Um mestre da Esperança
José Manuel Quintas
Mário Saraiva acreditava que uma Restauração de Portugal seria possível se os portugueses conseguissem estabelecer uma Autêntica Democracia, ou seja, um sistema político que realmente representasse a Nação portuguesa. Isso incluiria, na Assembleia da República, não apenas os partidos políticos, mas também representantes dos sindicatos, das associações profissionais, económicas, sociais e cívicas. Ficando assegurada a representação da diversidade ideológica e social da nação portuguesa, a Instituição Real seria naturalmente incumbida de garantir a sua coesão e continuidade histórica, assumindo com independência as três Supremas Magistraturas Nacionais - Justiça, Diplomacia e Forças Armadas.
O Doutor Mário António Caldas de Melo Saraiva faleceu no Vilar (Cadaval) no passado dia 28 de Maio de 1998.
Respondendo aqui ao apelo do Eng. Sousa Cardoso para que apresente alguns traços da vida e obra desse nosso querido amigo comum, impõe-se-me antes de mais um muito sentido agradecimento e uma confissão.
Agradecendo ao Senhor a graça que me concedeu no conhecimento e amizade do Doutor Mário Saraiva, não posso deixar de desocultar, nestas minhas primeiras palavras após a sua morte, o fundo significado que o seu mestrado exerceu sobre mim. Quando o conheci, em Dezembro de 1992, encontrava-me no limiar de um intenso e profundo processo de renascimento interior pelo reencontro da Fé, mas foi por intermédio da leitura da sua obra, e pela amizade com que me premiou, que verdadeiramente se firmou em mim a projeção no caminho de uma raciocinada busca das raízes e do sentido da portugalidade.
Do que foi a plurifacetada vida e obra desse meu Mestre, se terá de escrever um dia com a minúcia e o destaque merecidos, alinhando aqui apenas alguns dos mais salientes traços biográficos da sua obra em prol de Portugal.
Quando conheci o Doutor Mário Saraiva, a sua obra contava já com alguma projeção internacional. Tanto como doutrinador monárquico, como estudioso da obra de Fernando Pessoa, ou da vida e ação do rei D. Sebastião, a sua obra ia atingindo já o Brasil ou, em traduções, a França, Marrocos, Espanha e mesmo a Bulgária. Não obstante tão larga irradiação internacional, a sua obra permanecia quase ignorada nos nossos meios políticos e académicos. À medida que o fui lendo foram-se-me tornando claras duas flagrantes razões para essa "ignorância". Mário Saraiva expressava ideias e conceitos arrepiantes aos lugares-comuns do nosso meio e época, para mais escritos num forte, claro e elegante português, de todo estranho aos estrangeirismos mascavados que entre nós passam como timbres de bom estilo.
Personalidade de referência da terceira geração do Integralismo Lusitano, Mário Saraiva sofria afinal o mesmo destino dos seus mestres. Começando pela incompreensão, a deturpação, e mesmo a calúnia, após a falhada tentativa de apropriação da sua doutrina por destacadas figuras do Estado Novo, os integralistas vieram também a sofrer o ostracismo que é votado às vozes criticamente incómodas e divergentes.
Mário Saraiva incomodou e, estou certo, continuará a incomodar aqueles que continuarem agarrados ao pensamento estrangeirado, saciado e orgulhoso, que nos tem dominado. Incomodou porque foi um pensador que soube vivificar o legado dos seus mestres, fazendo emergir a cada passo da sua própria obra o filão mais profundo do Integralismo Lusitano, esse que afirma que integrar quer dizer, rigorosamente, integrar a Nação transviada na diretriz histórica que a formou e engrandeceu.
Mário Saraiva era monárquico por tradição familiar. Para se entender o seu alto magistério em prol de um "reaportuguesamento de Portugal", importa notar que o era também, e sobretudo, por raciocinada conclusão.
Mário Saraiva era filho do Major José Augusto Saraiva, um distinto oficial - foi o mais jovem Oficial Superior no seu tempo - que veio ser afastado do serviço e demitido do Exército por ter proclamado, em 1919, conjuntamente com algumas centenas de oficiais, a "Monarquia do Norte". O Major José Augusto Saraiva foi sentenciado sem julgamento quando dominava a cena política o Partido Republicano Português (Democrático de Afonso Costa) e a quem Oliveira Salazar viria a recusar a reintegração, bem como a dos restantes oficiais. Mário Saraiva sentiu, pois, bem próximo e desde tenra idade, o sacrifício dos que se não vergam na luta pelo ideal da Monarquia portuguesa.
Foi, porém, como estudante em Coimbra, que se deu nele uma refletida e consciente adesão ao ideal. No seu próprio testemunho, foi o verbo de António Sardinha, ecoando ainda na atmosfera envolvente do meio académico, que o firmou na Verdade Portuguesa. Mário Saraiva chegou a Coimbra em 1932, vindo naturalmente pouco depois a filiar-se no movimento pós-integralista liderado por Alberto de Monsaraz e Francisco Rolão Preto - o Nacional-Sindicalismo. Depois desse movimento ter sido infiltrado, desmantelado e, por fim, proibido por Salazar, Mário Saraiva não deixou de continuar ao serviço das puras ideias que o seu espírito e coração haviam eleito.
Concluída a formatura em Medicina, em 1935, a par da sua atividade profissional, encontramo-lo ao lado de Mário Cardia fazendo a defesa, no Jornal do Médico, e pela primeira vez em Portugal, de um Serviço Nacional de Saúde.
A sua estreia como doutrinado monárquico deu-se em 1944, ao publicar o livro Claro Dilema. Saudado pelos mestres Hipólito Raposo e Alberto de Monsaraz, ali se iniciou verdadeiramente a sua longa e fecunda carreira de doutrinador sob a divisa do Integralismo Lusitano. Sem nunca deixar de exercer a profissão médica - onde se distinguiu, entre tantas atividades, por ter criado a primeira consulta-dispensário do Instituto Nacional de Assistência aos Tuberculosos – estava já em lugar de destaque na campanha restauracionista de 1951 ao lado de António Jacinto Ferreira no jornal O Debate.
A sua consagração como doutrinador deu-se em meados da década de 50, nas páginas do jornal A Voz. Em notável desempenho polémico, durante cerca de um ano (entre 1954 e 1955), aí defendeu o ideário integralista das arremetidas de alguns "monárquicos" salazaristas, revelando plenamente a sua invulgar capacidade dialética, segurança e profundidade doutrinárias.
O Integralismo Lusitano deixou de existir enquanto organização política em 1933, vindo os mestres, em 1950, a entregar às novas gerações o seu testamento político num documento intitulado "Portugal Restaurado pela Monarquia". Às novas gerações caberia doravante, recolhidos os ensinamentos, prosseguir adiante.
Em 1960, coube a Mário Saraiva entrar com audácia a desbravar os caminhos do neointegralismo. Importa reter aqui, até pela flagrante atualidade, os traços essenciais desse seu decisivo contributo político e doutrinário.
Mário Saraiva partiu da seguinte asserção: "A questão política, tal como tem sido posta nos termos fratricidas de monárquicos contra republicanos e de republicanos contra monárquicos, não pode conduzir a nenhuma solução nacional".
Ao reavaliar a questão política, Mário Saraiva veio dizer aos restantes monárquicos que sobre eles pendia a responsabilidade de desfazer o velho sofisma que dava por contraditório o primado da República com o conceito monárquico. Aos monárquicos exigia-se a restituição da República ao seu elevado conceito de vivência em plenitude de direitos cívicos, de insofismável liberdade do Povo nos assuntos da sua governação, de autonomia administrativa do País.
Na perspetiva de Mário Saraiva, o problema político essencial a que havia que dar resposta não se distinguia do que havia sido formulado, em 1914, pelos primeiros mestres integralistas: como fazer a síntese da autoridade régia com as liberdades republicanas?
Sendo diferentes as condições nos anos 60, diferentes haveriam de ser as soluções. Por ser um tradicionalista na autêntica acepção da palavra, isto é, rigorosamente progressivo, propunha modificações firmando-se nas novas realidades e na experiência. Os primeiros integralistas haviam afirmado que "o Rei governa, mas não administra"; Mário Saraiva irá afirmar que "O Rei não deve governar, nem administrar" - a instauração teria de colocar o Rei a chefiar tudo o que não fosse discutível no plano nacional, isto é, o Poder Judicial, a Diplomacia e as Forças Armadas.
O fulcro da sua argumentação era bem claro e lúcido. Uma República de carácter verdadeiramente nacional exige que a sua suprema magistratura seja também nacional, isto é, independente na origem como garantia da imparcialidade e da justiça, e representativa da totalidade da grei e da sua continuidade histórica. Ora, apenas o Rei, chefe indiscutível e personificação da Pátria, está em condições de exercer, com independência e isenção, a Suprema Magistratura da República.
Em 1970, a Comissão Doutrinária da Causa Monárquica acabou por acolher a sua tese, adotando a obra Razões Reais como doutrina oficial. Coube a Pequito Rebelo, Mestre integralista da primeira geração, "a responsabilidade de não ficar calado perante as novas manifestações daquele pensamento". A doutrina de Mário Saraiva, afirmou então Pequito Rebello, "é realmente um renovo doutrinário, primaveril, bem ligado à velha cepa, fiel à sua natureza, à sua espécie, à sua raíz, mas ao mesmo tempo com o viço, a frescura, a singeleza das cousas novas, das cousas recém-nascidas" (O Debate, 11 de Junho de 1970).
Naquela época, Mário Saraiva ocupava já um lugar de reconhecido destaque, quer como doutrinador, quer como organizador das actividades em que velhos e novos integralistas se achavam envolvidos. Fora um dos fundadores da Renovação Portuguesa e um dos mais destacados impulsionadores da Convergência Monárquica, encontrando-se então na primeira linha da reativação do movimento editorial monárquico que, em finais dos anos 60, estivera prestes a paralisar. Na verdade, depois de finadas iniciativas como a do "GAMA" ou da "Pro Domo", foi através da "Biblioteca do Pensamento Político", de que Mário Saraiva foi mentor e um dos principais organizadores, que verdadeiramente se reatou, naqueles anos, a linha editorial integralista. E foi o próprio Luís de Almeida Braga quem, acedendo ao pedido do discípulo, inaugurou a nova editora trazendo a público aquela que ficaria como a sua última obra - Espada ao Sol. Na entrega dessa sua derradeira obra, se entregava simbolicamente toda uma herança que importava preservar e acrescentar. Para o Mestre era como que o reiterar de que se depositava o testemunho em boas e seguras mãos; ao discípulo a plena e responsável assunção da missão de continuar vivificando aquele precioso legado.
Mário Saraiva via bem a necessidade de não deixar apagar a chama do ideal, da inteligência e da esperança, que iluminasse as novas gerações monárquicas. Mas, a par da formação do escol capaz de dirigir o País no retorno à sua Tradição, firmara-se nele também o sentido do dever que assiste aos monárquicos no conselho devido ao Herdeiro do Trono, para que bem dirija a barca da Casa Real por entre os baixios da Política. E foi tendo na devida conta o notável perfil intelectual e político de Mário Saraiva que Sua Alteza Real, D. Duarte Pio João de Bragança, lhe veio a atribuir a missão de constituir e secretariar o seu Conselho Privado. Uma simples indicação de alguns dos nomes mobilizados por Mário Saraiva em tão alta missão é suficiente para avaliar da qualidade daquele órgão aquando da sua formação: José Pequito Rebelo, Leão Ramos Ascensão, António Jacinto Ferreira, João Ameal, Francisco Caldeira Cabral, António Lino, Henrique Barrilaro Ruas, Nuno Laboreur Cardoso, Henrique Martins de Carvalho, Gonçalo Ribeiro Telles, Teresa Martins de Carvalho.
Mário Saraiva, por temperamento e convicção avesso às teias dos cargos dos políticos profissionais, começava então a revelar-se o prolixo escritor que conhecemos nestes últimos anos. Fosse nas páginas do Consciência Nacional (que dirigiu) ou em jornais como O Dia, Correio da Manhã, etc., ainda estão bem vivos, na memória de todos, os breves e incisivos artigos que, com regularidade, nos ia brindando. Acresciam os livros que, com acutilante regularidade, nos faziam percorrer os desacertados caminhos do presente, e nos esclareciam sobre os caminhos a percorrer no futuro.
Nestes últimos anos, apesar da vida nacional continuar persistentemente dominada por uma nauseante mediocridade intelectual, em subtil, mas eficaz bloqueio ao Espírito, nem por isso Mário Saraiva deixou de viver e vibrar em contínua esperança. Incutia-a sem cessar em todos quantos com ele tiveram a felicidade de privar. Não mais esquecerei aquelas palavras de António Sardinha dirigidas a Luís de Almeida Braga que, certo dia, Mário Saraiva me deu a ler, ao pressentir algum desânimo nas palavras que lhe dirigi:
"Acredita que a vitória será nossa, ou com a palma dos heróis, ou com a palma do martírio. Dum ou doutro modo, venceremos. Para quê fraquejar? Sejamos como a lâmpada que arde até final. Dum luceam peream. Não nascemos nós para arder? Que ardamos, ao menos, na fogueira generosa das nossas veias, deixando atrás de nós um gesto honrado de protesto, se de resgate não puder ser".
Mário Saraiva, que jamais deixou de pensar e trabalhar para que o resgate se desse, mal me viu levantar os olhos da leitura reparadora, exclamou recordando-me o seu muito querido e saudoso amigo Francisco Rolão Preto: “Isto irá, por Deus!”
Já depois de firmada a Dinastia no nascimento dos Príncipes, e sem nunca ter perdido a esperança militar - "para que os portugueses sempre apelaram em momentos de crise grave", como deixou recentemente escrito - Mário Saraiva preocupava-se sobretudo com o que, no plano político, entendia serem as responsabilidades dos monárquicos mais conscientes e ativamente pretendentes: expor as mentiras essenciais sobre as quais repousa o atual chamado "regime democrático".
No entender de Mário Saraiva, aos monárquicos exigia-se que batalhassem em torno de duas prioridades máximas: o esclarecimento e a denúncia pública do preceito constitucional que impõe o modelo presidentista à suprema magistratura da República, e a reivindicação do fim do monopólio da representação política por intermédio dos partidos político-ideológicos - tanto nos municípios, como na câmara legislativa.
A restauração de Portugal, passando pela reinstalação do Trono, ter-se-á de fazer através de uma Outra Democracia. Mantinha-se nele bem viva uma das lições mais importantes do mestrado integralista: a Monarquia da Carta fora deposta em 1910 porque, estando dominada pelos políticos das oligarquias partidárias, se tinha transformado num corpo estranho à Nação. A reinstauração do Trono, havendo de ser duradoira e útil ao País, não podia ser simples mudança de rótulo para a mesma mercadoria. O seu pensamento a este respeito era de meridiana clareza: apenas uma República restaurada, devolvida às matrizes da tradição democrática portuguesa, virá a colocar o Rei no Trono como o seu natural e estável coroamento.
E, por mais de uma vez, Mário Saraiva veio advertir para as ciladas dos "referendos de regime". Sem deixar de recordar e denunciar a recente farsa ocorrida no Brasil, identificava o referendo como a expressão máxima do democratismo e, como tal, a perversão máxima da verdadeira democracia representativa. Mário Saraiva via, aliás captando bem as tentações ditatoriais-cesaristas que se insinuam na actual febre plebiscitária, um dos mais evidentes sinais da doença profunda minando os próprios alicerces do actual regime - a sua crise de legitimidade. Deitando mão aos referendos, as oligarquias partidárias podem vir a conseguir obter um momentâneo reforço à sua legalidade, mas este nada lhes acrescentará como suporte moral, base autêntica da verdadeira legitimidade.
Dois dias antes da sua morte, a Sociedade Histórica da Independência de Portugal atribuiu o prémio "Livro 1997" à sua obra Apontamentos - História, Literatura, Política (Universitária Editora). Foi um justo reconhecimento público do valor nacional de uma obra, que não deixa de ilustrar e honrar quem o atribuiu. Mário Saraiva respondeu com um sorriso e um leve encolher de ombros. Ele sabia, melhor do que ninguém, o quanto está por fazer no desbaratar da preconceitocracia democratista e partidocrática que nos domina...
Nos seus últimos dias, por diversas vezes o visitei no seu leito de dor. Apesar de crescentemente debilitado pela doença, impressionou-me sempre com a sua persistente lucidez e vitalidade intelectual e, sobretudo, a sua inabalável Esperança.
Agora que Deus o tem nas suas mãos, temos sobre nós a responsabilidade de meditar bem nos ensinamentos contidos na sua obra e de recolher o exemplo do seu gesto honrado de protesto.
No caminho do resgate, a lição deste Mestre é imorredoira, pois dele se poderá dizer que na fogueira generosa das suas veias ardeu até final a Esperança na redenção de Portugal.
[Texto publicado no Boletim da Liga Popular Monárquica, série F, n.º 26, Abril - Junho de 1998; reedição in Mário Saraiva, Ideário, Lisboa, Universitária Editora, 2000, pp. 181-189]
Respondendo aqui ao apelo do Eng. Sousa Cardoso para que apresente alguns traços da vida e obra desse nosso querido amigo comum, impõe-se-me antes de mais um muito sentido agradecimento e uma confissão.
Agradecendo ao Senhor a graça que me concedeu no conhecimento e amizade do Doutor Mário Saraiva, não posso deixar de desocultar, nestas minhas primeiras palavras após a sua morte, o fundo significado que o seu mestrado exerceu sobre mim. Quando o conheci, em Dezembro de 1992, encontrava-me no limiar de um intenso e profundo processo de renascimento interior pelo reencontro da Fé, mas foi por intermédio da leitura da sua obra, e pela amizade com que me premiou, que verdadeiramente se firmou em mim a projeção no caminho de uma raciocinada busca das raízes e do sentido da portugalidade.
Do que foi a plurifacetada vida e obra desse meu Mestre, se terá de escrever um dia com a minúcia e o destaque merecidos, alinhando aqui apenas alguns dos mais salientes traços biográficos da sua obra em prol de Portugal.
Quando conheci o Doutor Mário Saraiva, a sua obra contava já com alguma projeção internacional. Tanto como doutrinador monárquico, como estudioso da obra de Fernando Pessoa, ou da vida e ação do rei D. Sebastião, a sua obra ia atingindo já o Brasil ou, em traduções, a França, Marrocos, Espanha e mesmo a Bulgária. Não obstante tão larga irradiação internacional, a sua obra permanecia quase ignorada nos nossos meios políticos e académicos. À medida que o fui lendo foram-se-me tornando claras duas flagrantes razões para essa "ignorância". Mário Saraiva expressava ideias e conceitos arrepiantes aos lugares-comuns do nosso meio e época, para mais escritos num forte, claro e elegante português, de todo estranho aos estrangeirismos mascavados que entre nós passam como timbres de bom estilo.
Personalidade de referência da terceira geração do Integralismo Lusitano, Mário Saraiva sofria afinal o mesmo destino dos seus mestres. Começando pela incompreensão, a deturpação, e mesmo a calúnia, após a falhada tentativa de apropriação da sua doutrina por destacadas figuras do Estado Novo, os integralistas vieram também a sofrer o ostracismo que é votado às vozes criticamente incómodas e divergentes.
Mário Saraiva incomodou e, estou certo, continuará a incomodar aqueles que continuarem agarrados ao pensamento estrangeirado, saciado e orgulhoso, que nos tem dominado. Incomodou porque foi um pensador que soube vivificar o legado dos seus mestres, fazendo emergir a cada passo da sua própria obra o filão mais profundo do Integralismo Lusitano, esse que afirma que integrar quer dizer, rigorosamente, integrar a Nação transviada na diretriz histórica que a formou e engrandeceu.
Mário Saraiva era monárquico por tradição familiar. Para se entender o seu alto magistério em prol de um "reaportuguesamento de Portugal", importa notar que o era também, e sobretudo, por raciocinada conclusão.
Mário Saraiva era filho do Major José Augusto Saraiva, um distinto oficial - foi o mais jovem Oficial Superior no seu tempo - que veio ser afastado do serviço e demitido do Exército por ter proclamado, em 1919, conjuntamente com algumas centenas de oficiais, a "Monarquia do Norte". O Major José Augusto Saraiva foi sentenciado sem julgamento quando dominava a cena política o Partido Republicano Português (Democrático de Afonso Costa) e a quem Oliveira Salazar viria a recusar a reintegração, bem como a dos restantes oficiais. Mário Saraiva sentiu, pois, bem próximo e desde tenra idade, o sacrifício dos que se não vergam na luta pelo ideal da Monarquia portuguesa.
Foi, porém, como estudante em Coimbra, que se deu nele uma refletida e consciente adesão ao ideal. No seu próprio testemunho, foi o verbo de António Sardinha, ecoando ainda na atmosfera envolvente do meio académico, que o firmou na Verdade Portuguesa. Mário Saraiva chegou a Coimbra em 1932, vindo naturalmente pouco depois a filiar-se no movimento pós-integralista liderado por Alberto de Monsaraz e Francisco Rolão Preto - o Nacional-Sindicalismo. Depois desse movimento ter sido infiltrado, desmantelado e, por fim, proibido por Salazar, Mário Saraiva não deixou de continuar ao serviço das puras ideias que o seu espírito e coração haviam eleito.
Concluída a formatura em Medicina, em 1935, a par da sua atividade profissional, encontramo-lo ao lado de Mário Cardia fazendo a defesa, no Jornal do Médico, e pela primeira vez em Portugal, de um Serviço Nacional de Saúde.
A sua estreia como doutrinado monárquico deu-se em 1944, ao publicar o livro Claro Dilema. Saudado pelos mestres Hipólito Raposo e Alberto de Monsaraz, ali se iniciou verdadeiramente a sua longa e fecunda carreira de doutrinador sob a divisa do Integralismo Lusitano. Sem nunca deixar de exercer a profissão médica - onde se distinguiu, entre tantas atividades, por ter criado a primeira consulta-dispensário do Instituto Nacional de Assistência aos Tuberculosos – estava já em lugar de destaque na campanha restauracionista de 1951 ao lado de António Jacinto Ferreira no jornal O Debate.
A sua consagração como doutrinador deu-se em meados da década de 50, nas páginas do jornal A Voz. Em notável desempenho polémico, durante cerca de um ano (entre 1954 e 1955), aí defendeu o ideário integralista das arremetidas de alguns "monárquicos" salazaristas, revelando plenamente a sua invulgar capacidade dialética, segurança e profundidade doutrinárias.
O Integralismo Lusitano deixou de existir enquanto organização política em 1933, vindo os mestres, em 1950, a entregar às novas gerações o seu testamento político num documento intitulado "Portugal Restaurado pela Monarquia". Às novas gerações caberia doravante, recolhidos os ensinamentos, prosseguir adiante.
Em 1960, coube a Mário Saraiva entrar com audácia a desbravar os caminhos do neointegralismo. Importa reter aqui, até pela flagrante atualidade, os traços essenciais desse seu decisivo contributo político e doutrinário.
Mário Saraiva partiu da seguinte asserção: "A questão política, tal como tem sido posta nos termos fratricidas de monárquicos contra republicanos e de republicanos contra monárquicos, não pode conduzir a nenhuma solução nacional".
Ao reavaliar a questão política, Mário Saraiva veio dizer aos restantes monárquicos que sobre eles pendia a responsabilidade de desfazer o velho sofisma que dava por contraditório o primado da República com o conceito monárquico. Aos monárquicos exigia-se a restituição da República ao seu elevado conceito de vivência em plenitude de direitos cívicos, de insofismável liberdade do Povo nos assuntos da sua governação, de autonomia administrativa do País.
Na perspetiva de Mário Saraiva, o problema político essencial a que havia que dar resposta não se distinguia do que havia sido formulado, em 1914, pelos primeiros mestres integralistas: como fazer a síntese da autoridade régia com as liberdades republicanas?
Sendo diferentes as condições nos anos 60, diferentes haveriam de ser as soluções. Por ser um tradicionalista na autêntica acepção da palavra, isto é, rigorosamente progressivo, propunha modificações firmando-se nas novas realidades e na experiência. Os primeiros integralistas haviam afirmado que "o Rei governa, mas não administra"; Mário Saraiva irá afirmar que "O Rei não deve governar, nem administrar" - a instauração teria de colocar o Rei a chefiar tudo o que não fosse discutível no plano nacional, isto é, o Poder Judicial, a Diplomacia e as Forças Armadas.
O fulcro da sua argumentação era bem claro e lúcido. Uma República de carácter verdadeiramente nacional exige que a sua suprema magistratura seja também nacional, isto é, independente na origem como garantia da imparcialidade e da justiça, e representativa da totalidade da grei e da sua continuidade histórica. Ora, apenas o Rei, chefe indiscutível e personificação da Pátria, está em condições de exercer, com independência e isenção, a Suprema Magistratura da República.
Em 1970, a Comissão Doutrinária da Causa Monárquica acabou por acolher a sua tese, adotando a obra Razões Reais como doutrina oficial. Coube a Pequito Rebelo, Mestre integralista da primeira geração, "a responsabilidade de não ficar calado perante as novas manifestações daquele pensamento". A doutrina de Mário Saraiva, afirmou então Pequito Rebello, "é realmente um renovo doutrinário, primaveril, bem ligado à velha cepa, fiel à sua natureza, à sua espécie, à sua raíz, mas ao mesmo tempo com o viço, a frescura, a singeleza das cousas novas, das cousas recém-nascidas" (O Debate, 11 de Junho de 1970).
Naquela época, Mário Saraiva ocupava já um lugar de reconhecido destaque, quer como doutrinador, quer como organizador das actividades em que velhos e novos integralistas se achavam envolvidos. Fora um dos fundadores da Renovação Portuguesa e um dos mais destacados impulsionadores da Convergência Monárquica, encontrando-se então na primeira linha da reativação do movimento editorial monárquico que, em finais dos anos 60, estivera prestes a paralisar. Na verdade, depois de finadas iniciativas como a do "GAMA" ou da "Pro Domo", foi através da "Biblioteca do Pensamento Político", de que Mário Saraiva foi mentor e um dos principais organizadores, que verdadeiramente se reatou, naqueles anos, a linha editorial integralista. E foi o próprio Luís de Almeida Braga quem, acedendo ao pedido do discípulo, inaugurou a nova editora trazendo a público aquela que ficaria como a sua última obra - Espada ao Sol. Na entrega dessa sua derradeira obra, se entregava simbolicamente toda uma herança que importava preservar e acrescentar. Para o Mestre era como que o reiterar de que se depositava o testemunho em boas e seguras mãos; ao discípulo a plena e responsável assunção da missão de continuar vivificando aquele precioso legado.
Mário Saraiva via bem a necessidade de não deixar apagar a chama do ideal, da inteligência e da esperança, que iluminasse as novas gerações monárquicas. Mas, a par da formação do escol capaz de dirigir o País no retorno à sua Tradição, firmara-se nele também o sentido do dever que assiste aos monárquicos no conselho devido ao Herdeiro do Trono, para que bem dirija a barca da Casa Real por entre os baixios da Política. E foi tendo na devida conta o notável perfil intelectual e político de Mário Saraiva que Sua Alteza Real, D. Duarte Pio João de Bragança, lhe veio a atribuir a missão de constituir e secretariar o seu Conselho Privado. Uma simples indicação de alguns dos nomes mobilizados por Mário Saraiva em tão alta missão é suficiente para avaliar da qualidade daquele órgão aquando da sua formação: José Pequito Rebelo, Leão Ramos Ascensão, António Jacinto Ferreira, João Ameal, Francisco Caldeira Cabral, António Lino, Henrique Barrilaro Ruas, Nuno Laboreur Cardoso, Henrique Martins de Carvalho, Gonçalo Ribeiro Telles, Teresa Martins de Carvalho.
Mário Saraiva, por temperamento e convicção avesso às teias dos cargos dos políticos profissionais, começava então a revelar-se o prolixo escritor que conhecemos nestes últimos anos. Fosse nas páginas do Consciência Nacional (que dirigiu) ou em jornais como O Dia, Correio da Manhã, etc., ainda estão bem vivos, na memória de todos, os breves e incisivos artigos que, com regularidade, nos ia brindando. Acresciam os livros que, com acutilante regularidade, nos faziam percorrer os desacertados caminhos do presente, e nos esclareciam sobre os caminhos a percorrer no futuro.
Nestes últimos anos, apesar da vida nacional continuar persistentemente dominada por uma nauseante mediocridade intelectual, em subtil, mas eficaz bloqueio ao Espírito, nem por isso Mário Saraiva deixou de viver e vibrar em contínua esperança. Incutia-a sem cessar em todos quantos com ele tiveram a felicidade de privar. Não mais esquecerei aquelas palavras de António Sardinha dirigidas a Luís de Almeida Braga que, certo dia, Mário Saraiva me deu a ler, ao pressentir algum desânimo nas palavras que lhe dirigi:
"Acredita que a vitória será nossa, ou com a palma dos heróis, ou com a palma do martírio. Dum ou doutro modo, venceremos. Para quê fraquejar? Sejamos como a lâmpada que arde até final. Dum luceam peream. Não nascemos nós para arder? Que ardamos, ao menos, na fogueira generosa das nossas veias, deixando atrás de nós um gesto honrado de protesto, se de resgate não puder ser".
Mário Saraiva, que jamais deixou de pensar e trabalhar para que o resgate se desse, mal me viu levantar os olhos da leitura reparadora, exclamou recordando-me o seu muito querido e saudoso amigo Francisco Rolão Preto: “Isto irá, por Deus!”
Já depois de firmada a Dinastia no nascimento dos Príncipes, e sem nunca ter perdido a esperança militar - "para que os portugueses sempre apelaram em momentos de crise grave", como deixou recentemente escrito - Mário Saraiva preocupava-se sobretudo com o que, no plano político, entendia serem as responsabilidades dos monárquicos mais conscientes e ativamente pretendentes: expor as mentiras essenciais sobre as quais repousa o atual chamado "regime democrático".
No entender de Mário Saraiva, aos monárquicos exigia-se que batalhassem em torno de duas prioridades máximas: o esclarecimento e a denúncia pública do preceito constitucional que impõe o modelo presidentista à suprema magistratura da República, e a reivindicação do fim do monopólio da representação política por intermédio dos partidos político-ideológicos - tanto nos municípios, como na câmara legislativa.
A restauração de Portugal, passando pela reinstalação do Trono, ter-se-á de fazer através de uma Outra Democracia. Mantinha-se nele bem viva uma das lições mais importantes do mestrado integralista: a Monarquia da Carta fora deposta em 1910 porque, estando dominada pelos políticos das oligarquias partidárias, se tinha transformado num corpo estranho à Nação. A reinstauração do Trono, havendo de ser duradoira e útil ao País, não podia ser simples mudança de rótulo para a mesma mercadoria. O seu pensamento a este respeito era de meridiana clareza: apenas uma República restaurada, devolvida às matrizes da tradição democrática portuguesa, virá a colocar o Rei no Trono como o seu natural e estável coroamento.
E, por mais de uma vez, Mário Saraiva veio advertir para as ciladas dos "referendos de regime". Sem deixar de recordar e denunciar a recente farsa ocorrida no Brasil, identificava o referendo como a expressão máxima do democratismo e, como tal, a perversão máxima da verdadeira democracia representativa. Mário Saraiva via, aliás captando bem as tentações ditatoriais-cesaristas que se insinuam na actual febre plebiscitária, um dos mais evidentes sinais da doença profunda minando os próprios alicerces do actual regime - a sua crise de legitimidade. Deitando mão aos referendos, as oligarquias partidárias podem vir a conseguir obter um momentâneo reforço à sua legalidade, mas este nada lhes acrescentará como suporte moral, base autêntica da verdadeira legitimidade.
Dois dias antes da sua morte, a Sociedade Histórica da Independência de Portugal atribuiu o prémio "Livro 1997" à sua obra Apontamentos - História, Literatura, Política (Universitária Editora). Foi um justo reconhecimento público do valor nacional de uma obra, que não deixa de ilustrar e honrar quem o atribuiu. Mário Saraiva respondeu com um sorriso e um leve encolher de ombros. Ele sabia, melhor do que ninguém, o quanto está por fazer no desbaratar da preconceitocracia democratista e partidocrática que nos domina...
Nos seus últimos dias, por diversas vezes o visitei no seu leito de dor. Apesar de crescentemente debilitado pela doença, impressionou-me sempre com a sua persistente lucidez e vitalidade intelectual e, sobretudo, a sua inabalável Esperança.
Agora que Deus o tem nas suas mãos, temos sobre nós a responsabilidade de meditar bem nos ensinamentos contidos na sua obra e de recolher o exemplo do seu gesto honrado de protesto.
No caminho do resgate, a lição deste Mestre é imorredoira, pois dele se poderá dizer que na fogueira generosa das suas veias ardeu até final a Esperança na redenção de Portugal.
[Texto publicado no Boletim da Liga Popular Monárquica, série F, n.º 26, Abril - Junho de 1998; reedição in Mário Saraiva, Ideário, Lisboa, Universitária Editora, 2000, pp. 181-189]
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