Uma biografia de António Sardinha
Teresa Maria Martins de Carvalho
Li, há pouco tempo, uma biografia de António Sardinha (António Sardinha, 1887-1925, Um intelectual no século), da autoria de Ana Isabel Sardinha Desvignes, que, suponho ser familiar do biografado, obra que me foi ofertada pelo meu amigo Gonçalo Sampaio e Melo, com a injunção de a ler e sobre ela dar a minha opinião, a que hoje me desobrigo.
O facto de ter lidado de muito perto com os integralistas, por razões de família, não me comete necessariamente tal tarefa, como se fosse pessoa muito autorizada para o fazer. António Sardinha morreu alguns anos antes de eu nascer. Nunca o conheci senão por ouvir dizer. Nem as minhas idas a Elvas, à Quinta do Bispo, passando sob o célebre aqueduto e nele lendo escrito, em azulejo «A António Sardinha, bom português que muito amou e serviu Elvas» profunda expressão de meu Pai (Hipólito Raposo) bela na sua forte simplicidade, me firmaram no sentimento e na memória a figura do escritor com o vigor necessário para dele falar com saber e autoridade.
A Senhora Dona Ana Sardinha é que foi figura da minha infância e juventude, as visitas, os risos, os presentes trocados (as célebres ameixas de Elvas, os rebuçados de ovos), os aniversários, as fotografias que enchiam a salinha e o rumorejar do grande plátano no fundo da quinta, mas isso tudo pertence a época diferente e a sentir diferente.
Mas aceitei o desafio e li o livro com empenho e convicção. Confesso que não gostei muito, não por nenhuma ofensiva à memória do escritor que foi tratado com cuidado e bastante competência, mas por me parecer bastante incompleta, não dando jus à ambição do título.
Assentar a memória de um biografado quase exclusivamente nas mesmas fontes, sendo a principal as cartas para a noiva e depois sua mulher, darão dele certamente uma imagem um pouco destorcida. Uma pessoa não é sozinha, nem mesmo só na comunicação com alguém muito querido e de que não se conhecem as contrapartidas, mas vive de muita gente, amigos e conhecidos, sobretudo de amigos que, no caso presente, se me afiguram quase inexistentes ou dados em bloco («os integralistas») como se pouco tivessem a ver com as lutas interiores do biografado. A estadia em Coimbra do jovem republicano, vagamente snob e orgulhoso das suas raízes, «esotérico» e amigo dos seus amigos, «esotéricos» ou não, não dá apesar de tudo, a convivência com os seus futuros companheiros de lutas políticas.
É certo que, sendo ateu e republicano, pouco tendo em comum com os monárquicos convictos do grupo social em que se inseria na Universidade e nos serões em casa do poeta Conde de Monsaraz, a sua caminhada para a fé e para a monarquia, por que depois tanto se bateu, não foi, com certeza, uma caminhada solitária, como nos é dado apreciar no livro, só com o convívio de alguns livros, do espírito de Barrès, da charneca alentejana e das lembranças dos avós e que teria provocado e assistido por eles só, a grande mudança da sua vida.
Não acredito que estes seus amigos (os «integralistas», assim dados em molho) não terão tido ascendente importante na conversão profunda à fé e à monarquia que marcou a vida de António Sardinha. Não sei se a acentuação dada no livro ao caminho solitário (o que de certo modo também o foi) dará cabal informação sobre este místico tonto, inebriado pelo sangue e pela raça (Era um fogo, dizia a minha mãe, que levava os rapazes todos atrás dele...) apaixonado por Portugal, pelos antigos portugueses...
Quando, suponho por volta dos anos 60, talvez festejando os quarenta anos da intelectualidade portuguesa do princípio do século XX, no SNI foi inaugurada uma exposição em que eram lembrados os escritores da época, à frente, em grande destaque aparecia António Sardinha, como sendo o introdutor do neo-tomismo em Portugal.
Tinha ido à exposição com o meu tio (José Pequito Rebelo) e olhámo-nos espantados à porta da exposição, diante de tal homenagem, descabida e falsa. Mas a ditadura tinha por força de apresentar António Sardinha, não sabia bem como, em lugar importante, como suporte da intelectualidade lusitana.
Se é certo que hoje alguns temas que lhe eram muito queridos, o valor da raça, o nacionalismo, a ruralidade, a ligação à terra e ao céu, nos parecem ultrapassados ou antes pouco «modernos», o valor da história e do «lugar», o municipalismo, a hispanidade, são temas vivos e urgentes em que se sente o calor excessivo que o escritor neles punha e que são bem modernos, agora com a «Europa» e sem o Ultramar, com a globalização e sem os caminhos abertos pelos portugueses mundo fora.
Esta quase ausência dos «integralistas», nem místicos nem tontos, na biografia apresentada, parece querer dizer que em quase nada estiveram presentes nem serviram de inspiração ao escritor, na sua caminhada interior fulgurante.
Faltou à autora desta biografia (ou quis-se limitar às fontes familiares de que dispunha) as muitas fontes que aconchegam António Sardinha e dele receberam fulgor e paixão.
Trata-se de um trabalho universitário, daí o português espesso, a linha do pensamento envolta em pesadas considerações, repetitivas e escusadas. Parece que alguns professores universitários apreciam este género de escrita, pesado e instrutivo, e desfavorecem certo despojamento estético, mais límpido e simples. Compreende-se, então esta escrita.
Não queria, no entanto, deixar de felicitar a autora pelo seu trabalho, sem ter cedido a uma crítica feroz ao seu biografado, aceitando de boa-fé e até carinho as suas «manias» que lhe granjearam alguma fama de visionário extravagante e agradecer-lhe também a coragem e a simpatia com que o fez, aproximando-se da figura de António Sardinha na sua faceta mais poética do que política.
(1ª edição no blogue lusitana antiga liberdade, Julho de 2007)
Li, há pouco tempo, uma biografia de António Sardinha (António Sardinha, 1887-1925, Um intelectual no século), da autoria de Ana Isabel Sardinha Desvignes, que, suponho ser familiar do biografado, obra que me foi ofertada pelo meu amigo Gonçalo Sampaio e Melo, com a injunção de a ler e sobre ela dar a minha opinião, a que hoje me desobrigo.
O facto de ter lidado de muito perto com os integralistas, por razões de família, não me comete necessariamente tal tarefa, como se fosse pessoa muito autorizada para o fazer. António Sardinha morreu alguns anos antes de eu nascer. Nunca o conheci senão por ouvir dizer. Nem as minhas idas a Elvas, à Quinta do Bispo, passando sob o célebre aqueduto e nele lendo escrito, em azulejo «A António Sardinha, bom português que muito amou e serviu Elvas» profunda expressão de meu Pai (Hipólito Raposo) bela na sua forte simplicidade, me firmaram no sentimento e na memória a figura do escritor com o vigor necessário para dele falar com saber e autoridade.
A Senhora Dona Ana Sardinha é que foi figura da minha infância e juventude, as visitas, os risos, os presentes trocados (as célebres ameixas de Elvas, os rebuçados de ovos), os aniversários, as fotografias que enchiam a salinha e o rumorejar do grande plátano no fundo da quinta, mas isso tudo pertence a época diferente e a sentir diferente.
Mas aceitei o desafio e li o livro com empenho e convicção. Confesso que não gostei muito, não por nenhuma ofensiva à memória do escritor que foi tratado com cuidado e bastante competência, mas por me parecer bastante incompleta, não dando jus à ambição do título.
Assentar a memória de um biografado quase exclusivamente nas mesmas fontes, sendo a principal as cartas para a noiva e depois sua mulher, darão dele certamente uma imagem um pouco destorcida. Uma pessoa não é sozinha, nem mesmo só na comunicação com alguém muito querido e de que não se conhecem as contrapartidas, mas vive de muita gente, amigos e conhecidos, sobretudo de amigos que, no caso presente, se me afiguram quase inexistentes ou dados em bloco («os integralistas») como se pouco tivessem a ver com as lutas interiores do biografado. A estadia em Coimbra do jovem republicano, vagamente snob e orgulhoso das suas raízes, «esotérico» e amigo dos seus amigos, «esotéricos» ou não, não dá apesar de tudo, a convivência com os seus futuros companheiros de lutas políticas.
É certo que, sendo ateu e republicano, pouco tendo em comum com os monárquicos convictos do grupo social em que se inseria na Universidade e nos serões em casa do poeta Conde de Monsaraz, a sua caminhada para a fé e para a monarquia, por que depois tanto se bateu, não foi, com certeza, uma caminhada solitária, como nos é dado apreciar no livro, só com o convívio de alguns livros, do espírito de Barrès, da charneca alentejana e das lembranças dos avós e que teria provocado e assistido por eles só, a grande mudança da sua vida.
Não acredito que estes seus amigos (os «integralistas», assim dados em molho) não terão tido ascendente importante na conversão profunda à fé e à monarquia que marcou a vida de António Sardinha. Não sei se a acentuação dada no livro ao caminho solitário (o que de certo modo também o foi) dará cabal informação sobre este místico tonto, inebriado pelo sangue e pela raça (Era um fogo, dizia a minha mãe, que levava os rapazes todos atrás dele...) apaixonado por Portugal, pelos antigos portugueses...
Quando, suponho por volta dos anos 60, talvez festejando os quarenta anos da intelectualidade portuguesa do princípio do século XX, no SNI foi inaugurada uma exposição em que eram lembrados os escritores da época, à frente, em grande destaque aparecia António Sardinha, como sendo o introdutor do neo-tomismo em Portugal.
Tinha ido à exposição com o meu tio (José Pequito Rebelo) e olhámo-nos espantados à porta da exposição, diante de tal homenagem, descabida e falsa. Mas a ditadura tinha por força de apresentar António Sardinha, não sabia bem como, em lugar importante, como suporte da intelectualidade lusitana.
Se é certo que hoje alguns temas que lhe eram muito queridos, o valor da raça, o nacionalismo, a ruralidade, a ligação à terra e ao céu, nos parecem ultrapassados ou antes pouco «modernos», o valor da história e do «lugar», o municipalismo, a hispanidade, são temas vivos e urgentes em que se sente o calor excessivo que o escritor neles punha e que são bem modernos, agora com a «Europa» e sem o Ultramar, com a globalização e sem os caminhos abertos pelos portugueses mundo fora.
Esta quase ausência dos «integralistas», nem místicos nem tontos, na biografia apresentada, parece querer dizer que em quase nada estiveram presentes nem serviram de inspiração ao escritor, na sua caminhada interior fulgurante.
Faltou à autora desta biografia (ou quis-se limitar às fontes familiares de que dispunha) as muitas fontes que aconchegam António Sardinha e dele receberam fulgor e paixão.
Trata-se de um trabalho universitário, daí o português espesso, a linha do pensamento envolta em pesadas considerações, repetitivas e escusadas. Parece que alguns professores universitários apreciam este género de escrita, pesado e instrutivo, e desfavorecem certo despojamento estético, mais límpido e simples. Compreende-se, então esta escrita.
Não queria, no entanto, deixar de felicitar a autora pelo seu trabalho, sem ter cedido a uma crítica feroz ao seu biografado, aceitando de boa-fé e até carinho as suas «manias» que lhe granjearam alguma fama de visionário extravagante e agradecer-lhe também a coragem e a simpatia com que o fez, aproximando-se da figura de António Sardinha na sua faceta mais poética do que política.
(1ª edição no blogue lusitana antiga liberdade, Julho de 2007)