24 de Julho
António Sardinha
A 24 de Julho de 1833 entrou em Lisboa o troço do exército liberal do comando do conde de Vila-Flor, a seguir duque da Terceira. A hora é bem para o recordarmos, quando todos nós nos sentimos vítimas do erro comum que um ano depois, em Évora-Monte, expulsaria do trono português o seu verdadeiro rei, e quando a situação externa criada hoje a Portugal pela força da guerra nos ensina claramente como o governo de um país, divorciado por completo das suas aspirações e dos seus interesses, pode em todo o caso figurar aos olhos do estrangeiro como o seu governo legítimo. Foi o que sucedeu com a monarquia constitucional, filha da Maçonaria e dos vícios piores da Revolução Francesa, e da qual a entrada em Lisboa do duque da Terceira ia ser o primeiro passo para a sua aclimatação definitiva.
As consequências do romantismo político em tantos espíritos manifestamente sinceros apalpam-se agora no estado de desorganização em que Portugal se debate. A república não nos teria dominado tão esmagadoramente, se o individualismo revolucionário não nos houvesse enfraquecido de antemão a resistência secular, substituindo as nossas instituições tradicionais por outras, nascidas da pura teoria e só na pura teoria acreditadas. A nossa época oferece-nos até inesperados pontos de contacto com essa época agitada de 33. A deposição recente do rei Constantino mostra-nos como é fácil despojar um monarca do seu direito, embora inteiramente identificado com o sentir do seu povo.
Eis o que sucedeu em 34 com D. Miguel. De modo nenhum Portugal o atirou para o exílio. Atirou-o para o exílio a Quádrupla Aliança, tornada possível a sua intervenção pela mudança ministerial que em Inglaterra levou os whigs ao poder e, sobretudo, pela Revolução de Julho que em França lançou por terra a realeza de Carlos X. O curioso é que no tipo perfeito de político desnacionalizado que é Venizélos nós encontramos sem dificuldade a representação viva de quantos ideólogos se prestaram então em Portugal à ruína da sua pátria, unicamente por homenagem a uma nefasta solidariedade internacional de princípios.
Condenada pela Europa liberal, a causa de D. Miguel dificilmente subsistiria, conquanto a dedicação dos portugueses não faltasse ao seu infortúnio admirável. Apressou-lhe, porém, o desenlace trágico a delação e a incompetência que na política miguelista abriam caminho por toda a parte. São poucos os que se salvam pela compreensão inteligente da situação. Salva-se talvez o visconde de Santarém, salvam-se António Ribeiro Saraiva, o bispo de Viseu e José Acúrsio das Neves. Honrado pelos ódios liberais, José Acúrsio das Neves, que ilustra com o seu nome a história económica do nosso país, morreria num palheiro ao abandono, debaixo da perseguição dos seus inimigos que nem a agonia lhe souberam respeitar. O bispo de Viseu, D. Francisco Alexandre Lobo, conheceria a emigração e quase o desacato ao carácter sagrado do seu ministério. Iludem-se os que supõem nova em Portugal a sanha de vexames e de opressões que a república não fez mais que ressuscitar dos fastos já esquecidos do nosso liberalismo. Basta lembrar a extinção infamíssima das Ordens Religiosas, que Alexandre Herculano – um sincero! - apostrofaria em páginas ardentes, ainda motivo profundo de comoção em quem as lê. De resto, não é só minha a afirmação. Ramalho Ortigão, ao fim da vida, perfilhava-a quando na Carta de um velho a um novo se expressa nestes termos: «A obra liberal de 1834 – convém nunca o perder de vista – foi inteiramente semelhante à obra republicana de 1910. Nos homens dessas duas invasões é idêntico o espírito de violência, de anarquismo e de extorsão. Dá-se todavia entre uns e outros uma considerável diferença de capacidade.»
A diferença que se dava – a Ramalho não escapava o facto – devia-se à cultura humanista que conformara a mentalidade dos de 34. O individualismo revolucionário não lhes estava por isso no inconsciente, como observa algures, no prefácio da sua notável conferência, O Parlamentarismo e o Teatro Moderno, Hemetério Arantes. Parece que se tinham apropriado daquele conselho do
testamento de Camors, diz Hemetério Arantes: «être aristocrate pour notre compte personnel et démocrate pour le compte d'autrui». Mas na diminuição crescente da cultura e na total dissolvência do pensamento pelo verbalismo fácil da comédia política, o parlamentarismo, forte nos seus começos pelo apoio intelectual que as disciplinas clássicas lhe prestavam, degenerou fatalmente no parlamentarismo de hoje em dia, nado e criado, por mais que a maternidade se lhe recuse, no úbere farto da Carta Constitucional.
Sem paradoxo nem exageros doutrinários, reconheçamos, pois, que a república se proclamou em 1820, ganhando raízes fartas, pela corrupção económica e pela venalidade dos caracteres, na aventura lastimável consumada em 1834. Ninguém decerto ignora a vergonha a que a França nos sujeitou, mandando ao Tejo a esquadra do barão de Roussin. E unicamente porquê? Unicamente porque se julgara e punira em harmonia com as leis do Reino um súbdito francês, Edmond Bonhomme, que cometera actos sacrílegos os mais repelentes dentro de uma igreja em Quinta-Feira Santa. Soltou-se Bonhomme, pagou-se uma grande indemnização, Roussin apresou várias unidades da nossa esquadra, nunca mais restituídas, e sobre tudo isto os liberais aplaudiram delirantemente a violência sem nome. Tal como agora, no entendimento universal da causa da Maçonaria sob a invocação retórica do Direito, da Liberdade e da Justiça! Mas o mais interessante é saber quem era M. Bonhomme. M. Bonhomme, morto em Lisboa de idade avançada, foi o sócio n.º 1 da Associação do Registo Civil. Eis a genealogia moral que, por intermédio de um estrangeiro, liga a república que nos desgoverna ao constitucionalismo que nos arruinou!
A história desse período desgraçado, escrita inteiramente pelo partido vencedor, precisa ser refundida, por falsa e por caluniosa. D. Miguel representa precisamente a ideia que hoje triunfa por toda a parte, no florescimento reaccionário da inteligência europeia. Não passa de um juízo faccioso e grosseiro o juízo que reputa D. Miguel como representante do absolutismo mais cerrado e mais brutal. Basta abrir um opúsculo intitulado Memorandum d’une conférence de A. R. Saraiva, agent diplomatique portugais à Londres, sous le gouvernement de Don Miguel, avec lord Grey, premier ministre de la Grande-Bretagne... para nos convencermos, por um lado da conspiração diplomática que, tal como na Grécia, privou da coroa a el-rei D. Miguel e, por outro lado, dos nobres intentos políticos que animavam o soberano. «Mais aujourd'hui le Roi lui-même est convaincu plus que personne du devoir, en même temps que de la nécessité impérieuse, de rétablir, en son plein exercice et fonctions naturelles, toute la belle organisation de notre noble et admirable Constitution ancienne, purgée des formes absolues et hétérogènes que le Pombalisme (en vertu d'une sorte de dictature, peut-être nécessaire dans les circonstances alors) y avait introduite, au milieu du siècle dernier.»
Nesta passagem de Ribeiro Saraiva contém-se o significado perfeito da política que a vitória de D. Miguel importava consigo. Importava consigo a correcção do parlamentarismo pelo critério orgânico da representação territorial (Três-Estados do Reino) e da representação técnica (Casa dos Vinte-e-Quatro). Importava consigo a defesa da Família e da Propriedade contra os geometrismos jurídicos plagiados ao Código-Napoleão. Importava consigo o prestígio da função régia e o revigoramento da vida local e provincial. Importava ainda consigo, contra os falsos conceitos de uma liberdade sem alcance real, a manutenção e a inviolabilidade dessas outras liberdades que, expressas nas nossas velhas franquias municipais e corporativas, foram o segredo da estrutura formidável da antiga sociedade.
Mas D. Miguel caiu. Na queda do Rei de Portugal surgiu uma realeza bastarda, que a si própria se exautorava. É a hora dos tronos au rabais e dos monarcas au bon marché – na ironia sangrenta de Balzac. A pátria desnacionalizou-se, sem mais consistência que a de uma poeira solta de átomos. Os resultados têmo-los em nós mesmos, na opressão que nos avilta e vitima. Só um caminho nos resta, se não quisermos declarar tudo perdido, até a própria honra! É – na fórmula brilhante de Maurras – realizar pela inteligência e pela vontade, com firmeza e nitidez científicas, o que nossos avós realizaram pelo costume e pelo sentimento. Outra coisa não será senão reatar o fio interrompido pela acção da Quádrupla Aliança na jornada dolorosa de Évora-Monte.
Com essa certeza, bem iluminada e bem firme, suponho fechado para sempre o longo parêntesis de que a data de 24 de Julho de 1833 foi o início fatal. Assim o deseje a nossa Pátria, restituída ao vigor da sua tradição histórica, como o desejam aqueles que apenas procuram torná-la mais livre e mais grandiosa!
[ negritos acrescentados ]
As consequências do romantismo político em tantos espíritos manifestamente sinceros apalpam-se agora no estado de desorganização em que Portugal se debate. A república não nos teria dominado tão esmagadoramente, se o individualismo revolucionário não nos houvesse enfraquecido de antemão a resistência secular, substituindo as nossas instituições tradicionais por outras, nascidas da pura teoria e só na pura teoria acreditadas. A nossa época oferece-nos até inesperados pontos de contacto com essa época agitada de 33. A deposição recente do rei Constantino mostra-nos como é fácil despojar um monarca do seu direito, embora inteiramente identificado com o sentir do seu povo.
Eis o que sucedeu em 34 com D. Miguel. De modo nenhum Portugal o atirou para o exílio. Atirou-o para o exílio a Quádrupla Aliança, tornada possível a sua intervenção pela mudança ministerial que em Inglaterra levou os whigs ao poder e, sobretudo, pela Revolução de Julho que em França lançou por terra a realeza de Carlos X. O curioso é que no tipo perfeito de político desnacionalizado que é Venizélos nós encontramos sem dificuldade a representação viva de quantos ideólogos se prestaram então em Portugal à ruína da sua pátria, unicamente por homenagem a uma nefasta solidariedade internacional de princípios.
Condenada pela Europa liberal, a causa de D. Miguel dificilmente subsistiria, conquanto a dedicação dos portugueses não faltasse ao seu infortúnio admirável. Apressou-lhe, porém, o desenlace trágico a delação e a incompetência que na política miguelista abriam caminho por toda a parte. São poucos os que se salvam pela compreensão inteligente da situação. Salva-se talvez o visconde de Santarém, salvam-se António Ribeiro Saraiva, o bispo de Viseu e José Acúrsio das Neves. Honrado pelos ódios liberais, José Acúrsio das Neves, que ilustra com o seu nome a história económica do nosso país, morreria num palheiro ao abandono, debaixo da perseguição dos seus inimigos que nem a agonia lhe souberam respeitar. O bispo de Viseu, D. Francisco Alexandre Lobo, conheceria a emigração e quase o desacato ao carácter sagrado do seu ministério. Iludem-se os que supõem nova em Portugal a sanha de vexames e de opressões que a república não fez mais que ressuscitar dos fastos já esquecidos do nosso liberalismo. Basta lembrar a extinção infamíssima das Ordens Religiosas, que Alexandre Herculano – um sincero! - apostrofaria em páginas ardentes, ainda motivo profundo de comoção em quem as lê. De resto, não é só minha a afirmação. Ramalho Ortigão, ao fim da vida, perfilhava-a quando na Carta de um velho a um novo se expressa nestes termos: «A obra liberal de 1834 – convém nunca o perder de vista – foi inteiramente semelhante à obra republicana de 1910. Nos homens dessas duas invasões é idêntico o espírito de violência, de anarquismo e de extorsão. Dá-se todavia entre uns e outros uma considerável diferença de capacidade.»
A diferença que se dava – a Ramalho não escapava o facto – devia-se à cultura humanista que conformara a mentalidade dos de 34. O individualismo revolucionário não lhes estava por isso no inconsciente, como observa algures, no prefácio da sua notável conferência, O Parlamentarismo e o Teatro Moderno, Hemetério Arantes. Parece que se tinham apropriado daquele conselho do
testamento de Camors, diz Hemetério Arantes: «être aristocrate pour notre compte personnel et démocrate pour le compte d'autrui». Mas na diminuição crescente da cultura e na total dissolvência do pensamento pelo verbalismo fácil da comédia política, o parlamentarismo, forte nos seus começos pelo apoio intelectual que as disciplinas clássicas lhe prestavam, degenerou fatalmente no parlamentarismo de hoje em dia, nado e criado, por mais que a maternidade se lhe recuse, no úbere farto da Carta Constitucional.
Sem paradoxo nem exageros doutrinários, reconheçamos, pois, que a república se proclamou em 1820, ganhando raízes fartas, pela corrupção económica e pela venalidade dos caracteres, na aventura lastimável consumada em 1834. Ninguém decerto ignora a vergonha a que a França nos sujeitou, mandando ao Tejo a esquadra do barão de Roussin. E unicamente porquê? Unicamente porque se julgara e punira em harmonia com as leis do Reino um súbdito francês, Edmond Bonhomme, que cometera actos sacrílegos os mais repelentes dentro de uma igreja em Quinta-Feira Santa. Soltou-se Bonhomme, pagou-se uma grande indemnização, Roussin apresou várias unidades da nossa esquadra, nunca mais restituídas, e sobre tudo isto os liberais aplaudiram delirantemente a violência sem nome. Tal como agora, no entendimento universal da causa da Maçonaria sob a invocação retórica do Direito, da Liberdade e da Justiça! Mas o mais interessante é saber quem era M. Bonhomme. M. Bonhomme, morto em Lisboa de idade avançada, foi o sócio n.º 1 da Associação do Registo Civil. Eis a genealogia moral que, por intermédio de um estrangeiro, liga a república que nos desgoverna ao constitucionalismo que nos arruinou!
A história desse período desgraçado, escrita inteiramente pelo partido vencedor, precisa ser refundida, por falsa e por caluniosa. D. Miguel representa precisamente a ideia que hoje triunfa por toda a parte, no florescimento reaccionário da inteligência europeia. Não passa de um juízo faccioso e grosseiro o juízo que reputa D. Miguel como representante do absolutismo mais cerrado e mais brutal. Basta abrir um opúsculo intitulado Memorandum d’une conférence de A. R. Saraiva, agent diplomatique portugais à Londres, sous le gouvernement de Don Miguel, avec lord Grey, premier ministre de la Grande-Bretagne... para nos convencermos, por um lado da conspiração diplomática que, tal como na Grécia, privou da coroa a el-rei D. Miguel e, por outro lado, dos nobres intentos políticos que animavam o soberano. «Mais aujourd'hui le Roi lui-même est convaincu plus que personne du devoir, en même temps que de la nécessité impérieuse, de rétablir, en son plein exercice et fonctions naturelles, toute la belle organisation de notre noble et admirable Constitution ancienne, purgée des formes absolues et hétérogènes que le Pombalisme (en vertu d'une sorte de dictature, peut-être nécessaire dans les circonstances alors) y avait introduite, au milieu du siècle dernier.»
Nesta passagem de Ribeiro Saraiva contém-se o significado perfeito da política que a vitória de D. Miguel importava consigo. Importava consigo a correcção do parlamentarismo pelo critério orgânico da representação territorial (Três-Estados do Reino) e da representação técnica (Casa dos Vinte-e-Quatro). Importava consigo a defesa da Família e da Propriedade contra os geometrismos jurídicos plagiados ao Código-Napoleão. Importava consigo o prestígio da função régia e o revigoramento da vida local e provincial. Importava ainda consigo, contra os falsos conceitos de uma liberdade sem alcance real, a manutenção e a inviolabilidade dessas outras liberdades que, expressas nas nossas velhas franquias municipais e corporativas, foram o segredo da estrutura formidável da antiga sociedade.
Mas D. Miguel caiu. Na queda do Rei de Portugal surgiu uma realeza bastarda, que a si própria se exautorava. É a hora dos tronos au rabais e dos monarcas au bon marché – na ironia sangrenta de Balzac. A pátria desnacionalizou-se, sem mais consistência que a de uma poeira solta de átomos. Os resultados têmo-los em nós mesmos, na opressão que nos avilta e vitima. Só um caminho nos resta, se não quisermos declarar tudo perdido, até a própria honra! É – na fórmula brilhante de Maurras – realizar pela inteligência e pela vontade, com firmeza e nitidez científicas, o que nossos avós realizaram pelo costume e pelo sentimento. Outra coisa não será senão reatar o fio interrompido pela acção da Quádrupla Aliança na jornada dolorosa de Évora-Monte.
Com essa certeza, bem iluminada e bem firme, suponho fechado para sempre o longo parêntesis de que a data de 24 de Julho de 1833 foi o início fatal. Assim o deseje a nossa Pátria, restituída ao vigor da sua tradição histórica, como o desejam aqueles que apenas procuram torná-la mais livre e mais grandiosa!
[ negritos acrescentados ]
[ António Sardinha, Na Feira dos Mitos, 2ª edição, Lisboa, GAMA, 1942, pp. 135 - 141 ]