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Moniz Barreto e a Aliança Peninsular proposta por António Sardinha (1917-1924)
José Manuel Quintas
... E à Revista de Portugal pertence a glória de guardar os ensaios críticos do malogrado Moniz Barreto e as suas crónicas de política internacional, tão ricas de actualidade e de ensinamentos. E já não falo da circunstância de ser ali que as cartas do nosso chorado Fradique viram a publicidade pela primeira vez.
​

In António Sardinha, O Espólio de Fradique (1920)
O Integralismo Lusitano visou restaurar a identidade espiritual de Portugal, inspirando-se em sete estudiosos, entre os quais se destaca Guilherme de Moniz Barreto. António Sardinha, ao articular reflexão histórica, crítica literária e análise política, atribui a Moniz Barreto um papel central na formulação da proposta de uma Aliança Peninsular, defendendo que a renovação do pensamento político português deve ancorar-se na tradição e responder aos desafios contemporâneos através de novas alianças internacionais.

Moniz Barreto é reconhecido por Sardinha como um dos mais notáveis intelectuais portugueses do seu tempo, cuja análise das relações internacionais e da política externa portuguesa antecipou os perigos das ambições imperialistas britânicas e da instabilidade europeia. Barreto defendeu que a resposta às ameaças externas deveria ser fundamentada na tradição e na cooperação peninsular, especialmente no contexto dos territórios ultramarinos.

A questão de Marrocos, recorrente nos escritos de Moniz Barreto, é considerada por Sardinha como central para a política externa da Península Ibérica. Barreto argumenta que o destino de Marrocos afeta diretamente Portugal e Espanha, e que a alienação da região a interesses externos representa um episódio da decadência peninsular, reforçando a necessidade de solidariedade entre os dois países.

No exílio, Sardinha aprofunda o contacto com a Espanha, superando preconceitos históricos e reconhecendo uma comunhão de origens e destinos entre os povos ibéricos. O hispanismo, entendido como solidariedade cultural e social, é apresentado como resposta ao avanço das potências anglo-saxónicas, destacando a necessidade de uma aliança peninsular que recupere o sentido universalista e missionário do passado de Espanha e Portugal.

Moniz Barreto caracteriza o génio peninsular pela energia de vontade, heroísmo, fé e uma concepção trágica da existência, distinguindo os povos ibéricos pela grandeza moral e inclinação para a aventura. Na literatura, este espírito manifesta-se por um lirismo robusto, teatro animado por ideias de honra e morte, e romances centrados na ação. A literatura portuguesa destaca-se pela sensibilidade e melancolia, conferindo-lhe um caráter próprio.

A defesa da aproximação entre Portugal, Espanha, Brasil e países de língua espanhola, surge como corolário das reflexões sobre o génio peninsular e a herança comum. Sardinha, apoiando-se em Moniz Barreto, sublinha que os períodos de maior prosperidade dos povos ibéricos coincidem com as alianças peninsulares, sendo o pan-hispanismo condição para a afirmação das nacionalidades de origem peninsular no mundo contemporâneo.

A unidade hispânica e a colaboração entre portugueses e castelhanos encontram expressão em múltiplos exemplos de intercâmbio cultural, científico e artístico. Sardinha evoca, a partir de Moniz Barreto, o bilinguismo literário e o cruzamento de influências que marcaram a Península na época do seu maior esplendor.

Moniz Barreto propõe a aliança peninsular como solução para a defesa dos interesses de Portugal e Espanha. A neutralidade é vista como uma ilusão perigosa; só a colaboração entre as duas nações pode assegurar o respeito pelos direitos e a integridade dos seus territórios perante as ameaças externas. Barreto reconhece a existência de uma simpatia profunda entre os povos ibéricos, mas sublinha que a eficácia da aliança depende de vantagens mútuas e de uma compreensão clara das condições históricas e políticas.

A reflexão de António Sardinha, iluminada pelo pensamento de Moniz Barreto, conduz à conclusão de que a decadência peninsular não é um destino inevitável, sendo antes o resultado da dispersão das vontades e da ausência de um princípio unificador. A história demonstra que o desentendimento e o isolamento conduziram à mediocridade e à subalternidade internacional, enquanto os períodos de maior prosperidade peninsular coincidem com a cooperação e o entendimento entre Portugal e Espanha. A superação de um passado de desentendimentos exige a recuperação da consciência de uma missão comum, fundada na solidariedade e na defesa de uma civilização própria.

Espanha e Portugal podem 
voltar a responder com confiança e vigor aos desafios do presente e do futuro se, inspirando-se nas suas tradições, restaurarem uma dualidade política capaz de os projectar moral e espiritualmente junto das nações de origem hispânica.

REFERÊNCIAS de MONIZ BARRETO
​
  • Revista de Portugal – Diversos ensaios entre 1889 e 1891, que constituem o corpo principal das citações e argumentos de Sardinha.
  • A situação geral da Europa e a política exterior de Portugal – Base para a reflexão sobre política externa, colonialismo e alianças estratégicas.
  • A literatura portuguesa contemporânea – Fonte para a análise do “génio peninsular” e das características da literatura portuguesa.


1. Citações diretas de Moniz Barreto. António Sardinha recorre com frequência a citações diretas dos escritos de Moniz Barreto, especialmente dos ensaios publicados na Revista de Portugal. Essas citações são usadas para fundamentar teses políticas, históricas e culturais no seio do pensamento integralista. Entre os exemplos mais notáveis, destacam-se:
  • Sobre política externa e colonialismo: Acerca dos interesses expansionistas britânicos sobre as colónias portuguesas, descrevendo como a Inglaterra não hesitaria em recorrer à violência para satisfazer as suas ambições, especialmente aproveitando momentos de distração da opinião europeia, como durante uma guerra continental. Esta reflexão aparece em Revista de Portugal, dezembro de 1891.
  • Sobre a questão de Marrocos: Sublinhando a importância estratégica e histórica da região marroquina para a Península, considera que uma lei da história dita que as populações peninsulares dominem ou sejam dominadas por quem controlar a região africana fronteiriça. A perda de Marrocos representa um episódio na decadência peninsular.
  • Sobre o “génio peninsular”: Moniz Barreto define o “génio peninsular” como marcado pelo heroísmo e pela fé, por uma energia de vontade, um idealismo transformador e uma religiosidade realista. Esta concepção reflete-se na literatura, produzindo um lirismo robusto e uma visão trágica e profunda da história, conforme exposto em “A literatura portuguesa contemporânea” (Revista de Portugal, 1889).
​

2. Referências bibliográficas e contextuais. Os textos de António Sardinha fazem referência explícita aos principais estudos de Moniz Barreto, que servem como pilares para a análise política, histórica e literária desenvolvida ao longo da obra. Os ensaios mais frequentemente citados são:
  • “A situação geral da Europa e a política exterior de Portugal” – Publicado na Revista de Portugal após o Ultimatum de 1890, é frequentemente utilizado por Sardinha como fonte de análise sobre as relações internacionais, o colonialismo e o destino de Portugal perante as ameaças externas.
  • “A literatura portuguesa contemporânea” – Estudo de 1889, também publicado na Revista de Portugal, citado para discutir o conceito de “génio peninsular” e as características distintivas da literatura portuguesa em relação à espanhola.


3. Interpretação e uso das citações. Sardinha utiliza as citações de Moniz Barreto para:
  • Fundamentar argumentos: as reflexões de Moniz Barreto são apropriadas para defender a centralidade de Portugal na política europeia e mundial, bem como para salientar a necessidade de uma política externa atenta à defesa do património ultramarino.
  • Discutir a relação entre Portugal e Espanha: as ideias de Moniz Barreto sobre a aliança peninsular são retomadas para propor uma aproximação estratégica e cultural entre os dois países, baseada em profundas afinidades históricas.
  • Refletir sobre o destino das colónias portuguesas: a análise crítica do imperialismo britânico serve para alertar sobre os perigos da passividade diplomática e da desunião peninsular perante interesses estrangeiros.
  • Caracterizar o “génio peninsular”: a noção de um temperamento partilhado entre portugueses e espanhóis, com especificidades próprias, é utilizada para distinguir a cultura e literatura portuguesas, destacando a sua vocação lírica, a sensibilidade e a inclinação para o universalismo missionário.


​J. M. Q.

EXCERTOS DE ANTÓNIO SARDINHA
 
  • A cultura clássica (1917):
 
Manuel da Silva Gaio coloca-se exatamente no verdadeiro ponto de vista, ao reputar a educação clássica como uma «preparação formal do espírito». As vantagens do Classicismo, em semelhante sentido, Manuel da Silva Gaio as define com aquela agudeza crítica, que na história das ideias portuguesas o ficará marcando, inconfundivelmente, ao lado de Antero de Quental e de Moniz Barreto. Condena Manuel da Silva Gaio, em relação ao Classicismo, «o critério imitativo no campo da produção literária e artística», pondo em relevo «que nunca a emoção a receber das obras clássicas, ou de qualquer outra obra de Arte, deverá ter-se realmente como estímulo de imitação, mas sim como estabelecendo um ambiente de alma, favorável à elaboração original». É precisamente o nosso critério que folgamos de ver tão superiormente confirmado.


  • O nosso futuro, (Outubro de 1917):

Não era preciso que o deputado socialista sr. Costa Júnior fosse dizer à Associação dos Lojistas, com tão grande desassombro e não menos patriotismo, qual a sorte que esperava o nosso património ultramarino, para que nós ficássemos só agora sabedores das disposições cobiçosas da Inglaterra a respeito das colónias portuguesas, tão depressa uma oportunidade política lhe facilitasse a satisfação delas. Em Portugal, onde a tradição de Acácio é quanto resta do passado político vendido em Cinco de Outubro, tem havido pensadores e homens de visão larga que, não enfeudados à mediocridade organizada dos partidos, passaram sempre no escuro e no escuro permaneceriam, se o nosso inquieto nacionalismo os não arrancasse ao esquecimento em que o seu nome parecia dissolvido. É Moniz Barreto um desses homens, cujas páginas de há perto de vinte anos sobre política externa na Revista de Portugal constituem uma afirmação penetrante de uma inteligência, a que não faltava nem a maleabilidade de uma cultura eminentemente realista nem um notável senso exercitadíssimo das coisas da História. Se o Integralismo não pode subscrever totalmente as conclusões de Moniz Barreto como filósofo e como crítico, pode e deve, no entanto, lê-lo e meditá-lo confiadamente logo que o assunto escolhido pelo seu elevado espírito se prenda por sua natureza com os problemas da nossa vida internacional.
​

Foi Moniz Barreto um como que profeta da guerra atual. De longe, olhando à instabilidade social da Europa, com falso apoio no individualismo revolucionário, impressionam deveras, se as percorrermos agora, as suas reflexões tão precisas como documentadas sobre o imperador Guilherme no início do seu reinado, sobre a ambição imperialista da Inglaterra – responsável de uma catástrofe guardada para os nossos dias –, enfim, sobre a atitude da Itália em face da futura conflagração europeia. Não contou Moniz Barreto duas forças que, de acidentais, se tornaram preponderantes na marcha do conflito – a hipocrisia democrática e a intervenção maçónica. A intervenção maçónica levou a Itália a romper com os compromissos anteriores, rompendo assim o seu interesse de potência mediterrânica, a quem importava, como questão vital, que nunca Constantinopla caísse em poder da Rússia. Não caiu, efetivamente, porque o colosso moscovita foi salteado no seu caminho por um ataque de epilepsia inesperada, de que resultará o seu desfalecimento irreparável. Mas não joga por isso menos certo o juízo de Moniz Barreto, a quem não escapou a cumplicidade decisiva que os interesses comerciais da Grã-Bretanha representariam na guerra actual. É aqui que surge a hipocrisia democrática, com que, a pretexto das mais inconfessadas ambições, se tagarela a cada hora, em ar de carpideiras oficiosas, da Bélgica invadida, dos tratados violados, da liberdade espezinhada – numa palavra, de tudo quanto constitui, na sua mais pura essência, o recheio militar e diplomático do passado da Inglaterra.

Pois, relacionando a situação geral da Europa com a política exterior de Portugal, eis como se exprimia Moniz Barreto, em Dezembro de 1891: «Absorver os nossos domínios da África Oriental e se fosse possível os da África Ocidental, tal é o programa proclamado por metade dos publicistas ingleses e tacitamente aceite pela outra metade. A importância dessas regiões não faz senão aguçar os apetites britânicos, como a convicção da nossa fraqueza não faz senão estimular as resoluções de expoliar-nos. Para satisfazer essa ambição, a Inglaterra não duvidará recorrer à violência, como não tem hesitado em servir-se da ameaça e da calúnia. E para satisfazê-la não encontraria melhor ocasião que uma guerra continental que distraísse a opinião europeia e até mesmo lhe assegurasse a cumplicidade das potências interessadas na sua benevolência.»

A cabala que se desfez na Conferência Socialista de Londres reveste de uma dolorosa veracidade a predição de Moniz Barreto. Nada me obriga a mim, nacionalista por princípio e monárquico por conclusão, nada me obriga a mim a guardar um calculado silêncio em face de um acto que de monstruoso por si se qualifica, como é a proposta apresentada à referida conferência por Henderson, chefe do partido trabalhista inglês e membro que era ainda do ministério britânico na altura de a elaborar. Bem julgou o sr. Costa Júnior, ao atribuir o espírito de semelhante proposta, não à iniciativa individual de Henderson, mas à inspiração política do próprio gabinete de que fazia parte.

Eu podia aqui insurgir-me contra os pregadores encartados do Direito, da Liberdade e da Justiça – se eu acreditasse no tal Direito, na tal Liberdade e na tal Justiça. Eu podia aqui perguntar para que é que se morre em França e se esgota o país em homens e em energias, só para honrar uma aliança que é a primeira a desonrar-se a si mesma. Nada pergunto e em nada me insurjo. Simplesmente, para o fim próximo do nosso património ultramarino, a minha esperança persiste ainda inabalável e firme, recusando-se a admitir – serena e raciocinadamente – a desaparição da pátria, arrastada, como consequência imediata, na causa da desaparição das nossas colónias.

Escusado é salientar que se no império africano que se procura improvisar à custa da maior das piratarias, nos deixam Lourenço Marques, Inhambane e a Zambézia, é porque não é outro o presente oferecido pela Inglaterra à União Sul-Africana, não rompa ela os ternos laços de vassalagem que precariamente a ligam à metrópole. Quanto aos Açores, a fórmula de Monroe, alargada à Europa, começaria – começará, é mais exacto – por ali a sua aplicação. Portugal, crucificado da guerra, vítima sangrada e espoliada da lealdade púnica dos seus aliados, ver-se-á, deste modo, abandonado ao seu destino – sem recursos, assevera-se –, para viver, dentro da sua pequenez, das riquezas naturais de que porventura disponha.

Eu não nasci para homem de Estado, e, se algumas aspirações políticas eu tivesse, suponho-as inutilizadas para sempre, desde que me atrevo a lançar o meu nome modesto por debaixo destas afirmações. Todavia, sem conter a indignação que me põe o espírito em carne viva quando me demoro a refletir um pouco sobre o latrocínio anunciado com tanta naturalidade à Conferência Socialista de Londres, não me parece a mim que Portugal, reduzido à exiguidade dos seus limites, haja, só por esse facto, de se considerar inteiramente perdido para todas as promessas do futuro. Não vou inventariar aqui as nossas fontes de riqueza, nem as possibilidades económicas mais viáveis de que nos poderemos socorrer desde que com um regime mais adequado – um regime monárquico, antiparlamentarista e descentralizador – nós olharmos detidamente para o porvir da nacionalidade. Não se assusta com isso o Integralismo Lusitano. Não é que nos falte a consciência da crise quase imortal que atravessamos. Não é também, por outro lado, que queiramos atribuir a nós aquela frase célebre de Mahan que dá a hora das grandes catástrofes como sendo a hora das grandes almas. Não! O nosso nacionalismo, porque é raciocinado e calmo, prevê todas as hipóteses, principalmente as piores – as mais negras. Essa de um Portugal enclausurado na sua estreita faixa atlântica, preocupa-nos deveras e é a realidade sobre a qual incidimos a todo o instante a nossa meditação, visto ser o aspeto mais grave de que o futuro nacional se reveste para nós.

Os países balcânicos merecem-nos por isso uma especial atenção. Países de fronteiras pouco extensas, verdadeiros marcos criados pela política czarista – quando havia ainda Rússia –, para uma limitação prudente do avanço islamita, nem possuem outros elementos de prosperidade que não sejam os do seu próprio solo, nem inclusivamente lhes favorece o desenvolvimento uma larga e abordável linha marítima, que lhes valorize a posição e os faça desejáveis para entendimentos e alianças políticas capazes e dignificadoras. Contudo, por infinitas que sejam as dificuldades com que se têm encontrado a braços, a principiar logo pela mais aguda de todas elas – a da consolidação da sua autonomia –, o que é certo é que esses longínquos e embrionários Estados, mal despertos para uma existência nova do seu longo sono secular, fornecem-nos hoje, com o seu irrequieto e viçoso nacionalismo, um exemplo edificante de como se pode viver e medrar sem colónias, desafogadamente.

É mais desanuviado o caso de Portugal, por pior – repetimos –, que seja a hipótese considerada. Não há muito tempo ainda que o historiador italiano Guglielmo Ferrero observava que o carácter técnico da civilização moderna permite às pequenas nacionalidades desenvolverem-se da mesma maneira que os grandes Estados, sem terem que suportar o peso esmagador dos encargos que oneram estes últimos. Assim é, com efeito. Contando com a transformação económica da época presente, o trabalho rasga ainda ao destino de Portugal formosas e largas avenidas com tanto recurso natural a aproveitar, mesmo com uma situação internacional valiosa a reconstruir.

O sentido da colonização modificou-se hoje profundamente. Pode não andar ligada ao nosso nome a ideia de soberania, sem que por semelhante circunstância a nossa colonização se deixe de realizar com proveito.

Reparemos no que sucede com o Brasil. Independente vai quase um século, não deixou de ser, e com os melhores frutos para nós, um terreno propenso admiravelmente à expansão da nossa atividade. O que é imperioso é preparar o emigrante – elevá-lo, tanto quanto possível, à altura do seu concorrente estrangeiro. Depois, em África, a noção moral do nosso prestígio de séculos, tão radicada no ânimo do indígena, há-de facilitar-nos uma outra penetração, com a qual rivalizará debalde a dos ocupantes de facto. Bem perto de nós, eis o que se verifica em Marrocos. O português, para o marroquino, é sempre o «senhor», na convergência de todos os outros elementos forasteiros. Aí está um desvio importante para a nossa expansão, aí está a chamar por nós o «Algarve de Além-Mar», para que se retome o fio obliterado do alargamento nacional que a Índia perverteu e que com tanta infelicidade D. Sebastião pretendeu reatar.

O problema de Marrocos é vital para a Península. Uma velha lei histórica ensina que o futuro das nações peninsulares depende do povo que estacionar nas cabeceiras de África. A Espanha tem com a penha de Gibraltar uma questão tão fundamental como ela a resolver: é essa de Marrocos, efetivamente. Afigura-se-me a mim – e a Moniz Barreto já se afigurava também – que a Espanha não a resolverá sem a nossa colaboração. Debruçado para o Atlântico, no dia em que à fórmula estulta de união-ibérica se substituir a fórmula consciente e erguida de aliança-peninsular, Portugal, ligado à Espanha pela mesma finalidade exterior, recupera novamente o senso adormecido da sua antiga vocação mundial. O Estado forte é a primeira base da nossa ressurreição. Eis porque se esforça o movimento integralista, na sua faina árdua de despertar para a luta as energias sonâmbulas da nossa raça. O domínio do Oceano, realizando o profundo ponto de vista de D. João IV, é mais um motivo de ponderação a impelir-nos para a aliança com o Brasil. A interrogação de Marrocos prende-nos, por outro lado, estreitamente, à Espanha. Arrumada uma vez, eu vejo, pela chave do Estreito, o Mediterrâneo tornado de novo o mare nostrum, o mar sagrado da nossa civilização.

A aproximação espanhola com as repúblicas, suas filhas, da América Latina ajuda-nos poderosamente no objetivo internacional que nos manda apertar as nossas relações com o Brasil. O nosso pequeno país, arraigado à limitada fita de terra de onde outora partiu a ver da nova Aurora, alevantar-se-á do seu letargo, para uma missão bem mais nobre do que essa que nos distribuíram na Conferência Socialista de Londres. Nós, os que somos moços, não desesperamos por isso. A nossa fé nacionalista é mais ardente e crepita com mais fogo, quando o horizonte é mais escuro, à volta de nós. De modo nenhum abdicamos dos nossos direitos de povo-livre!

Também há cem anos a Inglaterra, nossa aliada nas guerras contra Napoleão, nos sentenciava ao abandono. E, apesar de tudo, Portugal subsistiu. Ele subsistirá na eternidade dos tempos, porque na eternidade dos tempos os nossos mortos lhe saberão dar a energia quase divina por que duram as nações e por meio da qual se escrevem as grandes epopeias. Assim uma vontade robusta nos una, e nos una em carne e em espírito, o mesmo pensamento de continuarmos a pátria que nos foi legada. É como haveremos respondido ao epitáfio que nos lavraram na Conferência Socialista de Londres aqueles que hipocritamente se intitulam os defensores das pequenas nacionalidades, mas que ao longo da história não têm sido senão os seus criminosos espoliadores.
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Outubro, 1917.


  • A questão de Marrocos (Agosto de 1919):
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Conversemos hoje de Marrocos. Para os portugueses nada há como o mês de Agosto para se falar de Marrocos. Agosto é o mês de Ceuta e o mês de Alcácer-Quibir – o mês que encerra na marcha lenta dos seus dias como que o ciclo completo da nossa passagem pelo ‘Algarve de Além-Mar’.

Pois a questão de Marrocos está no tabuleiro da diplomacia e, especialmente, o problema intrincado da posse de Tânger. Se tivéssemos ido para a guerra com objetivos claros, com clara finalidade patriótica, naturalmente Tânger seria um dos alvos a atingir. Mas nós nunca nos capacitámos da valia de Marrocos. Não só para nós, portugueses, como para os nossos irmãos espanhóis. Ao contrário do ar depreciativo com que muito espírito progressivo costuma afirmar que a África começa nos Pirenéus, as ciências ensinam-nos que, realmente, a Europa onde acaba é no Atlas. A importância política e militar que para os dois povos peninsulares significa o retalhado sultanato, nosso vizinho, encontra-se bem inscrita nas páginas patentes da história. Já em 1891, num admirável estudo, publicado na Revista de Portugal sob o título «A situação geral da Europa e a política exterior de Portugal», Moniz Barreto observa: «Um ilustre historiador inglês pôde afirmar ser lei da história que as populações da Península dominem ou sejam dominadas pelas que estanciam na região africana que lhes fica fronteira.»

E logo a seguir o malogrado crítico acrescenta, num rasgo de veemência, como se adivinhasse a triste realidade presente: «Seria mais um capítulo a ajuntar à crónica lamentável da decadência peninsular, se essa região marroquina, aberta à ação dos dois povos cristãos pela espada de D. João I e dos conquistadores de Ceuta, ilustrada pela valentia dos fronteiros de África, dourada pela fama robusta de D. Afonso V e pela glória nascente de D. João II, consagrada pelo apostolado de Raimundo Lullio, pelo martírio do Infante Santo, pelo sangue de D. Sebastião, venha a cair, como Tunis, arrancada por nós aos bárbaros, nas mãos daqueles que no século XVI se ligavam aos inimigos da cultura europeia em proveito das suas conveniências políticas e dos seus interesses comerciais no Levante.»

É sangrenta, mas verdadeira, a referência de Moniz Barreto à França, que, desde os alvores da Renascença, se tornou, no coração da Europa, um elemento de perturbação e cobiça insaciável. Nas mãos da França caiu o melhor bocado de Marrocos, adicionando-se assim mais esse capítulo à longa crónica da decadência peninsular. Sem natalidade e sem oiro, não sabemos como a França, falta de braços e de numerário, procurará resolver os instantes problemas que o seu imperialismo sôfrego lhe acarreta de futuro. O que sabemos é que o regímen de internacionalização, a que se sujeitou Tânger pelo artigo 7.º do tratado de 1912, se encontra em riscos de ser sofismado por parte da França, atacada agora do mal que tanto lhe doía nos alemães.

Não se deduz outra coisa do informe apresentado pelo deputado Maurice Long, relator da Comissão Parlamentar do Tratado de Paz, no capítulo referente aos assuntos de Marrocos. Sustenta Maurice Long que a internacionalização de Tânger, pelo espírito do tratado de 1912, não importará em nada mais que uma representação dada às diversas colónias estrangeiras no município a constituir-se em Tânger. Deste modo, Tânger e os seus arredores ficam debaixo da soberania nominal do sultão e da efetiva da França.

O informe de Maurice Long causou alarme nos meios espanhóis mais esclarecidos. A distinta individualidade que, sob o pseudónimo de Pedro Tardo, envia de Paris para o diário madrileno El Debate interessantíssimas notas de política exterior, comentava, a propósito dos malabarismos interpretativos de Maurice Long, que «se o governo francês intentasse pôr em prática o informe de M. Long, ninguém criaria um abismo como esse nas futuras relações hispano-francesas». E Pedro Tardo, esquecendo-se evidentemente de Portugal, concluía que «aos irredentismos forjados pelo Tratado de Versailles se somaria mais um».

Não percebo bem como a anexação de Tânger pela França constituiria, em presença da Espanha, um irredentismo a resolver. Compreendo que a posse de Tânger seja para a Espanha um ponto primacial no seu programa expansivo – uma condição de vida para o desenvolvimento da sua preponderância em Marrocos. Agora o que me parece a mim é que se força bastante o aspeto da questão atribuindo-se-lhe um carácter irredentista que não lhe cabe absolutamente. Se há irredentismo é em relação a Portugal, e não em relação à Espanha. Tânger, hoje internacionalizada, deveria pertencer-nos, exatamente porque já nos pertenceu e porque deixámos nela, tanto nos habitantes, como na própria fisionomia da cidade, os sinais inconfundíveis da nossa supremacia e da nossa penetração.

Eu não ignoro talvez o sentido em que Pedro Tardo empregou a palavra irredentismo. E não o ignoro, porque de há muito sou da opinião de Edmundo González Blanco no seu livro España ante el conflicto europeo, apontando como «um novo ideal reconstituinte e de saúde para Espanha... a constituição de uma grande nacionalidade líbio-ibérica conforme as leis da sua natureza histórica e antropológica». Claro que por nacionalidade ‘líbio-ibérica’ teremos que entender, não um Estado apenas, não uma pátria única, mas uma comunhão de Estados e de Pátrias, que, unidos pelo mesmo vínculo de origem e de cultura, espontaneamente se aliavam para manterem no mundo os direitos do seu sangue e da sua vocação social.

Ora, Portugal e Espanha, solicitados do outro lado do mar pela pressão cada vez mais forte das repúblicas da América indevidamente chamada ‘latina’, precisam de reconhecer quanto antes que, se ao tipo anglo-saxão corresponde um modo especial de civilização e de expansibilidade, há um tipo ibérico, peninsular, ou hispânico, como queiram, mais dotado do que aquele, porque se reproduz com mais fecundidade e deixou atrás de si uma sementeira infinita de nações.

Esse tipo é o tipo do homo-mediterranensis, em que indubitavelmente o berbere se filia. Nosso parente pelos mais apertados elos étnicos e institucionais, só o separa de nós o grau de sociabilidade atrasada em que o muçulmanismo o deixou. De resto, tanto na sua tendência monogâmica, como no sistema comunal das suas aldeias, o berbere, já hoje deslindado nos mais confusos dos seus ramos genealógicos, não pode subtrair-se ao direito que nos assiste de o trazermos até nós. Se a invasão maometana na Península se moderou ao contacto das populações vencidas, é que os exércitos conquistadores compunham-se sensivelmente de uma maioria desproporcionada de berberes. Daí a expressão felicíssima com que um insigne arabista espanhol designou como ‘guerras civis’, como puras ‘guerras de religião’, o duelo secular da Reconquista.

É com este critério que eu me resigno a aceitar o ‘irredentismo’ assinalado por Pedro Tardo, a propósito da disputa, que se me assegura iminente, em torno da soberania de Tânger. Irredentismo, relativamente, não à Espanha, mas à Península, acrescendo circunstâncias históricas de ocupação e senhorio em favor de Portugal. Títulos nominais que ninguém respeitará, que tristeza se não sente, ao vermos como o nosso sacrifício, dos maiores sem dúvidas na Grande Guerra, não pesa na balança dos quatro burgueses de Versalhes, para que, ao menos, devolvendo-se-nos um torrão que já foi nosso, se nos rasgasse uma possibilidade de reparação para a nossa incalculável ruína económica! E a tristeza é mais funda e mais dolorosa, se nos lembrarmos que nem uma boca se abriu reclamando Tânger – para que diabo servirá isso?! – entre as repimpadas serenidades que nos representaram no Congresso da Paz!

Impossibilitados assim de ficarmos com Tânger, não nos é lícito, em todo o caso, permanecermos indiferentes perante a sua sorte. Ou a internacionalização se mantém – ou que Tânger não seja alienada, em benefício da França, às legítimas pretensões peninsulares. Não é o que a França deseja e quer. Mas será o que a Espanha se há-de empenhar, decerto, em obter. A questão assume, no entanto, o seu período agudo. Depois do informe de Maurice Long, segue-se com mais larga significação o do antigo ministro Barthou. Coincidem as vistas de ambos. E a imprensa espanhola, nos seus variados sectores, surge-nos fundamente preocupada. «O regímen de um Tânger francês – afirma El Debate – resultaria incompatível com a presença da Espanha no Noroeste africano, presença que é necessária para a sua vida autónoma.» E o jornalista remata o seu pensamento: «Eis porque os olhos dos espanhóis patriotas se não devem apartar de Tânger, como se não devem apartar do estreito calpense, nem de Portugal, nem das nações da América que falam o idioma castelhano.»

O relatório de Barthou é todo um hino entusiástico aos tesoiros inesgotáveis de Marrocos. Sem me abandonar a lamentações doentias, como eu meço bem que erro mortal não tem sido para as duas pátrias o facto de sempre a política peninsular se haver dirigido, não pela ideia de uma aliança forte e amiga, mas pela ideia negativa da conquista e de absorção! Mais uma vez as suas consequências se acham a descoberto! Na partilha de Marrocos, naturalmente, caber-nos-ia a região atlântica, como a região levantina caberia à Espanha. Conseguiríamos agora o que o império do Mar não nos deixou conseguir em outros tempos, embora D. Sebastião, desacreditado e incompreendido, tentasse, ainda que tarde, imprimir emenda ao rumo que Portugal levava, exaurido na moleza e nas sangrias do Oriente. Mas tudo se desfez na poeira de um sonho que se tocou de perto e esteve quase a fixar-se em realidade! Só nos resta a interrogação da atitude da Espanha, quando terminantemente o problema se ponha.

Porque, repito, não sendo nossa, não nos é indiferente que Tânger seja da Espanha ou da França. Tânger, em poder da França, é evidentemente a Península terra de passagem – zona aberta a penetrações desnacionalizadoras e perigosas. E eu penso como, já em 1891, Moniz Barreto pensava: «A unidade moral da Península significa a segurança das nações que a constituem, e mais uma garantia para a causa da paz e da cultura europeia. A França em Tânger é o desafio, a espoliação, a ameaça permanente, como que um outro Gibraltar a nos prender os movimentos.» Que visão de profeta não iluminava Moniz Barreto ao caracterizar o conflito, positivamente nos termos em que ele se desenha!

«Quem tiver estudado a história da Europa nos últimos trinta anos, sabe que, enquanto as condições do equilíbrio aumentavam, os problemas constitucionais da diplomacia europeia se têm definido e encaminhado para uma solução que ninguém pode garantir que seja pacifica», ponderava Moniz Barreto. «Entre esses problemas constitucionais conta-se aquilo a que se pode chamar desde já a Questão do Ocidente. A incapacidade a um tempo social e étnica dos muçulmanos do Magrebe para se constituírem num grande Estado viável e progressivo, envolve na extremidade ocidental do Mediterrâneo consequências análogas às que condições análogas determinam na extremidade oriental. A questão dos estreitos reproduz-se na ponta oposta do mar em que se elaborou a velha cultura europeia e atrai a atenção de todos os que têm interesses presos à situação das passagens marítimas. E entre esses, a Espanha, para quem a questão do Estreito é não só de liberdade comercial, mas de segurança nacional, não pode ser a última a precaver-se.»
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Eis o que está para nós, Portugal e Espanha, em risco de suceder. Desarmados, inermes, nem temos voz para o nosso protesto, nem força com que o hajamos de sustentar. Mas, discursando num cemitério belga, o pitoresco Wilson já anunciou que esta guerra fora a penúltima. Resta-nos a última. Ninguém dá mais de dez anos para que os fermentos de ódio, espalhados pelos quatro burgueses da Versalhes, se deflagrem numa nova rajada de sangue e de destruição. O equilíbrio, alvo sapiente das velhas monarquias europeias, desfeito pela violência, só pela violência se recuperará. Com a Córsega, Nice e a Saboia inscritas na bandeira do seu irredentismo, a Itália, potência mediterrânea a competir com a França, não irá mais no logro da guerra finda. Qual a atitude da Espanha? A da neutralidade – impossível. Pedro Tardo já o entrevê, aludindo de leve às consequências da cobiça gaulesa pelo que respeita a Tânger. Dez anos é pouco tempo, mas em dez anos salva-se um país. Deus permitisse que Portugal, reorganizado pela ação vigorosa e consciente da sua Realeza tradicional, pudesse então restaurar-se das desgraças e das ignomínias em que a vitória agora sordidamente o abandonou! Tânger seria decerto uma das recompensas. E com Tânger, um passo andado para que, cingido entre tantas nações de origem peninsular, o Atlântico se tornasse deveras, como já foi, e como o sonhou el-rei D. João IV, um verdadeiro lago português, um indisputado «mare nostrum».

Agosto, 1919.
 



  • A descoberta de Espanha, 1919:
 
Vê-se já porque, exatamente, no exílio, cheio de preconceitos sentimentais e intelectuais, o meu nacionalismo se fortificou e esclareceu, ao contacto da mentalidade espanhola – da que é deveras representativa da Espanha, enquanto uma outra noção de hispanismo o desdobrava e completava, pela ideia de solidariedade social e espiritual necessária, como pão para a boca, ao prestígio e à vitalidade externa de ambas as pátrias. E eu que envolvera em tantas tiradas de ódio melodramático a Espanha do planalto, a Espanha da conquista, imaginando-a imperialista e agressora, não tardei a sentir, com Almeida Garrett e com Oliveira Martins, a fascinação antiga da Grande-Madre, aleivosamente difamada. Foi em pleno coração de Castela que as fontes ocultas do meu ser me testemunharam a presença eterna de uma comunhão de origens e de fins que, para desgraça nossa, desde que adormeceu na cinza das coisas mortas, nos levou consigo a única possibilidade de novamente, pela dilatação da Fé e do Império, Portugal desempenhar no mundo a sua alta missão civilizadora. Podemo-nos orgulhar de que nós e connosco Castela, nossa irmã mais velha, somos um poder criador de nacionalidades. Do outro lado do mar, vinte estados de formação ibérica bendizem com carinho filial o nome de Espanha. Ao coro das suas vozes junta-se a voz do Brasil, apelando debalde para Portugal. E, recentemente, a esse propósito o presidente Epitácio Pessoa fazia significativas declarações ao jornalista Miguel de Zárraga, correspondente do ABC em Nova-lorque. Convém que as reproduza e que as meditem:

«O dr. Pessoa é um fervoroso partidário do pan-americanismo e explica a decadência do hispano-americanismo – escreve Zárraga – pela circunstância de no Brasil politicamente a ninguém interessar Portugal. Por culpa do Brasil? Não; por culpa do próprio Portugal, que não tem sabido, nem talvez houvesse podido, influir nos destinos da imensa República que lhe deve a vida. A Espanha, como Portugal, só enviou à América uns quantos oradores sonoros. E, entretanto, os Estados Unidos, mais práticos, embora lutando com a tríplice adversidade do sangue, do idioma e dos costumes, enviaram caixeiros-viajantes.» E o jornalista espanhol acrescenta: «Ante o pan-americanismo nada podem fazer, por si só, o espanholismo ou o lusitanismo. Uma concisa fórmula recomenda o dr. Pessoa, como única eficaz para uma satisfatória solução do problema: que o hispanismo, espanholismo e lusitanismo unidos, se aliem com o pan-americanismo.»

Enuncio apenas um tema, que mais detalhadamente espero abordar. O movimento de defesa perante o perigo norte-americano, desde o México à Argentina, é tão intenso e tão ruidoso que à roda desse motivo existe já hoje uma copiosa literatura. São seus principais corifeus o mexicano Carlos Pereyra, catedrático e membro do Tribunal de Haia, autor de livros como El crimen de Woodrow Wilson e El mito de Monroe – «obra que bien pudiera titularse: El timo de Monroe», observa outro escritor hispano-americano, Blanco Fombona; e o argentino J. Francisco V. da Silva, que, no seu Reparto de America Española y Pan-Hispanismo, tem passagens como esta: «O espírito se dilata ao considerar que, desde os Pirenéus ao Estreito de Magalhães, e desde o Estreito de Magalhães ao Rio Grande, se estende pelo mundo, e com o Grande Oceano por Mare Nostrum, todo o conteúdo territorial da civilização hispânica.»

Contrário, portanto, às indicações do presidente Epitácio Pessoa, o hispano-americanismo é extremamente nacionalista e se perfilha a noção de ‘império’ é ao império da sua cultura e dos seus antecedentes históricos que ardentemente se dirige. Prefaciando o livro mencionado de J. Francisco V. da Silva, assim o demonstra Bonilla y San Martín, professor ilustre da Universidade Central de Madrid. «Portugal – diz – desligado de Espanha converteu-se (como está à vista) num organismo dependente da Inglaterra; as nações hispano-americanas, prolongando a hispanofobia mantida por alguns elementos de importação estrangeira (particularmente franceses e italianos) irão a pouco e pouco caindo, como Cuba e Puerto Rico, debaixo da garra firme da República norte-americana, que hoje traz até à Europa os salpicos da doutrina de Monroe, em justa recompensa da tranquilidade com que os Estados europeus presenciaram a hipócrita expoliação de que Espanha foi vítima em 1898-99.»

Em semelhantes termos, a nossa aliança com o Brasil, como condição do futuro de Portugal, é que nos aconselha uma amizade mais estreita com a Espanha. Há a olhar ainda para o norte de África, para Marrocos, retalhado e repartido, sem que na sua fraqueza Portugal receba, pelo menos, a compensação dos seus respeitáveis direitos postergados. Questão vital para nós, a questão de Marrocos filia-se para a Península numa sabida lei da história pela qual, ou nós as dominaremos, ou seremos dominados pelas gentes que estacionarem no desfeito sultanato africano. Uma vez caído ele em outras mãos que não sejam as nossas, não se volverá a Península numa forçada terra de passagem? Era já o aspecto por que em Dezembro de 1891 o malogrado Moniz Barreto encarava as vantagens da inteligência da Espanha connosco. Essa inteligência impõe-se, de parte a parte. Mas organizemo-nos nós primeiro que tudo, restituindo a Portugal as suas instituições tradicionais para que haja firmeza no Estado e vigor na Nação. Ultrapassada, porém, a base da nossa restauração interna, o nosso nacionalismo, profundamente católico, profundamente missionário, carece de um sentido mundial que, sendo o da sua vocação antiga, só com o concurso da Espanha se tornará amplamente possível. Não mandem em nós divergências de momento, sustentadas mais pela intriga do estrangeiro do que pelos ditames reflectidos do patriotismo.

Se o lusitano de cabelos corredios, difere do celtibero, mais mesclado com cabeleira encrespada, um e outro são hispânicos de nascimento e finalidade, lutando ambos em Numância contra o romano, expulsando juntos o muçulmanismo na epopeia da Reconquista; e acabando por abrir à Europa um oceano novo, com a bula solene de um Papa repartindo pelos dois paternalmente as terras que ainda estivessem por ocupar.

Tal foi a ‘Espanha’ que eu vim descobrir a Espanha. É a Espanha-Madre – são as ‘Espanhas’ das inscrições clássicas e dos roteiros primitivos. Tanto é Castela como Aragão, tanto é Portugal como Navarra – senti-a como uma realidade viva num dia amargo de saudade, à sombra da catedral de Toledo. Só então eu entendi porque um dos mais portugueses dos nossos poetas, o bom avô Garrett, exclamava no seu Camões, se bem me recordo: «espanhóis somos, e de espanhóis nos devemos prezar todos os que habitamos a Península Ibérica». É a unidade, não da raça nem da terra no seu significado imediato, mas a unidade cultural e social do elevado destino que Portugal e Castela nobremente conseguiram no Universo, dilatando com a Fé e o Império o mesmo ideal superior de civilização. Permitisse Deus que a ele tornássemos outra vez! E a aspiração fictícia e pagã do ‘latinismo’ cederia à voz mais genuína e mais exata do ‘peninsularismo’, sobre o qual a sociedade internacional se poderá reconstituir pelo católico e comum império das duas nações, evangelizadoras de povos e semeadoras de nacionalidades.

 

  • Paixão de Espanha, 1921:

A questão de Marrocos não é apenas uma questão que importe ao futuro da nação vizinha. O futuro da Península depende do rumo que se imprimir a esse momentoso problema. Há quase quarenta anos que num comício público D. Joaquín Costa declarava: «Yo tengo para mí que la línea estratégica de ciudades y de fortalezas que poseemos al otro lado del estrecho, desde Ceuta a las Chafarinas, nos es tan necesaria, hoy por hoy, y forma parte tan integrante de nuestro territorio, como la línea estratégica de fortalezas que se extiende por la cuenca del Ebro, desde Montjuic hasta Pamplona.»

De maneira que o problema de Marrocos já então se formulava para as inteligências cultas em Espanha como um simples e elementar problema de defesa nacional. Dar-lhe-ia depois um sentido mais amplo entre nós o malogrado Moniz Barreto, ao escrever – num estudo seu, notabilíssimo, da Revista de Portugal – que a questão marroquina prende-se de tal modo com a questão da integridade nacional espanhola, que não é mais que um dos aspetos desta. Um ilustre historiador inglês – continua Moniz Barreto – pôde afirmar ser uma lei da história que as populações da península dominem ou sejam dominadas pelas que estanceiam na região africana que lhes fica fronteira. Assim, de espanhol o problema se torna peninsular, participando consequentemente Portugal dos seus benefícios ou dos seus resultados funestos.

Compreende-se bem porquê. Enfeudados como país pequeno que não sabe valorizar a sua posição geográfica por medidas sensatas de governo, àqueles colossos, que possuam o império do Mar, nós acabaríamos de ser com a Espanha uma pobre terra de passagem se, separados da Europa pelos Pirenéus, nos víssemos separados do resto do mundo pelo imperialismo que houvesse de triunfar no norte de África. «Seria mais um capítulo a ajuntar à crónica lamentável da decadência peninsular – pondera com razão Moniz Barreto – se essa região marroquina, aberta à ação dos dois povos cristãos pela espada de D. João I e dos conquistadores de Ceuta, ilustrada pela valentia dos fronteiros de África, dourada pela fama robusta de D. Afonso V e pela glória nascente de D. João II, consagrada pelo apostolado de Raimundo Lulio, pelo martírio do Infante Santo, pelo sangue de D. Sebastião, venha a cair como Tunes, arrancada por nós, aos bárbaros, das mãos daqueles que no século XVI se ligavam aos inimigos da cultura europeia em proveito das suas conveniências políticas e dos seus interesses comerciais no Levante.»

Ora parece-me a mim que o receio de Moniz Barreto se começa a revestir de apreensivas linhas proféticas! Indicia um estado de espírito desanimador a atitude de um militar, como Primo de Rivera, não corando de propor em pleno Senado que se abandone Marrocos e se troque Gibraltar por Ceuta. Irredentismo por irredentismo, antes el peñón em poder de estrangeiros do que uma bandeira, que não fosse a espanhola, flutuando em Ceuta. O perigo e o sarcasmo que Gibraltar representa desdobrar-se-ia em infinitas ‘Gibraltares’ ao longo do Rif, arrancando para sempre à Espanha a hegemonia que de direito lhe pertence, como senhora das bocas de dois Mares.

Exatamente, o motivo por que Isabel-a-Católica mandava em seu testamento «a los Reyes que después... sucedieren en los dichos mis reinos, que siempre tengan en la Corona y Patrimonio Real de ellos... la Ciudad de Gibraltar» – exatamente por esse alto motivo é que, uma vez perdida Gibraltar, se não deve trocar Ceuta por ela. Ceuta, na posse de Espanha, fincando o pé da Península no território africano, é uma garantia permanente de que Gibraltar, cedo ou tarde, volverá à Espanha. Mas Ceuta alienada por uma política de reles comodismo suicida, é a Espanha despedindo-se da sua grandeza vindoira e lavrando por seu punho o próprio termo de óbito.

Se como estrangeiro me é vedado apreciar com o azedume que me merecem as afirmações do marquês de Estella, como peninsular não me considero de forma nenhuma alheio a uma contenda que toca de perto o coração de Portugal. Quando no horizonte se destaca, com a largada para a América, a nova idade da Península, eis que as duas grandes pátrias hispânicas, desviando os olhos desta promessa de maravilha, porfiam em se negar a si mesmas, como se nada lhes coubesse nos frutos da admirável civilização que outrora souberam criar.
Penetra-me então um fundo pessimismo – não o pessimismo dos fracos e dos incrédulos, mas um pessimismo heróico, à maneira do de Ganivet, ao confessar que «en presencia de la ruina espiritual de España hay que ponerse una piedra en el sitio donde está el corazón, y hay que arrojar aunque sea un millón de Españoles a los lobos, si no queremos arrojarnos todos a los puercos».

O que apodrece em Espanha, impedindo que a nação verdadeira se manifeste, é o seu liberalismo arcaico e caricatural que aprisiona a monarquia e que permite a um general pregar da sua cadeira de senador uma doutrina de ignominioso derrotismo. São os sofistas de ínfima espécie – genuínos palhaços da Inteligência, como Unamuno e Ortega y Gasset – quem rouba à nação irmã a flama épica em que ela estremece até à medula dos ossos. É um bando de invertebrados e desnacionalizados que preparam para a sua terra o abismo moral e social em que a nossa abala perdida.

É a conjura secreta dos partidos, digladiando-se sem idealidade nem finalidade naquele recorte de pompa sonora e vazia com que Eça de Queiroz estigmatizou as doiradas mediocridades do nosso Constitucionalismo. E, no entanto, além do estreito, como que obedecendo a um ditame imperativo da Raça, os soldados vão tombando, de alma ingénua e contente, traídos pelos ‘moiros’ da retaguarda. Porque moiros são, efetivamente, os que quiseram que a Espanha inteira sucumba devorada pelos porcos, a vê-la, como Guzmán el Bueno, sacrificando às gerações que hão-de vir, num grande holocausto, a seara florida de uma geração que nasceu destinada já por Deus para o resgate da pátria tradicional!

Paixão de Espanha, paixão tão dolorosa e tão demorada! Começou com Cervera, marchando em navios de madeira, ao encontro dos couraçados norte-americanos. E desde essa hora a alma magnânima que gerou o Cid, que inspirou Cisneros e vibra ao longo de uma literatura sem par, continua sentada no Pretório, entre o ulular ignaro dos fariseus que a leiloam. Juntou-se-lhes agora a retórica ensebada do Marquês de Estella. E perante um general que discursa, enquanto há soldados que morrem, como parece de outro tempo e de outra raça aquela passagem de uma carta de Cervera, o glorioso vencido: «No por mí tanto como por la pobre España, diré: Señor, si es possible, pase de nosotros éste cáliz!»
 


  • O génio peninsular (1921?)

Exatamente, na centúria de Quinhentos, quando se tornam mais estreitas as alianças de parentesco entre Portugal e Castela é que a Península atinge o maior esplendor da sua capacidade civilizadora. Salienta algures o malogrado crítico que foi Moniz Barreto: «Depois que em Aljubarrota e em Toro os portugueses e os castelhanos afirmaram reciprocamente a sua independência contra mútuas tentativas de invasão, iniciou-se na Península um período de inteligências diplomáticas que dura um século e corresponde em Portugal aos reinados de D. João II, D. Manuel, D. João III, D. Sebastião, e em Espanha aos reinados de Fernando e Isabel, de Carlos V, de Filipe II.»

E Moniz Barreto acrescenta, detalhando com persuasão: «Durante este período, que é o de maior prosperidade e grandeza dos povos peninsulares, a consciência da força própria suprime desconfianças e temores, e a identidade de aspirações e sentimentos cimenta as bases de uma aliança em que compartilhamos com a Espanha a hegemonia no Mediterrâneo ocidental e nos dois oceanos. É este pensamento que inspira os casamentos dinásticos e se traduz por auxílios militares, que conduz um infante de Portugal à barra de Tunes, que faz combater os cavaleiros espanhóis nos areais de Alcácer-Quibir, que encontrando intérpretes condignos nos grandes poetas da Península, enche de elogios magníficos do génio espanhol a epopeia das glórias portuguesas, que dita a Herrera a lamentação à morte do Rei desejado, que em pleno reinado de Filipe IV leva o maior vulto do teatro nacional espanhol a coroar com a auréola da poesia a memória do Príncipe constante. Se é um facto que se presta a reflexões que o período da aliança espanhola coincida com a época da maior prosperidade e de plena expansão do génio português.»

(...)

Delineando em contornos largos a teoria do ‘génio peninsular’, não faço senão confirmar a intuição profunda do nosso malogrado crítico Moniz Barreto. «A nós, peninsulares – comenta ele –, a função que coube na História é o Heroísmo e a Fé. Destituídos de imaginação penetrante e do dom de vasta compreensão, desprovidos de larga simpatia e de curiosidade infatigável, primamos pela energia da vontade e pela grandeza do carácter. O fundo desse carácter é a honra militar. A capacidade de afirmar e querer, de obedecer e dedicar-se, uma tendência singularmente nobre de transformar o mundo à imagem do nosso ideal, uma generosa impaciência da perfeição, o desdém da beleza plástica e das delicadezas aristocráticas, um pensamento simples como um ato, a paixão concentrada e a seriedade trágica, eis outros tantos traços do génio peninsular. Este génio produz uma singular conceção da vida, que se manifesta por uma religião realista e violenta, por uma política absoluta e insensata, pela preponderância do génio da aventura e ausência de capacidade prática; que põe o amor no casamento, o ideal na ação, a beleza no valor moral; que inspira os maiores prodígios de energia no mundo moderno, e faz que a nossa história seja, como o lenço da Verónica, a sangrenta efígie da nossa alma. Importado para a Literatura, esse génio produz um lirismo robusto e monótono, um teatro destituído de análise de caracteres, mas animado pelas ideias da honra e da morte, sátiras de um sarcasmo violento, romances em que a ação absorve a análise e que são a pintura da realidade crua e feia, e a maior das modernas epopeias.

» Mas para produzi-la foi preciso a intervenção do génio português» – continua Moniz Barreto. «Do corpo das populações ibéricas dominadas e unificadas pelo génio castelhano, destaca-se pela influência acidental de circunstâncias históricas uma estreita faixa da orla marítima. Esta estreita faixa se constitui em nação independente, e durante cem anos exerce um papel culminante na história moderna. Em sincronismo necessário com esta explosão de vida ativa, desabrocha uma breve mas esplêndida floração literária. Se estudarmos os documentos que a constituem e completarmos esse estudo pelo exame das produções que datam da renascença romântica, nada acharemos neles que distinga constitucionalmente o nosso génio do das populações ibéricas constituídas numa nação espanhola, como nada encontramos que geográfica e etnicamente fundamente a autonomia da nossa vida política. Mas um exame mais atento descobrirá certas qualidades secundárias que, dando uma fisionomia peculiar ao nosso espírito, se refletem na nossa literatura: uma maior capacidade de compreender e assimilar, uma menor energia de afirmação e crença, uma sensibilidade mais delicada e profunda, um carácter menos vigoroso e mais nobre, mais razão e menos vontade, heróis mais humanos, mulheres mais mulheres, alguma coisa de saudoso e vago, de grave e triste, entranhas mais húmidas e o dom das lágrimas. Estes traços manifestam-se na nossa literatura por um lirismo profundo e sentido, expressão de uma alma amorosa e meiga por um teatro capaz de pintar caracteres e espelhar a vida; por uma, ainda que tardia, floração de romances em que a análise do coração não é anulada em proveito da ação, e finalmente por uma criação épica em que a grandeza heroica do génio peninsular é vazada em moldes de uma nobreza essencialmente nossa. Se esses traços não são bastantes para constituir um génio à parte, são, contudo, suficientes para dar à nossa literatura um carácter peculiar, e para nos assegurar num futuro próximo uma intervenção salutífera na marcha de cultura dos povos peninsulares.»

Depoimento notável, o que acabamos de reproduzir, apesar dos preconceitos mentais que por vezes lhe obliquam a visão, ele vinca já nitidamente aquilo que é a linha própria e intransmissível da nacionalidade portuguesa. O leitor separará sem custo o que há de acidental e de essencial no testemunho de Moniz Barreto. Moniz Barreto, como Oliveira Martins, surpreendidos com as afinidades que de perto nos prendiam à Espanha restante, não acharam outra explicação para a nossa existência como pátria senão a do factor-Acaso. Hoje, desde o campo geográfico ao campo étnico, Portugal justifica a sua génese por motivos fundamentados e bem evidentes. No campo geográfico, sobretudo a influência do Oceano; no campo étnico, a verificação daquele velho antagonismo entre lusitanos e celtiberos, que os analistas clássicos registam e que, no seu belo e recente trabalho acerca de Viriato, o sábio exumador das ruínas de Numância, dr. Adolfo Schulten, definiu penetrantemente de «obstinação ibérica».

O que se conclui daqui, como lição irrefragável, é a dupla feição do ‘génio peninsular’ na sua unidade profunda e na sua profunda universalidade. O erro absorcionista que destruíu o admirável paralelismo político do século XVI e que Filipe II ainda pretendeu salvar com a sua monarquia-dualista – esse erro, levando-nos ao divórcio espiritual e ao desentendimento material, motivou o crepúsculo no mundo, tanto de Espanha, como de Portugal. Mas, justamente pelo amor do ‘absoluto’, em que o criticismo de Moniz Barreto aponta um defeito, o nosso primado não se apagou de todo. Do alastramento da concepção lírica da Vida, tão nossa, tão lusitana, propagada à Europa, principalmente, pelo bucolismo de Jorge de Montemor, derivou, como categoria espúria, a psicose romântica, a convenção naturalista do século XVIII, Jean-Jacques Rousseau, a Revolução. No Quijote, como filosofia da Existência, entronca pelo mesmo desvio adulterino o pessimismo materialista do século findo, a metafisica de Kant e o bovarismo das democracias burguesas e plutocráticas. Embora diminuído e pervertido, a Idade-Moderna vive, nutre-se, de uma projeção do ‘génio peninsular’ – tal é a forma invencível da sua predestinada natureza apostólica!

Sinónimo, portanto, de Latinidade e, consequentemente, função histórica e social do Catolicismo, o ‘génio peninsular’ é a fonte legítima do único imperialismo pacificamente civilizador, porque é um imperialismo anímico – uma soberania espiritual. Dispersos e fragmentados pelas duas margens do Atlântico, não há forma nenhuma de sociabilidade superior que nós não tivéssemos gerado e executado. Com iluminada inspiração, exclamava Rubén Dário: «¡Yo soy el caballero de la humana energía!»

Cavaleiros da humana energia, espanhóis e portugueses ampliaram os roteiros da civilização e foram, nas fumaradas das batalhas e nas gáveas das naus, os seus adiantados-mores. Regidos pelo mesmo denominador-comum, a Madre-Hispânia, afirmaram perduravelmente um tipo inconfundível, o tipo ‘hispânico’, em que Camões, na pujança dos seus sentimentos nacionalistas, nos inseria sem desdouro, ao chamar-nos «uma gente fortíssima de Espanha» e ao considerar o nome de Afonso «nome em armas famoso em nossa Hespéria». Achava-se Camões dentro de uma realidade que se esvaiu para nós, hoje isolados na nossa pequenez, sem que saibamos o tesouro que trazemos dentro de alma! Essa realidade ressurge dos limbos da história e é a América que nos impõe o dever de despertarmos para ela.

Como, na verdade, «el espíritu se ensancha» – escreve um moço publicista argentino – «cuando mira que desde los Pirineos a Magallanes y de Magallanes al Río Grande se acota en el mundo y con el Gran Océano como mare nostrum, todo el contenido territorial de la civilización hispánica».[2] Esta é a definição perfeita do «hispanismo» – este é o significado elevado e nobre de ‘Espanha’, como Camões o entendia, com eco ainda na sensibilidade agudíssima de Garrett. Recolhamo-lhes nós a herança, restaurando o antigo patriotismo moral e mental da raça hispânica, que é tanto português como castelhano! De novo a existência da Península se torna o centro de uma directriz mundial. No estremecimento de catástrofe em que a Europa se perde, arrastada para o abismo por chefes incapazes, é para a Península, com Maurras e Barrès por condutores, que se voltam as esperanças desfalecidas da Latinidade. A vocação apostólica das duas pátrias peninsulares ressuscita-a a iminência aflitiva do perigo. Abramos, confiados, os Lusíadas! E, como depois das Descobertas e às vésperas gloriosas de Lepanto, repita-se exortadoramente com o Épico: «Eis aqui se descobre a nobre Espanha, / Como cabeça ali da Europa toda.»
 


  • Portugal, tierra gensor, 1922:
 
Mas não é da obra e das intenções de Ramiro de Maeztu em relação aos grandes problemas da hora presente que eu me quero ocupar. Conhecida a sua interessantíssima figura de pensador, o meu desejo é sublinhar com o maior aplauso as afirmações de Maeztu sobre Portugal e o Lirismo. A ideia central de Maeztu na sua aludida conferência incidiu sobre a divisória psíquica que irmana e separa a um tempo as duas nacionalidades hispânicas – Castela e Portugal. Pertenceu a Portugal, na repartição dos bens familiares, o espírito lírico, ficando Castela com o espírito dramático. Em antecipado acordo com Maeztu, espero demonstrar, nessa ordem de considerações, que o Lirismo, gerando o Sebastianismo como filosofia da alma portuguesa, encontra como filosofia da alma castelhana, ao outro lado da fronteira, o Quixotismo, nascido do alto sentido patético da existência, que é o segredo em Castela das suas catedrais, dos seus pintores e dos seus heróis.[1]

De resto, já a tal respeito o malogrado Moniz Barreto se exprimia da seguinte maneira no seu estudo «A literatura portuguesa contemporânea» (Revista de Portugal, 1889): «A nós, peninsulares, a função que coube na História é o Heroísmo e a Fé... A capacidade de afirmar e querer, de obedecer e dedicar-se, uma tendência singularmente nobre, de transformar o mundo à imagem do nosso ideal, uma generosa impaciência de perfeição, o desdém da beleza plástica e das delicadezas aristocráticas, um pensamento simples como um acto, a paixão concentrada e a seriedade trágica, eis outros tantos traços do génio peninsular. Este génio produz uma singular concepção da vida, que se manifesta por uma religião realista e violenta, por uma política absoluta e insensata, pela preponderância do génio da aventura e ausência de capacidade prática; que põe o amor no casamento, o ideal na acção, a beleza no valor moral; que inspira os maiores prodígios de energia no mundo moderno, e faz que a nossa história seja como o lenço da Verónica, a sangrenta efígie da nossa alma. Importado para a Literatura, esse génio produz um lirismo robusto e monótono, um teatro destituído de análise de caracteres, mas animado pelas ideias da honra e da morte, sátiras de um sarcasmo violento, romances em que a ação absorve a análise e que são a pintura da realidade crua e feia, e a maior das modernas epopeias.

» Mas para produzi-la foi preciso a intervenção do génio português» – continua Moniz Barreto. «Do corpo das populações ibéricas, dominadas e unificadas pelo génio castelhano, destaca-se, pela influência ocidental de circunstâncias históricas, uma estreita faixa da orla marítima. Esta estreita faixa se constitui em nação independente, e durante cem anos exerce um papel culminante na história moderna. Em sincronismo necessário com esta explosão de vida ativa, desabrocha uma breve, mas esplêndida floração literária. Se estudarmos os documentos que a constituem e completarmos esse estudo pelo exame das produções que datam da renascença românica, nada acharemos neles que distinga constitucionalmente o nosso génio do das populações ibéricas constituídas numa nação espanhola... Mas um exame mais atento descobrirá certas qualidades secundárias que, dando uma fisionomia peculiar ao nosso espírito, se refletem na nossa literatura: uma maior capacidade de compreender e assimilar, uma menor energia de afirmação e crença, uma sensibilidade mais delicada e profunda, um carácter menos rigoroso e mais nobre, mais razão e menos vontade, heróis mais humanos, mulheres mais mulheres, alguma coisa de saudoso e vago, de grave e triste, entranhas mais húmidas e o dom das lágrimas.

» Estes traços manifestam-se na nossa literatura por um lirismo profundo e sentido, expressão de uma alma amorosa e meiga; por um teatro capaz de pintar caracteres e espelhar a vida; por uma, ainda que tardia, floração de romances em que a análise do coração não é anulada em proveito da ação, e, finalmente, por uma criação épica em que a grandeza heroica do génio peninsular é vazada em moldes de uma nobreza essencialmente nossa. Se esses traços – remata Moniz Barreto – não são bastantes para constituir um génio à parte, são, contudo, suficientes para dar à nossa literatura um carácter peculiar, e para nos assegurar, num futuro próximo, uma intervenção salutífera na marcha da cultura dos povos peninsulares.» Certamente que há exageros de criticismo no juízo de Moniz Barreto. Mas por demorada que fosse a transcrição, absolvemo-nos gostosamente de a termos aqui incrustado, pela palpitante atualidade que lhe acaba de dispensar a palavra amiga de Ramiro de Maeztu. Claro que hoje, desde o campo da geografia à lição da história, a nacionalidade portuguesa acha-se bem individualizada, tendo contribuído notavelmente para isso a ciência e a erudição espanholas. Suponho, portanto, desnecessário detalhar as corrigendas que, naturalmente, o depoimento de Moniz Barreto me suscitaria.

Destacando, porém, o essencial do que é acidental, concordemos com ele em que a riqueza lírica da alma portuguesa marca-nos dentro das outras famílias hispânicas um lugar muito próprio e bem inconfundível. Ora não foi outro o ponto em que Ramiro de Maeztu insistiu. E compreendendo magnificamente que o génio peninsular é formado por duas metades, Portugal e Castela, o autor de La crisis del humanismo, com o mais belo cunho de sinceridade, não duvidou em reconhecer que, enclaustrada no seu planalto, Castela morrerá de avidez se não se deixar penetrar, como outrora, pelos mananciais do lirismo lusitano, enquanto Portugal, isolado de Castela, se liquefará no seu sonho de sempre, se não se põe em contacto com a tonificadora aspereza castelhana.

Assistimos ainda na sua forma embrionária a um curioso fenómeno na vida da Península. E é ao regresso pelos caminhos da Inteligência àquele admirável paralelismo político e cultural, que tomou expressão prestigiosa no apogeu do século XVI, a ponto de Camões, nos Lusíadas, encarando a Espanha como uma designação geográfica, apresentar aos portugueses: «Uma gente fortíssima de Espanha.»

Havia então, como não existe hoje, uma consciência peninsular. Nós passaremos a ver como Portugal actuou na formação desse estado de espírito e que lugar de superior hegemonia manteve sempre dentro dele. Por outro lado, não nos esqueçamos que, aparte brigas fratricidas, bem depressa terminadas em reconciliação incondicional (D. Duarte, filho de uma cunhada de Henrique III de Castela, casou com uma neta do vencido de Aljubarrota, enquanto Isabel-a-Católica era neta do mestre de Avis, como filha de portuguesa), a ternura de Castela por Portugal foi sempre tão grande e tão funda, que, ao referir-se-lhe, a Crónica rimada del Cid, lhe chama enternecidamente: «¡Portugal, esa tierra gensor!»  [Portugal, essa terra geradora! ]

(...)
Apelativo geográfico, a ‘Espanha’, «com nações diferentes se engrandece» – já comentava Camões. Num verso simples dos Lusíadas se resume pela concisão latina do grande varão de Quinhentos, o verdadeiro pensamento do «hispanismo», acrescido agora da razão eminentemente americanista da política peninsular, a que o próprio Charles Maurras acaba de assinalar o incomensurável alcance.

Ajuda-nos nessa imensa obra de restaurar a fisionomia espiritual da velha e perdida comunhão hispânica o concurso voluntário e inesperado de Ramiro de Maeztu. É imperioso que a história da Península deixe de ser, como «o lenço da Verónica, a sangrenta efígie da nossa alma», na imagem dolorosamente incisiva de Moniz Barreto. Decerto assim o entende o autor de La Crisis del humanismo, ao exclamar perante o seu auditório emocionado que «ningún país de los que ha recurrido le deslumbró como Portugal, cuya impresión sólo puede comparar a la que le dejaron las lecturas juveniles acerca del Oriente».

Por isso, Ramiro de Maeztu acrescenta que «en Portugal están los líricos más grandes del mundo actual, y que si esto lo supiesen todos los líricos de los demás países, Portugal sería para ellos su Benarés y su Meca y su Atenas» ... Ressurge enfim dos limbos do passado o mais lindo morgadio da nossa Raça! Introdu-lo na universalidade da cultura europeia o depoimento sincero de um escritor que, vencendo preconceitos da sua própria mentalidade, é agora, na patriarcal lareira espanhola, um dos mais apaixonados defensores do casamento de Portugal com Castela. Se desse casamento nasceu outrora a Idade-Moderna, talvez que por ele a civilização se venha ainda a salvar do enigmático destino em que parece desfeita!



  •  O Pan-Hispanismo, 1922:

Um equívoco secular, que hoje já mal resiste ao exame da inteligência, vincou um longo e doloroso divórcio entre as duas prestigiosas pátrias da Península. No entanto, se escutarmos bem as vozes profundas da nossa tradição, logo veremos que as lutas de Portugal com Castela são lutas de família, que em família sempre se resolveram. Filha de portugueses e como tal descendente do Mestre de Avis e do Santo Condestabre, Isabel-a-Católica venceu em Toro seu primo Afonso V, que, por sua vez, descendia de D. Juan I – o monarca derrotado em Aljubarrota. Eis uma circunstância que vale como um símbolo, porque parece ditar-nos a regra de conduta em que Portugal necessita de inspirar o conceito das suas relações com Espanha.

Houve – e ninguém o contesta – parêntesis de luto e de sangue a cavarem separações que não deveriam deixar mais vestígios que os de uma proveitosa experiência. Mas, por sobre eles, dominadora como as verdades que por si próprias se impõem, resplandece a unidade moral de uma civilização que, tendo na Península o seu berço original, é obra comum de espanhóis e portugueses.

O engano foi supor-se que essa ‘unidade moral’ exigia uma consequente ‘unidade política’, quando, desde as indicações de geografia às indicações da história, naturalmente a Península se mostrava conformada para a coexistência de dois Estados, um, Portugal, aberto às influências do mar – o outro, Castela, como Estado mais territorial que marítimo, reservado, por conseguinte, para a conquista da hegemonia continental. De resto, é o que sucede na época de mais fastígio para ambas as nacionalidades, com Carlos V e Filipe II de um lado, dispondo quase da sorte da Europa; e com D. Manuel I e D. João III no pequeno canto lusitano, fundando com o poder-naval aquele admirável império de que os Lusíadas são a ressonância eterna. «Durante este período, que é o de maior prosperidade e grandeza dos povos peninsulares – escreve o malogrado Moniz Barreto – a consciência da força própria suprime desconfiança e temores, e a identidade de aspirações e sentimentos cimenta as bases de uma aliança em que compartilhamos com a Espanha a hegemonia no Mediterrâneo ocidental e nos dois Oceanos.» 

Mas a lembrança de tão glorioso paralelismo não conseguiu evitar que espanhóis e portugueses viessem a conhecer a decadência e o esquecimento, quando tiveram verdadeiramente nas suas mãos os destinos do mundo inteiro. Não inventariarei aqui o longo rosário de desgraças e humilhações que tanto para portugueses como para espanhóis tem representado o seu criminoso desentendimento. Mutilada, dividida, a história da Península tornou-se como o lenço da Verónica, a sangrenta efígie da nossa alma – aplicando uma imagem inolvidável de Moniz Barreto. E, todavia, pela sua posição excecional, senhora do Estreito que devia ser e terraço lançado sobre as águas do Atlântico ao encontro da América, que missão não assinalou Deus à Península, se nós a quiséssemos e a soubéssemos cumprir!

Pois a hora presente é-nos, como nunca, propícia! «Na opinião geral – escrevia há já bastantes anos o general Rodríguez de Quijano – só Espanha e Portugal, pelos seus precedentes e índole especial de raça, podem chegar a ser o verdadeiro laço de união entre a Europa, a América e a África...» Em sucintas palavras se condensa todo o futuro das duas pátrias peninsulares, se, olhando para a frente com coragem e iniciativa, nos resolvermos a executar tão belo programa de ação, para o qual antes de tudo se estabelece como primeiro passo, a necessária aproximação de Portugal e Espanha. Assim, o desacreditado iberismo, de evidente marca maçónica e revolucionária, será vencido pelo peninsularismo, cujas raízes na geografia e na história exigem logo de entrada, como condição prévia, que a tolerância política e económica dos dois Estados da Península seja integralmente respeitada.

Mas o peninsularismo não é senão a jornada inicial! Na margem oposta do Oceano – do Oceano que nós tornámos algum dia, como mare nostrum, num perfeito lago familiar – outras pátrias existem que falam a nossa língua e que não ficam insensíveis ao nosso apelo. O pan-hispanismo nos surge daqui, como conclusão lógica, constituído por dois elementos estruturais, o espanholismo e o lusitanismo. «Voz clamorosa de la sangre, contra el pan-americanismo» – foi como definiu o pan-hispanismo o ano passado, por ocasião da Festa da Raça, no seu famoso discurso do Teatro Real de Madrid, o conde de la Mortera, D. Gabriel Maura Gamazo, acrescentando em seguida que «los pueblos que no se agrupen en organisaciones más amplias que la sociedad nacional, sucumbirán bajo el imperialismo».

Suponho suficientemente enunciadas as razões que nos levam a nós, portugueses, a não permanecer indiferentes perante o significado actualíssimo do pan-hispanismo. Prefaciando o estudo recente de Marius André sobre a colonização espanhola na América, o próprio Charles Maurras acaba de reconhecer sem vacilações a sua extraordinária importância. E o Brasil, que não esqueceu por certo os avisos de Eduardo Prado no seu livro A ilusão americana, não vai abdicar das suas justas ambições de poderio e desenvolvimento, que só na liga das nacionalidades hispânicas acharão garantia sólida e perfeita. Lancêmo-nos, por isso, à vanguarda de uma civilização que é nossa e que hoje diríamos sonâmbula, como que vivendo as formas mumificadas do tempo que já não volta. O que é essencialíssimo é que os povos de derivação peninsular readquiram a consciência da sua finalidade superior e que o exemplo parta da Península, sua casa paterna e solar venerando; por muito que o problema se nos afigure emaranhado e difícil, é em cada um de nós que a sua solução reside. «Las naciones de origen hispánico – observa novamente o conde de la Mortera – se decidirán tal vez muy pronto a buscar en la unión efusiva y fraternal con las demás hijas de la madre común, la fuerza misma que las otras les ofrecen, mediante artificiosas combinaciones diplomaticas o económicas.» Prepare-se Portugal, pela sua parte, reorganizando-se como nação forte e estreitando cada vez mais os vínculos da sua amizade com a Espanha, nossa irmã, e com o Brasil, nosso filho primogénito. E, como numa primavera nunca vista, a flor do internacionalismo hispânico abrirá as suas pétalas de maravilha, ressuscitando a manhã longínqua em que a América se revelou em toda a sua magnífica adolescência, aos pilotos de Cristóvão Colombo e à marujada de Pedro Álvares Cabral!
 


  • Madre-Hispânia, 1924:

Não se confina, porém, nos domínios excelsos do espiritual, minhas senhoras e meus senhores, o dualismo peninsular! Transitando para as grandes exteriorizações coletivas da história, é fácil descobrir-lhe o rasto no papel que Deus conferiu a Castela, entregando-lhe a política continental do Mediterrâneo e da Europa Central – a cruzada da Terra – enquanto, com as Descobertas e com a alvorada de novos mundos, confiava a Portugal a cruzada do Mar. Não arriscarei uma hipérbole impertinente, se considerar o que existe de medular na civilização ocidental – excetuado, claro, o impulso criador que lhe veio do Cristianismo – como essencialmente filho do génio peninsular ou hispânico. Mas a sua unidade, a unidade do génio hispânico, não reside na secura dogmática de uma fórmula inteiriça e geométrica. Nasce, ao contrário, de uma tocante pluralidade de aspetos e matizes, que Portugal e Castela, como partes predominantes, nele introduzem, enriquecendo-os de realce humano e de vitalidade incomparável.

Assim o teriam, por certo, sentido os varões máximos de Quinhentos, os varões da Descoberta e da Colonização. Uma das mais agudas, embora das mais esquecidas inteligências de Portugal, o malogrado Moniz Barreto, tracejou as linhas gerais dessa particular fisionomia do Génio Peninsular – o seu indiscutível dualismo. E, possuidor, como poucos, da chave da psicologia hispânica, bem alto proclamava, numa hora em que reinavam soberanamente em Portugal os mais abstrusos preconceitos antiespanhóis, que o período de maior esplendor, tanto para Portugal como para Castela, coincide com o do sincero e voluntariamente procurado paralelismo de Quinhentos.

(...)

É imperioso, no entanto, retificar-se: decadência da Europa, sim, mas não decadência da Península! Já veremos porquê. Oliveira Martins, e, com Oliveira Martins, Moniz Barreto, seu critico e seu amigo, fixaram como qualidade-mestra da alma hispânica o seu aferro ao conceito absoluto da Existência. Pelo aferro dos hispanos à ideia absoluta da Vida se compreende e explica aquilo que destaca a sua história da história das outras nações europeias – sucessoras na condução e hegemonia do mundo. Enquanto elas se baseiam na noção de indivíduo, os hispanos basearam-se sempre, por condição peculiar da sua índole, na noção de ‘pessoa’. Se recorrermos, minhas senhoras e meus senhores, à distinção que o Tomismo nos fornece entre ‘pessoa’ e ‘indivíduo’, abrangeremos sem dificuldade como o nacionalismo dos hispanos – centrípeto, acumulador por excelência – teria de ser universalista – aditivo, portanto – ao passo que o nacionalismo de ingleses e alemães, individualistas por pecado original, seria centrífugo, atómico, subtrativo, como consequência. Eis aqui o motivo bem palpável porque nós fundámos ‘nacionalidades’, não conseguindo os outros povos, que enfática e empavonadamente se intitulam de ‘colonizadores’, ir além de ‘colónias’ e, quando muito de ‘Estados’, cujos fundamentos assentaram no extermínio sistemático das populações indígenas.

 


  • Assentando Posições, in Aliança Peninsular, 1924:

A ‘sede insensata de Absoluto’, de que nos fala Moniz Barreto, impelia-nos assim a incorporar no próprio ideal de civilização as raças inferiores com quem tomávamos contacto, ao passo que o extermínio do indígena constituía o único método empregado por povos que, enfaticamente, se decoram com as honras excelsas de ‘colonizadores’. Em desterro ficámos na Europa, ao aluir, no século XVII, o pouco que organicamente restava de Cristandade. Aos morbos externos de individualismo, que a França ajudaria a triunfar em Vestfália, juntava-se a dissociação do paralelismo peninsular, por consequência dos feitos desastrosos da monarquia filipina.

(...)
Não ignoro que uma das dificuldades levantadas à eficácia já bem palpável das minhas campanhas em prol da aliança hispano-portuguesa, gira em torno da designação ‘Hispanismo’ – necessária para que a ideia se concretize, tome corpo e rompa caminho. Só o desconhecimento do passado e das legítimas raízes de semelhante vocábulo desperta não sei que romanescos receios, que nada, nem hoje nem ontem, justifica. E nada os justifica, porque, como na sua bela Exortação à Mocidade desassombradamente Carlos Malheiro Dias declara, «a nossa familiar convivência com a Espanha só pode parecer perigosa àqueles em cuja alma tíbia esmoreceu o altivo e intransigente sentimento da pátria». Se olharmos atrás, com consciência, quem há que refute seriamente a observação de Moniz Barreto, quando, aludindo ao paralelismo de Quinhentos, comenta em termos inolvidáveis que «é um facto que se presta a reflexões que o período da aliança espanhola coincida com a época de maior prosperidade e de plena expansão do génio português»? Se olharmos depois ao futuro, tão assombrado para as almas de pouca fé, quem, seguro dos roteiros que o destino anda rasgando à vindoira ressurreição de Portugal – quem, embebido em outras visões que não sejam as que momentaneamente se recolham de uma Pátria «que está metida / No gosto da cobiça, e na rudeza / De uma austera, apagada, e vil tristeza» – quem, alteando a vista por cima do charco da atual vida social e política, não sentirá louvar-se e retemperar-se nos honrados protestos do general Gomes da Costa perante o Presidente da nossa república de mulatos, judeus e metecos?

«Portugueses e castelhanos, já uma vez dominamos o mundo, a ponto de soberbamente o dividirmos ao meio, para o reconhecer e explorar» – disse o general com um inesperado acento de juventude e flama patriótica. «O que foi essa Epopeia, que é ainda hoje a inveja das outras nações, não vem agora rememorar detalhadamente... E é o que temos ainda a fazer amanhã, nós, os dois povos peninsulares, dando-nos as mãos como irmãos que somos, mas sempre com as nossas individualidades bem distintas – e juntos, recomeçarmos uma nova Epopeia, embora em moldes mais modernos, menos grandiosos, mas mais humanos.» Assim será, com efeito! Trata-se de um simples ‘programa de conservação’, como sinteticamente o definia Moniz Barreto – trata-se de manter e desenvolver aquele superior tipo de civilização que nós, os hispanos, ardentemente geramos e com não menos ardor difundimos. Num rasgo de iluminado, proclama agora Carlos Malheiro Dias, dirigindo-se sempre à Mocidade: «Somos a decana de todas as nações da Europa na sua actual configuração territorial; e só nos falta que a consciência da nossa soberania unitária se prolongue às dispersas províncias ultramarinas, para que Lisboa volva a ser cabeça de um grande império, a metrópole dos Estados Unidos de Portugal.» Que a esse grande império, anunciado por Carlos Malheiro Dias, se some o outro império, o império que a Espanha, nossa irmã, edificou por céus inóspitos e terras bravas, e eis o conteúdo preciso do tão increpado e debatido vocábulo: ‘Hispanismo’!
 


  • O selo da raça, Aliança Peninsular, 1924:

Obra, sobretudo, de uma diligente e amorável acção feminina, ninguém talvez definiu melhor a unidade hispânica do que Moniz Barreto, um dos mais belos e desditosos espíritos da nossa terra.

Na Revista de Portugal, de que foi director Eça de Queiroz, publicou Moniz Barreto um sensacional estudo, em seguida ao Ultimatum de 1890. Intitula-se ele «A situação geral da Europa e a política exterior de Portugal». E embora corressem mais de trinta anos sobre a sua publicação,[3] o trabalho de Moniz Barreto reveste-se na hora presente, para quem o releia, de uma profunda e irrefutável actualidade. Encara-se ali o problema da aliança peninsular com a mais brava decisão de inteligência. Assim o vamos provar com as palavras do próprio Moniz Barreto: «Mas Portugal está interessado não só em viver em paz com Espanha, mas ainda em travar com ela relações de amizade e aliança. Depois que em Aljubarrota e em Toro os portugueses e os castelhanos afirmaram reciprocamente a sua independência contra mútuas tentativas de invasão, iniciou-se na Península um período de inteligências diplomáticas que dura um século e corresponde em Portugal aos reinados de D. João II, D. Manuel, D. João III, D. Sebastião, e em Espanha aos reinados de Fernando e Isabel, de Carlos V e de Filipe II. Durante este período, que é o de maior prosperidade e grandeza dos povos peninsulares, a consciência da força própria suprime desconfianças e temores e a identidade de aspirações e sentimentos cimenta as bases de uma aliança em que compartilhamos com a Espanha a hegemonia no Mediterrâneo Ocidental e nos dois Oceanos. É este pensamento que inspira os casamentos dinásticos e se traduz por auxílios militares, que conduz um infante de Portugal à barra de Tunes, que faz combater os cavaleiros espanhóis em Alcácer-Quibir, que, encontrando intérpretes nos grandes poetas da península, enche de elogios magníficos do génio espanhol a epopeia das glórias portuguesas, que dicta a Herrera a lamentação à morte do Rei Desejado, que em pleno reinado de Filipe IV leva o maior vulto do teatro nacional espanhol a coroar com a auréola da poesia a memória do Infante Santo. E é um facto que se presta a reflexões que o período da aliança espanhola coincida com a época de maior prosperidade e de plena expansão do génio português.»

Constitui o depoimento de Moniz Barreto uma síntese brilhante de quanto, ao longo de este trabalho, ficou já afirmado. Vivem, porém, tão ancorados na psicologia dominanie os preconceitos que, de parte a parte, impossibilitam uma desanuviada e incondicional aproximação hispano-portuguesa, que nunca me parece demais insistir num tema como aquele que a pena de Moniz Barreto condensou tão brilhantemente. Por isso volto a recordar a circunstância deveras impressionante de ter a Casa de Avis transmitido aos Áustrias espanhóis a sua hereditariedade tanto física como moral. Selo admirável da nossa Raça, em tudo ele se manifesta, demonstrando-nos como coincide, na verdade, com essa época, o período da expansão plena do génio português. O ‘bilinguismo literário’, tão justamente denominado por D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, não é mais do que um dos muitos aspectos do íntimo paralelismo social e cultural que ligou então entre si as duas pátrias hispânicas.

Realmente, se a história de Portugal na centúria de Quinhentos vibra cheia de ressonâncias castelhanas, a história de Castela, por sua vez, é um eco constante, repetindo com orgulho o nome glorioso de Portugal. Ainda agora, por toda a banda, por onde quer que o viajante peregrine, o escudo sagrado das Quinas se destaca para o nosso olhar surpreendido de entre a mole serena das igrejas e dos palácios que riscam de traços nobres a paisagem pensativa do centro da Península. Em Segóvia, por exemplo, a cruz floreteada de Avis insculpe-se magnificamente no cadeirado soberbo do coro da Catedral. Guarda-se igualmente em Segóvia o precioso pontifical do bispo D. Vasco com as armas portuguesas avultando no esplendor heráldico das bordaduras sumptuosas. A Segóvia pertence também uma outra maravilha de arte, o Cristo de Lozoya, obra do imaginário Manuel Pereira. Autor do formidável São Bruno da Cartuja de Miraflores, quase ninguém em Portugal conhece a existência[4] desse seu filho ilustre, que é uma das mais extraordinárias expressões do génio plástico da Península. A barreira que nos separa, por motivos hoje irracionais, leva-nos a nós, portugueses, a repelir criminosamente bastantes florões do património augustíssimo da nossa Raça e da nossa História.

Ora o que sucede em Segóvia, sucede por toda a Espanha, desde Granada custodiando o corpo de São João de Deus – decor Hispaniae: Institutor Ordinis, proles Lusitaniae ad Granatæ nobilis celebre depositum... como se canta no ofício da sua festa de Confessor – até Fuenterrabia, de sentinela já à terra francesa, mas com as Cinco-Quinas e os Sete-Castelos ocupando orgulhosamente o coração do escudo filipino. De sul a norte, sempre um retalho de Portugal, sempre uma reminiscência da ‘pátria minha amada’ – no dizer inolvidável do Épico! Significará isso, porventura, uma subalternização de Portugal ao espírito militante e unitarista do centro da Península? Não, de modo nenhum! Moniz Barreto já acentuava bem que «a consciência da força própria suprime desconfianças e temores». É o que se comprova sem dificuldade se nos lembrarmos de que, na constante permuta intelectual das duas nacionalidades hispânicas, Aires Barbosa, um português,[5] presidia ao desenvolvimento dos estudos clássicos em Espanha,[6] enquanto o espanhol Luis Vives dedicava a D. João III o seu tratado De disciplinis, antecedido de um caloroso elogio aos serviços prestados por Portugal à cultura humana. Do mesmo modo, se um Brocense recebia em terra portuguesa a sua primeira formação mental, Garcia de Orta – o nosso grande naturalista – era em Alcalá, na universidade de Cisneros, que preparava o seu espírito e sentia abrir-se à curiosidade científica que o notabilizou depois.

Não nos esqueçamos também de que na sua cátedra de Évora é que o jesuíta Luís de Molina sustentaria a sua longa e apaixonada polémica, de que o Condenado por desconfiado devia ser a seguir a imorredoira expressão literária.[7]
 



  • Genealogia de uma Ideia, in Aliança peninsular (1924):

A morte do filho de D. João II nos areais do Tejo, e depois o falecimento do príncipe D. Miguel da Paz, obstaram, por uma força secreta, intervindo inopinadamente, a que se concretizassem em factos as combinações bem encaminhadas dos políticos. E só por isso o gordo Garcia de Resende diria na sua Miscelânea com íntimo acento profético: «Vimos Portugal, Castela, / quatro vezes ajuntados, / por casamentos liados / Príncipe natural dela / que herdava todos reinados. // Todos vimos falecer / em breve tempo morrer / e nenhum durar três anos. / Portugueses, castelhanos, / não os quer Deus juntos ver.»

Tal é na sua primeira parte a demonstração que ao historiador fornece a conduta da Casa de Avis perante o problema sempre agudíssimo das relações peninsulares. Mais duradoira e mais sólida foi, contudo, a norma adotada por ela, ao ver que o destino lhe inutilizava por completo as ambições unitaristas. É então que a ideia do paralelismo surge nos dois Estados irmãos da Península, sendo, na verdade, motivo para reflexões, como nota Moniz Barreto – «que o período da aliança espanhola coincida com a época da maior prosperidade e de plena expansão do génio português».

Assim não nos admira que Oliveira Martins, de acordo com Moniz Barreto, seu amigo e seu biógrafo, em face do espectro da Revolução Social que já tanto o alarmava, a si mesmo perguntasse:
«Qual é, portanto, em resultado de todas estas considerações várias, o programa que o juízo aconselha às duas monarquias da Península? É o regresso à tradição de Avis, a política de cooperação, despida, porém, das esperanças recíprocas de absorção pelo processo anacrónico dos enlaces dinásticos. É ao mesmo tempo a política interna de restauração e regeneração social e económica. Acordes, a Hespanha e Portugal, conseguindo sarar as chagas de que enfermam ambas as nações (também nisto, irmãs!) poderiam, mantendo-se, manter a ordem neste belo e glorioso canto do mundo.»
 



  •  O lenço da Verónica, in Aliança Peninsular (1924):
 
Pois é, exatamente, nessa gradação mais esbatida, ou menos intensa, da luz do nosso céu, que se traduz, desde os elementos naturais aos psicológicos, toda a razão de ser da nacionalidade lusitana. Se há tibieza por vezes nas opiniões intermédias do autor de A terra portuguesa, elas ficaram já de antemão retificadas. O que é interessante agora é verificar-se como o seu depoimento de geógrafo se ajusta singelamente, pelo que toca aos fatores intelectuais e morais, com o depoimento de um crítico ilustre – o malogrado Moniz Barreto, no seu magnífico estudo A literatura portuguesa.[8]

«A nós peninsulares a fundação que nos coube na História é o Heroísmo e a Fé» – escreve Moniz Barreto. «Destituídos de imaginação penetrante e do dom da vasta compreensão, desprovidos de larga simpatia e de curiosidade infatigável, primamos pela energia da vontade e pela grandeza do carácter. O fundo desse carácter é a honra militar. A capacidade de afirmar e querer, de obedecer e dedicar-se, uma tendência singularmente nobre de transformar o mundo à imagem do nosso ideal, uma generosa impaciência de perfeição, o desdém da beleza plástica e das delicadezas aristocráticas, um pensamento simples como um ato, a paixão concentrada e a seriedade trágica, eis outros traços do génio peninsular. Este génio produz uma singular conceção da Vida, que se manifesta por uma religião realista e violenta, por uma política absoluta e insensata, pela preponderância do génio da aventura e ausência de capacidade prática; que põe o amor no casamento, o ideal na ação, a beleza no valor moral; que inspira os maiores prodígios de energia no mundo moderno, e faz que a nossa história seja, como o lenço da Verónica, a sangrenta efígie da nossa alma. Importado para a Literatura, esse génio produz um lirismo robusto e monótono, um teatro destituído de análise de caracteres, mas animado pelas ideias da honra e da morte, sátiras de um sarcasmo violento, romances em que a ação absorve a análise e que são a pintura da realidade crua e feia, e a maior das modernas epopeias.»

» Mas para produzi-la foi preciso a intervenção do génio português – prossegue Moniz Barreto. Do corpo das populações ibéricas, dominadas e unificadas pelo génio castelhano, destaca-se pela influência acidental de influências históricas uma estreita faixa da orla marítima. Esta estreita faixa se constitui em nação independente e durante cem anos exerce um papel culminante na história moderna. Em sincronismo necessário com esta explosão de vida ativa, desabrocha uma breve mas esplêndida floração literária. Se estudarmos os documentos que a constituem, e completarmos esse estudo pelo exame das produções que datam da renascença romântica, nada acharemos neles que distinga constitucionalmente o nosso génio do das populações ibéricas constituídas numa nação espanhola, como nada encontramos que geográfica e etnicamente fundamente a autonomia da nossa vida política. Mas um exame mais atento descobrirá certas qualidades secundárias que, dando uma fisionomia peculiar ao nosso espírito, se refletem na nossa literatura: uma maior capacidade de compreender e assimilar, uma menor energia de afirmação e crença, uma sensibilidade mais delicada e profunda, um carácter menos vigoroso e mais nobre, mais razão e menos vontade, heróis mais humanos e mulheres mais mulheres, alguma coisa de saudoso e vago, de grave e triste, entranhas mais húmidas e o dom das lágrimas. Estes traços manifestam-se na nossa literatura por um lirismo profundo e sentido, expressão de uma alma amorosa e meiga; por um teatro capaz de pintar caracteres e espelhar a vida; por uma ainda que tardia floração de romances em que a análise do coração não é anulada em proveito da ação, e finalmente por uma criação épica em que a grandeza heroica do génio peninsular é vazada em moldes de uma nobreza essencialmente nossa. Se esses traços não são bastantes para constituir um génio aparte, são contudo suficientes para dar à nossa literatura um carácter peculiar, e para nos assegurar num futuro próximo uma intervenção salutífera na marcha da cultura dos povos peninsulares.»

Filho de uma época dolorosa de transição, Moniz Barreto, embora dotado de excecionais faculdades construtivas, não pôde fugir ao nefasto criticismo que tolda desastradamente a bela obra de Oliveira Martins. Aceitando a falsa teoria do Acaso, que para Oliveira Martins significava a única dinâmica geradora da nossa existência de povo livre, Moniz Barreto aceitava-lhe igualmente as conclusões erradas. Não há já para nós perigo algum no que nas suas palavras se leia de menos exacto. Possuímos – ao contrário de que o seu pessimismo o supunha – abundantes alicerces geográficos e étnicos, para que não subsistamos apenas por concessão graciosa ou fortuita do acaso. O próprio Moniz Barreto se via compelido a confessá-lo, destacando para a psicologia portuguesa aquela gradação de tintas, aquela mesma transparência cromática, em que a humidade do Oceano emoldurou Portugal desde o fundo dos séculos.
Somos senhores de uma raça fortemente marcada, somos senhores de um território nitidamente individualizado. O que sucede é que nem as particularidades físicas da pátria portuguesa, nem os atributos morais do génio lusitano – conquanto nos distingam com tão sobrado vigor – nos conseguem separar do resto da Península, impedindo que a nossa história – a história comum de portugueses e castelhanos nos seus sacrifícios pela civilização – «seja, como o lenço da Verónica, a sangrenta efígie da nossa alma!»

Mas se esse concurso de circunstâncias várias nos distinguem, sem nos separar – ninguém pense também em ignorá-lo – sonhando com um unitarismo aberrativo e artificial – tal como o arquitetou o delírio iberista de um ou outro ideólogo truculento – que, julgando servir a glória da sua pátria, não tem feito senão aumentar o velho amontoado de erros políticos, cujas consequências estão bem à vista, consinta-se-me o desabafo! – na desgraçada situação subalterna da Península.

Bem reconheço quanto o assunto é melindroso. Mas, na verdade, torna-se imprescindível abordá-lo de frente para que me possa pronunciar com mais autoridade e para que a minha voz encontre em Portugal aquele eco favorável que tanto ambiciono para ela. Prefiro, contudo, ver-me substituído em tão delicada questão por quem oferece maiores garantias de imparcialidade e ânimo sereno. «No, señores, ¡la culpa no hay que buscarla fuera!» – já dizia, haverá cinco anos, em conferência pública, o ilustre catedrático senhor D. Eloy Bullón y Fernández: «somos nosotros, portugueses y españoles, y más los españoles que los portugueses, los que tenemos la responsabilidad de que el estado de las relaciones entre ambos pueblos no sea el que debería ser.»[9] E depois de se referir, não sem motivo justificado, ao interesse que «en algunos momentos ha habido por parte de las oligarquías políticas de Portugal en mantener recelos o desvíos contra España, a pretexto de que aquí se pensava em absorciones o conquistas», o senhor Bullón y Fernández não hesita em declarar com louvável sinceridade que «lejos de eso, no han faltado algunas veces, del lado de aquí, de España, proyectos poco meditados, publicaciones, discursos no muy prudentes que en lugar de contribuir a estrechar las relaciones entre ambos pueblos, han servido, bien a pesar de la excelente intención de sus autores, para envenenar las relaciones de ambos los países».



  • Quinas de Portugal, in A Aliança Peninsular (1924):

Abordando-o de raspão, pretendo demonstrar apenas quanto é iníqua e sem fundamento a leyenda-negra que em Portugal se esforça por obscurecer a ação da antiga Realeza. A ideia de que Portugal seria «sempre Reino sobre si» nunca, em circunstância nenhuma, a abandonaram os nossos monarcas. Vimo-lo com D. Manuel I. Acabamos de vê-lo com D. Fernando. E já vimos que não foi outro o pensamento em que se inspiraram os planos de D. João IV e do Padre António Vieira – seu consultor político. Mas não era aí que residia a fórmula exata do problema – a fórmula destinada a obter os sufrágios unânimes do futuro. Significando como significava a união de duas dinastias, o dualismo inaugurado por esse processo não passaria jamais de um artifício, de fácil desconjuntamento, Quem pondera os ensinamentos da história não pode nem deve hesitar: entre tanta experiência, umas afogadas em sangue, as outras atiradas logo para o limbo das coisas inúteis, só, no fim de contas, subsiste para a nossa meditação, como digno de nos recolher os aplausos, aquele belo paralelismo social e cultural em que vieram a concluir fecundamente os esforços das duas casas reinantes da Península, para viverem em paz entre si e entre si conseguirem no mundo o prestígio dos dois povos irmãos que a Providência identificara na mesma sorte. Foi o que sucedeu durante a centúria que decorre do século XVI ao XVII, precisamente no período que, segundo Moniz Barreto, «é o de maior prosperidade e grandeza dos povos peninsulares» e com o qual coincide, ainda segundo o mesmo pensador, a «plena expansão do génio português».



  • Cabeça de Europa, in A Aliança Peninsular (1924):

Pretendeu ela organizar-se na sua forma natural – a da colaboração solidária das duas nacionalidades peninsulares. Não lho consentiu um falso conceito da realidade, inspirando condutas extremas ou erróneas, já com a miragem perniciosa do unitarismo, já com a prática suicida do isolamento e da desconfiança sistemática. Se, conforme a aguda reflexão de Moniz Barreto, «o período da aliança espanhola coincide com a época de maior prosperidade e de plena expansão do génio português», não é também menos certo que a decadência das duas nações peninsulares corresponde ao desentendimento que logrou separá-las em atitudes hostis. Com exclusão das experiências já arredadas pelo seu total insucesso, é a política da Casa de Avis – é a política da aliança a política que, sem constrangimento e com perfeita lógica, se deduz das lições do passado e apertadamente se cinge aos problemas da atualidade.

Mas em que condições? As condições enunciadas no magnífico estudo de Moniz Barreto, por nós citado tantas vezes e que está aguardando que o arranquem, para uma mais vasta publicidade, das colunas adormecidas da Revista de Portugal. Oiçamo-lo nas suas sensatíssimas considerações:

«Conquanto a situação geográfica de Portugal, aponta ele, seja diferente da dos pequenos países encravados entre as grandes potências adversas do continente, conquanto não estejamos como a Suíça, a Roménia ou a Bélgica, na passagem das hostes que se precipitam ao encontro umas das outras com as armas na mão, é, porém, certo que a privilegiada situação do nosso litoral sobre o Atlântico e à entrada do Mediterrâneo, e a importância do porto de Lisboa como base de operações marítimas nas águas ocidentais da Europa, impede que a nossa atitude seja indiferente às potências empenhadas numa guerra que será em grande parte naval. A neutralidade é uma ilusão quando não é garantida, ou pelo isolamento geográfico, ou pelo desenvolvimento de forças imponentes. E os diplomatas que vissem na inação um meio de fugir às responsabilidades, poderiam ser rudemente desenganados pela contingência das complicações imprevistas.»
A pena de Moniz Barreto acende-se por vezes em chispas proféticas! Prevendo a quase trinta anos de distância muitas das consequências da Guerra-Europeia, apressa-se ele a acentuar que, «se a nossa neutralidade continental, bem que insuficientemente garantida, não está, contudo, diretamente ameaçada, a ponto de justificar temores pela nossa autonomia, a nossa integridade colonial é um problema grave e que requer solução urgente». Não se verificou, no desenlaçar da grande contenda, a hipótese encarada por Moniz Barreto em relação ao património ultramarino português. Mas todas as preocupações são poucas, se atentarmos nos desígnios bem manifestos da União Sul-Africana, no tocante a Moçambique. Acresce que a maneira como entramos na guerra e como depois nos vimos abandonados em Versailles, se encarrega de atualizar por si própria, com um sublinhado espantoso e trágico, as justas apreensões de Moniz Barreto.

«Ora contra esta eventualidade (a eventualidade de Portugal ser espoliado no desfecho furioso dos furiosos egoísmos internacionais) a aliança espanhola é o único expediente exequível e é uma garantia suficiente. Conquanto os recursos de que dispõem as duas nações peninsulares não sejam por ora comparáveis aos das grandes das potências europeias, eles são, porém, bastantes para assegurar o respeito dos nossos direitos, sobretudo se refletirmos na repugnância extrema da Inglaterra por ações de onde possam resultar conflitos. E se se atende a que no derradeiro conflito a Inglaterra não apoiou senão contrafeita as espoliações dos seus colonos do Cabo, conquanto folgasse com os resultados, é lícito esperar que a Liga peninsular nem mesmo precise de desembainhar a espada para impor silêncio às ambições desonestas dos flibusteiros da África austral.»

«Para que uma aliança entre duas potências – avança Moniz Barreto – seja exequível, é preciso que ambas estejam interessadas na sua manutenção e que não haja desproporção entre os interesses que lhes aconselham a comunidade de ação. Para que a aliança peninsular se possa tornar um facto, não basta que nos convenha, é preciso que os espanhóis encontrem nela vantagens que os recompensem dos sacrifícios a que porventura ela haja de os arrastar.»

E discorrendo acerca do ambiente moral em que essa aliança se produziria, o cronista da Revista de Portugal reconhece com desassombrada sinceridade: «É certo que existe em Espanha uma forte corrente de simpatia e fraternal amizade em nosso favor. É certo que essa simpatia é um sentimento antigo, arraigado, capaz de inspirar ações, nomeadamente nos meios em que a sensibilidade prepondera sobre a razão, como o povo, a mocidade, os partidos extremos. É certo que por ocasião do último conflito com a Inglaterra tivemos disso provas frisantes.[10] As duas imprensas que mais calorosamente tomaram a nossa defesa foram a francesa e a espanhola.»

» Mas saltava aos olhos a diferença dos sentimentos que as inspiravam. Os artigos dos jornais franceses eram ditados de um lado por essa retidão gaulesa que se exerce sempre que a paixão a não perturba, do outro por uma violenta animosidade contra a Inglaterra ocupadora do Egipto; mas via-se que, no fundo, os seus autores interessavam-se pelos portugueses tanto como pelos chilenos. Nos artigos dos jornais espanhóis via-se, ao lado da indignação que inspira o abuso da Força, o ressentimento de um insulto feito a gentes do próprio sangue. A unanimidade da opinião espanhola só foi igualada pelo seu desinteresse, e a surpresa da imprensa inglesa em frente da atitude da imprensa espanhola explica-se, dada a ausência de dissentimentos políticos entre as duas nações e dada a calculada amabilidade que afeta nas suas relações com Espanha, a Inglaterra interessada em combater a hegemonia francesa no Mediterrâneo.»
E Moniz Barreto prossegue: isto é exato. «Mas é também certo que aos diplomatas que têm a seu cargo gerir os interesses externos de uma potência assiste a obrigação de se determinarem por considerações de ordem positiva e, subordinando os motivos de sentimento aos de natureza racional, dirigirem-se pelos ditames de uma política essencialmente realista. Ora sucede que neste caso, por uma dessas coincidências que são a expressão das necessidades mais íntimas da história, o sentimento está de acordo com a razão», adita Moniz Barreto. A inteligência com Portugal não só vai de harmonia com os instintos do povo espanhol, mas satisfaz às exigências da política espanhola.

Como? E Moniz Barreto responde: «O programa dessa política obedece a duas considerações de ordem superior: a defesa da integridade territorial no continente e a manutenção do statu quo em Marrocos. Esse programa consiste numa neutralidade armada, servida por uma diplomacia vigilante, e conservando plena liberdade de ação para utilizar as forças disponíveis em proveito dos direitos ameaçados». Detalha agora com espantosa acuidade Moniz Barreto: «No que toca à defesa da integridade nacional no continente, não padece dúvida que a natureza da fronteira oriental e a conhecida energia e constância do patriotismo espanhol constituem – garantias sérias a favor do respeito da neutralidade espanhola por parte das potências empenhadas num conflito europeu. Mas quem tiver meditado as lições da história e tirar delas o ensinamento que delas resulta, a saber, que os direitos não valem se não são garantidos pela força, que nos tempos modernos como nos antigos é a violência quem decide em última instância, esse não achará demasiadas todas as precauções destinadas a pôr a sua pátria ao abrigo de um golpe de mão, tendente a arrastá-la na órbita de influências estranhas. E quem completar essa lição geral pelo exame da história particular da Espanha nos últimos duzentos e cinquenta anos, quem tiver observado como durante a sua longa decadência ela foi não somente espoliada no seu império colonial, atacada na sua segurança peninsular, mas ainda obrigada a alianças desastrosas, transformada em campo de batalha de ambições alheias, explorada e lograda pelos seus mesmos amigos, esse aprenderá quão pouco se deve contar com a lealdade e desinteresse das nações estrangeiras, mesmo daquelas que lançam aos quatro ventos o pregão da própria generosidade e se proclamam confessores e mártires da causa da civilização europeia.»

Verdadeira teoria da aliança peninsular, continuemos escutando Moniz Barreto no seu admirável estudo. «A questão marroquina prende-se de tal modo com a questão da integridade nacional espanhola, que não é mais que um dos aspetos desta. Um ilustre historiador inglês pôde afirmar ser uma lei da história que as populações da península dominem ou sejam dominadas pelos que estanciam na região africana que lhes fica fronteira. Com efeito, se por algum lado Espanha é vulnerável, não é pelo Oriente defendida pela muralha pirenaica, mas pelo sul, aberto às arremetidas do litoral africano, desvantagem agravada pela existência de uma grande posição militar estrangeira sobre o Estreito e em terra espanhola. É por isso que uma diplomacia patriótica tem de vigiar ciosamente as tentativas de ingerência no império marroquino, da parte de potências europeias, nomeadamente daquela que tem já largos interesses criados na região berberesca, e que não faz mistérios das suas vistas sobre todo o noroeste africano. E procedendo de este modo, Espanha segue as tradições da sua gloriosa história. Seria mais um capítulo a ajuntar à crónica lamentável da decadência peninsular, se essa região marroquina aberta à ação dos dois povos cristãos pela espada de D. João I e dos conquistadores de Ceuta, ilustrada pela valentia dos fronteiros de África, dourada pela fama robusta de D. Afonso V e pela glória nascente de D. João II, consagrada pelo apostolado de Raimundo Lulio, pelo martírio do Infante Santo, pelo sangue de D. Sebastião, venha a cair, como Tunes, arrancada por nós aos bárbaros, nas mãos daqueles que no século XVI se ligavam aos inimigos da cultura europeia, em proveito das suas conveniências políticas e dos seus interesses comerciais no Levante.

» Para impedir isto, é preciso que Espanha disponha de forças que possam pesar na balança europeia» – aduz Moniz Barreto. «Mas para consegui-lo, não é necessário que desenvolva recursos iguais aos das grandes potencias europeias, porque o seu programa é um programa de conservação. Quando uma nação não aspira a conquistas nem a desforras, quando ela não está interessada na denunciação dos tratados existentes, quando tudo o que ela deseja é a manutenção do statu quo, essa nação pode dispensar-se de um alarde de armamentos igual ao que serve rancores ou cobiças; e o orçamento das suas ambições pode ser reduzido ao mínimo.» 
(...)
Se nos decidirmos com energia a essa operação cirúrgica, certificar-nos-emos do profundo acerto de Moniz Barreto, ao ponderar já no seu tempo que, «com efeito, nenhuma razão exterior ao estado moral das sociedades determina a lamentável decadência de um povo cheio de talento e dispondo de um país rico como é o povo português, nem exclui do grupo das grandes potências e mantém na mediocridade uma nação notável pela extensão e situação do solo, e ilustre pelo génio dos seus filhos, como é a gloriosa nação espanhola.» ‘Decadência’, no sentido de ‘enfraquecimento’ ou de ‘prostração’, esclareça-se, porque o próprio Moniz Barreto prontamente acrescenta: «Nenhuma outra causa se pode assinar a este deplorável facto, alem da ausência de um princípio superior que unifique as vontades dispersas e crie no meio da flutuação das doutrinas um confronto de apoio para a ação governativa». E o escritor acentua que tanto a «dispersão das vontades» como a «flutuação das doutrinas», filhas «de uma época individualista e crítica, são-nos comuns com todos os países situados na metade ocidental da Europa».

Nada de incurável nos impede, pois, que volvamos à posse da nossa perdida personalidade. Crie-se o ‘princípio superior’ que nos falta e cujo eclipse é a razão de todo o nosso degradante sonambulismo. E, por poder de milagre, no escachoar nacionalista em que a sagrada terra da Europa se convulsiona misteriosamente, como um ventre pejado, logo as portas do futuro se nos hão-de abrir com o estrépito dos triunfos antigos. Vós aprendereis então, ó gentes de pouca fé, que não estávamos decadentes, mas tão somente transviados!



  • Se ainda é tempo! in Aliança Peninsular (1924): 
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Mede-se bem a que consequências desastrosas pode levar para a Península a permanência do pavilhão francês em Marrocos! A ruína da economia de Espanha, desencadeando no país vizinho uma catástrofe talvez sem remédio, repercutir-se-ia prontamente entre nós, certificando-nos então, pelo peso da desgraça, que somos mais irmãos, portugueses e espanhóis, do que, na realidade, julgamos. Sem insistir em pormenores e dados que encheriam um volume grossíssimo, abrangeu-se já decerto com que espírito profético Moniz Barreto monologava há mais de trinta anos, ao prevenir-nos de que «seria mais um capítulo a ajuntar à crónica lamentável da decadência peninsular, se essa região marroquina, aberta à acção dos dois povos cristãos pela espada de D. João I e dos conquistadores de Ceuta, ilustrada pela valentia dos fronteiros de África, dourada pela fama robusta de D. Afonso V e pela glória nascente de D. João II, consagrada pelo apostolado de Raimundo Lulio, pelo martírio do Infante Santo, pelo sangue de D. Sebastião, venha a cair, como Túnes, arrancada por nós aos bárbaros, nas mãos daqueles que no século XVI se ligavam aos inimigos da cultura europeia em proveito das suas conveniências políticas e dos seus interesses comerciais no Levante». O desastre consumou-se. E consumou-se, com o assentimento suicida de Espanha e a apatia execrável de Portugal. Caíram os dois países nesse abominável pecado, a que Dante chama viltà – o pecado de quantos vivem sem glória nem infâmia, em contínua demissão da sua própria personalidade.
 
 

  • Mare Nostrum in A Aliança Peninsular (1924):

É certo que, num desconhecimento total de todas as dificuldades que rodeiam o delicado problema da aproximação luso-brasileira, se fala cá e lá, a cada momento, na Confederação – nada menos de que na Confederação, meus senhores! – de Portugal e Brasil.[11] É certo que se ignora inteiramente que o Brasil, na outra margem do Oceano, repetiu, com elementos próprios, o processo de desmembração histórica que Portugal efetivou na Península para com o bloco astur-leonês-castelhano. Enganam-se – e enganam-se torpemente! – os que nos julgam ‘eterna metrópole’, julgando o Brasil ‘colónia perpétua’! Mas por semelhante e abominável conceção terá de se verificar somente que em Portugal o Estado em nada representa a ação e que os intelectuais, marca-Júlio Dantas, exportados diariamente para o Rio nos anúncios telegráficos das grandes agências de informação, não dispõem da menor raiz no sentimento e na consciência colectiva em Portugal. O que pode e há-de aproximar o Brasil de Portugal é o que pode e há-de aproximar da Espanha as nacionalidades hispano-americanas: a guarda e o prestígio de um tipo de civilização que a todos os hispanos igualmente pertence e que, sendo a base fundamental da sua razão de ser como pátrias livres, é, simultaneamente, como simples ‘programa de conservação’ – o ‘programa de conservação’, em que Moniz Barreto insistia pelo que tocava a Marrocos a afirmação de um natural e irresistível supernacionalismo.

Por esse supernacionalismo, traduzido numa aliança, ou espécie de liga ou anfictionia, Portugal e Espanha recobrarão na Europa a preponderância que em direito lhes cabe, ao passo que na América as pátrias, que da Península derivam, sanadas as chagas que internamente as laceram, aplanadas as arestas que externamente as suscetibilizam e trazem num estado de desconfiança permanente, não demorarão a atingir o esplendor e a supremacia para que Deus as convocou. Outro não é o conteúdo da civilização hispânica, outra não é a política do Atlântico mare nostrum.

De contrário, divididas, cultivando constantemente a dissidia e a mediocracia, vítimas do erro democrático e de um ‘latinismo’ mentiroso, só nos apressaremos, peninsulares e hispano-americanos, a tornar possíveis os agoiros de Sánchez Toca no seu livro Del poder naval en España. Ei-los: «No queda para los destinos de nuestra linaje más que la siguiente alternativa: o que todos los elementos de nuestra nacionalidad a una y otra margen del Océano tomen vigorosa constitución económica o política y se concierten en íntima solidaridad de nuestra ayuda para mantener el nombre, la lengua, los intereses, el respeto de la personalidad internacional, la independencia y soberanía de la raza creadora del mayor poder y majestad y de la más intensa acción civilizadora que ha conocido la tierra desde los días de la grandeza romana; o bien que estos elementos de nuestra raza se resignen a no figurar ya sino como restos descompuestos y cadáveres de naciones que los nuevos Imperios devoren o sotierren a título de sanear la superficie del planeta.» Tal é, inevitável e ignóbil, a nossa certidão de óbito! Se se lavrar, por nossas próprias mãos a lavraremos.



  • ​Alcácer Quibir, in Ao princípio era o Verbo (1924):
 
Esta unidade de desígnios e de interesses levou Portugal a achar a fórmula perfeita da sua política externa na segunda metade da dinastia de Avis. “Depois que em Aljubarrota e Toro os portugueses e castelhanos afirmaram reciprocamente a sua independência contra mútuas tentativas de invasão, iniciou-se na Península um período de inteligências diplomáticas que dura um século e corresponde em Portugal aos reinados de D. João II, D. Manuel, D. João III, e em Espanha aos reinados de Fernando e Isabel, de Carlos V, de Filipe II – escreve o malogrado Moniz Barreto no seu estudo admirável A situação geral da Europa e a política exterior de Portugal. Durante esse período, que é o de maior prosperidade e grandeza dos povos peninsulares, a consciência da força própria suprime desconfianças e temores e a identidade de aspirações e sentimentos cimenta as bases de uma aliança em que compartilhamos com a Espanha a hegemonia no Mediterrâneo ocidental e nos dois oceanos. E Moniz Barreto continua, como se as suas páginas tivessem saído da lição profundíssima da guerra atual: «É este pensamento que inspira os casamentos dinásticos, e se traduz por auxílios militares, que conduz um infante de Portugal à barra de Tunes, que faz combater os cavaleiros espanhóis nos areais de Alcácer-Quibir, que, encontrando intérpretes condignos nos grandes poetas da península, enche de elogios magníficos do génio espanhol a epopeia das glórias portuguesas, que dita a Herrera a lamentação à morte do rei desejado, que em pleno reinado de Filipe IV leva o maior vulto do teatro nacional espanhol a coroar com a auréola da poesia a memória do Infante-Santo.»

Ressaltada a importância da questão marroquina, nós interpretamos agora melhor o alcance da empresa de D. Sebastião. Sucedia que precisamente nessa altura o desenvolvimento do Turco na Europa constituía um perigo de morte para a Cristandade, que o mesmo é que dizer para a ‘civilização’. Nestas condições, retomar a nossa velha influência em Marrocos representava não só um ponto de apoio para a consolidação do nosso imperialismo, mas para a própria ‘defesa da Latinidade. A ameaça islamita engrossava de tal maneira, tornando-se de dia para dia um pesadelo inconjurável, que já São Pio V pregara uma cruzada, de que Lepanto foi o resultado de maravilha.
 



[1] Vid. A Aliança Peninsular, ed. da Livraria Civilização, do Porto.

[2] Dr. J. Francisco V. Silva, Reparto de América Española y Pan-Hispanismo, Madrid, Francisco Beltrán.

[3] Setembro de 1891, volume IV, pp. 81 a 104.

[4] Informa-me o meu amigo e ilustre poeta Marquês de Lozoya, a cuja casa pertence a admirável obra de Manuel Pereira – Pereyra, à castelhana – que o crítico de arte D. Juan Allende-Salazar prepara um largo e documentado estudo sobre tão grande artista. Dou esta boa notícia aos que em Portugal se interessam pelas coisas serenas da Inteligência e da Emoção. Manuel Pereira gozava do maior favor na côrte de Filipe IV e foi autor também de outros Cristos, como o Cristo del Olivar (igreja de Madrid), e do Cristo ajoelhado, dos Padres Dominicos da referida côrte.

[5] «Nebrija, auxiliado por Aires Barbosa, deu aos estudos humanistas o fervor e a organização definitiva que haviam de conservar no glorioso século XVI.» Menéndez Pelayo, citado por Teófilo Braga na sua História da literatura Portuguesa, II, Renascença, Porto, 1914.

[6] «Antonio de Nebrija era el príncipe de los latinistas españoles, como el português Arias Barbosa el patriarca de los helenisas, surgiendo em torno de estas figuras principales una verdadera legión de gramáticos entendidos en todas las linguas antiguas, y constructores de aquel magnifico monumento, ideado por Cisneros, que se llamó la Poliglota Complutense.» Ángel Salcedo Ruiz, La literatura española, tomo II, Madrid, 1920, pp. 24-25.

[7] Ramón Menéndez Pidal, Estudios literarios, Madrid, 1920, pp. 60ss.

[8] Revista de Portugal, vol. I, Porto, 1889. 

[9] Obr. já cit., pp. 11-12.

[10] Ver, por exemplo, o interessante opúsculo de Castaños y Montijano, Estudio Geoestratégico de Portugal en el supuesto de una agresión por la costa (Toledo, 1890), onde a hipótese encarada é a de que «la agresión partiría de la Gran Bretaña y sería dirigida a la costa occidental de nuestra Península». E Castaños y Montijano justifica-se: «Digo de nuestra Península, porque en tal situación España no habría de permanecer impasible ante la desgracia de una Nación que por su historia tiene el derecho de reclamar su auxílio; que la ha acompañado siempre en sus glorias de allende y aquende el Atlántico, en sus prosperidades, en sus desgracias y hasta en sus discordias intestinas, con comunidad de origen y actualmente comunidad de miras.» Significativo, pois não?

[11] Escrita esta página antes do aparecimento do notável livro do doutor Bettencourt-Rodrigues, claro que não nos referimos a tão elevada manifestação de patriotismo.


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​​...nós não levantaríamos nem o dedo mínimo, se salvar Portugal fosse salvar o conúbio apertado de plutocratas e arrivistas em que para nós se resumem, à luz da perfeita justiça, as "esquerdas" e as "direitas"!

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