dois dos que sempre tinham votado a favor do governo representativo, D. Manuel de Portugal e o general Stockler, estavam no estrangeiro).
Embora se não conheça directamente o teor da resolução aprovada pela Junta, é natural que ele se ache reproduzido, sem grande alteração, no preâmbulo da Carta de Lei de 4 de Junho. Aí se diz, usando de um sofisma demasiado hábil, que S. M., ao manifestar no dec. de 18 de Junho a intenção de que a Carta de lei fundamental fosse acomodada à forma dos governos representativos estabelecidos na Europa, entendia apenas «que não podia deixar de haver uma representação nacional», mas que esta devia ser tal que estivesse em harmonia com os antigos usos da Nação, e que o ser «acomodada à forma de outros governos representativos» não significava que houvesse de ser idêntica! (Vide o texto completo em Lopes Praça, ob. e vol. cits., pág. 205).
[ 16 ]
se resolveu — ainda a solicitação de Palmela (17) - a convocar os três estados do reino (Carta de Lei de 4 de Junho de 1824) (18). Com esta decisão, para a qual se invocou expressamente o parecer da Junta (dissolvida no dia seguinte), procurou o rei cumprir, nos limites do possível, as suas reiteradas promessas. Criou-se mesmo uma nova junta destinada a preparar «sem perda de tempo» o projecto das instruções necessárias para tornar efectiva a lei de 4 de Junho e comunicou-se aos governos estrangeiros, por circular do dia 9, que S. M. ia dar com toda a brevidade uma carta de lei fundamental «fundada quanto possível sobre as antigas leis deste reino, aperfeiçoadas como pede o século em que vivemos e tendo em vista as instituições das outras monarquias constitucionais».
Conquanto não pareça, representam ainda assim estas medidas um rasgo de independência, dada a oposição que era de contar encontrassem junto das cortes aliadas (19). A atitude que estas desde logo assumiram patenteia bem quanto a atmosfera internacional era pouco propícia a qualquer medida deste género (20) e explica de sobejo a insistência com que Palmela teve de
(17) A intenção do marquês era, segundo ele afirmou, aproveitar a reunião dos Três Estados para dar a maior solenidade ao testamento que, na sua opinião, D. João VI devia fazer com o fim de pôr fora de dúvida as questões da sucessão ao trono e da Regência (Maria Amália, ob. cit., pág. 443).
(18) Esta carta de lei referendada pelo arcebispo de Évora, que então era ministro da justiça, acha-se reproduzida nos cits. Documentos para a hist. das Cortes gerais, I pág. 811, e também em Lopes Praça, ob. cit., vol, II, pág. 204.
(19) São mesmo dignos de nota os termos da circular na parte em que se refere às inovações exigidas pelos novos tempos e ao modelo das monarquias constitucionais. É uma linguagem que faz lembrar a do Decreto de 18 de Junho de 1823 e que flagrantemente contrasta com a da carta de lei publicada quatro dias antes. Compare-se, efectiva-mente, a passagem transcrita no texto com o raciocínio caviloso reproduzido acima na nota 16. O texto integral da circular de 9 de Junho pode ler-se nos cits. Despachos, pág. 229.
(20) O próprio gabinete de Paris não se nos mostrava favorável. Vide Soriano, Hist. da guerra civil, vol. II, Parte I, págs. 285-287.
[ 17 ]
recomendar aos seus agentes diplomáticos que tranquilizassem os respectivos governos sobre os termos moderados em que se ia realizar a reunião das cortes (21).
Em Janeiro de 1825 ainda Palmela afirma ao Conde de Porto Santo que «parece inevitável, tarde ou cedo, levar-se a efeito a convocação dos Três Estados do Reino, que S. M. nunca perde de vista, e que ansiosamente deseja verificar, para cumprir a sua Real Palavra, várias vezes repetida espontaneamente» (22). Mas o certo é que tudo continuou no mesmo pé, terminando o reinado sem se terem, ao menos, reunido as cortes tradicionais.
Tal é, bosquejado a traços largos, o quadro histórico-político em que se insere o abortado Projecto de Lei Fundamental.
(21) Vide Despachos cits., ofícios de 10 de Julho e 24 de Agosto, respectivamente a págs. 427 e segs. e a pág. 457. No primeiro destes ofícios põe-se bem em relevo a diferença fundamental entre o projecto de convocação das cortes e a «nova carta constitucional, como se tratava de fazer no ano passado». Veja-se também o Projecto de convocação dos Três Estados elaborado pela nova junta, o qual se inspira inteiramente no nosso direito público tradicional, cingindo-se estritamente às directrizes da carta de lei de 4 de Junho (cits. Despachos, pág. 474).
(22) Ofício de 10 de Janeiro, nos Despachos cits. págs. 526-527.
[negritos acrescentados]
Fonte:
Paulo Merêa - 1967_-_manuscrito_de_magalhães_collaço_com_prefácio_a_projecto_de_constituição_de_1823.pdf