António Sardinha sobre Henri Bergson: 'O elegante sofista da idade leviana'
José Manuel Quintas
Para António Sardinha, a filosofia de Henri Bergson tem valor na crítica ao materialismo e ao mecanicismo da modernidade, mas representa uma ruptura com a tradição de objetividade e ordem intelectual do Ocidente. Sardinha associa Bergson ao irracionalismo e ao relativismo contemporâneo, vendo na sua obra um sintoma de decadência espiritual e cultural. Para restaurar a inteligência na civilização ocidental , Sardinha propõe um retorno à filosofia de São Tomás de Aquino.
1. Filosofia e Contexto. Henri Bergson foi um dos mais influentes pensadores franceses do início do século XX, conhecido pela crítica ao mecanicismo, pela defesa da intuição como método filosófico e pela valorização da mobilidade e do devir como essência da realidade. António Sardinha, um dos principais representantes do tradicionalismo português, defendeu a filosofia escolástica (na linha de São Tomás de Aquino e de Francisco Suárez) e criticou as filosofias modernas, que, na sua perspectiva, afastaram o pensamento ocidental da ordem intelectual e da objetividade.
2. Ponto de Convergência. Sardinha reconhece que a crítica de Bergson ao materialismo e ao mecanicismo tem mérito, rejeitando com ele a redução da vida ao puramente material. Ambos valorizam a dimensão espiritual da existência.
3. Pontos de Divergência.
4. Comparações com Outros Pensadores. Sardinha exalta Aristóteles, São Tomás de Aquino, Francisco Suárez, Pedro da Fonseca, entre outros, como representantes da tradição metafísica e da ordem, em oposição ao racionalismo abstrato de Descartes e ao subjetivismo moderno. Contrapõe Bergson a Jacques Maritain, que, segundo Sardinha, é o expoente contemporâneo da tradição escolástica que desmontou criticamente a filosofia bergsoniana.
5. Síntese. O pensamento de Bergson é apresentado como um símbolo da crise moderna, do subjetivismo, do relativismo e da desordem intelectual provocada pelo afastamento da tradição filosófica do ser. Sardinha defende a tradição metafísica da objetividade, da ordem e dos fundamentos espirituais da civilização ocidental.
6. Desenvolvimento Crítico.
A obra ensaísta de António Sardinha apresenta críticas contundentes à filosofia de Bergson, enquadrando-a como parte dos males intelectuais que afligem a moderna civilização ocidental. Eis os principais pontos destacados por Sardinha:
7. Outros Pensadores. Além de Jacques Maritain, Sardinha utiliza um conjunto de autores para construir uma defesa da tradição racionalista, escolástica e metafísica, contrapondo-os ao irracionalismo, relativismo e subjetivismo que associa ao bergsonismo e à modernidade. Os nomes citados servem tanto para fundamentar a crítica à filosofia moderna quanto para exaltar os valores e métodos da tradição intelectual ocidental.
2. Ponto de Convergência. Sardinha reconhece que a crítica de Bergson ao materialismo e ao mecanicismo tem mérito, rejeitando com ele a redução da vida ao puramente material. Ambos valorizam a dimensão espiritual da existência.
3. Pontos de Divergência.
- Método Filosófico: Bergson privilegia a intuição e o sentimento como vias de acesso ao conhecimento. Sardinha rejeita essa primazia, considerando-a fonte de subjetivismo e ameaça à disciplina intelectual. Sardinha defende a tradição lógica e a razão.
- Visão da Mudança: Para Bergson, “a mudança é a própria substância das coisas”, considerando que a realidade é um incessante devir, uma "incessante mobilidade". Sardinha critica essa filosofia da mobilidade, considerando-a promotora do relativismo e da crise da inteligência ocidental. Sardinha não quer perder de vista a permanência das essências, a sua continuidade essencial.
- Tradição vs. Modernidade: Sardinha vê em Bergson um sintoma da crise moderna, representante do afastamento da metafísica clássica e da emergência do irracionalismo no Ocidente. Sardinha defende o regresso à tradição escolástica e à metafísica do ser como caminho para restaurar a ordem intelectual e espiritual.
- Estética e Cultura: Sardinha associa o sucesso do bergsonismo à decadência estética moderna, à "musicalização das artes", interpretando esse fenómeno como sintoma da superficialidade e da busca de sensação em detrimento do prazer intelectual.
- Individualismo: Sardinha associa o pensamento de Bergson ao individualismo moderno, contrastando-o com a visão comunitária e orgânica da sociedade, baseada em famílias, municípios e corporações.
4. Comparações com Outros Pensadores. Sardinha exalta Aristóteles, São Tomás de Aquino, Francisco Suárez, Pedro da Fonseca, entre outros, como representantes da tradição metafísica e da ordem, em oposição ao racionalismo abstrato de Descartes e ao subjetivismo moderno. Contrapõe Bergson a Jacques Maritain, que, segundo Sardinha, é o expoente contemporâneo da tradição escolástica que desmontou criticamente a filosofia bergsoniana.
5. Síntese. O pensamento de Bergson é apresentado como um símbolo da crise moderna, do subjetivismo, do relativismo e da desordem intelectual provocada pelo afastamento da tradição filosófica do ser. Sardinha defende a tradição metafísica da objetividade, da ordem e dos fundamentos espirituais da civilização ocidental.
6. Desenvolvimento Crítico.
A obra ensaísta de António Sardinha apresenta críticas contundentes à filosofia de Bergson, enquadrando-a como parte dos males intelectuais que afligem a moderna civilização ocidental. Eis os principais pontos destacados por Sardinha:
- Diletantismo Filosófico: Bergson é visto como personificação do diletantismo filosófico, responsável pelo abandono dos preceitos silogísticos clássicos que diminuíram as faculdades lógicas e críticas da sociedade moderna.
- Filosofia da Mobilidade: A expressão “filosofia da mobilidade”, cunhada por Julien Benda, é adotada por Sardinha para criticar a filosofia instável de Bergson, que despreza a objetividade e o absoluto.
- Intuição vs. Razão: Sardinha reconhece o mérito de Bergson na crítica aos excessos do racionalismo do século XIX, mas rejeita a sua valorização da intuição como método filosófico, associando-a à anarquia mental e a uma ameaça à disciplina intelectual.
- Bergson como Sofista Elegante: Sardinha refere-se a Bergson como “um dos mais elegantes sofistas da idade leviana”, sugerindo que sua filosofia é mais uma moda intelectual do que uma contribuição sólida ao pensamento.
- Bergson e o Pragmatismo: Sardinha associa Bergson ao pragmatismo, considerando-o uma forma de “proteísmo perigoso” que despreza as virtudes da inteligência e promove uma filosofia instável, em contraste com a firmeza da tradição escolástica.
- Comparações com Outros Pensadores: Sardinha contrapõe Bergson a Jacques Maritain, cujo estudo La Philosophie Bergsonienne (1914) representa uma crítica incisiva à filosofia de Bergson, especialmente à sua concepção de tempo, intuição e evolução criativa. Para Sardinha, Maritain é um dos mais destacados representantes contemporâneos da filosofia escolástica tradicional, que é essencial retomar para a regeneração intelectual da Europa.
7. Outros Pensadores. Além de Jacques Maritain, Sardinha utiliza um conjunto de autores para construir uma defesa da tradição racionalista, escolástica e metafísica, contrapondo-os ao irracionalismo, relativismo e subjetivismo que associa ao bergsonismo e à modernidade. Os nomes citados servem tanto para fundamentar a crítica à filosofia moderna quanto para exaltar os valores e métodos da tradição intelectual ocidental.
- Aristóteles
- Exaltado como um dos pilares da tradição metafísica e da ordem racional, em oposição ao racionalismo abstrato e ao subjetivismo moderno.
- São Tomás de Aquino
- Sardinha propõe o regresso à filosofia tomista como solução para restaurar a ordem intelectual e espiritual do Ocidente, defendendo a tradição escolástica e a metafísica do ser.
- Francisco Suárez
- Outro representante da tradição escolástica, frequentemente associado por Sardinha à defesa da ordem intelectual e da objetividade.
- Pedro da Fonseca
- Referido como representante da tradição filosófica peninsular, ligada à escolástica e à formação intelectual clássica.
- Frei João de Santo Tomás
- Destacado por Maritain e por Sardinha como grande figura da escolástica peninsular, ignorada pela história oficial, mas fundamental para a tradição filosófica europeia.
- Julien Benda
- Autor das expressões “filosofia da mobilidade” e “Belphegor”, usadas por Sardinha para criticar o bergsonismo e a estética moderna. Benda é citado como crítico da decadência intelectual e estética da sociedade contemporânea.
- René Quinton
- Mencionado nas discussões sobre biologia e evolução, defendendo a constância das origens e a permanência das essências, em oposição ao evolucionismo transformista.
- William James
- Referido como crítico do racionalismo do século XIX e como influência na valorização da intuição como método filosófico.
- Ernest Seilliére
- Citado na crítica à “religião da Beleza” e ao fetichismo da arte, associando o esteticismo moderno à busca de sensação.
- Tancrède de Visan
- Mencionado por Benda e por Sardinha como defensor da estética moderna baseada na intuição e na supressão do entendimento intelectual.
- Stuart Mill
- Referido na discussão sobre a musicalização das artes e a sugestão do indefinido na poesia moderna.
- Augusto Comte
- Invocado para defender a ideia de ordem como obra da razão e a importância da unidade intelectual.
- Gonzague Truc
- Autor de Le retour à la Scolastique, citado para denunciar o eclipse das faculdades críticas e lógicas devido ao diletantismo filosófico, personificado por Bergson.
- Manuel Gálvez
- Mencionado para valorizar a influência da casuística jesuítica na liberdade política e filosófica.
- Remy de Gourmont
- Citado por Manuel Díaz Rodríguez para defender a importância do distinguo jesuítico na liberdade do espírito moderno.
CITAÇÕES
1. São Tomás de Aquino e Frei João de Santo Tomás. Sardinha propõe o regresso à filosofia tomista como solução para restaurar a ordem intelectual e espiritual do Ocidente, defendendo a tradição escolástica e a metafísica do ser.
“A reconciliação da razão com a objectividade, por modesta que se nos afigure, é a condição primordial de todo o renascimento. Ouçamos Maritain: «Les deux péchés intellectuels que nous avons relevés mais haut… ou de l’anti-intellectualisme bergsonien, affirmant que “le changement est la substance même des choses”.» […] Só uma grande figura, mas ignorada, mas atirada para o limbo de um revoltante esquecimento (figura que, no juízo desapaixonado de Jacques Maritain, ombreia quase com Aristóteles e Santo Tomás), só uma grande figura enche o século XVII, de guarda ao tesouro mal utilizado da ‘filosofia da Escola’. É Frei João de Santo Tomás…”
2. Francisco Suárez. Outro representante da tradição escolástica, frequentemente associado por Sardinha à defesa da ordem intelectual e da objetividade.
“…pela apertada aliança do espírito peninsular com a filosofia tradicional (e escusado é rememorar nomes como os do jesuíta Pedro da Fonseca e do jesuíta Francisco Suárez!) – nós verificamos como a noção da existência e do conhecimento, praticada e ensinada pelos hispanos, se conformava estruturalmente com as necessidades e as tendências progressivas da civilização ocidental.”
3. Aristóteles. Sardinha exalta Aristóteles e São Tomás de Aquino.
“Só uma grande figura, mas ignorada, mas atirada para o limbo de um revoltante esquecimento (figura que, no juízo desapaixonado de Jacques Maritain, ombreia quase com Aristóteles e Santo Tomás)…”
4. Pedro da Fonseca. Referido como representante da tradição filosófica peninsular, ligada à escolástica e à formação intelectual clássica.
“…pela apertada aliança do espírito peninsular com a filosofia tradicional (e escusado é rememorar nomes como os do jesuíta Pedro da Fonseca e do jesuíta Francisco Suárez!)…”
5. Jacques Maritain. Sardinha cita Maritain como expoente contemporâneo da tradição escolástica e crítico incisivo da filosofia bergsoniana, aludindo à obra La Philosophie Bergsonienne (1914).
“O processo do longo abastardamento da inteligência europeia acha-se magnificamente informado e julgado nos estudos do eminente Jacques Maritain. O regresso às fontes vivas da Escolástica – da perennis philosophia – impõe-se como o único meio de cura enérgico para os desvarios e erros mentais em que a nossa civilização, a civilização ocidental, incorreu.”
“No seu Antimoderne, assim se exprime Maritain, discorrendo acerca do renascimento tomista e da ilusória floração francesa do século XVII, cuja história é para Maritain a história do pecado da França no terreno da ordem intelectual: «Que serait-il advenu de la France et du monde, si le mouvement classique du XVIIe siècle avait choisi pour maitre et pour guide en philosophie, non pas la dure et étroite tête orgulheuse qui rejeta e détruisit tous les précieux instruments de sagesse préparés le long des âges par le labeur des hommes, mais le vaste et puissant métaphysicien qui continuait e commentait humblement Aristote e Saint Thomas à Alcalá de Henares, pendant que Descartes combinait en Holland sa révolution philosophique, le docteur profond Jean de Saint-Thomas?»”
6. Julien Benda. A expressão ‘filosofia da mobilidade’, cunhada por Julien Benda, é adotada por Sardinha para criticar a filosofia instável de Bergson, que despreza a objetividade e o absoluto.
“De Belphégor intitulou Julien Benda um notável ensaio sobre a estética da atual sociedade francesa. […] Benda é também autor de uma brochura que levantou ruído: Le Bergsonisme ou une philosophie de la mobilité.” (1912)
“Filosofia da mobilidade chamou Benda aos belos exercícios de argúcia literária de Henri Bergson.”
7. René Quinton. “As teorias biológicas do «meio-marítimo», com as quais se notabilizou René Quinton, criador de um nome ilustre nos anais da terapêutica, vieram asseverar-nos que o esforço aturado da Vida se empenha não em alcançar um quimérico aperfeiçoamento, mas em manter através de tudo, e absolutamente, a constância indefetível das suas origens, a inalterabilidade minuciosa do seu integralismo genético.”
8. William James. “A filosofia moderna, reduzindo a inteligência a uma mera faculdade compreensiva, dá-nos, ao seu lado e com um alcance maior, um outro agente seguro de conhecimento. Refiro-me à intuição, que a psicologia experimental se viu na necessidade de admitir como um processo científico de prova, sendo por sua obra e graça que o racionalismo inerte e estéril do século passado não resiste mais às críticas de um William James e de um Henri Bergson.”
9. Ernest Seilliére. “Eis porque Ernest Seilliére observa com acerto que, pela superstição da Beleza, se é ‘escravo da sensação’. A sede da ‘sensação’ reside, incontestavelmente, à base de quantos esteticismos pululam atualmente…”
10. Tancrède de Visan. “Julien Benda insiste: «L’esthétique moderne, dit un de ses apôtres – Tancrède de Visan no livro L’attitude du lyrisme contemporain –, consiste à saisir la réalité “en dehors de toute expression, traduction ou représentation symbolique”; elle a pour méthode ‘l’intuition’, sorte de vision centrale que devient le rythme même changeant et vécu des ‘choses’; cette intuition… “ne réfléchit pas”; elle est action, cœur, moi.»”
11. Stuart Mill. “Teórico da Decadência, tal como Tancrède de Visan, há de Stuart-Mill uma passagem que não é, nesta altura, inútil recordar. «La Poésie, étant, à la fois, verbe et musique, est merveilleusement apte à cette suggestion d’un Infini qui n’est souvent que de l’indéfini.»”
12. Augusto Comte. “Augusto Comte – anota Alphonse Mortier – emprega uma fórmula cheia de seriedade como de justificação quando nos fala da «imensa questão da ordem». A ordem é uma obra da razão. E, segundo uma definição de Santo Agostinho, a razão humana é uma «força orientada para a unidade».”
13. Frei João de Santo Tomás. “Só uma grande figura, mas ignorada, mas atirada para o limbo de um revoltante esquecimento (figura que, no juízo desapaixonado de Jacques Maritain, ombreia quase com Aristóteles e Santo Tomás), só uma grande figura enche o século XVII, de guarda ao tesouro mal utilizado da ‘filosofia da Escola’. É Frei João de Santo Tomás, professor em Alcalá e autor do Cursus philosophicus Thomisticus.”
14. Gonzague Truc. “Está na memória de todos o livro recente de Gonzague Truc, Le retour à la Scolastique, em que o seu autor, fora do campo confessional (Gonzague Truc encontra-se bem longe de ser um católico), nos denuncia, alarmado, o eclipse mortal das nossas faculdades críticas e lógicas, atribuindo-o ao uso e abuso do diletantismo filosófico, de que Henri Bergson é a personificação acabada, e, sobretudo, ao olvido criminoso dos antigos preceitos silogísticos, que nos ensinavam a raciocinar com princípio, meio e fim.”
15. Manuel Gálvez. “E eis como um escritor argentino, Manuel Gálvez, no seu aplaudido volume El solar de la Raza, nos apresenta com um aspeto inteiramente imprevisto o valor e a influência da casuística nos progressos de cultura humana – da negregada e bafienta casuística: «Isto sem contar com o facto de que as duas maiores conquistas do mundo moderno, a liberdade política e a liberdade filosófica, nasceram em Espanha. A Carta Magna é posterior aos Foros de Aragão, e o princípio da liberdade filosófica encontra-se na casuística…”
16. Remy de Gourmont. “O pensador e escritor venezuelano Manuel Díaz Rodríguez, que, antes de mim sustentou esta mesma ideia, disse, falando da Companhia de Jesus: «O seu distinguo, se não foi o sinal de liberdade, mostrou o caminho por onde se vai à própria liberdade.» E termina citando a seguinte frase de Remy de Gourmont, de quem não pode suspeitar-se que simpatize com os Jesuítas: «Toda a liberdade do espírito moderno está contida em germe nesse famoso distinguo, que fez rir a tantos imbecis.»”
Reflexão Final. Os ensaios de António Sardinha convidam à reflexão sobre o papel da tradição, os limites da razão e os perigos do relativismo. Embora reconheça o valor da crítica bergsoniana ao materialismo e ao mecanicismo, Sardinha vê no bergsonismo um dos sintomas mais evidentes da crise intelectual da modernidade. A influência de Bergson é sintoma de uma crise de valores e de uma perda de rumo do pensamento europeu, por ter abandonado a objetividade e a transcendência em favor do subjetivismo e do relativismo. Sardinha defende que só a metafísica do ser pode restaurar a ordem espiritual e social. Em suma, Henri Bergson é visto por António Sardinha como um pensador brilhante, mas representante de uma corrente filosófica decadente e perigosa para a saúde espiritual e intelectual da civilização ocidental. Valorizando a tradição tomista, Sardinha critica o bergsonismo como parte do problema moderno, não da solução.
18.10.2025
J. M. Q.
Referências da reação à filosofia de Bergson
- Julien Benda, Le Bergsonisme ou une philosophie de la mobilité, 1912. [PDF]
- Jacques Maritain, La Philosophie Bergsonienne, 1914. [ tradução em inglês disponível em Archive.org ]
- Albert Farges, La Philosophie de Bergson: expose et critique, 1912 (2ª ed. 1914). [PDF]
EXCERTOS
- Reconhecimento Crítico: Sardinha valoriza a crítica de Bergson ao materialismo e ao mecanicismo, reconhecendo que o bergsonismo reacende o interesse pelo espírito e pela tradição, e serve para denunciar os limites do cientificismo moderno.
- Rejeição Filosófica: Apesar desse reconhecimento, Sardinha vê o bergsonismo como perigoso, pois considera que o anti-intelectualismo, o relativismo e a filosofia da mobilidade de Bergson enfraquecem a razão, a objetividade e os fundamentos da tradição intelectual ocidental, promovendo uma crise da inteligência e da cultura.
- Defesa da Tradição: Sardinha contrapõe a filosofia bergsoniana à tradição escolástica e tomista, defendendo a continuidade essencial, a estabilidade e a objetividade, e alertando para os riscos do subjetivismo, da musicalização das artes e da decadência estética que associa ao sucesso do bergsonismo na modernidade.
- Em suma, António Sardinha reconhece méritos pontuais em Bergson, mas vê nele sobretudo um sintoma da crise moderna, defendendo a tradição racionalista contra o irracionalismo e o relativismo filosófico do bergsonismo.
In O Sentido Nacional duma Existência - António Tomás Pires e o Integralismo Lusitano (1913):
A sociedade inclina-se, por conseguinte, a fixar-se em quadros precisos e positivos, desembaraça-se da oscilação permanente em que a lançaram as utopias do progresso indefinido. O pragmatismo filosófico, apossando-se das direções soberanas, obriga o momento a uma revisão global das nossas verdades fundamentais – não são já os conceptualismos inteiriçados e secos da desabusada especulação intelectiva, mas as aquisições formidáveis da experiência dos povos que se endireitam no horizonte, como uma regra segura de conduta unânime. Contra o desaforo cerebralista que abundantemente se empregou a desenhar esquemas de devenir social, Bergson convence-nos de que é uma crendice grosseira o admitir-se que o presente nos habilite a supor o que seja o futuro. E o critério vulgar de Evolução, implicando não sei quê de movediço, de inconstante, que se pedira outrora ao transformismo para com ele se justificarem quantos ilusionismos subversivos prejudicam sob pretextos redentores a subordinação necessária do indivíduo à coletividade, que o mesmo é que a do ser à espécie – esse critério correntio de evolução, passeado pelas tribunas dos comícios e pela boca dos do Livre-Pensamento, é arrastado, é impelido para uma total desfeita com a bancarrota estrondosíssima do darwinismo. As teorias biológicas do «meio-marítimo», com as quais se notabilizou René Quinton, criador de um nome ilustre nos anais da terapêutica, vieram asseverar-nos que o esforço aturado da Vida se empenha não em alcançar um quimérico aperfeiçoamento, mas em manter através de tudo, e absolutamente, a constância indefetível das suas origens, a inalterabilidade minuciosa do seu integralismo genético. Bem fora de exprimir modificação, mudança, o sentido da Evolução resolve-se, pois, como um afinco homogéneo e continuado assegurando por entre as vicissitudes as mais contrárias a integridade original daquele condicionalismo. Só o contingente varia, a essência permanece una e pura. Le devenir, avec son expression concrète dans le phénomène de l’évolution, n’apparait plus que comme un moyen pour un éternel présent – sintetiza a propósito Jules de Gaultier.[1]
A sociedade inclina-se, por conseguinte, a fixar-se em quadros precisos e positivos, desembaraça-se da oscilação permanente em que a lançaram as utopias do progresso indefinido. O pragmatismo filosófico, apossando-se das direções soberanas, obriga o momento a uma revisão global das nossas verdades fundamentais – não são já os conceptualismos inteiriçados e secos da desabusada especulação intelectiva, mas as aquisições formidáveis da experiência dos povos que se endireitam no horizonte, como uma regra segura de conduta unânime. Contra o desaforo cerebralista que abundantemente se empregou a desenhar esquemas de devenir social, Bergson convence-nos de que é uma crendice grosseira o admitir-se que o presente nos habilite a supor o que seja o futuro. E o critério vulgar de Evolução, implicando não sei quê de movediço, de inconstante, que se pedira outrora ao transformismo para com ele se justificarem quantos ilusionismos subversivos prejudicam sob pretextos redentores a subordinação necessária do indivíduo à coletividade, que o mesmo é que a do ser à espécie – esse critério correntio de evolução, passeado pelas tribunas dos comícios e pela boca dos do Livre-Pensamento, é arrastado, é impelido para uma total desfeita com a bancarrota estrondosíssima do darwinismo. As teorias biológicas do «meio-marítimo», com as quais se notabilizou René Quinton, criador de um nome ilustre nos anais da terapêutica, vieram asseverar-nos que o esforço aturado da Vida se empenha não em alcançar um quimérico aperfeiçoamento, mas em manter através de tudo, e absolutamente, a constância indefetível das suas origens, a inalterabilidade minuciosa do seu integralismo genético. Bem fora de exprimir modificação, mudança, o sentido da Evolução resolve-se, pois, como um afinco homogéneo e continuado assegurando por entre as vicissitudes as mais contrárias a integridade original daquele condicionalismo. Só o contingente varia, a essência permanece una e pura. Le devenir, avec son expression concrète dans le phénomène de l’évolution, n’apparait plus que comme un moyen pour un éternel présent – sintetiza a propósito Jules de Gaultier.[1]
In O Valor da Raça - Introdução a uma Campanha Nacional (1915):
Reacionários, interpretando o reacionismo biológico de um agregado que sofre a violação insensata das condições primordiais da sua existência. Esclarecem-nos contra os ataques pomposos da superstição racionalista, de uma parte, a crítica imortal de Bergson ao mecanicismo filosófico da Vida, da outra parte, os postulados definidos por René Quinton à face da mais minuciosa observação experimental. É o facto que nos inspira, unicamente o facto. Conduz-nos não a suposta excelência dos Princípios. É o inventário das realidades ambientes o motivo que intimamente nos delibera. Somos tradicionalistas. Mas ser tradicionalista não é encerrar-nos na contemplação saudosa do Passado. É antes reconhecer a contínua sucessão dinâmica em que a história se coordena entre si, efetuando a solidariedade dos Mortos com os Vivos, segundo a visão admirável dos melhores conceitos de Augusto Comte.
«Evolução» exprime «permanência». É a permanência que nós procuramos obter pela plenitude dada aos recursos contidos dentro do nosso determinismo. «Le devenir, avec son expression concrète dans le phénomène de l’évolution», declara Jules de Gaultier, «n’apparait plus que comme un moyen pour un éternel présent».[2] Entenda-se a diferença que vai do misoneísmo que retarda e obscurece à nossa compreensão prática da sociedade. Não é a placidez da água morta de um pântano que nós ambicionamos como mira final. As leis psicológicas do desenvolvimento dos povos assentam a variabilidade na estabilidade como senão primário de todo o bem. É à variabilidade na estabilidade que nós tendemos.
Reacionários, interpretando o reacionismo biológico de um agregado que sofre a violação insensata das condições primordiais da sua existência. Esclarecem-nos contra os ataques pomposos da superstição racionalista, de uma parte, a crítica imortal de Bergson ao mecanicismo filosófico da Vida, da outra parte, os postulados definidos por René Quinton à face da mais minuciosa observação experimental. É o facto que nos inspira, unicamente o facto. Conduz-nos não a suposta excelência dos Princípios. É o inventário das realidades ambientes o motivo que intimamente nos delibera. Somos tradicionalistas. Mas ser tradicionalista não é encerrar-nos na contemplação saudosa do Passado. É antes reconhecer a contínua sucessão dinâmica em que a história se coordena entre si, efetuando a solidariedade dos Mortos com os Vivos, segundo a visão admirável dos melhores conceitos de Augusto Comte.
«Evolução» exprime «permanência». É a permanência que nós procuramos obter pela plenitude dada aos recursos contidos dentro do nosso determinismo. «Le devenir, avec son expression concrète dans le phénomène de l’évolution», declara Jules de Gaultier, «n’apparait plus que comme un moyen pour un éternel présent».[2] Entenda-se a diferença que vai do misoneísmo que retarda e obscurece à nossa compreensão prática da sociedade. Não é a placidez da água morta de um pântano que nós ambicionamos como mira final. As leis psicológicas do desenvolvimento dos povos assentam a variabilidade na estabilidade como senão primário de todo o bem. É à variabilidade na estabilidade que nós tendemos.
In Fátima (1917) [4]
«Raison et bon sens ne suffisent pas!» – já dizia o velho Renan, ajoelhado nos degraus da Acrópole. Por que razão e bom-senso não são o bastante, há na vida do homem, na vida da sua atividade interior, para além do mundo imediato dos sentidos, um outro mundo vasto e rumoroso, onde ele mergulha as raízes mais fundas e mais misteriosas da sua personalidade, e com o qual não é pela inteligência que melhor se pode comunicar. A filosofia moderna, reduzindo a inteligência a uma mera faculdade compreensiva, dá-nos, ao seu lado e com um alcance maior, um outro agente seguro de conhecimento. Refiro-me à intuição, que a psicologia experimental se viu na necessidade de admitir como um processo científico de prova, sendo por sua obra e graça que o racionalismo inerte e estéril do século passado não resiste mais às críticas de um William James e de um Henri Bergson.
«Raison et bon sens ne suffisent pas!» – já dizia o velho Renan, ajoelhado nos degraus da Acrópole. Por que razão e bom-senso não são o bastante, há na vida do homem, na vida da sua atividade interior, para além do mundo imediato dos sentidos, um outro mundo vasto e rumoroso, onde ele mergulha as raízes mais fundas e mais misteriosas da sua personalidade, e com o qual não é pela inteligência que melhor se pode comunicar. A filosofia moderna, reduzindo a inteligência a uma mera faculdade compreensiva, dá-nos, ao seu lado e com um alcance maior, um outro agente seguro de conhecimento. Refiro-me à intuição, que a psicologia experimental se viu na necessidade de admitir como um processo científico de prova, sendo por sua obra e graça que o racionalismo inerte e estéril do século passado não resiste mais às críticas de um William James e de um Henri Bergson.
In "Pratiquemos um acto de inteligência! (Carta a Álvaro Maia)" (1920):
A crise da Nacionalidade e, como tal, a crise da nossa literatura, relaciona-se, pois, com a crise geral da Inteligência em toda a mentalidade contemporânea. Não se tome, todavia, por Inteligência o superficial e enfático racionalismo do século passado. O seu processo está instruído e concluído, graças, principalmente, a William James e a Henri Bergson. Não é dizer com isto que o pragmatismo se deva abraçar como solução filosófica. Como solução filosófica, traduzindo a anarquia mental do nosso tempo, reduz-se a uma espécie de «proteismo» perigoso –, ele mesmo depreciador das virtudes da Inteligência –, a uma como que perigosa «filosofia da mobilidade», segundo a expressão felicíssima de Julien Benda.
O que no pragmatismo nos convém utilizar é a sua crítica certeira à omnipotência concedida à Razão – com R grande –, pelas erróneas metafisicas de há cem anos a esta parte. Porque «Inteligência» e «Razão» não se podem nem se devem confundir como termos sinónimos. A Razão supõe consigo um conceito apriorístico da Existência, deduzido de um todo abstracto e uniforme. A Inteligência, pelo contrário, dispondo do sentido das «relatividades», eleva-se dos factos às leis e exerce-se salutarmente pela investigação e pela verificação das determinantes que regem os fenómenos, e do gráu de relações que os une entre si. Nunca a Inteligência teve inimigo pior que o racionalismo! O seu desprestígio – o enfraquecimento das suas faculdades lógicas, não se filiam em outras causas que não sejam derivadas das mil e umas ideologias com que a Razão-Pura nos abastardou e corrompeu a limpidez do pensamento.
(...)
Belphegor em Kamtchatka
O acordo com essas realidades íntimas, porque se define e mantém o segredo da nossa individualidade não nos permite que sejamos pela chamada «internacional artística». E falsa a teoria da Arte nela Arte como é falsa toda a Estética que não se fundamenta na vida como vida e apenas a mire e longe, estilizada e retocada, segundo o requeirain os caprichos de certos pitorescos senhores que novos Des Esseintes, mas de pícara extracção, só gostam da natureza vista através dos vidros de cor. Alcunha-os Léon Daudet de Kamtchatkas, servmdo-se, com o seu raro poder de tipificação, da afastadíssima península asiática, para no-los apresentar como extremistas da sensibilidade e do gosto, refugiados lá no cabo do mundo fantástico em que se asseia e compraz a sua originalidade rebuscada e doentia. Caudatários de Baudelaire, com Jean Lorrain por sacristão, escolheram Oscar Wilde por seu príncipe, coroado de paradoxos. Detestam as plebes e isolam-se entre cisnes – as mãos mergulhadas em gomis lavrados pelos mais preciosos cinzeladores florentinos. E o que é triste é que a sociedade contemporânea lhes facilita o exibicionismo simiesco, quando não passam, ou de puros anormais, já ao alcance da patologia, ou de arrivistas sem talento que na rosa vermelha do escândalo depõem a sua única possibilidade de sucesso. Contudo, não diminuamos a importância dos Kamtchatkas! E certo que em Portugal não contam para nada e raros excedem as linhas banais de uma banal caricatura. Correspondem, no entanto, a uma depressão grave no equilíbrio psíquico das classes elevadas. Classes em que se perdem por completo a noção de responsabilidade e a tradição de cultura, encontram-se em Portugal, como, de resto, em toda a parte para onde quer que nos voltemos, inteiramente nas mãos dos judeus da Finança. De Belphégor intitulou Julien Benda um notável ensaio sobre a estética da atual sociedade francesa. Belphegor era o deus semita dos cartagineses, a que Benda, não sei por que discretas razões, atribui exclusivamente os defeitos atribuídos em geral aos israelitas. Assim admite – nas suas próprias palavras – duas espécies de Judeus: os judeus severos e moralistas e os judeus ávidos de sensações, ou seja, como quem diz, «os Hebreus e os Cartagineses, Jahveh e Belphegor, Spinoza e Bergson». Não discutamos as diferenças propostas por Benda. Registemos somente que ele reconhece a especial adoração dos «cartagineses» pelo indistinto, pela sede alexandrina do não definido, do misterioso, em que é transparente a «confusão do sujeito com o objeto». E não hesita em aceitar, muito embora as considere explicação insuficiente, as relações que existem entre a moderna sociedade francesa e a incalculável preponderância que os mencionados «cartagineses» desempenham dentro dela.
In A 'religião da Beleza' (1922):
Nada melhor nos exprime as desordens morais e sentimentais, originadas pela loucura abominável da «religião da Beleza» – ou seja do fetichismo da Arte, do que a célebre palavra de Oscar Wilde – uma das suas vítimas! –, ao alardear com negligência elegante que a arte era para os estetas o que o crime era para as classes inferiores: um meio de se obterem sensações imprevistas e inexperimentadas. Eis porque Ernest Seilliére observa com acerto que, pela superstição da Beleza, se é ‘escravo da sensação’. A sede da ‘sensação’ reside, incontestavelmente, à base de quantos esteticismos pululam atualmente, dos salões requintados dos barões da Finança aos recantos noturnos de prazer caro e suicida. Um crítico aceradíssimo, Julien Benda, no seu não menos acerado estudo, Belphegor (Essai sur l’esthétique de la présente société française), apresenta-nos, como resumo das preferências estéticas da atual sociedade francesa, o seguinte medalhão: «La présente société française demande aux œuvres d’art qu’elles lui fassent éprouver des émotions et des sensations; elle entend ne plus connaître par elles aucune espèce de plaisir intellectuel.»
Julien Benda é também autor de uma brochura que levantou ruído: Le Bergsonisme ou une philosophie de la mobilité. Essa gula de ‘mobilidade’ leva os nossos contemporâneos a buscarem na Arte, na Música, sobretudo, um como que afrodisíaco, onde satisfazer e exacerbar as inquietações dos seus nervos, desarranjados pelo império constante de um sexualismo trocado e sem governo. Escutemos Benda caracterizar-nos tão grave enfermidade: «L’un des plus éclatants – Benda refere-se aos sintomas do mal – est cette doctrine qui veut que l’art consiste en une union mystique avec l’essence des choses. On sait – aduz – que, selon une école extrêmement populaire de nos jours, l’art doit rompre avec tout ce qui est ‘idée’ des ‘choses’, existence d’elles ‘dans notre esprit’ mais à les saisir dans leur existence propre, s’unir à leur principe de vie, cela pour un acte de pur amour, sympathie, intuition, où sombre, par définition, toute espèce d’activité intellectuelle : concepts, symboles, mœurs du langage. » E Julien Benda insiste: «L’esthétique moderne, dit un de ses apôtres – Tancrède de Visan no livro L’attitude du lyrisme contemporain –, consiste à saisir la réalité “en dehors de toute expression, traduction ou représentation symbolique”; elle a pour méthode ‘l’intuition’, sorte de vision centrale que devient le rythme même changeant et vécu des ‘choses’; cette intuition... “ne réfléchit pas”; elle est action, cœur, moi.»
Tende-se, pelo visto, em arte, e conforme as inclinações pronunciadas do tempo que corre, para a supressão de todo o entendimento. A emoção estética deixa de ser assim intelectual, para se colher numa como que vibração dos nossos sentidos em permanente excitabilidade nervosa. Porque de perto se prende com os ritmos violentos da nossa vida sexual, a música moderna – por via de regra, arte feminina, buscada por úteros palpitantes – avoca a si o ceptro sobre as demais afirmações artísticas. A arquitectura – arte eminentemente social e eminentemente compreensível –, essa, extingue-se, depois de um crepúsculo inglório. E extingue-se, porque é a única das artes que não é susceptível de se musicalizar. A musicalização da poesia, por exemplo, e a da própria pintura, são tão evidentes, que não vale a pena demonstrá-lo. Corresponde à mobilidade da filosofia de Bergson – motivo incontestável do seu duradoiro sucesso. Teórico da Decadência, tal como Tancrède de Visan, há de Stuart-Mill uma passagem que não é, nesta altura, inútil recordar. «La Poésie, étant, à la fois, verbe et musique, est merveilleusement apte à cette suggestion d’un Infini qui n’est souvent que de l’indéfini.» O preceito de Stuart-Mill generalizou-se. Donde o comentar ainda Julien Benda: «Rien, mieux que cette volonté de musicaliser tous les arts, ne montre l’application de nos contemporains à ne tirer de l’art aucun état intellectuel, mais une pure sensation, comme d’un beuvrage ou comme d’une fleur». Realiza-se assim plenamente a como que «Arte-poética», ditada por Verlaine às hostes da Decadência:
De la musique avant toute chose,
Et pour cela préfère l’impair
Plus vague et plus soluble dans l’air,
Sans rien en lui qui pèse où qui pose.
Il faut aussi que tu n’ailles point
Choisir les mots sans quelque méprise :
Rien de plus cher que la chanson grise
Où l’Imprécis au Précis se joint.
E a melopeia segue, sussurrando sempre: «Pas la couleur, rien que la nuance», ou então: «De la musique encore et toujours!»
Desta maneira, a anulação de tudo quanto constitui a legítima alegria humana de sermos exaltados nas asas da beleza e da arte é o fruto inevitável do misticismo estético da torpe época que atravessamos. A confusão da beleza com a forma e a inteira eliminação daquele princípio espiritual superior, sem o qual a forma não se reveste de beleza, empurraram-nos para o charco lamentável em que patinhamos miseravelmente, enlevados nos arabescos caprichosos que os limos bordam no pântano, como se nos achássemos contemplando, face a face, as estrelas do céu. A causa? Voltamos a insistir: a causa está em se haver tomado a forma, que é um atributo apenas, como sendo só ela a ‘beleza’, pura e simples. A causa está ainda em se ter desviado para os olhos o entendimento da ‘beleza’, de modo a conceber-se como um restrito excitante sensual. E a culpa? A culpa foi, sobretudo, da Renascença e do seu conceito da Vida. Sabemos como a Igreja vencera e resolvera os escrúpulos de São Jerónimo. Toda a arte cristã da Idade Média é uma arte que não falseia o seu destino. Sente-se e compreende-se, não com a libido sentiendi, tão execrada pelo Apóstolo, mas com a plenitude absoluta da alma. Hoje a alma não é mais de a animula vagula dos tenros diminutivos com que o imperador Adriano acariciava a segunda infância da sua natureza viciosa. É sobre um tal terreno que o misticismo estético alastra, que alastra a ‘religião da Beleza’ – morfina para selecionados, que em vez de procurarem no Infinito a desejada ampliação da individualidade, procuram antes diluí-la, desfazê-la nos inter-mundos opiados do ‘indefinido’! Via, ou não via certo, D. Frei Bartolomeu dos Mártires? Via.
Nada melhor nos exprime as desordens morais e sentimentais, originadas pela loucura abominável da «religião da Beleza» – ou seja do fetichismo da Arte, do que a célebre palavra de Oscar Wilde – uma das suas vítimas! –, ao alardear com negligência elegante que a arte era para os estetas o que o crime era para as classes inferiores: um meio de se obterem sensações imprevistas e inexperimentadas. Eis porque Ernest Seilliére observa com acerto que, pela superstição da Beleza, se é ‘escravo da sensação’. A sede da ‘sensação’ reside, incontestavelmente, à base de quantos esteticismos pululam atualmente, dos salões requintados dos barões da Finança aos recantos noturnos de prazer caro e suicida. Um crítico aceradíssimo, Julien Benda, no seu não menos acerado estudo, Belphegor (Essai sur l’esthétique de la présente société française), apresenta-nos, como resumo das preferências estéticas da atual sociedade francesa, o seguinte medalhão: «La présente société française demande aux œuvres d’art qu’elles lui fassent éprouver des émotions et des sensations; elle entend ne plus connaître par elles aucune espèce de plaisir intellectuel.»
Julien Benda é também autor de uma brochura que levantou ruído: Le Bergsonisme ou une philosophie de la mobilité. Essa gula de ‘mobilidade’ leva os nossos contemporâneos a buscarem na Arte, na Música, sobretudo, um como que afrodisíaco, onde satisfazer e exacerbar as inquietações dos seus nervos, desarranjados pelo império constante de um sexualismo trocado e sem governo. Escutemos Benda caracterizar-nos tão grave enfermidade: «L’un des plus éclatants – Benda refere-se aos sintomas do mal – est cette doctrine qui veut que l’art consiste en une union mystique avec l’essence des choses. On sait – aduz – que, selon une école extrêmement populaire de nos jours, l’art doit rompre avec tout ce qui est ‘idée’ des ‘choses’, existence d’elles ‘dans notre esprit’ mais à les saisir dans leur existence propre, s’unir à leur principe de vie, cela pour un acte de pur amour, sympathie, intuition, où sombre, par définition, toute espèce d’activité intellectuelle : concepts, symboles, mœurs du langage. » E Julien Benda insiste: «L’esthétique moderne, dit un de ses apôtres – Tancrède de Visan no livro L’attitude du lyrisme contemporain –, consiste à saisir la réalité “en dehors de toute expression, traduction ou représentation symbolique”; elle a pour méthode ‘l’intuition’, sorte de vision centrale que devient le rythme même changeant et vécu des ‘choses’; cette intuition... “ne réfléchit pas”; elle est action, cœur, moi.»
Tende-se, pelo visto, em arte, e conforme as inclinações pronunciadas do tempo que corre, para a supressão de todo o entendimento. A emoção estética deixa de ser assim intelectual, para se colher numa como que vibração dos nossos sentidos em permanente excitabilidade nervosa. Porque de perto se prende com os ritmos violentos da nossa vida sexual, a música moderna – por via de regra, arte feminina, buscada por úteros palpitantes – avoca a si o ceptro sobre as demais afirmações artísticas. A arquitectura – arte eminentemente social e eminentemente compreensível –, essa, extingue-se, depois de um crepúsculo inglório. E extingue-se, porque é a única das artes que não é susceptível de se musicalizar. A musicalização da poesia, por exemplo, e a da própria pintura, são tão evidentes, que não vale a pena demonstrá-lo. Corresponde à mobilidade da filosofia de Bergson – motivo incontestável do seu duradoiro sucesso. Teórico da Decadência, tal como Tancrède de Visan, há de Stuart-Mill uma passagem que não é, nesta altura, inútil recordar. «La Poésie, étant, à la fois, verbe et musique, est merveilleusement apte à cette suggestion d’un Infini qui n’est souvent que de l’indéfini.» O preceito de Stuart-Mill generalizou-se. Donde o comentar ainda Julien Benda: «Rien, mieux que cette volonté de musicaliser tous les arts, ne montre l’application de nos contemporains à ne tirer de l’art aucun état intellectuel, mais une pure sensation, comme d’un beuvrage ou comme d’une fleur». Realiza-se assim plenamente a como que «Arte-poética», ditada por Verlaine às hostes da Decadência:
De la musique avant toute chose,
Et pour cela préfère l’impair
Plus vague et plus soluble dans l’air,
Sans rien en lui qui pèse où qui pose.
Il faut aussi que tu n’ailles point
Choisir les mots sans quelque méprise :
Rien de plus cher que la chanson grise
Où l’Imprécis au Précis se joint.
E a melopeia segue, sussurrando sempre: «Pas la couleur, rien que la nuance», ou então: «De la musique encore et toujours!»
Desta maneira, a anulação de tudo quanto constitui a legítima alegria humana de sermos exaltados nas asas da beleza e da arte é o fruto inevitável do misticismo estético da torpe época que atravessamos. A confusão da beleza com a forma e a inteira eliminação daquele princípio espiritual superior, sem o qual a forma não se reveste de beleza, empurraram-nos para o charco lamentável em que patinhamos miseravelmente, enlevados nos arabescos caprichosos que os limos bordam no pântano, como se nos achássemos contemplando, face a face, as estrelas do céu. A causa? Voltamos a insistir: a causa está em se haver tomado a forma, que é um atributo apenas, como sendo só ela a ‘beleza’, pura e simples. A causa está ainda em se ter desviado para os olhos o entendimento da ‘beleza’, de modo a conceber-se como um restrito excitante sensual. E a culpa? A culpa foi, sobretudo, da Renascença e do seu conceito da Vida. Sabemos como a Igreja vencera e resolvera os escrúpulos de São Jerónimo. Toda a arte cristã da Idade Média é uma arte que não falseia o seu destino. Sente-se e compreende-se, não com a libido sentiendi, tão execrada pelo Apóstolo, mas com a plenitude absoluta da alma. Hoje a alma não é mais de a animula vagula dos tenros diminutivos com que o imperador Adriano acariciava a segunda infância da sua natureza viciosa. É sobre um tal terreno que o misticismo estético alastra, que alastra a ‘religião da Beleza’ – morfina para selecionados, que em vez de procurarem no Infinito a desejada ampliação da individualidade, procuram antes diluí-la, desfazê-la nos inter-mundos opiados do ‘indefinido’! Via, ou não via certo, D. Frei Bartolomeu dos Mártires? Via.
In A Aliança Peninsular, in Assentando posições (1924):
Que estranho e incomensurável destino, efetivamente! A hipótese enunciada por Maurice Legendre, se não nos permite refazer a história, permite-nos, ao menos, ponderar o que ele teria sido, se nos últimos duzentos anos, a tivesse encaminhado a febre ardente do Absoluto que tanto crepitou na alma hispânica, em lugar da mísera e escravizante prisão do relativo, que se toma por progresso material. Com rara felicidade aplica Maurice Legendre ao caso de Espanha a interrogação suscitada algures por Bergson: «Je me suis demandé quelquefois – ausculta-se Bergson – ce qui se serait passé si la science moderne, au lieu de partir des mathématiques, pour s’orienter dans la direction de la mécanique, de l’astronomie, de la physique et de la chimie, au lieu de faire converger tous ses efforts sur l’étude de la matière, avait débuté par la considération de l’esprit, si Kepler, Galilée, Newton, par exemple, avaient été des psychologues.» E Bergson condensa o seu pensamento num período curto e incisivo: «C’est la matière et non plus l’esprit qui eût été le royaume du mystère.» Colocada em tão perigoso declive, vê-se a que situação a ciência chegou – a uma estreita aplicação mecânica, a uma depressiva e unilateral conceção técnica das coisas. Uma barbaria nova se levanta, e que espantosa barbaria! –, em que a civilização ocidental, opulenta de riquezas espirituais, se condenou quase, de ânimo cego, aos ardis diabólicos do suicídio.
Pois o increpado isolamento de Espanha, pois a increpada inadaptabilidade de Portugal às transformações do moderno industrialismo – tema desenvolvido e glosado como prova da decadência irremediável dos povos peninsulares, são, na possível transfiguração do Ocidente, as mais robustas e sólidas garantias do futuro! As sementes milagrosas do Espírito nós as conservamos, como ninguém. E se atentarmos em que o crepúsculo da Península, iniciado sombriamente no século XVII em Vestfália, se coincide com o eclipse temporal do Pontificado, coincidindo também com o alastramento do individualismo filosófico e das teorias económicas, que, de manifesta extração judaica, levaram direito ao despenhadeiro em que a civilização ocidental se contorce, suspensa, reconheceremos que a essência da alma hispânica e a sua natural expressão serviam melhor os interesses e a vitalidade da Europa de que os supostos benefícios recebidos depois do ‘livre-exame’ e dos triunfos mecânicos da ciência.
O processo do longo abastardamento da inteligência europeia acha-se magnificamente informado e julgado nos estudos do eminente Jacques Maritain. O regresso às fontes vivas da Escolástica – da perennis philosophia – impõe-se como o único meio de cura enérgico para os desvarios e erros mentais em que a nossa civilização, a civilização ocidental, incorreu. A reconciliação da razão com a objectividade, por modesta que se nos afigure, é a condição primordial de todo o renascimento. Ouçamos Maritain: «Les deux péchés intellectuels que nous avons relevés plus haut, l’ambition d’acquérir, avec les seules forces naturelles, science (à dominante mathématique désormais) parfaite et exhaustive, et le parti pris de façonner le réel a la mesure de l’esprit humain, étant le principe secret de cette séparation de la raison avec l’ordre vrai, devaient cesser d’être des accidents menaçant constamment la connaissance, pour devenir la règle même et la loi de celle-ci. C’est là, à vrai dire, la signification foncière de la réforme cartésienne. L’esprit, des lors, entrait réellement en servitude, car il se trouvait lié à l’erreur par une sorte de contrat, et il devait fatalement subir, au terme de la philosophie moderne, le joug de l’absurdité déclarée et formelle, qu’il se agisse du logicisme hégélien, posant que l’être et le néant sont la même chose, ou de l’anti-intellectualisme bergsonien, affirmant que «le changement est la substance même des choses.»[3] [Os dois pecados intelectuais que observamos acima, a ambição de adquirir, apenas com forças naturais, uma ciência perfeita e exaustiva (agora predominantemente matemática), e a determinação de moldar a realidade à medida da mente humana, sendo o princípio secreto dessa separação da razão da verdadeira ordem, tiveram que deixar de ser acidentes que ameaçavam constantemente o conhecimento. para se tornar a própria regra e lei dela. Este, para dizer a verdade, é o significado fundamental da reforma cartesiana. A mente, então, entrou realmente em servidão, pois viu-se vinculada ao erro por uma espécie de contrato, e estava obrigada a submeter-se, no final da filosofia moderna, ao jugo do absurdo declarado e formal, seja o logicismo hegeliano, postulando que o ser e o nada são a mesma coisa, ou o anti-intelectualismo bergsoniano. afirmando que "a mudança é a própria substância das coisas] Esta é a prisão em que a inteligência se lançou, pelo seu divórcio orgulhoso com a lei do Espírito. Inventariando de causas de tamanho mal, deparamos ainda com a Península, mantendo e defendendo no século XVII o que restava da experiência intelectual dos antigos, do património cultural do Ocidente. Não é fácil aqui acompanharmos a degenerescência da Escolástica e a vergonhosa debilidade a que a reduziram argumentadores capciosos, que, à força de a esquematizarem, despojaram a objetividade de todo o seu conteúdo. De onde o prestígio, a sedução inenarrável da filosofia nova, quando Descartes a enunciou. Só uma grande figura, mas ignorada, mas atirada para o limbo de um revoltante esquecimento (figura que, no juízo desapaixonado de Jacques Maritain, ombreia quase com Aristóteles e Santo Tomás), só uma grande figura enche o século XVII, de guarda ao tesouro mal utilizado da ‘filosofia da Escola’. É Frei João de Santo Tomás, professor em Alcalá e autor do Cursus philosophicus Thomisticus.
No seu Antimoderne, assim se exprime Maritain, discorrendo acerca do renascimento tomista e da ilusória floração francesa do século XVII, cuja história é para Maritain a história do pecado da França no terreno da ordem intelectual: «Que serait-il advenu de la France et du monde, si le mouvement classique do XVIIe siècle avait choisi pour maitre et pour guide en philosophie, non pas la dure et étroite tête orgueilleuse qui rejeta et détruisit tous les précieux instruments de sagesse préparés le long des âges par le labeur des hommes, mais le vaste et puissant métaphysicien qui continuait et commentait humblement Aristote et Saint Thomas à Alcala de Henares, pendant que Descartes combinait en Holland sa révolution philosophique, le docteur profond Jean de Saint-Thomas?» [O que teria sido da França e do mundo, se o movimento clássico do século XVII tivesse escolhido para seu mestre e guia em filosofia, não a dura e estreita cabeça orgulhosa que rejeitou e destruiu todos os preciosos instrumentos de sabedoria preparados ao longo dos tempos pelo trabalho dos homens, mas o vasto e poderoso metafísico que humildemente continuou e comentou humildemente acerca de Aristóteles e São Tomás em Alcalá de Henares - o profundo doutor João de São Tomás?] É, em diferente plano, a interrogação de Bergson. Mas, filósofo extraordinário, esse João de Santo Tomás, de onde vinha, a que país pertencia, debaixo da quase impersonalização do seu humílimo nome conventual?
Dominicano e confessor de Filipe IV, Frei João de Santo Tomás, o formidável professor Complutense, nascera em Lisboa, era português! Para vergonha nossa, quem o sabia aí? Primeiro, o absurdo e farisaico critério de Inocêncio no seu Dicionário bibliográfico, repudiando todos os autores portugueses que tivessem escrito em latim, e com isso lançando no olvido das inutilidades a contribuição brilhantíssima que ao pensamento europeu forneceram tantos dos nossos seiscentistas. Em seguida, o nosso estigmatizante desprezo pela filosofia conimbricense, por ser um capítulo da vida jesuítica entre nós. E, finalmente, o antagonismo irracional e antipatriótico que, colocando-nos de costas viradas para a Espanha, nos roubou por longo tempo escultores como Manuel Pereira, e internacionalistas – passe a designação! – como Frei Serafim de Freitas. Tudo se combinou assim para que Portugal deixasse murchar e destroncar-se quase um dos mais erguidos florões do seu diadema intelectual.
In A crise do Estado (1922)
Acha-se patente, não só a contradição, mas também a confusão em que bracejam os tratadistas contemporâneos, para conciliarem as suas preferências doutrinárias com a lição cada vez mais incisiva da realidade, pelo que toca à estrutura e funções do Estado. Dominado inteiramente pela força expansiva de um fenómeno que a ninguém é dado sofismar, ou escurecer, Posada, figura-símbolo do universalismo do século findo, de le stupide, como Léon Daudet inolvidavelmente alcunhou o século XIX, esgota-se a desfiar raciocínios de mero discursador, para ajustar à ideologia que lhe enevoa o cérebro a interpretação de um acontecimento, que é o desmentido acabado de quanto constitui, para o verbalismo apático do perplexo catedrático madrileno, o seu indispensável pão espiritual. Kant e Krause são para ele os remotos inspiradores da revolução que principia a mudar as diretrizes, até agora tidas como ortodoxas, dentro das teorias políticas do Estado! E o professor da Universidade de Madrid desorienta-se e perde-se numa selva escura de preconceitos de toda a espécie, deixando-nos avaliar quão funda não foi a intoxicação do germanismo no ocidente europeu! Um pequeno excerto em que se comprova lamentavelmente o que escrevemos: «La acción eficaz, en su función de hacer efectiva la ley de la solidaridad social, tiene que descansar en las reacciones de la conciencia colectiva, reacciones psíquicas de inspiración moral, sin cuyo apoyo no tendrá jamás virtualidad suficiente que el Estado elabore. Esas reacciones, en su incesante proceso expansivo de conciencia individual a conciencia individual, hasta constituir una atmósfera social, y condensarse en empujes sociales, forman lo que, algunas veces, hemos llamado fluido ético indispensable en la química psicológica de los Estados.» O «fluido ético»! A química psicológica dos Estados! Não merece a pena continuar, porque fica em demasia assinalada a depressão de pensamento a que a prática do kantismo conduz!
Não se lhe abandona à perversão debilitadora o professor Gaston Morin, conquanto não se decida a romper totalmente com Kant. Contenta-se apenas em verificar que a base do direito até agora foi o indivíduo, começando a ser daqui em diante o agrupamento. Gaston Morin é um relativista, impregnado de longe por outra barbaria não menos condenável, a da aplicação do transformismo à sociologia, em que Spencer pontificou, como sacerdote-máximo, e a que a soi-disant filosofia de Henri Bergson, como última moda exportada de Paris para intelectuais de pouca consistência, concedeu privilégio de ciência definitiva. Tanto a Posada, como a Morin – ambos representativos de falsas tendências ainda dominantes, mas já ambos eco da renovação que intensamente se opera no campo do Direito –, é fácil de ver que lhes falta por completo a noção de «absoluto», em que o Direito, como, de resto, tudo o mais, carece de se firmar. Um, abandonado ao devenir hegeliano, o outro entregue à miragem proteiforme e não menos anárquica do relativismo, são conjuntamente abrangidos por aquele reparo de Georges Valois, falando da subjetivação, no campo da economia, da noção de valor, igual, sem dúvida, nas suas consequências desastrosas, à subjetivação, no campo jurídico, da noção de direito: «Il est radicalement impossible d’asseoir une institution sociale ou nationale quelconque sur une science dont le fondement est une notion aussi fuyante.»
Ressalta de quanto se expõe o erro manifesto, o manifesto desnorteamento, que o individualismo político e moral lançou na própria perceção das ideias fundamentais. Mas como sinal de que a restauração da verdadeira ordem se evidencia já em toda a sua plenitude, o desacordo dos tratadistas, com exemplo típico nos dois casos aqui observados, o de Adolfo Posada e de Gaston Morin, é para nós suficientemente elucidativo. Sejam kantistas ou pragmatistas, por muito que se aferrem a qualquer superstição filosófica, não podem, contudo, resistir à penetração cada vez mais forte dos acontecimentos, em suma, à «revolta dos factos» (aproveitando de Morin uma expressão feliz) contra a desnaturação sistemática a que a Democracia violentamente sujeitou a sociedade e o Estado. Chame-se-lhe «novo liberalismo», queira explicar-se tamanha modificação no que até agora se tomava como matéria dogmática por um maior desenvolvimento das relações sociais e económicas, o que é certo é que não se trata senão do fundo inalterável das coisas que, cedo ou tarde, consegue prevalecer sempre, sob pena de se derrogarem as leis primordiais da vida. Eis o que sucede na alardeada e já tão denunciada «crise do Estado». Por contraditórios e desalentadores que sejam os aspetos através dos quais ela se nos denuncia, os espíritos refletidos e cultos não duvidam nem um instante do sentido em que terminará por se resolver. Esse sentido está à vista na excitação que reina entre os especialistas das mais variadas ascendências e que são como que um pequeno mundo de rãs coaxando, incessantes, na ilusão de que o Universo é o seu charco e que nada mais existe para além do horizonte que enfaticamente se delimitam. Quando de elementos mais persuasivos não dispuséssemos para demonstrar a linha que leva a restituição progressiva do Estado aos seus moldes naturais e tradicionais, reputava suficientes as que nos oferece, ou a perplexidade, com tanto de aflitiva como de cómica, de um Adolfo Posada na sua Teoría social y jurídica del Estado, ou a serenidade aparente de um Gaston Morin no seu livro La révolte des faits contre le Code. Resigna-se Posada a declarar: «La teoría del Estado sólo podrá rehacerse, en la medida en que se dé cuenta del valor y fuerza de ese más que soplo huracán de la calle, que de tal modo ha descompuesto la vieja ideología liberal: y la transformación real de los Estados ha de producirse, de hecho se produce, bajo la pujante acción del fermento sindical. Ningún gobierno, digno de tal nombre, podrá dar un paso eficaz hacia la reconstrucción de las instituciones políticas vitales, si ignora o aparenta ignorar este hecho positivo, a veces brutalmente positivo, del movimiento sindicalista.»
Por seu lado Gaston Morin, inclinado pelo relativismo, a uma supressão gradual das funções do Estado e à sua substituição pelos diversos federalismos profissionais e económicos, e não hesitando em proclamar que «l’évangile de Rousseau ne répond donc pas aux exigences de la vie sociale», sustenta, como conclusão insofismável, que «l’étude du mouvement sociale... atteste que, dès à présent, une époque historique est close: celle de l’individualisme, de l’isolement des individus qui cède de plus en plus la place aux groupements et à la solidarité». Achamo-nos, pois, dentro da ideia de «solidariedade», com que Duguit foi corrigindo a secura objetivista das suas teorias. O sindicalismo é, deste modo, o eixo da reconstrução futura, para todos os pensadores e publicistas a quem o problema da transformação do Estado preocupa agudamente. E com justeza Duguit repara que «o movimento sindicalista não é, na realidade, a guerra empreendida pelo proletariado, para destruir a burguesia e conquistar os instrumentos da produção. Não é, como pretendem os teóricos do sindicalismo revolucionário, a classe operária que adquire consciência de si mesma, para concentrar em si o poder e a riqueza, e aniquilar a classe burguesa. É um movimento muito mais amplo, muito mais fecundo, diria até, muito mais humano. Não é um meio de guerra e de divisão social: creio que é, pelo contrário, um meio poderoso de pacificação e união. Não sendo só uma mera transformação da classe operária, estende-se a todas as classes sociais e tende a coordená-las num feixe harmónico».
In As ideias de Duguit (1923):
Não é nosso fim opor às teorias de M. Duguit as teorias que naturalmente o nosso espírito perfilha e defende. Com o amparo de um expositor fiel, como é o estudo citado de Louis Bourgés, estudo que aconselhamos aos alunos de Direito, esboçámos uma pequena síntese das ideias propagadas pelo catedrático bordalês através de uma bibliografia já considerável. Assinalamos de novo a influência de Duguit no desmantelo crescente das ficções e utopias constitucionalistas. A sua ação sob esse aspeto é comparável à de Bergson, apurando na esfera da filosofia propriamente dita a sua rara penetração psicológica contra o racionalismo. Quando, porém, M. Duguit procura substituir o que destrói – isto é, construir –, o desastre culmina-se nas proporções apontadas!
Barbárie de pensamento, demissão total da Inteligência, tais são os traços predominantes das soluções com que M. Duguit banqueteia, numa evidente mistificação ou numa assustadora incapacidade de raciocínio, a plebe de doutores e pedagogos que andam por esse mundo além a entortar o claro entendimento da mocidade. Passeando-se de cátedra em cátedra como o verbo feito carne do Direito, tocou-nos agora a honra de recebermos M. Duguit. Desde os professores da Faculdade do Campo de Sant’Ana, trapaceando umas mał digeridas leituras nas horas que lhes deixam livres seus amos e senhores, os barões da rua dos Capelistas, até àquele escritório de Importações & Exportações que gira sob a firma «Augusto de Castro», o incenso subiu em espirais grossas, o lugar-comum escovou-se e engomou-se, mobilizando a pasmaceira indígena para ouvir da boca do professor de Bordéus quaisquer generalizações de publicista sem vôo, nazalizadas, porém, com a lentidão de um arcano profundo.
Ora é tempo de sacudirmos admirações deprimentes e curvaturas que nada nos dignificam! Reponham-se os valores, tanto nacionais como estrangeiros, no seu exacto significado, promovendo-se um esforço de sincera e desanuviada cultura. Não apedrejamos com isto M. Léon Duguit. Só o restituímos à moldura que lhe é própria. De resto, porque culpá-lo? Culpemos antes os analfabetos que sabem ler e que, por acidentes da fortuna, são até às vezes catedráticos de uma Universidade. No fundo, bom blagueur, M. Duguit rir-se-ia. Professor de Direito, ninguém, como o mestre de Bordéus, nega o direito. A cena do seu doutoramento seria pois, para ele – como foi para nós –, um divertido episódio de Carnaval académico!
In "O 'filósofo' Leonardo":
Mas nós queremos falar da «filosofia» do senhor Leonardo Coimbra. Reminiscência bastarda do «bergsonismo», as tautologias filosóficas do senhor Leonardo Coimbra entroncam nas mesmas causas de que derivam os esteticismos estridentes do senhor Alfredo Pimenta. «Si l’on appelle, suivant une dénomination évidemment abusive mais généralement reçue l’aristocratie une société éprise ou du moins révèrent des seuls états de raison, et démocratie une société en quête du seul sentir, qu’elle veut sous toutes ses formes possibles, qu’elle cherche aux voies les plus étranges et que seule elle honore parmi les états de l’âme, on peut dire que, de même que le Cartésianisme aura été la philosophie d’une aristocratie, le Bergsonisme est rigoureusement la philosophie d’une démocratie». Assim se explica algures o crítico Julien Benda.
E porque, segundo Benda, constitui uma democracia, para comodidade de expressão, aquela sociedade que, pondo de parte o prazer intelectual de compreender e raciocinar, procura apenas nas manifestações do espírito saciar a sua avidez de sensação, temos de concordar que o senhor Leonardo Coimbra, como «filósofo», é bem a consciência do desregramento democrático em que vivemos de um extremo ao outro das duas trincheiras que dividem Portugal de alto a baixo, irreconciliavelmente.
«Filosofia da mobilidade» chamou Benda aos belos exercícios de argúcia literária de Henri Bergson. Remotamente influenciado pelas leituras de L’évolution créatrice do interessante filósofo francês (convém não esquecer a costela hebraica de Bergson!), o senhor Leonardo Coimbra, pela sua facilidade do verbo com letra minúscula, num país eivado da mais baixa superstição retórica, ganhou depressa as culminâncias da praça pública por essa espécie de novo «alexandrinismo», que na sua obscuridade e falta de senso lógico encontra o principal motivo do seu rápido triunfo. A Bergson ainda se deve, com o incomparável recorte de um temperamento nada vulgar, uma análise feliz e sensata do racionalismo naturalista do século passado. Mas ao senhor Leonardo Coimbra?
Evidentemente que a pergunta fica sem resposta. Isso mais nos obriga a fixar o significado do seu incontestável sucesso, que resultaria sem justificação, se não o tomássemos como índice do estado geral de uma sociedade, incluída como democracia no tipo definido por Benda. Democracia na sua perfeita desorganização, a Portugal não lhe falta nem o primitivismo de sentimentos e predileções, de que ordinariamente os regimes democráticos se fazem acompanhar com o seu cortejo inevitável de sofistas e plutocratas. Acontece-nos a nós o que sucedeu com o crepúsculo de outras civilizações. «Cette frénésie de la présente société française à faire des ouvrages de l’esprit une occasion d’émoi, à quoi tien-t-elle?»– interroga Julien Benda, naturalmente alarmado. A mesma interrogação nos domina, levando-nos a concluir com Benda que uma das razões primaciais do mal é a deplorável e total ausência de cultura.
«O rebaixamento de cultura na sociedade francesa, ao lado das numerosas causas já denunciadas (desenvolvimento do sport, leitura quase exclusiva de jornais, etc.), permite-nos admitir ainda mais uma: o acesso aos primeiros lugares dessa sociedade de pessoas de uma outra classe e cujo espírito se encontra perfeitamente «à l’état de nature», enriquecidos do comércio, da indústria, da finança, etc. Mas o rebaixamento de cultura não obedecerá às razões indicadas por Julien Benda. De conhecida procedência judaica, não quer Benda aceitar que tão profunda transformação social seja devida ao predomínio dos Judeus.
É certo que Benda, absolvendo-se a si próprio caritativamente, distingue, «à simple titre de symbole, les Hébreux et les Carthaginois, Jahveh et Belphégor, Spinoza et Bergson». Claro exemplo de um judeu ocidentalizado pela cultura latina e católica, as velhas disciplinas clássicas, desde as Humanidades à Filosofia, acharam em Julien Benda um defensor incansável. Só nesse ponto de relevar o factor Semita da responsabilidade que lhe cabe no «alexandrinismo» do pensamento contemporâneo, é que Benda não cortou ainda o cordão umbilical. Cortêmo-lo nós por ele. E seja para aplicar à democracia portuguesa, no seu sentido social, o diagnóstico que Julien Benda nos oferece sobre a França, acrescido da apreciação devida à presença indubitável de Israel entre nós.
A religião da música, com o amor da dança, e o convívio da gente do teatro, substitui-se, tanto aqui como além-Pirenéus, à robusta formação literária das gerações preparadas na lição das letras antigas. O culto do indefinido, com a guloseima de tudo o que é indistinto e apenas auditivo, sobrepôs-se numa concepção meramente sensual das relações de vida aos eternos conceitos religiosos e éticos que dantes se possuíam acerca dela. Daí o utilitarismo em todo o campo largo da existência, desde a ignóbil teoria da Arte pela Arte até ao desenfreado jogo cambial dos barões da Finança.
Com a expulsão dos Jesuítas no tempo de Pombal começou verdadeiramente a crise moral e intelectual da nacionalidade. Os Padres do Oratório, paladinos dos métodos cartesianos, sustavam ainda a decaída inevitável, que se consumou ruidosamente em 34, depois de extintas as Ordens Religiosas. A primeira geração romântica, dotada de uma personalidade que não é lícito recusar-lhe, é, por isso, filha da pedagogia tradicional. Afrouxa-se o ensino das Humanidades e, com a retórica invasora do constitucionalismo, o que consegue atenuar a quebra das nossas faculdades lógicas são os estudos experimentais das ciências de observação, que, por seu turno, não tardariam a agravar a enfermidade, criando, principalmente nos médicos, a superstição materialista, de que Bombarda foi o exemplo rematado.
Voltou, é certo, o ensino congreganista. Voltaram em relativa liberdade os Jesuítas. Mas esses mesmos transigindo com o preconceito do século, relegaram as Humanidades para um plano inferior, dispensando a sua atividade às investigações naturalistas de que a Brotéria registou a documentação honrosíssima.
Aconteceu entre nós com os Jesuítas tal como aconteceu em França. «Par malheur la fraction du monde français qui fréquente les Jésuites, qui les aime et qui les défend, est la moins propre de toutes à les comprendre», comenta Louis Dimier no seu livro Souvenirs d’action publique et d’Université. «C’est l’ancienne société du faubourg Saint-Germain, ornée de quantité de vertus, mais en général peu appliquée et sette à de fausses directions.» Precisamente no nosso mundo elegante e aristocrático é que os Jesuítas atuaram também, não conseguindo obter mais do que um devocionismo romântico muito epidérmico, aliado àquela complacência com que nas casas fidalgas se toleravam em algum dia as rabugices do Padre-capelão.
Ora o que foi, em carácter e em cultura, a mentira convencional da nossa sociedade ultrarromântica, progenitora da atual, conta-no-lo Eça de Queiroz no final célebre de um dos seus romances. Deu-se o caso no Loreto, perto da estátua de Camões. O conde de Ribamar, apoiado às grades da praça, inchava a sua loquela fácil para as interjeições admirativas do cónego Dias e do padre Amaro. «Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade, este contentamento... Meus senhores, não admira realmente que nós sejamos a inveja da Europa!» «E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três em linha, junto às grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país – ali ao pé daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, ereto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopeia sobre o coração, a espada firme, cercado dos cronistas e dos poetas heroicos da antiga pátria – pátria para sempre passada, memória quase perdida!»
«Pátria para sempre passada – memória quase perdida! E o pessimismo que humedece o comentário do romancista é o gérmen heroico da inflexível atitude rebelde que se torna inglorioso assumir perante a enorme cianose em que se nos mascara o rosto da Pátria» – na palavra justiceira e dolorosa de Afonso Lopes Vieira. Sabe-se que a inspiração rude de Proudhon, nas suas indignações de profeta, contra o ludíbrio sem nome do individualismo político e económico, conduziu a vigorosa ofensiva mental que se condensou nas guerrilhas das Farpas e de que Antero de Quental representou a chefia suprema. Pertence hoje Proudhon ao corpo doutrinário da Contra-Revolução e por esse elo nos ligando aos admiráveis insurretos das Conferências do Casino. Desimpediram eles o terreno, para que nós pudéssemos construir. Já a gargalhada lusitaníssima de Camilo fustigava Calixto Elói e o doutor Libório. Com Eça nós temos a dinastia de Acácio e do poeta Tomás de Alencar. Vê-se como em apertada simbiose se unem o político e o literato. O romantismo na sua dupla significação social foi, evidentemente, um desvio profundo de inteligência, traduzido bem cedo na decadência da cultura e na bastardia da linguagem. Exemplo: o estilo a que Herculano chamava «garabelhos e gregotias» do mais tarde arcebispo de Calcedónia no seu livro A reforma das prisões, aonde o dr. Libório de Meireles se ia abastecer para os jogos florais do Parlamento.
Suponho demonstrada a identidade estreitíssima que há entre a Ordem e a Inteligência. Augusto Comte – anota Alphonse Mortier – emprega uma fórmula cheia de seriedade como de justificação quando nos fala da «imensa questão da ordem». A ordem é uma obra da razão. E, segundo uma definição de Santo Agostinho, a razão humana é uma «força orientada para a unidade». Representa, pois, um trabalho de inteligência chegar à ordem pela unidade.
A sensibilidade tem que ficar no segundo plano. A parte que lhe pertence diz unicamente respeito a essa espécie de exaltação que nos provoca o nosso esforço quando nos libertamos dos sofismas, elevando-nos até à contemplação serena das ideias de expressão perfeita.
De modo que se a ordem é uma obra de inteligência orientada para a unidade, não é decididamente numa sociedade que perdeu por inteiro o senso das normas e dos exercícios intelectuais que nós lhe encontraremos o rasto salvador. Às causas enunciadas da depressão do «português representativo» adicionaram-se as consequências mundiais da guerra. E embora M. Julien Benda o não queira assim entender, tanto em França, como em Portugal, o judeu é quem tudo-lo-manda, dispondo do oiro com que o homem se perverte e engendrando, pelo apetite absorvente da «sensação», aquele estado de «alexandrinismo», que, entre nós, depois do bric-à-braquismo literário do senhor Alfredo Pimenta, para encanto das hortências-bleues do nosso caricatural Saint-Germain, conquistou o seu expoente máximo, com consagração oficial da República, na «filosofia» do senhor Leonardo Coimbra.
In A Teoria das Cortes Gerais (1924):
Insuspeitissimamente o judeu Salomon Reinach no seu mais que tendencioso Orpheus é o primeiro a declarar que os Jesuítas, defendendo o ‘livre-arbítrio’ contra a doutrina calvinista da Predestinação, salvaram numa hora de crise moral profunda a liberdade da consciência humana. Não enumerarei o que a humanidade lhes deve, já tanto em apostolado e missionação, por cujas consequências benéficas – о Brasil, um caso entre tantos – novas nacionalidades se criaram, como nos domínios das próprias ciências, maiormente, as geográficas e as linguísticas. Os Jesuítas souberam ver o que no humanismo existia de vivaz e de amoldável. Expulsando-o dos espíritos como ideal abstrato de vida mental e social, utilizaram-no fecundamente como regra de ação pedagógica. A campanha contemporânea em favor das humanidades reabilita-os estrondosamente como educadores, não os reabilitando menos a defesa crescente da Escolástica, como método e disciplina segura para os trabalhos do pensamento. Está na memória de todos o livro recente de Gonzague Truc, Le retour à la Scolastique, em que o seu autor, fora do campo confessional (Gonzague Truc encontra-se bem longe de ser um católico), nos denuncia, alarmado, o eclipse mortal das nossas faculdades críticas e lógicas, atribuindo-o ao uso e abuso do diletantismo filosófico, de que Henri Bergson é a personificação acabada, е, sobretudo, ao olvido criminoso dos antigos preceitos silogísticos, que nos ensinavam a raciocinar com princípio, meio e fim. Partidários incondicionais da Escolástica, os Jesuítas surgem-nos, deste modo, defensores da Inteligência, como em Trento o foram da liberdade de consciência. E eis como um escritor argentino, Manuel Gálvez, no seu aplaudido volume El solar de la Raza,[5] nos apresenta com um aspeto inteiramente imprevisto o valor e a influência da casuística nos progressos de cultura humana – da negregada e bafienta» casuística: «Isto sem contar com o facto de que as duas maiores conquistas do mundo moderno, a liberdade política e a liberdade filosófica, nasceram em Espanha. A Carta Magna é posterior aos Foros de Aragão, e o princípio da liberdade filosófica encontra-se na casuística... Os teólogos espanhóis, ao estabelecerem a existência de casos, afirmavam a liberdade do indivíduo contra a lei tirânica, iniciavam a independência do pensamento contra a interpretação dogmática e unilateral, e antecipavam-se às modernas doutrinas, segundo as quais não há crimes, mas criminosos, como não há doenças e sim doentes. O pensador e escritor venezuelano Manuel Díaz Rodríguez, que, antes de mim sustentou esta mesma ideia, disse, falando da Companhia de Jesus: «O seu distinguo, se não foi o sinal de liberdade, mostrou o caminho por onde se vai à própria liberdade.» E termina citando a seguinte frase de Remy de Gourmont, de quem não pode suspeitar-se que simpatize com os Jesuítas: «Toda a liberdade do espírito moderno está contida em germe nesse famoso distinguo, que fez rir a tantos imbecis.»
In Madre-Hispânia (1924):
Com efeito, minhas senhoras e meus senhores, ‘civilização’ significa um predomínio de espírito, em que o indivíduo cede ao conjunto humano, em que as riquezas de ordem interna e ascendente jugulam e orbitam as riquezas unicamente materiais. Pois contra o Espírito a Matéria reina, contra a Civilização reina a Técnica, promovendo a alucinação da velocidade e asfixiando pela vitória torpe da Máquina o princípio de autonomia interior, pela qual a nossa dignidade de homens consiste em sermos ‘almas’ – e não, na ironia clássica do humanista, «simples sacos por onde entra e sai a comida»!
Algures, numa página bastante divulgada, interroga Henri Bergson – um dos mais elegantes sofistas da idade leviana que se atravessa! – até onde houvera chegado nas suas investigações a ciência moderna se, em lugar de partir da razão matemática para o estudo exclusivo da Matéria, partisse da razão psicológica para o estudo mais amplo e mais envolvente das coisas do Espírito. Na ameaça crescente do orientalismo que, com sarcasmos implacáveis, classifica de ‘saber ignorante’ a nossa civilização do Aço e do Ferro, a nossa portentosa ‘técnica’, encobridora, no fundo, do mais estigmatizante primitivismo mental, o Ocidente não sabe que opor-lhe, senão volver de novo os olhos para a rocha firme de Pedro, para a claridade que rutila para além dos montes, na transparência augustíssima do céu de Roma.
Praticamente, experimentalmente, a Europa, polida e orgulhosa, como domadora que foi do resto do Orbe, ou tem de sucumbir, ou de acolher-se ao aprisco paternal do Cristianismo. Adversários encarniçados do Catolicismo, como Oswald Spengler, não fogem a confessar que a sorte do Ocidente anda ligada à da Igreja – que aos da Igreja andam ligados os destinos da civilização, engendrada na concha azul do Mediterrâneo, o mar sagrado da cultura antiga.
(...)
Pois, por persuasiva e reforçante coincidência, a filosofia da Escola achou na Península o seu derradeiro refúgio, ao anunciar-se o tremendo crepúsculo mental do século XVII. Ainda aí é impressionante o consórcio das predileções mais íntimas do génio hispânico com as regras e as disciplinas em que o ocidente depunha o segredo da sua vitalidade e do seu esplendor! O filósofo francês Jacques Maritain, no seu Antimoderne – breviário admirável de revisão e de depuração das ideias reputadas como basilares –, Jacques Maritain – da mesma forma que Bergson, que ele desfez num estudo inolvidável[i], aduza-se de passagem – levanta a seguinte interrogação: «Que serait-il advenu de la France et du Monde si le mouvement classique du XVIIe siècle avait choisi pour maître et pour guide en philosophie, non pas la dure et étroite tête orgueilleuse qui rejeta et détruisit tous les précieux instruments de Sagesse préparés le long des âges par le labeur des hommes, mais le vaste et puissant métaphysicien qui continuait et commentait humblement Aristote et Saint Thomas à Alcalá de Henares, pendant que Descartes combinait en Hollande sa révolution philosophique – le docteur profond Jean de Saint-Thomas?» Equivale isto a dizer, minhas senhoras e meus senhores, que mais fecundas e menos fatais teriam sido as direções levadas pela Europa se, ao vento novo, que de França soprou com a nova filosofia, se sobrepusesse a voz da prudência mental, sustentada nas cátedras peninsulares, sobretudo, por esse assombroso Frei João de Santo Tomás, português de nascimento, embora professor na velha fundação de Cisneros. Ainda por aí – pela apertada aliança do espírito peninsular com a filosofia tradicional (e escusado é rememorar nomes como os do jesuíta Pedro da Fonseca e do jesuíta Francisco Suárez!) – nós verificamos como a noção da existência e do conhecimento, praticada e ensinada pelos hispanos, se conformava estruturalmente com as necessidades e as tendências progressivas da civilização ocidental. Infecionada esta pela avariose ideológica da Reforma e da Renascença, onde é que a Reforma encontra mais denodados opositores, do campo da teologia ao campo da filosofia? Na Península. Na Península igualmente o humanismo pretensioso da Renascença se depura – e deixando de ser, como era para os gafados italianos, um fim, ideal de vida, volve-se com os colégios da Companhia, acentuadamente, um meio de educação valiosíssimo, um valioso agente de formação mental, de que o Colégio das Artes em Coimbra nos fornece um exemplo convincente. Ajuntemos aos testemunhos já produzidos dois de não menos peso e de não menos autoridade.
NOTAS
[1] La Dépendance de la Morale et l’indépendance des Moeurs, Paris, Mercure de France, 1907.
[2] La dépendance de la Morale et l’indépendance des Moeurs, Paris, Mercure de France, 1907, p. 270.
[3] Antimoderne, Paris, edição da Revue des Jeunes.
[4] Escrito e publicado no Outono de 1917, quando começaram a afamar-se as aparições misteriosas de Fátima, o presente estudo insere-se hoje aqui, não só para documentação das jornadas sofridas pelo pensamento do autor, mas ainda para se verem de futuro quais os caminhos levados pela inteligência portuguesa durante a terrível crise em que esteve submersa. Sente-se o autor bem modesto e sabe perfeitamente que as verdades que defende não são suas – mas de Deus e da velha experiência humana, de quem as recebeu. No entanto, olhando ao egotismo cego com que pensadores arcaicos e retardatários, como o senhor António Sérgio (ainda vem por Descartes e Kant o escritor que não corou de vergonha ao chamar a D. Sebastião ‘pedaço de asno’) se apresentam com pretensões a influir nos nossos estreitos meios intelectuais, o autor entende-se com o direito de se apresentar como um agitador de questões e problemas, até então nem de longe abordados em Portugal. A esse número pertence o ensaio sobre Fátima. Claro que, acolhidos hoje à síntese tomista, nem de longe transigimos com as falsas filosofias da intuição. Mas não negamos que elas nos libertaram do seco e aprisionante intelectualismo em que tanto se compraz o insultador de D. Sebastião. Para o historiador e para o crítico que de futuro procurarem abrir estradas na tremenda babilónia, que é ainda agora o pensamento nacional, aqui lhe deixamos um subsídio, não de todo desprezível.
[5] Madrid, Biblioteca Calleja.
[i] António Sardinha refere-se à primeira obra de Jacques Maritain, Le Bergsonisme, 1913.
Que estranho e incomensurável destino, efetivamente! A hipótese enunciada por Maurice Legendre, se não nos permite refazer a história, permite-nos, ao menos, ponderar o que ele teria sido, se nos últimos duzentos anos, a tivesse encaminhado a febre ardente do Absoluto que tanto crepitou na alma hispânica, em lugar da mísera e escravizante prisão do relativo, que se toma por progresso material. Com rara felicidade aplica Maurice Legendre ao caso de Espanha a interrogação suscitada algures por Bergson: «Je me suis demandé quelquefois – ausculta-se Bergson – ce qui se serait passé si la science moderne, au lieu de partir des mathématiques, pour s’orienter dans la direction de la mécanique, de l’astronomie, de la physique et de la chimie, au lieu de faire converger tous ses efforts sur l’étude de la matière, avait débuté par la considération de l’esprit, si Kepler, Galilée, Newton, par exemple, avaient été des psychologues.» E Bergson condensa o seu pensamento num período curto e incisivo: «C’est la matière et non plus l’esprit qui eût été le royaume du mystère.» Colocada em tão perigoso declive, vê-se a que situação a ciência chegou – a uma estreita aplicação mecânica, a uma depressiva e unilateral conceção técnica das coisas. Uma barbaria nova se levanta, e que espantosa barbaria! –, em que a civilização ocidental, opulenta de riquezas espirituais, se condenou quase, de ânimo cego, aos ardis diabólicos do suicídio.
Pois o increpado isolamento de Espanha, pois a increpada inadaptabilidade de Portugal às transformações do moderno industrialismo – tema desenvolvido e glosado como prova da decadência irremediável dos povos peninsulares, são, na possível transfiguração do Ocidente, as mais robustas e sólidas garantias do futuro! As sementes milagrosas do Espírito nós as conservamos, como ninguém. E se atentarmos em que o crepúsculo da Península, iniciado sombriamente no século XVII em Vestfália, se coincide com o eclipse temporal do Pontificado, coincidindo também com o alastramento do individualismo filosófico e das teorias económicas, que, de manifesta extração judaica, levaram direito ao despenhadeiro em que a civilização ocidental se contorce, suspensa, reconheceremos que a essência da alma hispânica e a sua natural expressão serviam melhor os interesses e a vitalidade da Europa de que os supostos benefícios recebidos depois do ‘livre-exame’ e dos triunfos mecânicos da ciência.
O processo do longo abastardamento da inteligência europeia acha-se magnificamente informado e julgado nos estudos do eminente Jacques Maritain. O regresso às fontes vivas da Escolástica – da perennis philosophia – impõe-se como o único meio de cura enérgico para os desvarios e erros mentais em que a nossa civilização, a civilização ocidental, incorreu. A reconciliação da razão com a objectividade, por modesta que se nos afigure, é a condição primordial de todo o renascimento. Ouçamos Maritain: «Les deux péchés intellectuels que nous avons relevés plus haut, l’ambition d’acquérir, avec les seules forces naturelles, science (à dominante mathématique désormais) parfaite et exhaustive, et le parti pris de façonner le réel a la mesure de l’esprit humain, étant le principe secret de cette séparation de la raison avec l’ordre vrai, devaient cesser d’être des accidents menaçant constamment la connaissance, pour devenir la règle même et la loi de celle-ci. C’est là, à vrai dire, la signification foncière de la réforme cartésienne. L’esprit, des lors, entrait réellement en servitude, car il se trouvait lié à l’erreur par une sorte de contrat, et il devait fatalement subir, au terme de la philosophie moderne, le joug de l’absurdité déclarée et formelle, qu’il se agisse du logicisme hégélien, posant que l’être et le néant sont la même chose, ou de l’anti-intellectualisme bergsonien, affirmant que «le changement est la substance même des choses.»[3] [Os dois pecados intelectuais que observamos acima, a ambição de adquirir, apenas com forças naturais, uma ciência perfeita e exaustiva (agora predominantemente matemática), e a determinação de moldar a realidade à medida da mente humana, sendo o princípio secreto dessa separação da razão da verdadeira ordem, tiveram que deixar de ser acidentes que ameaçavam constantemente o conhecimento. para se tornar a própria regra e lei dela. Este, para dizer a verdade, é o significado fundamental da reforma cartesiana. A mente, então, entrou realmente em servidão, pois viu-se vinculada ao erro por uma espécie de contrato, e estava obrigada a submeter-se, no final da filosofia moderna, ao jugo do absurdo declarado e formal, seja o logicismo hegeliano, postulando que o ser e o nada são a mesma coisa, ou o anti-intelectualismo bergsoniano. afirmando que "a mudança é a própria substância das coisas] Esta é a prisão em que a inteligência se lançou, pelo seu divórcio orgulhoso com a lei do Espírito. Inventariando de causas de tamanho mal, deparamos ainda com a Península, mantendo e defendendo no século XVII o que restava da experiência intelectual dos antigos, do património cultural do Ocidente. Não é fácil aqui acompanharmos a degenerescência da Escolástica e a vergonhosa debilidade a que a reduziram argumentadores capciosos, que, à força de a esquematizarem, despojaram a objetividade de todo o seu conteúdo. De onde o prestígio, a sedução inenarrável da filosofia nova, quando Descartes a enunciou. Só uma grande figura, mas ignorada, mas atirada para o limbo de um revoltante esquecimento (figura que, no juízo desapaixonado de Jacques Maritain, ombreia quase com Aristóteles e Santo Tomás), só uma grande figura enche o século XVII, de guarda ao tesouro mal utilizado da ‘filosofia da Escola’. É Frei João de Santo Tomás, professor em Alcalá e autor do Cursus philosophicus Thomisticus.
No seu Antimoderne, assim se exprime Maritain, discorrendo acerca do renascimento tomista e da ilusória floração francesa do século XVII, cuja história é para Maritain a história do pecado da França no terreno da ordem intelectual: «Que serait-il advenu de la France et du monde, si le mouvement classique do XVIIe siècle avait choisi pour maitre et pour guide en philosophie, non pas la dure et étroite tête orgueilleuse qui rejeta et détruisit tous les précieux instruments de sagesse préparés le long des âges par le labeur des hommes, mais le vaste et puissant métaphysicien qui continuait et commentait humblement Aristote et Saint Thomas à Alcala de Henares, pendant que Descartes combinait en Holland sa révolution philosophique, le docteur profond Jean de Saint-Thomas?» [O que teria sido da França e do mundo, se o movimento clássico do século XVII tivesse escolhido para seu mestre e guia em filosofia, não a dura e estreita cabeça orgulhosa que rejeitou e destruiu todos os preciosos instrumentos de sabedoria preparados ao longo dos tempos pelo trabalho dos homens, mas o vasto e poderoso metafísico que humildemente continuou e comentou humildemente acerca de Aristóteles e São Tomás em Alcalá de Henares - o profundo doutor João de São Tomás?] É, em diferente plano, a interrogação de Bergson. Mas, filósofo extraordinário, esse João de Santo Tomás, de onde vinha, a que país pertencia, debaixo da quase impersonalização do seu humílimo nome conventual?
Dominicano e confessor de Filipe IV, Frei João de Santo Tomás, o formidável professor Complutense, nascera em Lisboa, era português! Para vergonha nossa, quem o sabia aí? Primeiro, o absurdo e farisaico critério de Inocêncio no seu Dicionário bibliográfico, repudiando todos os autores portugueses que tivessem escrito em latim, e com isso lançando no olvido das inutilidades a contribuição brilhantíssima que ao pensamento europeu forneceram tantos dos nossos seiscentistas. Em seguida, o nosso estigmatizante desprezo pela filosofia conimbricense, por ser um capítulo da vida jesuítica entre nós. E, finalmente, o antagonismo irracional e antipatriótico que, colocando-nos de costas viradas para a Espanha, nos roubou por longo tempo escultores como Manuel Pereira, e internacionalistas – passe a designação! – como Frei Serafim de Freitas. Tudo se combinou assim para que Portugal deixasse murchar e destroncar-se quase um dos mais erguidos florões do seu diadema intelectual.
In A crise do Estado (1922)
Acha-se patente, não só a contradição, mas também a confusão em que bracejam os tratadistas contemporâneos, para conciliarem as suas preferências doutrinárias com a lição cada vez mais incisiva da realidade, pelo que toca à estrutura e funções do Estado. Dominado inteiramente pela força expansiva de um fenómeno que a ninguém é dado sofismar, ou escurecer, Posada, figura-símbolo do universalismo do século findo, de le stupide, como Léon Daudet inolvidavelmente alcunhou o século XIX, esgota-se a desfiar raciocínios de mero discursador, para ajustar à ideologia que lhe enevoa o cérebro a interpretação de um acontecimento, que é o desmentido acabado de quanto constitui, para o verbalismo apático do perplexo catedrático madrileno, o seu indispensável pão espiritual. Kant e Krause são para ele os remotos inspiradores da revolução que principia a mudar as diretrizes, até agora tidas como ortodoxas, dentro das teorias políticas do Estado! E o professor da Universidade de Madrid desorienta-se e perde-se numa selva escura de preconceitos de toda a espécie, deixando-nos avaliar quão funda não foi a intoxicação do germanismo no ocidente europeu! Um pequeno excerto em que se comprova lamentavelmente o que escrevemos: «La acción eficaz, en su función de hacer efectiva la ley de la solidaridad social, tiene que descansar en las reacciones de la conciencia colectiva, reacciones psíquicas de inspiración moral, sin cuyo apoyo no tendrá jamás virtualidad suficiente que el Estado elabore. Esas reacciones, en su incesante proceso expansivo de conciencia individual a conciencia individual, hasta constituir una atmósfera social, y condensarse en empujes sociales, forman lo que, algunas veces, hemos llamado fluido ético indispensable en la química psicológica de los Estados.» O «fluido ético»! A química psicológica dos Estados! Não merece a pena continuar, porque fica em demasia assinalada a depressão de pensamento a que a prática do kantismo conduz!
Não se lhe abandona à perversão debilitadora o professor Gaston Morin, conquanto não se decida a romper totalmente com Kant. Contenta-se apenas em verificar que a base do direito até agora foi o indivíduo, começando a ser daqui em diante o agrupamento. Gaston Morin é um relativista, impregnado de longe por outra barbaria não menos condenável, a da aplicação do transformismo à sociologia, em que Spencer pontificou, como sacerdote-máximo, e a que a soi-disant filosofia de Henri Bergson, como última moda exportada de Paris para intelectuais de pouca consistência, concedeu privilégio de ciência definitiva. Tanto a Posada, como a Morin – ambos representativos de falsas tendências ainda dominantes, mas já ambos eco da renovação que intensamente se opera no campo do Direito –, é fácil de ver que lhes falta por completo a noção de «absoluto», em que o Direito, como, de resto, tudo o mais, carece de se firmar. Um, abandonado ao devenir hegeliano, o outro entregue à miragem proteiforme e não menos anárquica do relativismo, são conjuntamente abrangidos por aquele reparo de Georges Valois, falando da subjetivação, no campo da economia, da noção de valor, igual, sem dúvida, nas suas consequências desastrosas, à subjetivação, no campo jurídico, da noção de direito: «Il est radicalement impossible d’asseoir une institution sociale ou nationale quelconque sur une science dont le fondement est une notion aussi fuyante.»
Ressalta de quanto se expõe o erro manifesto, o manifesto desnorteamento, que o individualismo político e moral lançou na própria perceção das ideias fundamentais. Mas como sinal de que a restauração da verdadeira ordem se evidencia já em toda a sua plenitude, o desacordo dos tratadistas, com exemplo típico nos dois casos aqui observados, o de Adolfo Posada e de Gaston Morin, é para nós suficientemente elucidativo. Sejam kantistas ou pragmatistas, por muito que se aferrem a qualquer superstição filosófica, não podem, contudo, resistir à penetração cada vez mais forte dos acontecimentos, em suma, à «revolta dos factos» (aproveitando de Morin uma expressão feliz) contra a desnaturação sistemática a que a Democracia violentamente sujeitou a sociedade e o Estado. Chame-se-lhe «novo liberalismo», queira explicar-se tamanha modificação no que até agora se tomava como matéria dogmática por um maior desenvolvimento das relações sociais e económicas, o que é certo é que não se trata senão do fundo inalterável das coisas que, cedo ou tarde, consegue prevalecer sempre, sob pena de se derrogarem as leis primordiais da vida. Eis o que sucede na alardeada e já tão denunciada «crise do Estado». Por contraditórios e desalentadores que sejam os aspetos através dos quais ela se nos denuncia, os espíritos refletidos e cultos não duvidam nem um instante do sentido em que terminará por se resolver. Esse sentido está à vista na excitação que reina entre os especialistas das mais variadas ascendências e que são como que um pequeno mundo de rãs coaxando, incessantes, na ilusão de que o Universo é o seu charco e que nada mais existe para além do horizonte que enfaticamente se delimitam. Quando de elementos mais persuasivos não dispuséssemos para demonstrar a linha que leva a restituição progressiva do Estado aos seus moldes naturais e tradicionais, reputava suficientes as que nos oferece, ou a perplexidade, com tanto de aflitiva como de cómica, de um Adolfo Posada na sua Teoría social y jurídica del Estado, ou a serenidade aparente de um Gaston Morin no seu livro La révolte des faits contre le Code. Resigna-se Posada a declarar: «La teoría del Estado sólo podrá rehacerse, en la medida en que se dé cuenta del valor y fuerza de ese más que soplo huracán de la calle, que de tal modo ha descompuesto la vieja ideología liberal: y la transformación real de los Estados ha de producirse, de hecho se produce, bajo la pujante acción del fermento sindical. Ningún gobierno, digno de tal nombre, podrá dar un paso eficaz hacia la reconstrucción de las instituciones políticas vitales, si ignora o aparenta ignorar este hecho positivo, a veces brutalmente positivo, del movimiento sindicalista.»
Por seu lado Gaston Morin, inclinado pelo relativismo, a uma supressão gradual das funções do Estado e à sua substituição pelos diversos federalismos profissionais e económicos, e não hesitando em proclamar que «l’évangile de Rousseau ne répond donc pas aux exigences de la vie sociale», sustenta, como conclusão insofismável, que «l’étude du mouvement sociale... atteste que, dès à présent, une époque historique est close: celle de l’individualisme, de l’isolement des individus qui cède de plus en plus la place aux groupements et à la solidarité». Achamo-nos, pois, dentro da ideia de «solidariedade», com que Duguit foi corrigindo a secura objetivista das suas teorias. O sindicalismo é, deste modo, o eixo da reconstrução futura, para todos os pensadores e publicistas a quem o problema da transformação do Estado preocupa agudamente. E com justeza Duguit repara que «o movimento sindicalista não é, na realidade, a guerra empreendida pelo proletariado, para destruir a burguesia e conquistar os instrumentos da produção. Não é, como pretendem os teóricos do sindicalismo revolucionário, a classe operária que adquire consciência de si mesma, para concentrar em si o poder e a riqueza, e aniquilar a classe burguesa. É um movimento muito mais amplo, muito mais fecundo, diria até, muito mais humano. Não é um meio de guerra e de divisão social: creio que é, pelo contrário, um meio poderoso de pacificação e união. Não sendo só uma mera transformação da classe operária, estende-se a todas as classes sociais e tende a coordená-las num feixe harmónico».
In As ideias de Duguit (1923):
Não é nosso fim opor às teorias de M. Duguit as teorias que naturalmente o nosso espírito perfilha e defende. Com o amparo de um expositor fiel, como é o estudo citado de Louis Bourgés, estudo que aconselhamos aos alunos de Direito, esboçámos uma pequena síntese das ideias propagadas pelo catedrático bordalês através de uma bibliografia já considerável. Assinalamos de novo a influência de Duguit no desmantelo crescente das ficções e utopias constitucionalistas. A sua ação sob esse aspeto é comparável à de Bergson, apurando na esfera da filosofia propriamente dita a sua rara penetração psicológica contra o racionalismo. Quando, porém, M. Duguit procura substituir o que destrói – isto é, construir –, o desastre culmina-se nas proporções apontadas!
Barbárie de pensamento, demissão total da Inteligência, tais são os traços predominantes das soluções com que M. Duguit banqueteia, numa evidente mistificação ou numa assustadora incapacidade de raciocínio, a plebe de doutores e pedagogos que andam por esse mundo além a entortar o claro entendimento da mocidade. Passeando-se de cátedra em cátedra como o verbo feito carne do Direito, tocou-nos agora a honra de recebermos M. Duguit. Desde os professores da Faculdade do Campo de Sant’Ana, trapaceando umas mał digeridas leituras nas horas que lhes deixam livres seus amos e senhores, os barões da rua dos Capelistas, até àquele escritório de Importações & Exportações que gira sob a firma «Augusto de Castro», o incenso subiu em espirais grossas, o lugar-comum escovou-se e engomou-se, mobilizando a pasmaceira indígena para ouvir da boca do professor de Bordéus quaisquer generalizações de publicista sem vôo, nazalizadas, porém, com a lentidão de um arcano profundo.
Ora é tempo de sacudirmos admirações deprimentes e curvaturas que nada nos dignificam! Reponham-se os valores, tanto nacionais como estrangeiros, no seu exacto significado, promovendo-se um esforço de sincera e desanuviada cultura. Não apedrejamos com isto M. Léon Duguit. Só o restituímos à moldura que lhe é própria. De resto, porque culpá-lo? Culpemos antes os analfabetos que sabem ler e que, por acidentes da fortuna, são até às vezes catedráticos de uma Universidade. No fundo, bom blagueur, M. Duguit rir-se-ia. Professor de Direito, ninguém, como o mestre de Bordéus, nega o direito. A cena do seu doutoramento seria pois, para ele – como foi para nós –, um divertido episódio de Carnaval académico!
In "O 'filósofo' Leonardo":
Mas nós queremos falar da «filosofia» do senhor Leonardo Coimbra. Reminiscência bastarda do «bergsonismo», as tautologias filosóficas do senhor Leonardo Coimbra entroncam nas mesmas causas de que derivam os esteticismos estridentes do senhor Alfredo Pimenta. «Si l’on appelle, suivant une dénomination évidemment abusive mais généralement reçue l’aristocratie une société éprise ou du moins révèrent des seuls états de raison, et démocratie une société en quête du seul sentir, qu’elle veut sous toutes ses formes possibles, qu’elle cherche aux voies les plus étranges et que seule elle honore parmi les états de l’âme, on peut dire que, de même que le Cartésianisme aura été la philosophie d’une aristocratie, le Bergsonisme est rigoureusement la philosophie d’une démocratie». Assim se explica algures o crítico Julien Benda.
E porque, segundo Benda, constitui uma democracia, para comodidade de expressão, aquela sociedade que, pondo de parte o prazer intelectual de compreender e raciocinar, procura apenas nas manifestações do espírito saciar a sua avidez de sensação, temos de concordar que o senhor Leonardo Coimbra, como «filósofo», é bem a consciência do desregramento democrático em que vivemos de um extremo ao outro das duas trincheiras que dividem Portugal de alto a baixo, irreconciliavelmente.
«Filosofia da mobilidade» chamou Benda aos belos exercícios de argúcia literária de Henri Bergson. Remotamente influenciado pelas leituras de L’évolution créatrice do interessante filósofo francês (convém não esquecer a costela hebraica de Bergson!), o senhor Leonardo Coimbra, pela sua facilidade do verbo com letra minúscula, num país eivado da mais baixa superstição retórica, ganhou depressa as culminâncias da praça pública por essa espécie de novo «alexandrinismo», que na sua obscuridade e falta de senso lógico encontra o principal motivo do seu rápido triunfo. A Bergson ainda se deve, com o incomparável recorte de um temperamento nada vulgar, uma análise feliz e sensata do racionalismo naturalista do século passado. Mas ao senhor Leonardo Coimbra?
Evidentemente que a pergunta fica sem resposta. Isso mais nos obriga a fixar o significado do seu incontestável sucesso, que resultaria sem justificação, se não o tomássemos como índice do estado geral de uma sociedade, incluída como democracia no tipo definido por Benda. Democracia na sua perfeita desorganização, a Portugal não lhe falta nem o primitivismo de sentimentos e predileções, de que ordinariamente os regimes democráticos se fazem acompanhar com o seu cortejo inevitável de sofistas e plutocratas. Acontece-nos a nós o que sucedeu com o crepúsculo de outras civilizações. «Cette frénésie de la présente société française à faire des ouvrages de l’esprit une occasion d’émoi, à quoi tien-t-elle?»– interroga Julien Benda, naturalmente alarmado. A mesma interrogação nos domina, levando-nos a concluir com Benda que uma das razões primaciais do mal é a deplorável e total ausência de cultura.
«O rebaixamento de cultura na sociedade francesa, ao lado das numerosas causas já denunciadas (desenvolvimento do sport, leitura quase exclusiva de jornais, etc.), permite-nos admitir ainda mais uma: o acesso aos primeiros lugares dessa sociedade de pessoas de uma outra classe e cujo espírito se encontra perfeitamente «à l’état de nature», enriquecidos do comércio, da indústria, da finança, etc. Mas o rebaixamento de cultura não obedecerá às razões indicadas por Julien Benda. De conhecida procedência judaica, não quer Benda aceitar que tão profunda transformação social seja devida ao predomínio dos Judeus.
É certo que Benda, absolvendo-se a si próprio caritativamente, distingue, «à simple titre de symbole, les Hébreux et les Carthaginois, Jahveh et Belphégor, Spinoza et Bergson». Claro exemplo de um judeu ocidentalizado pela cultura latina e católica, as velhas disciplinas clássicas, desde as Humanidades à Filosofia, acharam em Julien Benda um defensor incansável. Só nesse ponto de relevar o factor Semita da responsabilidade que lhe cabe no «alexandrinismo» do pensamento contemporâneo, é que Benda não cortou ainda o cordão umbilical. Cortêmo-lo nós por ele. E seja para aplicar à democracia portuguesa, no seu sentido social, o diagnóstico que Julien Benda nos oferece sobre a França, acrescido da apreciação devida à presença indubitável de Israel entre nós.
A religião da música, com o amor da dança, e o convívio da gente do teatro, substitui-se, tanto aqui como além-Pirenéus, à robusta formação literária das gerações preparadas na lição das letras antigas. O culto do indefinido, com a guloseima de tudo o que é indistinto e apenas auditivo, sobrepôs-se numa concepção meramente sensual das relações de vida aos eternos conceitos religiosos e éticos que dantes se possuíam acerca dela. Daí o utilitarismo em todo o campo largo da existência, desde a ignóbil teoria da Arte pela Arte até ao desenfreado jogo cambial dos barões da Finança.
Com a expulsão dos Jesuítas no tempo de Pombal começou verdadeiramente a crise moral e intelectual da nacionalidade. Os Padres do Oratório, paladinos dos métodos cartesianos, sustavam ainda a decaída inevitável, que se consumou ruidosamente em 34, depois de extintas as Ordens Religiosas. A primeira geração romântica, dotada de uma personalidade que não é lícito recusar-lhe, é, por isso, filha da pedagogia tradicional. Afrouxa-se o ensino das Humanidades e, com a retórica invasora do constitucionalismo, o que consegue atenuar a quebra das nossas faculdades lógicas são os estudos experimentais das ciências de observação, que, por seu turno, não tardariam a agravar a enfermidade, criando, principalmente nos médicos, a superstição materialista, de que Bombarda foi o exemplo rematado.
Voltou, é certo, o ensino congreganista. Voltaram em relativa liberdade os Jesuítas. Mas esses mesmos transigindo com o preconceito do século, relegaram as Humanidades para um plano inferior, dispensando a sua atividade às investigações naturalistas de que a Brotéria registou a documentação honrosíssima.
Aconteceu entre nós com os Jesuítas tal como aconteceu em França. «Par malheur la fraction du monde français qui fréquente les Jésuites, qui les aime et qui les défend, est la moins propre de toutes à les comprendre», comenta Louis Dimier no seu livro Souvenirs d’action publique et d’Université. «C’est l’ancienne société du faubourg Saint-Germain, ornée de quantité de vertus, mais en général peu appliquée et sette à de fausses directions.» Precisamente no nosso mundo elegante e aristocrático é que os Jesuítas atuaram também, não conseguindo obter mais do que um devocionismo romântico muito epidérmico, aliado àquela complacência com que nas casas fidalgas se toleravam em algum dia as rabugices do Padre-capelão.
Ora o que foi, em carácter e em cultura, a mentira convencional da nossa sociedade ultrarromântica, progenitora da atual, conta-no-lo Eça de Queiroz no final célebre de um dos seus romances. Deu-se o caso no Loreto, perto da estátua de Camões. O conde de Ribamar, apoiado às grades da praça, inchava a sua loquela fácil para as interjeições admirativas do cónego Dias e do padre Amaro. «Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade, este contentamento... Meus senhores, não admira realmente que nós sejamos a inveja da Europa!» «E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três em linha, junto às grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país – ali ao pé daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, ereto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a epopeia sobre o coração, a espada firme, cercado dos cronistas e dos poetas heroicos da antiga pátria – pátria para sempre passada, memória quase perdida!»
«Pátria para sempre passada – memória quase perdida! E o pessimismo que humedece o comentário do romancista é o gérmen heroico da inflexível atitude rebelde que se torna inglorioso assumir perante a enorme cianose em que se nos mascara o rosto da Pátria» – na palavra justiceira e dolorosa de Afonso Lopes Vieira. Sabe-se que a inspiração rude de Proudhon, nas suas indignações de profeta, contra o ludíbrio sem nome do individualismo político e económico, conduziu a vigorosa ofensiva mental que se condensou nas guerrilhas das Farpas e de que Antero de Quental representou a chefia suprema. Pertence hoje Proudhon ao corpo doutrinário da Contra-Revolução e por esse elo nos ligando aos admiráveis insurretos das Conferências do Casino. Desimpediram eles o terreno, para que nós pudéssemos construir. Já a gargalhada lusitaníssima de Camilo fustigava Calixto Elói e o doutor Libório. Com Eça nós temos a dinastia de Acácio e do poeta Tomás de Alencar. Vê-se como em apertada simbiose se unem o político e o literato. O romantismo na sua dupla significação social foi, evidentemente, um desvio profundo de inteligência, traduzido bem cedo na decadência da cultura e na bastardia da linguagem. Exemplo: o estilo a que Herculano chamava «garabelhos e gregotias» do mais tarde arcebispo de Calcedónia no seu livro A reforma das prisões, aonde o dr. Libório de Meireles se ia abastecer para os jogos florais do Parlamento.
Suponho demonstrada a identidade estreitíssima que há entre a Ordem e a Inteligência. Augusto Comte – anota Alphonse Mortier – emprega uma fórmula cheia de seriedade como de justificação quando nos fala da «imensa questão da ordem». A ordem é uma obra da razão. E, segundo uma definição de Santo Agostinho, a razão humana é uma «força orientada para a unidade». Representa, pois, um trabalho de inteligência chegar à ordem pela unidade.
A sensibilidade tem que ficar no segundo plano. A parte que lhe pertence diz unicamente respeito a essa espécie de exaltação que nos provoca o nosso esforço quando nos libertamos dos sofismas, elevando-nos até à contemplação serena das ideias de expressão perfeita.
De modo que se a ordem é uma obra de inteligência orientada para a unidade, não é decididamente numa sociedade que perdeu por inteiro o senso das normas e dos exercícios intelectuais que nós lhe encontraremos o rasto salvador. Às causas enunciadas da depressão do «português representativo» adicionaram-se as consequências mundiais da guerra. E embora M. Julien Benda o não queira assim entender, tanto em França, como em Portugal, o judeu é quem tudo-lo-manda, dispondo do oiro com que o homem se perverte e engendrando, pelo apetite absorvente da «sensação», aquele estado de «alexandrinismo», que, entre nós, depois do bric-à-braquismo literário do senhor Alfredo Pimenta, para encanto das hortências-bleues do nosso caricatural Saint-Germain, conquistou o seu expoente máximo, com consagração oficial da República, na «filosofia» do senhor Leonardo Coimbra.
In A Teoria das Cortes Gerais (1924):
Insuspeitissimamente o judeu Salomon Reinach no seu mais que tendencioso Orpheus é o primeiro a declarar que os Jesuítas, defendendo o ‘livre-arbítrio’ contra a doutrina calvinista da Predestinação, salvaram numa hora de crise moral profunda a liberdade da consciência humana. Não enumerarei o que a humanidade lhes deve, já tanto em apostolado e missionação, por cujas consequências benéficas – о Brasil, um caso entre tantos – novas nacionalidades se criaram, como nos domínios das próprias ciências, maiormente, as geográficas e as linguísticas. Os Jesuítas souberam ver o que no humanismo existia de vivaz e de amoldável. Expulsando-o dos espíritos como ideal abstrato de vida mental e social, utilizaram-no fecundamente como regra de ação pedagógica. A campanha contemporânea em favor das humanidades reabilita-os estrondosamente como educadores, não os reabilitando menos a defesa crescente da Escolástica, como método e disciplina segura para os trabalhos do pensamento. Está na memória de todos o livro recente de Gonzague Truc, Le retour à la Scolastique, em que o seu autor, fora do campo confessional (Gonzague Truc encontra-se bem longe de ser um católico), nos denuncia, alarmado, o eclipse mortal das nossas faculdades críticas e lógicas, atribuindo-o ao uso e abuso do diletantismo filosófico, de que Henri Bergson é a personificação acabada, е, sobretudo, ao olvido criminoso dos antigos preceitos silogísticos, que nos ensinavam a raciocinar com princípio, meio e fim. Partidários incondicionais da Escolástica, os Jesuítas surgem-nos, deste modo, defensores da Inteligência, como em Trento o foram da liberdade de consciência. E eis como um escritor argentino, Manuel Gálvez, no seu aplaudido volume El solar de la Raza,[5] nos apresenta com um aspeto inteiramente imprevisto o valor e a influência da casuística nos progressos de cultura humana – da negregada e bafienta» casuística: «Isto sem contar com o facto de que as duas maiores conquistas do mundo moderno, a liberdade política e a liberdade filosófica, nasceram em Espanha. A Carta Magna é posterior aos Foros de Aragão, e o princípio da liberdade filosófica encontra-se na casuística... Os teólogos espanhóis, ao estabelecerem a existência de casos, afirmavam a liberdade do indivíduo contra a lei tirânica, iniciavam a independência do pensamento contra a interpretação dogmática e unilateral, e antecipavam-se às modernas doutrinas, segundo as quais não há crimes, mas criminosos, como não há doenças e sim doentes. O pensador e escritor venezuelano Manuel Díaz Rodríguez, que, antes de mim sustentou esta mesma ideia, disse, falando da Companhia de Jesus: «O seu distinguo, se não foi o sinal de liberdade, mostrou o caminho por onde se vai à própria liberdade.» E termina citando a seguinte frase de Remy de Gourmont, de quem não pode suspeitar-se que simpatize com os Jesuítas: «Toda a liberdade do espírito moderno está contida em germe nesse famoso distinguo, que fez rir a tantos imbecis.»
In Madre-Hispânia (1924):
Com efeito, minhas senhoras e meus senhores, ‘civilização’ significa um predomínio de espírito, em que o indivíduo cede ao conjunto humano, em que as riquezas de ordem interna e ascendente jugulam e orbitam as riquezas unicamente materiais. Pois contra o Espírito a Matéria reina, contra a Civilização reina a Técnica, promovendo a alucinação da velocidade e asfixiando pela vitória torpe da Máquina o princípio de autonomia interior, pela qual a nossa dignidade de homens consiste em sermos ‘almas’ – e não, na ironia clássica do humanista, «simples sacos por onde entra e sai a comida»!
Algures, numa página bastante divulgada, interroga Henri Bergson – um dos mais elegantes sofistas da idade leviana que se atravessa! – até onde houvera chegado nas suas investigações a ciência moderna se, em lugar de partir da razão matemática para o estudo exclusivo da Matéria, partisse da razão psicológica para o estudo mais amplo e mais envolvente das coisas do Espírito. Na ameaça crescente do orientalismo que, com sarcasmos implacáveis, classifica de ‘saber ignorante’ a nossa civilização do Aço e do Ferro, a nossa portentosa ‘técnica’, encobridora, no fundo, do mais estigmatizante primitivismo mental, o Ocidente não sabe que opor-lhe, senão volver de novo os olhos para a rocha firme de Pedro, para a claridade que rutila para além dos montes, na transparência augustíssima do céu de Roma.
Praticamente, experimentalmente, a Europa, polida e orgulhosa, como domadora que foi do resto do Orbe, ou tem de sucumbir, ou de acolher-se ao aprisco paternal do Cristianismo. Adversários encarniçados do Catolicismo, como Oswald Spengler, não fogem a confessar que a sorte do Ocidente anda ligada à da Igreja – que aos da Igreja andam ligados os destinos da civilização, engendrada na concha azul do Mediterrâneo, o mar sagrado da cultura antiga.
(...)
Pois, por persuasiva e reforçante coincidência, a filosofia da Escola achou na Península o seu derradeiro refúgio, ao anunciar-se o tremendo crepúsculo mental do século XVII. Ainda aí é impressionante o consórcio das predileções mais íntimas do génio hispânico com as regras e as disciplinas em que o ocidente depunha o segredo da sua vitalidade e do seu esplendor! O filósofo francês Jacques Maritain, no seu Antimoderne – breviário admirável de revisão e de depuração das ideias reputadas como basilares –, Jacques Maritain – da mesma forma que Bergson, que ele desfez num estudo inolvidável[i], aduza-se de passagem – levanta a seguinte interrogação: «Que serait-il advenu de la France et du Monde si le mouvement classique du XVIIe siècle avait choisi pour maître et pour guide en philosophie, non pas la dure et étroite tête orgueilleuse qui rejeta et détruisit tous les précieux instruments de Sagesse préparés le long des âges par le labeur des hommes, mais le vaste et puissant métaphysicien qui continuait et commentait humblement Aristote et Saint Thomas à Alcalá de Henares, pendant que Descartes combinait en Hollande sa révolution philosophique – le docteur profond Jean de Saint-Thomas?» Equivale isto a dizer, minhas senhoras e meus senhores, que mais fecundas e menos fatais teriam sido as direções levadas pela Europa se, ao vento novo, que de França soprou com a nova filosofia, se sobrepusesse a voz da prudência mental, sustentada nas cátedras peninsulares, sobretudo, por esse assombroso Frei João de Santo Tomás, português de nascimento, embora professor na velha fundação de Cisneros. Ainda por aí – pela apertada aliança do espírito peninsular com a filosofia tradicional (e escusado é rememorar nomes como os do jesuíta Pedro da Fonseca e do jesuíta Francisco Suárez!) – nós verificamos como a noção da existência e do conhecimento, praticada e ensinada pelos hispanos, se conformava estruturalmente com as necessidades e as tendências progressivas da civilização ocidental. Infecionada esta pela avariose ideológica da Reforma e da Renascença, onde é que a Reforma encontra mais denodados opositores, do campo da teologia ao campo da filosofia? Na Península. Na Península igualmente o humanismo pretensioso da Renascença se depura – e deixando de ser, como era para os gafados italianos, um fim, ideal de vida, volve-se com os colégios da Companhia, acentuadamente, um meio de educação valiosíssimo, um valioso agente de formação mental, de que o Colégio das Artes em Coimbra nos fornece um exemplo convincente. Ajuntemos aos testemunhos já produzidos dois de não menos peso e de não menos autoridade.
NOTAS
[1] La Dépendance de la Morale et l’indépendance des Moeurs, Paris, Mercure de France, 1907.
[2] La dépendance de la Morale et l’indépendance des Moeurs, Paris, Mercure de France, 1907, p. 270.
[3] Antimoderne, Paris, edição da Revue des Jeunes.
[4] Escrito e publicado no Outono de 1917, quando começaram a afamar-se as aparições misteriosas de Fátima, o presente estudo insere-se hoje aqui, não só para documentação das jornadas sofridas pelo pensamento do autor, mas ainda para se verem de futuro quais os caminhos levados pela inteligência portuguesa durante a terrível crise em que esteve submersa. Sente-se o autor bem modesto e sabe perfeitamente que as verdades que defende não são suas – mas de Deus e da velha experiência humana, de quem as recebeu. No entanto, olhando ao egotismo cego com que pensadores arcaicos e retardatários, como o senhor António Sérgio (ainda vem por Descartes e Kant o escritor que não corou de vergonha ao chamar a D. Sebastião ‘pedaço de asno’) se apresentam com pretensões a influir nos nossos estreitos meios intelectuais, o autor entende-se com o direito de se apresentar como um agitador de questões e problemas, até então nem de longe abordados em Portugal. A esse número pertence o ensaio sobre Fátima. Claro que, acolhidos hoje à síntese tomista, nem de longe transigimos com as falsas filosofias da intuição. Mas não negamos que elas nos libertaram do seco e aprisionante intelectualismo em que tanto se compraz o insultador de D. Sebastião. Para o historiador e para o crítico que de futuro procurarem abrir estradas na tremenda babilónia, que é ainda agora o pensamento nacional, aqui lhe deixamos um subsídio, não de todo desprezível.
[5] Madrid, Biblioteca Calleja.
[i] António Sardinha refere-se à primeira obra de Jacques Maritain, Le Bergsonisme, 1913.