José Pequito Rebelo, "Partidos e Partidocracia", A Rua, 3 de Abril de 1981.
Partidos sempre os haverá, na disparidade das opiniões e na solidariedade dos que professam cada uma delas. Mas uma coisa são partidos e outra coisa é a partidocracia, quando os partidos, abusando da sua legitimação, usurpam o Estado ou parte do seu poder, perturbando a função dos seus órgãos legítimos, contaminando-o com a sua própria corrupção, que ela própria vai crescendo no desfruto do poder, fazendo adoecer a governança de abolia e de alienação por seu intrínseco divisionismo, confusão mental e instabilidade.
Uma coisa são os partidos e outra coisa é a partidocracia, como uma coisa é a riqueza e outra coisa é a plutocracia, uma coisa é a monarquia e outra a tirania, uma coisa é a aristocracia e outra a oligarquia, uma coisa é a democracia e outra a demagogia ou oclocracia.
Corrupção do partidarismo, a partidocracia é uma espécie patológica bem caracterizada.
Emprestem-nos Juan Vallet [de Goytisolo] e [Marcel] de Corte a sua sintética definição:
"Debaixo de um Rousseauismo de direito que proclama como grandes valores a liberdade, a igualdade e a fraternidade, dissimula-se em política um maquiavelismo de facto que exerce influência hipnótica em favor da vontade de poder dos políticos profissionais. Rousseau deste modo veste Maquiavel com uma capa de boa consciência e de boa fé, e ele assim coberto diz ao povo que a expressão da sua vontade soberana é essa lei que os seus eleitos fabricam. Aquele que se apodera do poder, substitui a sua vontade própria à vontade geral e, escudado nessa vontade geral, se torna irresponsável, excitando o apetite do povo com a promessa da utopia que nunca chega..."
Cada partido é potencialmente ditatorial, aspira a ser um Estado dentro do Estado, a ser o próprio Estado pela lei do número e da maioria. Isso pode acontecer mas pode acontecer também que sendo todos os partidos minoritários, causem a paralisia do Estado. E desculpa-se cada um com o facto de ser minoritário, desculpa improcedente pois sempre podiam apelar para a arbitragem do poder legítimo.
O mal da partidocracia exprime-se no seu sufixo: cracia, que indica a concupiscência do poder. Dar a todos o poder é irracional e anarquizante; o que a razão pede é o bem de todos e de cada um, sendo a participação no poder apenas uma parte desse bem. Lá dizia Bossuet: "Se todos mandam ninguém manda, e se ninguém manda todos são escravos." O mandar não pode ser de todos, nem é reciproco. O amor é que é reciproco. Quem ama pode ser amado. Acima da Democracia deve imperar a demofilia, o amor como grande princípio do Bem comum, o amor recíproco dos que mandam e dos que obedecem. E o amor é espontâneo, não se pode decretar, mas podem reprimir-se as forças tenebrosas que conspiram para semear o ódio social.
Nessa perspectiva de ódio, a conspiração subversiva acusa os governantes de todas as responsabilidades. Repele-se a Monarquia porque o rei pode ser mau, mas nem se põe a hipótese de prevaricação do povo, esquecendo a cicuta de Sócrates e de Focião, o plebiscito que preferiu Barrabás a Cristo e tantos regicídios de reis que não eram tiranos...
Em espírito de compreensão, devemos pensar que todos os poderes constituídos nunca deixam de ter algo de positivo por onde são capazes de um começo de salvação.
As ditaduras podem dar monarquias legítimas.Um traidor pode atraiçoar a própria traição na restauração da pátria. Assim [Alexander] Soljenítsin apelava os governantes bolches da Rússia para que se convertessem, conservando embora o poder...
À partidocracia há realmente que opor um movimento restaurador e patriótico. Mas os nossos inimigos partidocratas que como cristãos devemos amar, devemos dar ainda a compreensão de que possam estar dentro da partidocracia lutando para reprimir o mais possível os vícios dela e proporcionando soluções de menor mal tacticamente defensáveis.
Sendo assim, nem mesmo se poderiam considerar nossos inimigos. Nesta perspectiva, a força antipartidocrática a desenvolver teria óbvia vocação de, sem hostilizar a referida actividade, especializar-se no chamamento aos abstencionistas, aqueles que precisamente o têm por estarem à espera de um ideário de autenticidade e de legitimidade. E essa força nova deve ter como principal imperativo o resistir à tentação do Maquiavelismo, a concupiscência sem escrúpulos do poder, isto é, o não se tornar ela própria uma partidocracia, preferindo a todas as conquistas políticas imediatas, a confirmação da sua coerência e pureza de princípios.
Uma coisa são os partidos e outra coisa é a partidocracia, como uma coisa é a riqueza e outra coisa é a plutocracia, uma coisa é a monarquia e outra a tirania, uma coisa é a aristocracia e outra a oligarquia, uma coisa é a democracia e outra a demagogia ou oclocracia.
Corrupção do partidarismo, a partidocracia é uma espécie patológica bem caracterizada.
Emprestem-nos Juan Vallet [de Goytisolo] e [Marcel] de Corte a sua sintética definição:
"Debaixo de um Rousseauismo de direito que proclama como grandes valores a liberdade, a igualdade e a fraternidade, dissimula-se em política um maquiavelismo de facto que exerce influência hipnótica em favor da vontade de poder dos políticos profissionais. Rousseau deste modo veste Maquiavel com uma capa de boa consciência e de boa fé, e ele assim coberto diz ao povo que a expressão da sua vontade soberana é essa lei que os seus eleitos fabricam. Aquele que se apodera do poder, substitui a sua vontade própria à vontade geral e, escudado nessa vontade geral, se torna irresponsável, excitando o apetite do povo com a promessa da utopia que nunca chega..."
Cada partido é potencialmente ditatorial, aspira a ser um Estado dentro do Estado, a ser o próprio Estado pela lei do número e da maioria. Isso pode acontecer mas pode acontecer também que sendo todos os partidos minoritários, causem a paralisia do Estado. E desculpa-se cada um com o facto de ser minoritário, desculpa improcedente pois sempre podiam apelar para a arbitragem do poder legítimo.
O mal da partidocracia exprime-se no seu sufixo: cracia, que indica a concupiscência do poder. Dar a todos o poder é irracional e anarquizante; o que a razão pede é o bem de todos e de cada um, sendo a participação no poder apenas uma parte desse bem. Lá dizia Bossuet: "Se todos mandam ninguém manda, e se ninguém manda todos são escravos." O mandar não pode ser de todos, nem é reciproco. O amor é que é reciproco. Quem ama pode ser amado. Acima da Democracia deve imperar a demofilia, o amor como grande princípio do Bem comum, o amor recíproco dos que mandam e dos que obedecem. E o amor é espontâneo, não se pode decretar, mas podem reprimir-se as forças tenebrosas que conspiram para semear o ódio social.
Nessa perspectiva de ódio, a conspiração subversiva acusa os governantes de todas as responsabilidades. Repele-se a Monarquia porque o rei pode ser mau, mas nem se põe a hipótese de prevaricação do povo, esquecendo a cicuta de Sócrates e de Focião, o plebiscito que preferiu Barrabás a Cristo e tantos regicídios de reis que não eram tiranos...
Em espírito de compreensão, devemos pensar que todos os poderes constituídos nunca deixam de ter algo de positivo por onde são capazes de um começo de salvação.
As ditaduras podem dar monarquias legítimas.Um traidor pode atraiçoar a própria traição na restauração da pátria. Assim [Alexander] Soljenítsin apelava os governantes bolches da Rússia para que se convertessem, conservando embora o poder...
À partidocracia há realmente que opor um movimento restaurador e patriótico. Mas os nossos inimigos partidocratas que como cristãos devemos amar, devemos dar ainda a compreensão de que possam estar dentro da partidocracia lutando para reprimir o mais possível os vícios dela e proporcionando soluções de menor mal tacticamente defensáveis.
Sendo assim, nem mesmo se poderiam considerar nossos inimigos. Nesta perspectiva, a força antipartidocrática a desenvolver teria óbvia vocação de, sem hostilizar a referida actividade, especializar-se no chamamento aos abstencionistas, aqueles que precisamente o têm por estarem à espera de um ideário de autenticidade e de legitimidade. E essa força nova deve ter como principal imperativo o resistir à tentação do Maquiavelismo, a concupiscência sem escrúpulos do poder, isto é, o não se tornar ela própria uma partidocracia, preferindo a todas as conquistas políticas imediatas, a confirmação da sua coerência e pureza de princípios.
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PARTIDOS E PARTIDOCRACIA - 2
Já o sol me vai perto do ocaso e nem eu sou historiador, para que pudesse escrever a história (nem que fosse só a história breve) da Partidocracia em Portugal.
Isso não me impede, porém, de visionar as linhas gerais do tema empolgante e profundo. Dentro dele, eu vejo processar-se toda a moderna Revolução portuguesa, o nosso 1789 caminhando, embora com passo mais lento, para o mesmo fim tenebroso.
A nossa Revolução portuguesa ou a nossa Revolução francesa?
Pois não eram franceses os seus princípios, afrancesados os seus executores, e nela não influiu poderosamente, no princípio, a peste ideológica de Napoleão, embora vencido, cá nos deixou, e no fim, por exemplo, a influência da França liberalista de Luis Filipe?
E agora vemos claramente que foi na França de 1789 que se gerou e veio a nascer a Partidocracia. E isso aconteceu precisamente quando a constituição tradicional foi violada e rejeitada, ao ser contestada a autoridade do Rei e substituído o voto por "estados" pelo voto por "cabeças".
Mas como este sufrágio dos indivíduos não pode exprimir mais do que o seu atomismo nem dar de si uma genuína síntese orgânica, teve de aparecer, em vez da organicidade natural dos "estados", a organicidade artificial e patológica dos "partidos" que por isso se caracterizavam como partidos partidocráticos, por isso e também porque por outro lado os envenenava a concupiscência do poder, na medida em que se entregava à sua incompetência o poder supremo roubado ao monarca. Aos "estados" da ordem antiga se substituíam com poderes majestáticos os novos "estados" espúrios dos partidos, que não eram mais do que a expressão das seitas ideológicas, dos clubes de agitação e conspiração, das sociedades secretas, dos grupos de pressão plutocrática ou oclocrática.
Isso não me impede, porém, de visionar as linhas gerais do tema empolgante e profundo. Dentro dele, eu vejo processar-se toda a moderna Revolução portuguesa, o nosso 1789 caminhando, embora com passo mais lento, para o mesmo fim tenebroso.
A nossa Revolução portuguesa ou a nossa Revolução francesa?
Pois não eram franceses os seus princípios, afrancesados os seus executores, e nela não influiu poderosamente, no princípio, a peste ideológica de Napoleão, embora vencido, cá nos deixou, e no fim, por exemplo, a influência da França liberalista de Luis Filipe?
E agora vemos claramente que foi na França de 1789 que se gerou e veio a nascer a Partidocracia. E isso aconteceu precisamente quando a constituição tradicional foi violada e rejeitada, ao ser contestada a autoridade do Rei e substituído o voto por "estados" pelo voto por "cabeças".
Mas como este sufrágio dos indivíduos não pode exprimir mais do que o seu atomismo nem dar de si uma genuína síntese orgânica, teve de aparecer, em vez da organicidade natural dos "estados", a organicidade artificial e patológica dos "partidos" que por isso se caracterizavam como partidos partidocráticos, por isso e também porque por outro lado os envenenava a concupiscência do poder, na medida em que se entregava à sua incompetência o poder supremo roubado ao monarca. Aos "estados" da ordem antiga se substituíam com poderes majestáticos os novos "estados" espúrios dos partidos, que não eram mais do que a expressão das seitas ideológicas, dos clubes de agitação e conspiração, das sociedades secretas, dos grupos de pressão plutocrática ou oclocrática.
Nessa obra magistral de O. Martins está retratada toda a partidocracia do seu século, com a refutação dos seus princípios e a relação dos seus erros e crimes sem número. Mas convém sempre destacar entre eles o que se pode chamar os dois pecados originais da partidocracia, os seus caracteres constitucionais: de um lado, o seu falso representativismo em que os partidos se substituíram aos estados numa artificial ou patológica organicidade; do outro lado, a rebeldia contra o poder real (ou na falta do Rei, contra aquele mínimo de soberania central e suprema que em seu lugar a sociedade tem pragmaticamente de improvisar), rebeldia tendendo para a total usurpação.
Com esses dois elementos essenciais da partidocracia é que se fez ao longo de quase dois séculos "a nossa revolução Francesa" e destruição de uma pátria. Desde o princípio ferida de morte, a Monarquia (e com ela o país) sustentou-se uma longa luta para salvar algo do seu princípio com a ficção da doação da Carta e as tentativas de reforçar o poder pessoal do Rei, mas tinha que se chegar ao fim. Na própria pessoa do Rei se veio a personificar a morte da Pátria. A França viu Luís XVI no cadafalso. Nós tivemos o horror de dois regicídios: o regicídio moral, incruento de D. Miguel e o regicídio cruento de D. Carlos.
Não lembrando já a morte também trágica de D. Pedro, golfando sangue da sua doença, mas sangrando-lhe também a alma no desespero de se ver acabar como chefe de uma canhalocracia a que o levara o desvario ideológico e a traição secessionista.
Com esses dois elementos essenciais da partidocracia é que se fez ao longo de quase dois séculos "a nossa revolução Francesa" e destruição de uma pátria. Desde o princípio ferida de morte, a Monarquia (e com ela o país) sustentou-se uma longa luta para salvar algo do seu princípio com a ficção da doação da Carta e as tentativas de reforçar o poder pessoal do Rei, mas tinha que se chegar ao fim. Na própria pessoa do Rei se veio a personificar a morte da Pátria. A França viu Luís XVI no cadafalso. Nós tivemos o horror de dois regicídios: o regicídio moral, incruento de D. Miguel e o regicídio cruento de D. Carlos.
Não lembrando já a morte também trágica de D. Pedro, golfando sangue da sua doença, mas sangrando-lhe também a alma no desespero de se ver acabar como chefe de uma canhalocracia a que o levara o desvario ideológico e a traição secessionista.
Refs.:
Juan Vallet de Goytisolo (Barcelona, 21.2.1917 – Madrid, 25.11.2011)
1962 - La Crise du Droit, Quebec, Union International des Oeuvres de Formation Civique d'Action Doctrinale selon le Droit Naturel et Chrétien [pdf]
1968 - Sociedad de Masas y Derecho, Madrid, Taurus [pdf]
Juan Vallet de Goytisolo (Barcelona, 21.2.1917 – Madrid, 25.11.2011)
1962 - La Crise du Droit, Quebec, Union International des Oeuvres de Formation Civique d'Action Doctrinale selon le Droit Naturel et Chrétien [pdf]
1968 - Sociedad de Masas y Derecho, Madrid, Taurus [pdf]