Corrupção e Regimes
Mário Saraiva
A incidência da corrupção não é de modo algum indiferente a natureza dos poderes; uns favorecem-na, outros contrariam-na. Uma das calamidades inseparáveis da Partidocracia é, como as experiências têm sobejamente mostrado, a proliferação das práticas corruptas inseridas em todas as estruturas funcionais do Estado. A génese do fenómeno é facilmente compreensível.
Sendo os partidos políticos a única base institucional do regime - que é como quem diz a via exclusiva de acesso às posições de mando e de influência - eles apresentam-se, por conseguinte, como a entrada franqueada para os lugares rendosos e de satisfação das maiores cobiças. Aos senhores do poder político, feitos donos do Estado, ficam-lhes nas mãos os negócios públicos. De aí em diante os comportamentos dos senhores governantes, face às tentadoras circunstâncias que os rodeiam, dependerão da sua honestidade pessoal, ou da ausência desta.
Decerto que nos partidos políticos podem existir pessoas idealistas, sérias e dignas, mas o que há a notar é que, pelas privilegiadas potencialidades que o regime partidocrático lhes proporciona, os partidos constituem o meio ótimo para os arrivistas se instalarem e aí desenvolverem as suas sagacidades em ordem às pretensões que os motivam.
Quando chega a vez do chefe partidário formar governo esses elementos, que em geral se fazem os mais salientes e ativos na militância, terão lugares garantidos no ministério. E aí entra o joio a misturar-se no trigo...
As boas intenções que porventura animem um primeiro-ministro são, logo de início, inevitavelmente, travadas pela constrição de escolher o elenco governativo no limitado e restrito âmbito do seu partido. Encontra-se aqui outro prejuízo do «partidarismo»: o de excluir as capacidades nacionais, sejam estas de outros partidos, ou desligadas de qualquer partido. Indubitavelmente ficarão desaproveitados os melhores e mais isentos servidores da Res-Pública. Mas continuemos seguindo o raciocínio.
Os postos de decisão, ou de simples influência nos negócios públicos dos níveis superiores aos inferiores, toda a gente sabe quanto se prestam ao suborno e a rendosas negociatas. Todos os portugueses mais ou menos conhecem a história da corrupção. Ela está descrita, dia-a-dia, nas páginas dos jornais honrados, e apontada à observância da justiça. Porém, a qual justiça? Eis uma questão em aberto.
Nas sucessivas alternâncias do poder dos grandes partidos, que são da regra eleitoralista, qual destes pode, em verdade, orgulhar-se de passado irrepreensível dos seus membros providos de responsabilidades administrativas? E nos casos suspeitos haverá lembrança de algum inquérito ter chegado a fim conclusivo?
A natureza humana é de si fraca às tentações do dinheiro e os partidos, feitos como estão agências de colocações lucrativas (como aliás sempre foram), suscitam a afluência de potenciais corruptos. Isto não é maldizer, porque é da lógica da vida real. E volta-nos a pergunta: qual justiça a impedir e a castigar exemplarmente a corrupção do governo?
Desde o ponto em que os poderes de origem política por tendência orgânica se acham predispostos à desculpa e ao favor, dos seus adeptos, onde encontrar a autoridade necessária e eficaz para o efeito? Por sobre os governos, na Presidência da República, como pode supor-se? Repare-se então que as Presidenciais sofrem também de inabilidade por serem exatamente da mesma natureza político-partidarista. E de tal forma que nem sempre conseguem fugir a suspeitos contágios de cor partidária. O atual caso Melancia/Macau, não devidamente esclarecido perante a opinião pública, é paradigmático.
Na Partidocracia política vêem-se de sobra motivos propícios à prática corrupta, e não se divisa uma jurisdição que rigorosamente a combata e vença. Quererá dizer alguma coisa sobre este ponto o Dr. Mário Soares, que nas suas manifestadas apetências intelectuais de doutrinador do Estado, nos fala de «República moderna»? Convinha, porque esta dúvida é do País e o momento de propaganda eleitoral é azado à explicação.
Para nós somente um Poder Nacional - isto é, identificado historicamente com a Nação, e, portanto, independente e acima dos problemas políticos ocasionais da República, poderá exercer essas funções desejadas (e tão precisas!) de anticorrupção.
E que poder análogo é possível no sistema presidencialista? Acaso o de um Presidente da República? Há-de ver-se que basta a originária sujeição eleitoral para tornar as presidências calculistas e presas das conveniências e das inconveniências condicionantes do ganho ou da perda de votos e, portanto, para lhes dificultar a imparcialidade e a justiça, tanto mais quanto as pessoas envolvidas forem credoras de importantes e necessários apoios.
Será evidente, para qualquer desempoeirada e lúcida inteligência, que a solução está num poder extrapolítico e não eletivo, desde que - acentue-se! - de uma Monarquia constitucionalmente atenta às lições da História e adequada às exigências da atualidade. Uma dessas exigências está precisamente em desvincular o Poder Judicial de um ministro, por força agente de um governo político-partidário; outra diz respeito ao artigo 224° da Constituição, o qual absurdamente põe nas mãos da classe política a designação dos juízes do Tribunal Constitucional, quando o Poder político é que pode ser julgado; outra, ainda, refere-se à inerme Provedoria da Justiça, porquanto o titular é designado pelos partidos políticos na Assembleia.
Não é concebível que o Poder Judicial, na soberana dignidade que lhe compete, esteja de algum modo dependente de um governo partidocrático. A sua autonomia perante o executivo é imprescindível, até porque um dos seus atributos será o de julgar os próprios governos.
A Realeza hereditária, por virtude da sua legitimidade de direito histórico, está apta a solucionar esta questão, que é insuperável para uma Presidência, uma vez que a questão é, sobretudo, de instituições e não tanto de pessoas.
«Fiel guardador da justiça» era o primeiro encargo do ofício de Rei, antes de «Procurador dos Descaminhos do Reino», como lhe chamavam os antigos, e hoje, diríamos, Fiscal cuidadoso da Administração Pública. «Pela Lei e Pela Grei», síntese admirável, que a Partidocracia vitoriosa em Évora-Monte, e em benefício próprio, retirou da insígnia real.
O absolutismo totalitarista dos partidos políticos - a que por ironia deram o nome de «Liberalismo» - inventou a designação para o rei de «Poder Moderador» (expressão que pouco mais diz que nada) de todo impotente para cortar os tentáculos sugadores da corrupção.
Não há maneira de entender a Autoridade real desprovida de meios de ação. E eis-nos aqui outra vez sob o jugo despótico do partidarismo político. As Forças Armadas, porque são nacionais e não políticas, não podem em boa razão ser comandadas por governos de partidos políticos. conceito invocado da supremacia da «legalidade civil» é ardiloso. Militares e civis fazem parte do todo nacional, mas os civis não são por si só a Nação, e muito menos o é a classe política.
A subalternidade das Forças Armadas à oligarquia dos «políticos» é, portanto, um desregramento e uma violência, tão imoral como no que respeita ao Poder Judicial. Esquece-se, inclusivamente, que foram as Armas que fizeram a Nação (S. Mamede) e a sustentaram (Aljubarrota, Restauração, etc.). Concordamos que o problema, posto em termos exatos, é agora irresolúvel, à falta de um órgão soberano nacional. O Estado será sempre incompleto, se Ihe faltar o Rei.
As realidades mandam que se reponha a supremacia da Justiça, restabelecendo o único Poder histórico legítimo.
[negritos acrescentados]
Sendo os partidos políticos a única base institucional do regime - que é como quem diz a via exclusiva de acesso às posições de mando e de influência - eles apresentam-se, por conseguinte, como a entrada franqueada para os lugares rendosos e de satisfação das maiores cobiças. Aos senhores do poder político, feitos donos do Estado, ficam-lhes nas mãos os negócios públicos. De aí em diante os comportamentos dos senhores governantes, face às tentadoras circunstâncias que os rodeiam, dependerão da sua honestidade pessoal, ou da ausência desta.
Decerto que nos partidos políticos podem existir pessoas idealistas, sérias e dignas, mas o que há a notar é que, pelas privilegiadas potencialidades que o regime partidocrático lhes proporciona, os partidos constituem o meio ótimo para os arrivistas se instalarem e aí desenvolverem as suas sagacidades em ordem às pretensões que os motivam.
Quando chega a vez do chefe partidário formar governo esses elementos, que em geral se fazem os mais salientes e ativos na militância, terão lugares garantidos no ministério. E aí entra o joio a misturar-se no trigo...
As boas intenções que porventura animem um primeiro-ministro são, logo de início, inevitavelmente, travadas pela constrição de escolher o elenco governativo no limitado e restrito âmbito do seu partido. Encontra-se aqui outro prejuízo do «partidarismo»: o de excluir as capacidades nacionais, sejam estas de outros partidos, ou desligadas de qualquer partido. Indubitavelmente ficarão desaproveitados os melhores e mais isentos servidores da Res-Pública. Mas continuemos seguindo o raciocínio.
Os postos de decisão, ou de simples influência nos negócios públicos dos níveis superiores aos inferiores, toda a gente sabe quanto se prestam ao suborno e a rendosas negociatas. Todos os portugueses mais ou menos conhecem a história da corrupção. Ela está descrita, dia-a-dia, nas páginas dos jornais honrados, e apontada à observância da justiça. Porém, a qual justiça? Eis uma questão em aberto.
Nas sucessivas alternâncias do poder dos grandes partidos, que são da regra eleitoralista, qual destes pode, em verdade, orgulhar-se de passado irrepreensível dos seus membros providos de responsabilidades administrativas? E nos casos suspeitos haverá lembrança de algum inquérito ter chegado a fim conclusivo?
A natureza humana é de si fraca às tentações do dinheiro e os partidos, feitos como estão agências de colocações lucrativas (como aliás sempre foram), suscitam a afluência de potenciais corruptos. Isto não é maldizer, porque é da lógica da vida real. E volta-nos a pergunta: qual justiça a impedir e a castigar exemplarmente a corrupção do governo?
Desde o ponto em que os poderes de origem política por tendência orgânica se acham predispostos à desculpa e ao favor, dos seus adeptos, onde encontrar a autoridade necessária e eficaz para o efeito? Por sobre os governos, na Presidência da República, como pode supor-se? Repare-se então que as Presidenciais sofrem também de inabilidade por serem exatamente da mesma natureza político-partidarista. E de tal forma que nem sempre conseguem fugir a suspeitos contágios de cor partidária. O atual caso Melancia/Macau, não devidamente esclarecido perante a opinião pública, é paradigmático.
Na Partidocracia política vêem-se de sobra motivos propícios à prática corrupta, e não se divisa uma jurisdição que rigorosamente a combata e vença. Quererá dizer alguma coisa sobre este ponto o Dr. Mário Soares, que nas suas manifestadas apetências intelectuais de doutrinador do Estado, nos fala de «República moderna»? Convinha, porque esta dúvida é do País e o momento de propaganda eleitoral é azado à explicação.
Para nós somente um Poder Nacional - isto é, identificado historicamente com a Nação, e, portanto, independente e acima dos problemas políticos ocasionais da República, poderá exercer essas funções desejadas (e tão precisas!) de anticorrupção.
E que poder análogo é possível no sistema presidencialista? Acaso o de um Presidente da República? Há-de ver-se que basta a originária sujeição eleitoral para tornar as presidências calculistas e presas das conveniências e das inconveniências condicionantes do ganho ou da perda de votos e, portanto, para lhes dificultar a imparcialidade e a justiça, tanto mais quanto as pessoas envolvidas forem credoras de importantes e necessários apoios.
Será evidente, para qualquer desempoeirada e lúcida inteligência, que a solução está num poder extrapolítico e não eletivo, desde que - acentue-se! - de uma Monarquia constitucionalmente atenta às lições da História e adequada às exigências da atualidade. Uma dessas exigências está precisamente em desvincular o Poder Judicial de um ministro, por força agente de um governo político-partidário; outra diz respeito ao artigo 224° da Constituição, o qual absurdamente põe nas mãos da classe política a designação dos juízes do Tribunal Constitucional, quando o Poder político é que pode ser julgado; outra, ainda, refere-se à inerme Provedoria da Justiça, porquanto o titular é designado pelos partidos políticos na Assembleia.
Não é concebível que o Poder Judicial, na soberana dignidade que lhe compete, esteja de algum modo dependente de um governo partidocrático. A sua autonomia perante o executivo é imprescindível, até porque um dos seus atributos será o de julgar os próprios governos.
A Realeza hereditária, por virtude da sua legitimidade de direito histórico, está apta a solucionar esta questão, que é insuperável para uma Presidência, uma vez que a questão é, sobretudo, de instituições e não tanto de pessoas.
«Fiel guardador da justiça» era o primeiro encargo do ofício de Rei, antes de «Procurador dos Descaminhos do Reino», como lhe chamavam os antigos, e hoje, diríamos, Fiscal cuidadoso da Administração Pública. «Pela Lei e Pela Grei», síntese admirável, que a Partidocracia vitoriosa em Évora-Monte, e em benefício próprio, retirou da insígnia real.
O absolutismo totalitarista dos partidos políticos - a que por ironia deram o nome de «Liberalismo» - inventou a designação para o rei de «Poder Moderador» (expressão que pouco mais diz que nada) de todo impotente para cortar os tentáculos sugadores da corrupção.
Não há maneira de entender a Autoridade real desprovida de meios de ação. E eis-nos aqui outra vez sob o jugo despótico do partidarismo político. As Forças Armadas, porque são nacionais e não políticas, não podem em boa razão ser comandadas por governos de partidos políticos. conceito invocado da supremacia da «legalidade civil» é ardiloso. Militares e civis fazem parte do todo nacional, mas os civis não são por si só a Nação, e muito menos o é a classe política.
A subalternidade das Forças Armadas à oligarquia dos «políticos» é, portanto, um desregramento e uma violência, tão imoral como no que respeita ao Poder Judicial. Esquece-se, inclusivamente, que foram as Armas que fizeram a Nação (S. Mamede) e a sustentaram (Aljubarrota, Restauração, etc.). Concordamos que o problema, posto em termos exatos, é agora irresolúvel, à falta de um órgão soberano nacional. O Estado será sempre incompleto, se Ihe faltar o Rei.
As realidades mandam que se reponha a supremacia da Justiça, restabelecendo o único Poder histórico legítimo.
[negritos acrescentados]
A Lei Constitucional n.º 1/89 - Diário da República n.º 155/1989, Suplemento n.º 1, Série I de 1989-07-08, em vigor a partir de 1989-08-07, estabelecera:
Artigo 224.º
(Composição e estatuto dos juízes)
1. O Tribunal Constitucional é composto por treze juízes, sendo dez designados pela Assembleia da República e três cooptados por estes.
2. Seis de entre os juízes designados pela Assembleia da República ou cooptados são obrigatoriamente escolhidos de entre juízes dos restantes tribunais e os demais de entre juristas.
3. Os juízes do Tribunal Constitucional são designados por seis anos.
4. O Presidente do Tribunal Constitucional é eleito pelos respectivos juízes.
5. Os juízes do Tribunal Constitucional gozam das garantias de independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade e estão sujeitos às incompatibilidades dos juízes dos restantes tribunais.
6. A lei estabelece as demais regras relativas ao estatuto dos juízes do Tribunal Constitucional.
Artigo 224.º
(Composição e estatuto dos juízes)
1. O Tribunal Constitucional é composto por treze juízes, sendo dez designados pela Assembleia da República e três cooptados por estes.
2. Seis de entre os juízes designados pela Assembleia da República ou cooptados são obrigatoriamente escolhidos de entre juízes dos restantes tribunais e os demais de entre juristas.
3. Os juízes do Tribunal Constitucional são designados por seis anos.
4. O Presidente do Tribunal Constitucional é eleito pelos respectivos juízes.
5. Os juízes do Tribunal Constitucional gozam das garantias de independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade e estão sujeitos às incompatibilidades dos juízes dos restantes tribunais.
6. A lei estabelece as demais regras relativas ao estatuto dos juízes do Tribunal Constitucional.
Mário Saraiva, Corrupção e Regimes, Frontalidade - Ideias, Figuras e Factos, Lisboa, Universitária Editora, 1995, pp. 65-69.