Mário Saraiva (1910-1998) - Às Portas da Cidade - Crítica e Doutrina, Lisboa, Edição do autor, 1976, 221 páginas.
Esquisso de uma Representação Nacional, pp. 183-194.
ESQUISSO DE UMA REPRESENTAÇÃO NACIONAL
É para nós evidente que um Parlamento eleito por partidos políticos não constitui uma verdadeira representação nacional, isto é, uma representação real da Nação. É fácil de o compreender, porquanto esta haverá de considerar a pluralidade das estruturas naturais e vitais do organismo nacional, por conseguinte em contraposição ao monopólio da representatividade política, a qual é a estabelecida na base dos partidos.
Existem no País realidades vivas e legítimos interesses populares que não podem estar ausentes, que urge representar na Assembleia onde se legisla a seu respeito.
Actividades tão importantes como as que englobam numa sociedade livre as empresas agrícolas, as industriais, as comerciais ou as organizações dos trabalhadores das variadas profissões, não devem ser ignoradas ou desprezadas, sob pena de ser fictícia a representação.
Na verdade, apresenta-se muito difícil de perceber como partidos de ideologias políticas possam desempenhar as funções representativas da Lavoura, da Indústria, do Comércio ou do Trabalho, e nem os há.
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Todavia, concebem-se, como naturais, partidos apolíticos da Lavoura, da Indústria, do Comércio ou do Trabalho, os quais seriam as agremiações ou os sindicatos respectivos. Nesta perspectiva, que achamos a verídica, é bem de ver como se torna inadmissível o exclusivismo da representação político-partidária.
Os sindicatos de qualquer natureza tão-pouco podem admitir o paternalismo mais que suspeito que lhes é inculcado ou uma vexatória e enganadora tutela por via de quaisquer partidos.
Uma autêntica representação nacional terá de iniciar-se nas bases do municipalismo e do sindicalismo independente, e completar-se de maneira a não deixar sem deputados na Câmara a todas as organizações relevantes da sociedade, dentre as quais se incluem também as associações políticas.
Sem exorbitância de nenhuns sectores, sem atropelos nem empalmes, com igualdade de oportunidades e de direitos, só obedecendo a estes princípios de representação se poderá falar propriamente de democracia e, mais, de democracia directa.
A democracia indirecta, seja através dos partidos ou de qualquer outra ficção, bem sabemos todos onde nos leva: pelo menos à ditadura do factor político.
Nesse interessante ensaio «Eleições» [As Eleições, 1878] que bem merecia ser retirado do limbo em que o lançaram, procurou Oliveira Martins, ante o artifício e a falência do parlamentarismo partidista, esquematizar para o seu tempo um sistema novo de representação, diremos antes, redivivo, em cuja introdução fez judiciosas e oportunas considerações, tais como as seguintes: «que as Cortes, em vez de reunirem no seu seio todos os
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interesses, todas as vozes da sociedade, reúnam apenas os delegados dos partidos, eis aí o vício, eis aí o erro que provém do sistema eleitoral»; «o fim da representação de um povo é principalmente o regimento dos seus negócios, a resolução das suas questões como sociedade»; «que a Assembleia soberana saia, não da quimera do sufrágio universal, mas sim de delegações dos órgãos sociais». Noutro passo, sintetizava este escritor de boa vontade: «Emanada organicamente de uma sociedade libérrima, eis a verdadeira definição da democracia, quer no campo da doutrina, quer no terreno da política».
A construção de um novo Estado português terá de alicerçar-se nestes mesmos conceitos, se prevalece o desígnio de se proporcionar à população a maior liberdade dentro da ordem natural, o que significa a mais segura garantia de concórdia e de unidade nacional.
Com isto não pensamos, nem nunca poderíamos pensar, em banir a política do que afinal é, pura e simplesmente, a Política. O caso é que não a confundimos com o divisionismo partidarista.
A Política tem o seu lugar próprio e, nele, a sua missão útil. Ciência de Governo, a Política tem, obviamente, de estar presente no estudo e na discussão dos problemas sociais, como doutrina aplicável. E esse precisamente o seu fim, é essa a sua utilidade.
Posto isto, poderíamos esquematizar a Representação Nacional em três escalões ou planos: a primária, a secundária e a superior.
A primária, nos Municípios e nas Agremiações ou Sindicatos.
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A secundária, na Assembleia representativa e legislativa, e nas Cortes Gerais.
A superior, na Chefatura do Estado.
Consideremos cada uma de per si.
Creio que, no espírito de quase todos nós, há fantasmas de palavras a combater a sinceridade generosa das ideias. Tenho-o pensado muitas vezes de alguns dos nossos adversários, e isso obriga-me lealmente a pensá-lo também de nós para com eles.
Vem esta reflexão acerca de Democracia, palavra tão gasta e usada em tão diversos sentidos. Não pretendemos precisar aqui o significado que lhe atribuímos.
Queremos apenas esclarecer que, quando nos temos declarado antidemocratas, traduzimos a nossa intransigência aos regimes de partidos, mas importa igualmente esclarecer que defendemos com a mesma intransigência a autodeterminação do Povo, nas condições e nos meios onde efectivamente ela se possa exercer, sem adulterações nem sofismas. Nos Municípios e nos Sindicatos, está aí o lugar. Aliás, dentro deste sentido, foi a doutrina democrática que vigorou ao longo da nossa Monarquia medieval.
Dentro dos seus concelhos, o Povo administrava-se autonomamente, elaborava as suas leis próprias, as suas posturas, escolhia os seus governantes e os seus párocos, elegia os seus magistrados e, até, constituía a sua própria força armada.
Quem tenha lido os nossos forais, não poderá em justiça negar que essa vida concelhia, tão independente e tão importante, tenha sido, até hoje, o exemplo mais concreto, talvez único, do «governo do Povo pelo Povo».
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Alexandre Herculano atestou, com a isenção e o peso da sua autoridade: «Os municípios representavam de modo verdadeiro e eficaz a variedade contra a unidade, a irradiação da vida política contra a centralização, a resistência organizada e real da fraqueza contra a força, resistência que a hipocrisia dos tempos modernos confiou à solene mentira das garantias "individuais", ao isolamento do fraco diante do forte, ao cidadão e não aos cidadãos. O Município era a única instituição que não tem sido um vão jogo de palavras para assegurar a liberdade das classes laboriosas, a liberdade plebeia contra a opressão das aristocracias».
As vereações municipais, incluindo os seus presidentes, devem ser, conforme a tradição, de livre escolha dos munícipes.
De igual modo, as direcções dos Sindicatos e das demais instituições associativas hão-de corresponder a confiança dos seus filiados e ao seu voto.
Só partindo desta base, de eleições não-políticas, de eleições restritas e especializadas para serem competentes, exercidas com plena liberdade, alcançaremos uma representação verdadeira, primeira condição de uma representação nacional.
Se não tivesse sido interrompida a natural evolução das antigas Cortes Gerais, não teríamos de procurar uma melhor forma de Representação Nacional, no plano de uma câmara representativa, pois somos forçados a reconhecer que é nelas que ainda temos de nos inspirar.
Não se trata de um regresso, evidentemente. Trata-se de imaginar a constituição e o funciona-
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mento que deveriam ter hoje, ajustadas à vida moderna.
É este um trabalho de estudo e de reconstituição cujas soluções, sempre discutíveis, ficam necessariamente sujeitas, na prática, a correcções.
Idealizar pormenores, pouco interessa, por agora. O que importa são os princípios orientadores e as linhas gerais. Programas teóricos, completos, rígidos, herméticos, a imporem-se à vida real, têm sido a fonte do pior mal da Política.
As constituições de um povo e as suas leis, não se constroem «a priori»; descobrem-se, deduzem-se do pior mal na Política.
Não nos prendamos, pois, com minudências programáticas, e detenhamo-nos apenas um instante a supor uma assembleia onde estivesse legitimamente representada toda a actividade nacional: o Trabalho (a Agricultura, o Comércio, a Indústria, etc.), através dos seus sindicatos operários e técnicos, e dos grémios patronais; as associações políticas (Partidos), com deputados por direito próprio; as profissões chamadas liberais, por intermédio das suas Ordens; os Municípios, por delegações; principais cidades, pelos seus procuradores; as instituições intelectuais, morais, beneficentes, desportivas, etc., etc. (Igrejas, Academias e Universidades, Misericórdias, Sociedades, Associações ou Clubes, etc., etc.), com os seus deputados; uma Assembleia, enfim, que incluísse todas as classes da Sociedade, todos os organismos nacionais e todas as regiões do País.
Todas as classes da Sociedade, dissemos, e acentuemos que por deputados-membros dessas mesmas
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classes, escolhidos pela sua capacidade, fossem de que profissão fossem.
A alguma coisa de novo, para os nossos dias, assistiríamos então. Um corajoso passo em frente seria esse ao encontro da verdade e da justiça política, um grande passo em avanço para o Estado futuro!
E, em confronto com o simples enunciado da Câmara representativa que preconizamos, quão longe fica para trás de nós a ficção dos Parlamentos democrático-partidários!...
Num plano mais elevado, a esta Câmara ou Assembleia legislativa, haveria necessidade de restaurar, em termos de actualidade, e com atribuições restritas e específicas, as antigas Cortes Gerais, com idênticos princípios de constituição, mas muito mais vastas e representativas no número e na proveniência dos seus componentes. Precavidas dos «arranjos» que a contínua função dos parlamentos permite e proporciona, em virtude da menor ou mesmo nula privança entre si dos seus membros e, portanto, garantidas de mais segura resistência a manipulações, as Cortes Gerais destinar-se-iam a tratar, em segunda instância, dos mais graves problemas nacionais que lhe fossem postos, e deliberar sobre questões que concretamente lhe caberiam, tais como declarações de guerra ou de paz, casos de eleição ou deposição da Chefia do Estado, de Regência e de outras que se julgasse conveniente sujeitar-lhe.
Quanto ao problema da suprema Representação Nacional, resolve-o normalmente o Estado republicano elegendo um Presidente.
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O Estado monárquico confia essa representação a uma Dinastia.
Confrontemos por uns momentos, e apenas sob es e aspecto, as duas soluções em volta das quais, nem sempre com toda a razão, se costuma debater a questão de regime.
Em doutrina monárquica, considera-se como menos vantajoso o método de escolha para a Chefatura nacional e, por isso, só se recorre a ele nos casos raros em que se extingue a sucessão dinástica. E nesses transes, a exemplo da história, foge-se quanto possível aos inconvenientes do escrutínio.
Anotemos como nas Cortes de Coimbra, perante a vacatura do Trono, o Mestre de Avis foi eleito por aclamação e não por votação.
A eleição periódica de um Chefe de Estado tem, na verdade, redobrados e fortes inconvenientes, sob o aspecto representativo, e um deles consiste precisamente na redução do seu carácter nacional e na sua pendência para um plano partidário.
Eleger é escolher e escolher é discutir.
Na discussão dividem-se as opiniões e geram-se, como consequência natural, os partidos e, com eles, os seus candidatos.
Depois, a vitória eleitoral de um deles, em face das correntes das oposições vencidas ou mesmo em face do número de abstenções eleitorais, fica fatalmente reduzida, limitada na sua amplitude nacional de representação.
Claro que é o próprio mecanismo da eleição que assim o determina, independentemente das personalidades em causa. É o próprio resultado da votação
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que o denuncia, que o comprova, e tanto mais acentuadamente quanto mais esse resul ado se afaste da unanimidade.
Eleger é dividir e votar é diminuir.
Usar do sufrágio como fonte da Chefatura do Estado é, por princípio, fugir à unidade nacional que ela deve representar e simbolizar.
Votar é suscitar divergências e oposições, e é, sobretudo, tornar evidente a opinião contrária de um sector nacional que antes pode apenas supor-se como existente ou não.
A livre representação, sujeita a toda a controvérsia, advogamo-la nós, sim, como o primeiro direito cívico, mas em todos os casos onde possa e deva prevalecer uma opinião, não importa se em detrimento de outras.
Aqui, não, porque a função representativa da Chefatura do Estado tem outro fim e, para ser nacional, deve abranger todos.
Chefatura eleita por maioria, decerto que representa essa mesma maioria, mas decerto também que não pode representar legitimamente, e contra a sua vontade expressa, as minorias vencidas.
Vimos falando de representação nacional, mas seríamos mais exactos se tivéssemos falado de representação social.
Na verdade, vereações ou sindicatos, parlamentos ou presidências individuais, tendo todos por origem o fundamento instável e passageiro de uma opinião transitória, o que são senão representações da sociedade em mutação e num dado momento?
E, todavia, a sociedade de um dia que passa, cujos
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elementos ou organismos elegem e se representam, não é perfeitamente o mesmo que a nacionalidade à qual pertence.As nações, mais do que os povos, e ainda mais do que os indivíduos, não são apenas um presente fugidio. Vêm de um passado e projectam-se num futuro.
Por isso, também alguma instituição, com características de continuidade, deve representar a Nação na permanência do tempo, isto é, na projecção da História.
Essa instituição apresenta-a a Monarquia como sua própria razão de ser: é a Dinastia reinante.
E de tal maneira a Dinastia representa a Nação que a sua história se confunde com a história da Pátria.
Repetimos e acentuamos que a Chefatura do Estado, na sua função representativa, deve ter características diferentes dos outros órgãos de representação. Esses, devem ser representativos da sociedade, e sê-lo-ão através de todos os seus membros, exactamente na diversidade dos seus interesses e das suas opiniões, enquanto que o Chefe supremo do Estado não deve representar esses interesses ou opiniões parcelares. Acima deles e independente deles, uno na sua pessoa, deve simbolizar o conjunto, o todo, isto é, a unidade nacional.
Ora, esta função, se possível em hipótese, fica muito comprometida numa chefatura de origem eleitoral. E compreende-se. Num regime republicano, o presidente eleito será, naturalmente, o candidato proposto pelo partido maioritário ou pela coligação maioritária, de maneira que a suprema representação faz-se
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no mesmo sentido e tem o mesmo significado político e partidário, isto é, parcelar, da dos deputados ao Parlamento.
Mas, enquanto que a representação parlamentar ainda possui uns certos atributos de pluralidade pelas várias tendências dos deputados dos diversos partidos que o constituem, a Chefatura do Estado, a suprema representação, fica reduzida, limitada a uma só facção partidária.
Concordemos que é muito pouco, que é insuficiente, ou melhor, que é tudo quanto há de mais contrário ao que se possa considerar um símbolo de todos, uma representação nacional!
Depois, também os símbolos perdem muito do seu simbolismo, no correr periódico das suas substituições imprevisíveis.
Manifestamente, a Monarquia é o sistema, para não dizer o único, que melhor assegura uma representação nacional.
O Rei, porque não é eleito e porque não representa nenhum grupo, é o representante de todos.
Alguém disse, com apurada observação, que o Rei é o deputado dos que não elegem deputados.
Nós, hoje, poderíamos dizer, ao gosto democrático, que o Rei é o representante do Governo e, igualmente, o representante da Oposição. Na realidade, porém, em virtude da sua função superior e transcendente, ele é o representante da Pátria.
Ilustremo-nos com o exemplo actual da Monarquia inglesa. Conservadores ou trabalhistas no Poder, superior a eles e independente deles, a Coroa, igual para todos, é de todos e a todos representa.
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Para além da supremacia eleitoral de um partido ou de um grupo, a Realeza permanece acima da luta partidista, como garantia da liberdade, como salvaguarda dos direitos das minorias. É, na verdade, um poder nacional.
Mas quando, em República, esse lugar de Chefatura se abandona, como os outros lugares de mando, à conquista de um partido, para quem apelar então, se Governo e Presidência caem nas mesmas mãos?
Não. A Chefatura do Estado não deve ser preenchida por eleição, e nunca o pode ser se queremos possuir o bem de uma chefatura de carácter nacional.