A tomada da Bastilha
António Sardinha
RESUMO
António Sardinha apresenta uma visão crítica sobre a Revolução Francesa e a tomada da Bastilha, contestando a ideia de que foi um acontecimento libertador e progressista. Sardinha argumenta que a Revolução, influenciada por ideias de Rousseau e pelo criticismo protestante, rompeu com a tradição secular da sociedade francesa, substituindo-a por uma ideologia abstrata. A Bastilha era mais um símbolo retórico do que uma verdadeira fortaleza da tirania, pois nela estavam apenas sete prisioneiros, a maioria por crimes comuns. A miséria do povo antes da Revolução foi exagerada pelos revolucionários e que o reinado de Luís XVI procurava reformas e melhorias para França. Sardinha acusa a influência estrangeira, especialmente da Maçonaria e da Inglaterra, de manipular os acontecimentos para enfraquecer a França. A Revolução trouxe retrocesso, desorganização social e agravou a situação dos mais pobres, destruindo antigas formas de organização e solidariedade, como as corporações e comunas. Por fim, Sardinha critica a celebração da tomada da Bastilha como festa nacional, considerando-a baseada em mitos e exageros, e conclui que a Revolução não trouxe verdadeira liberdade, mas sim novas formas de opressão e desilusão para o povo francês.
A Revolução Francesa, rompendo com a formação secular da sociedade, procurou substituí-la por uma construção ideológica, tirada toda dos falsos subjectivismos de Jean-Jacques Rousseau. Jean-Jacques Rousseau, por seu turno, suíço de nascimento, calvinista de origem, representa o triunfo do criticismo protestante sobre o nosso claro entendimento de católicos e de romanos. O que o livre-exame é como fonte permanente de interpretação caprichosa e anárquica no domínio das coisas religiosas, assim foi no campo das relações políticas e morais o vento tumultuário da Revolução.
Por longos tempos a pretenderam deificar, como um acontecimento decisivo para o progresso e felicidade das gerações futuras. Esqueceram-se por instantes as palavras fortes, as verdades duras de um Joseph de Maistre, de um Bonald, de um Rivarol. Não estavam elas de acordo com um século, que enfaticamente se chamou das ‘luzes’. Mas porque se harmonizavam com as luzes de todos os séculos, no seu convívio e no sabor másculo da sua acentuação encontram agora repouso as inquietações intelectuais daqueles em quem se não perdeu ainda o sentido superior da civilização a que pertencem.
Costuma celebrar-se o início da Revolução com a festa nacional da tomada da Bastilha. A Bastilha é considerada pelo sentimentalismo retórico dos historiadores românticos como o baluarte de uma tirania que, afinal, não existiu nunca, a não ser na sua imaginação excitada. Para os que não se possam dar a longas meditações sobre a Revolução Francesa, pensando vagarosamente os estudos formidáveis de Taine que julgaram a questão de uma maneira irremovível, a leitura de qualquer trabalho mais ligeiro e mais de síntese, ou La Révolution, de Louis Madelin, ou La Révolution Française et la psychologie des révolutions, de Gustave Le Bon, lhes dará os elementos seguros de uma apreciação crítica indispensável como base para a aquisição de toda a cultura contra-revolucionária, que deseje ser sensata e sólida. É, assim, uma lenda miserável a declamada miséria do povo às vésperas da Revolução. O reinado de Luís XVI, tanto debaixo do ponto de vista financeiro, como debaixo do ponto de vista militar e diplomático, significa até um notável esforço em favor da prosperidade e do engrandecimento da França. Havia, é certo, grandes abusos de administração. Para a abolição desses abusos se caminhava, porém, sendo o concurso do rei um dos mais empenhados nas reformas necessárias ao bem-estar do seu país.
A reunião dos Estados-Gerais em 1789 marcou mesmo uma notável revivescência de espírito patriótico e realista. De como de um acontecimento que se apresentava tão prometedor para a vida da nação derivou a epilepsia tremenda da Convenção e do Terror, eis um segredo já hoje meio desvendado pela influência, cada vez mais patenteada, das associações secretas no desenrolar de Revolução.
Às ordens do estrangeiro, a Maçonaria serviu os interesses de Inglaterra no seu plano tenebroso de anular a supremacia política da França, decapitando-lhe infamemente o monarca as instituições. Os arquivos têm-nos fornecido peças bastante elucidativas. Conhecem-se documentos de Danton, por onde se prova a conivência da sua acção de agitador com o oiro que recebia do ministro britânico em Paris. Eu sei que é de indignar a confiança mística que os homens dos Imortais-Princípios merecem ainda a tantos fanáticos da grosseiríssima mentira revolucionária! Eu sei! Mas a história não nos consente mais ilusões sobre a natureza de um movimento, que foi um recuo sensível na vida da França e de cujas consequências desorganizadoras resultou nas suas causas psicológicas a pavorosa catástrofe da Guerra-Europeia.
Não nos admiremos, pois, que as grandes mentalidades do século XIX condenassem em termos de energia vigorosa a obra da Revolução. Trata-se de um facto que impressionou Faguet. «A maioria dos pensadores do século XIX – diz ele – não defende a democracia. Não era outro o meu desespero quando escrevi os meus Politiques et moralistes du XIXe siècle. Não encontrei um só que fosse democrata, apesar do muito que desejava encontrá-lo, para fundamentar nele a doutrina democrática.» Curioso é que, para robustecer o conceito de Faguet, iremos pedir a Proudhon – ao insuspeitíssimo Proudhon! – um julgamento tão desapaixonado como justiceiro da Revolução. “Toda a aberração da conciência pública traz com ela o seu castigo. A voga de Rousseau custou à França mais oiro, mais sangue e mais vergonhas, que o reinado detestável das três famosas cortesãs, Cotillon I, Cotillon II e Cotillon III (Chateauroux, Pompadour e Dubarry) lhe não tinha custado. A nossa pátria, que nunca sofreu tanto da influência do estrangeiro, deve a Rousseau as lutas sangrentas e as decepções do 93».
Proudhon, ao pronunciar tais palavras, sentia bem o carácter burguês da Revolução Francesa. Pensando nisso talvez, Taine definiu-a como «une petite féodalité de brigands superposée à la France conquise. As revoluções são sempre assim: «une petite féodalité de brigands». E por mais que se revistam de aparentes reivindicações sociais ou nacionais, não redundam senão em benefício de uma casta de aventureiros, cobiçosos de se enriquecerem e de mandarem. As declamações das misérias do povo e as concomitantes investidas salivosas contra a opressão dos poderes tradicionais, são o caminho sabido por onde a sua astúcia sem escrúpulos envereda resolutamente o êxito. A história da Revolução Francesa constitui um exemplo vivo a semelhante respeito. Não só as desgraças tão lacrimejadas das populações rurais não passaram de um embuste já hoje sem consistência, como o increpado despotismo do Rei se reduzia apenas a um tropo inflamado na garganta sempre acesa dos arengadores. Se esse despotismo existisse, não teriam eles tido tanta facilidade em consumar a sua faina destruidora! Com razão pondera o reflectido Le Play: «Perverteu-se o intelectual e moral do nosso país, fazendo-lhe crer que a liberdade data entre nós de 1789. Quanto mais eu observo e estudo, mais verifico que semelhante data indica até uma diminuição gradual da liberdade.»
Assim é, com efeito. A organização da sociedade antiga, firmando-se nas franquias e nas liberdades das vilas e das classes, tirava da própria natureza das coisas aquilo que o mesmo Le Play chamava a ‘constituição essencial’ dos povos. O regime das Comunas e das Corporações assegurava a justa distribuição da propriedade e do trabalho. Ninguém ignora que o proletário moderno é filho do individualismo económico, inaugurado pela Revolução Francesa. Então se gerou a burocracia e a centralização, que nos tornaram, não forças produtoras e autónomas, unificadas para o interesse comum mediante a coordenação do Estado, mas numa poeirada solta de iniciativas sem coesão, sujeitas à mais apertada e à mais irresponsável de todas as administrações. Mas a Revolução Francesa, se alterou de um modo geral e grave a ordem natural por que a sociedade se regia, em todo o caso, o que mais agravou foi a condição das camadas pobres. Dantes não só a propriedade constituia uma função social e económica respeitada, como havia também a propriedade colectiva para os desprovidos da fortuna. Era o que sucedia para com a Produção no sistema corporativo das jurandas e dos misteres. Obcecada pela ideia abstracta do homem anti-social, ou an-histórico na frase de Georges Sorel, tudo a Revolução aboliu, proclamando uma teórica soberania popular que, na realidade, não se traduziu senão num flagelo de opressões e vexames constantes. É ao que se reduz a auréola já em crepúsculo dos Imortais Princípios!
A impugnação mais inexorável da ideologia igualitária da Revolução está até na ofensiva crescente do Sindicalismo. O Sindicalismo, apesar dos exageros que lhe acidentam ainda a jornada, não é mais do que um regresso orgânico às antigas formas corporativas do Trabalho. A incompatibilidade do Sindicalismo com a Democracia afirmou-se já. E em França, para os mais cultos de entre as hostes sindicalistas, a necessidade do Rei resulta evidente como uma energia centrípeta que permita e garanta a coexistência e liberdade das várias comunidades produtoras. Não é outra a lição que os acontecimentos contemporâneos nos oferecem. Eis porque, falida no campo do pensamento humano pela dupla correcção da experiência e da crítica, a Revolução se vê constrangida a suicidar-se estrondosamente, pelo abandono em que a deixam as massas populares, cansadas enfim de tanto ludíbrio e de tanta mistificação!
E faz-se, depois disto, do aniversário da tomada da Bastilha uma festa nacional! Sabem, afinal, os senhores o que era a Bastilha, tão odiada pelos demagogos e por eles apontada com tantos frenesins de oratória às imprecações da populaça? Era unicamente a prisão da nobreza. E, símbolo increpado do arbítrio e da tirania, só acharam lá dentro sete prisioneiros, quatro dos quais acusados de falsários. Não se precisa de nada mais para que o processo da Revolução se conclua e fique definitivamente encerrado!
António Sardinha, "A tomada da Bastilha", Ao Ritmo da Ampulheta - Crítica e Doutrina, Lisboa, Lvmen, 1925, pp. 23-29.
- Revolução Francesa
- Calvinismo
- Maçonaria
- Jean-Jacques Rousseau,
- Ideologia
- Joseph Marie, conde de Maistre (Joseph de Maistre, 1753-1821),
- Louis Gabriel Ambroise,
- Visconde de Bonald [Louis de Bonald] (1754-1840),
- Antoine de Rivarol (1753-1801),
- Gustave Le Bon (1841-1931),
- Hippolyte Adolphe Taine (1828-1893),
- Louis Emile Marie Madelin (1871-1956),
- Georges Jacques Danton (1759-1794),
- Émile Faguet (1847-1916),
- Pierre-Joseph Proudhon (1809–1865),
- Comunas,
- Corporações,
- Sindicalismo versus Democracia [partidocracia],
- Georges Sorel (1847-1922).
Refs:
Hippolyte A. Taine, 1828-1893 - Les Origines de la France Contemporaine:
- L’Ancien Régime (1875).
- La Révolution: I – l’Anarchie (1878).
- La Révolution: II – La Conquête Jacobine (1881).
- La Révolution: III – Le Gouvernement Révolutionnaire (1883).
- Le Régime Moderne (1890–1893).
Gustave Le Bon - La Révolution Française e la Psychologie des Révolutions, Paris, 1912.