A "Lenda Negra"
António Sardinha
Um senhor qualquer do Livre-Pensamento foi repetir ao seu público de analfabetos as costumadas calúnias contra os Jesuítas. Não se pode refazer de um momento para o outro a História de Portugal, que está pervertida inteiramente pela mentalidade jacobina. É uma história de partido em que a visão secular da Pátria aparece diminuída e enxovalhada pelos preconceitos revolucionários de um século inteiro de ruína e morte. Devagar, a lição eterna dos factos levará às inteligências anarquizadas a posse do seu desejado equilíbrio. Mas para que isso suceda, nunca é demais que, dia a dia, marginalmente, nós as vamos esclarecendo e reeducando nesta missão difícil a que as nossas vidas desinteressadamente se devotaram.
Pois o senhor conferente do Livre-Pensamento, no seu libelo contra os Jesuítas, acusa-os exactamente daquilo que eles com mais pertinácia combateram e a que mais tenazmente se opuseram! Ninguém de mediana cultura ignora que os Jesuítas, defendendo na perturbação teológica do século XVI o livre-arbítrio, defenderam o princípio da liberdade individual, que a terrível doutrina calvinista da predestinação vinha comprometer em absoluto. Eles aproveitaram da Renascença o que na Renascença havia de orgânico e de disciplinador: o Humanismo, não como fim, mas como meio. Assim a pedagogia dos Jesuítas repousa na prática larga e aturada das Humanidades, hoje reabilitadas de novo no ensino secundário dos países mais adiantados, como o mais eficaz agente de coordenação e clarificação intelectuais.
Por opinião espalhada e consagrada nos nossos escritores liberais, na influência dos Jesuítas se filiam as causas mais fortes da decadência de Portugal. A decadência de Portugal explica-se por motivos de ordem étnica e económica, a que os Jesuítas foram totalmente estranhos, tanto mais que o seu desenvolvimento entre nós é já posterior ao declínio do nosso prestígio. Não sou eu, reaccionário confesso, quem iliba os Jesuítas dessa responsabilidade! Iliba-os, por exemplo, o historiador protestante H. Boehmer, que, apesar de adverso à Companhia, reconhece não ter ela em nada contribuído para os desastres sucessivos que conduziram Portugal à perda da sua supremacia.
Não o entende assim o senhor conferente do Livre-Pensamento. E num arrojo de imaginação – chamemos-lhe isto! – assevera que os Jesuítas fizeram abortar todas as negociações de casamento de el-rei D. Sebastião, para irem preparando a entrega de Portugal a Filipe II. Nada mais falso! D. Sebastião não casou por um conjunto de circunstâncias que o espaço não me deixa examinar
agora, destacando-se sobre elas a sua pouca disposição para o matrimónio e talvez mesmo o seu temperamento doentio. Mas o que é certo é que às vésperas de Alcácer-Quibir o monarca se resolvera seriamente a procurar esposa.
Quanto às simpatias castelhanas dos Jesuítas, a criatura mais alheia ao estudo da nossa história sabe perfeitamente que os Jesuítas entravaram sempre a política de Filipe, contrariando, inclusivamente, a pessoa da rainha D. Catarina, que de algum modo a reflectia.
Com a morte de D. Henrique, são os Jesuítas quem aviva e mantém a resistência patriótica. Não me recordo agora se foi o célebre padre Luís Álvares quem, pregando ao cardeal Alberto, regente do Reino, lhe traduziu da seguinte maneira as palavras de Jesus ao paralítico: «Surge, tolle grabatum tuum et ambula!» «Quer isto significar, Eminentíssimo Senhor, que se levante, que pegue nas suas coisas e que vá para sua casa!» Não esmorecem os Jesuítas no seu propósito de nos ajudarem a restaurar a independência da Pátria. O movimento de Évora é inspirado e dirigido por eles. O próprio D. João de Áustria o reconhece, quando, conquistada Évora, proferiu a sua conhecida frase no colégio da Companhia: «Aquí se hizo la traición a mi padre!» E o que lhes não ficámos devendo depois com a nossa libertação?! Só os serviços do padre António Vieira respondem por todos e nunca a memória portuguesa os poderá esquecer.
Como colaboradores da nossa obra ultramarina, os Jesuítas, missionando a fé de Cristo no Oriente e na América, abriram o caminho à penetração europeia. O que é o Brasil senão a sua obra? Ainda há pouco, num volume curiosíssimo – Notas de Estudo –, o Sr. Moreira Teles o proclamava sem hesitações. Não só ali resolveram quanto possível o problema da colonização agrícola, como no século XVII alcançaram de Roma escritos pontifícios no sentido de se abolir a escravatura. O Paraguai-Jesuítico é uma tentativa admirável de comunismo cristão. Expulsaram-nos mais tarde e um Papa houve que extinguiu a Companhia. Porquê?
Porque a Revolução já vinha de marcha – porque jansenistas, protestantes e maçãos se davam as mãos para atirarem por terra os granadeiros da Igreja e da civilização ocidental. É já hoje um ponto assente que a acção do duque de Choiseul contra os Jesuítas obedeceu a indicações dos clubes secretos. Filiado também no mesmo movimento, o marquês de Pombal não se esquivou a participar da conjura. E, afinal, porque expulsou ele os padres da Companhia? Não o disse o senhor conferente do Livre-Pensamento, mas digo-o eu aqui neste lugar, para estupefacção das gentes. Expulsou-os como «monarcómacos» e (ó céus!) como «sequazes dos republicanos».
Os Jesuítas, «sequazes dos republicanos», Senhor, quem tal pensaria?! Mas o que é de maior interesse é que os Jesuítas, difamados e perseguidos, tiveram em Augusto Comte um admirador que chegou até a oferecer-lhes uma aliança com os positivistas. O Geral do Gesú respondeu ao embaixador do filósofo que, mal a hora do perigo soasse, aos Jesuítas não lhes restava senão morrer pronunciando o nome de Cristo. «Pois nessa hora nós, os positivistas, morreremos, sim, mas morreremos defendendo-vos!» – observou-lhe, despedindo-se, o enviado de Comte.
Pelas palavras sem verdade nem coesão do conferente do Livre-Pensamento, verifica-se como são mentirosas as razões morais e mentais da propaganda revolucionária. Enganam-se, pois, os que consideram a República apenas um facto político! A República, antes de ser um facto político, foi e é uma consequência intelectual. Para que o facto político desapareça, têm que se restabelecer primeiro os direitos da Inteligência.
São os direitos da Inteligência que, sobretudo, nos levantam em batalha cerrada contra a baixa superstição maçónica e democrática em que Portugal parece perdido. Por esses direitos nós estaremos sempre lá onde o erro e a má-fé procurarem o triunfo na confusão e no embuste.
E suponho suficientemente corrigido o senhor conferente do Livre-Pensamento! Bom seria que, em vez de falsificar a história, cobrindo os Jesuítas de acusações insubsistentes, contasse ao seu público de analfabetos, a propósito da Pátria e da Guerra, o que é que a Maçonaria fez há cem anos, quando Napoleão nos enviou Junot como um dom generoso da sua generosidade imperial!
Pois o senhor conferente do Livre-Pensamento, no seu libelo contra os Jesuítas, acusa-os exactamente daquilo que eles com mais pertinácia combateram e a que mais tenazmente se opuseram! Ninguém de mediana cultura ignora que os Jesuítas, defendendo na perturbação teológica do século XVI o livre-arbítrio, defenderam o princípio da liberdade individual, que a terrível doutrina calvinista da predestinação vinha comprometer em absoluto. Eles aproveitaram da Renascença o que na Renascença havia de orgânico e de disciplinador: o Humanismo, não como fim, mas como meio. Assim a pedagogia dos Jesuítas repousa na prática larga e aturada das Humanidades, hoje reabilitadas de novo no ensino secundário dos países mais adiantados, como o mais eficaz agente de coordenação e clarificação intelectuais.
Por opinião espalhada e consagrada nos nossos escritores liberais, na influência dos Jesuítas se filiam as causas mais fortes da decadência de Portugal. A decadência de Portugal explica-se por motivos de ordem étnica e económica, a que os Jesuítas foram totalmente estranhos, tanto mais que o seu desenvolvimento entre nós é já posterior ao declínio do nosso prestígio. Não sou eu, reaccionário confesso, quem iliba os Jesuítas dessa responsabilidade! Iliba-os, por exemplo, o historiador protestante H. Boehmer, que, apesar de adverso à Companhia, reconhece não ter ela em nada contribuído para os desastres sucessivos que conduziram Portugal à perda da sua supremacia.
Não o entende assim o senhor conferente do Livre-Pensamento. E num arrojo de imaginação – chamemos-lhe isto! – assevera que os Jesuítas fizeram abortar todas as negociações de casamento de el-rei D. Sebastião, para irem preparando a entrega de Portugal a Filipe II. Nada mais falso! D. Sebastião não casou por um conjunto de circunstâncias que o espaço não me deixa examinar
agora, destacando-se sobre elas a sua pouca disposição para o matrimónio e talvez mesmo o seu temperamento doentio. Mas o que é certo é que às vésperas de Alcácer-Quibir o monarca se resolvera seriamente a procurar esposa.
Quanto às simpatias castelhanas dos Jesuítas, a criatura mais alheia ao estudo da nossa história sabe perfeitamente que os Jesuítas entravaram sempre a política de Filipe, contrariando, inclusivamente, a pessoa da rainha D. Catarina, que de algum modo a reflectia.
Com a morte de D. Henrique, são os Jesuítas quem aviva e mantém a resistência patriótica. Não me recordo agora se foi o célebre padre Luís Álvares quem, pregando ao cardeal Alberto, regente do Reino, lhe traduziu da seguinte maneira as palavras de Jesus ao paralítico: «Surge, tolle grabatum tuum et ambula!» «Quer isto significar, Eminentíssimo Senhor, que se levante, que pegue nas suas coisas e que vá para sua casa!» Não esmorecem os Jesuítas no seu propósito de nos ajudarem a restaurar a independência da Pátria. O movimento de Évora é inspirado e dirigido por eles. O próprio D. João de Áustria o reconhece, quando, conquistada Évora, proferiu a sua conhecida frase no colégio da Companhia: «Aquí se hizo la traición a mi padre!» E o que lhes não ficámos devendo depois com a nossa libertação?! Só os serviços do padre António Vieira respondem por todos e nunca a memória portuguesa os poderá esquecer.
Como colaboradores da nossa obra ultramarina, os Jesuítas, missionando a fé de Cristo no Oriente e na América, abriram o caminho à penetração europeia. O que é o Brasil senão a sua obra? Ainda há pouco, num volume curiosíssimo – Notas de Estudo –, o Sr. Moreira Teles o proclamava sem hesitações. Não só ali resolveram quanto possível o problema da colonização agrícola, como no século XVII alcançaram de Roma escritos pontifícios no sentido de se abolir a escravatura. O Paraguai-Jesuítico é uma tentativa admirável de comunismo cristão. Expulsaram-nos mais tarde e um Papa houve que extinguiu a Companhia. Porquê?
Porque a Revolução já vinha de marcha – porque jansenistas, protestantes e maçãos se davam as mãos para atirarem por terra os granadeiros da Igreja e da civilização ocidental. É já hoje um ponto assente que a acção do duque de Choiseul contra os Jesuítas obedeceu a indicações dos clubes secretos. Filiado também no mesmo movimento, o marquês de Pombal não se esquivou a participar da conjura. E, afinal, porque expulsou ele os padres da Companhia? Não o disse o senhor conferente do Livre-Pensamento, mas digo-o eu aqui neste lugar, para estupefacção das gentes. Expulsou-os como «monarcómacos» e (ó céus!) como «sequazes dos republicanos».
Os Jesuítas, «sequazes dos republicanos», Senhor, quem tal pensaria?! Mas o que é de maior interesse é que os Jesuítas, difamados e perseguidos, tiveram em Augusto Comte um admirador que chegou até a oferecer-lhes uma aliança com os positivistas. O Geral do Gesú respondeu ao embaixador do filósofo que, mal a hora do perigo soasse, aos Jesuítas não lhes restava senão morrer pronunciando o nome de Cristo. «Pois nessa hora nós, os positivistas, morreremos, sim, mas morreremos defendendo-vos!» – observou-lhe, despedindo-se, o enviado de Comte.
Pelas palavras sem verdade nem coesão do conferente do Livre-Pensamento, verifica-se como são mentirosas as razões morais e mentais da propaganda revolucionária. Enganam-se, pois, os que consideram a República apenas um facto político! A República, antes de ser um facto político, foi e é uma consequência intelectual. Para que o facto político desapareça, têm que se restabelecer primeiro os direitos da Inteligência.
São os direitos da Inteligência que, sobretudo, nos levantam em batalha cerrada contra a baixa superstição maçónica e democrática em que Portugal parece perdido. Por esses direitos nós estaremos sempre lá onde o erro e a má-fé procurarem o triunfo na confusão e no embuste.
E suponho suficientemente corrigido o senhor conferente do Livre-Pensamento! Bom seria que, em vez de falsificar a história, cobrindo os Jesuítas de acusações insubsistentes, contasse ao seu público de analfabetos, a propósito da Pátria e da Guerra, o que é que a Maçonaria fez há cem anos, quando Napoleão nos enviou Junot como um dom generoso da sua generosidade imperial!