O Sul contra o Norte
António Sardinha
"Não há Norte contra o Sul, - nem Sul contra o Norte! Há na sua bela homogeneidade moral e social o Portugal de todos nós"
- António Sardinha
- António Sardinha
António Sardinha rejeita aqui a tese do antagonismo do Sul com o Norte de Basílio Teles - a tese do "Sul contra o Norte" de Portugal - segundo a qual um "sul arabizado e mercantilista" - um povo moçarabe semitizado - ter-se-ia manifestado na crise de 1383-85 e viria a desempenhar um papel de relevo na expansão portuguesa dos séculos XV e XVI.
Basílio Teles retomava a "antinomia de fases" de Oliveira Martins, que acentuara uma componente "púnica" ou "africana" na corte de D. Manuel, para afirmar que a história de Portugal apresentaria um hiato ou solução de continuidade entre o antes e o depois da crise de 1383-85. Segundo Teles, no período medieval, os portugueses lavram a terra, trabalham nos ofícios, fazem comércio com os povos do norte da Europa e com algumas cidades do mediterrâneo. "«Portugal, enfim, não é um balcão; é um grande campo, onde moureja e canta alegremente uma população paciente, vivaz e robusta.» Como é que de um povo de lavradores nos sai, quase de súbito, como se fosse por milagre, um povo de mercadores?, - interroga depois Basílio Teles." (p. 5)
Segundo a tese de Basílio Teles, no Norte de Portugal estaria a célula autónoma da pátria e, no Sul, um núcleo arabizado e mercantilista. Sardinha apresenta a visão bipolar de Teles como fruto de uma "mentalidade individualista e contraditória" - "é um gérmen funesto de guerra civil que a teoria de Basílio Teles introduz na nossa história, quebrando com os seus subjectivismos superficiais e novelescos a unidade moral que se deve à ideia de Pátria". (p. 7).
Situando-se na linha Giuseppe Sergi Sardinha contesta o semitismo e as afinidades púnicas de iberos e berberes, considerando o lusitano como "parente próximo - saído do mesmo tronco" - do tipo "líbio" da estirpe mediterrânica:
"Nada, de resto, mais oposto ao tipo «cartaginês», semita e adventício nas suas marcadas tendências sociais do que o tipo «africano», ou «líbio», - comunitário, agrícola e guerrilheiro. O tipo «africano», ou «líbio», da estirpe mediterrânea classificada por Sergi, entre outros especialistas, é parente próximo do lusitano, - ramo saído do mesmo tronco. E tanto na sua monogamia instintiva como nas dshemas, ou assembleias deliberativas, em que institucionalmente se exprime, podemos encontrar sem esforço a origem da família e do município nos habitantes da Península, tonificados, evidentemente, mais tarde pela acção depuradora do Cristianismo." [negritos acrescentados]
Em O Valor da Raça (1915), Sardinha não fundara num critério étnico as origens da nação portuguesa portuguesa, atribuindo-a antes a uma instituição e ao espírito que a vivifica - ao município e ao localismo. Neste ensaio publicado postumamente em À sombra dos Pórticos (Lisboa, 1927), Sardinha volta a abordar as prementes questões étnicas do ambiente intelectual da sua época, mas colocando uma vez mais a tónica em aspectos sociais.
Ao abordar a expansão portuguesa dos séculos XV e XVI, Sardinha recusa atribuir papel a uma qualquer sobrevivência semita, concluindo na base dos elementos coligidos por Alberto Sampaio no seu estudo sobre o Norte marítimo. Sardinha concluiu recorrendo aos estudos de Alberto Sampaio, mas recusando a contaminação de quaisquer elementos de interpretação étnica. Palavras de António Sardinha:
"A circunstância de Alberto Sampaio, - olvidado dos ensinamentos de Martins Sarmento - , considerar a nacionalidade portuguesa, «originada não pela atração duma mesma raça, nem pelas condições idênticas de terreno», e sim como «o resultado duma conquista, é que impediu o autor de As «vilas» do norte de Portugal de abranger totalmente o problema. No centralismo inevitável de Lisboa não se denunciava, de maneira alguma, uma anterior sobrevivência semita. A raça, desde as colinas verdejantes do Minho e Lima até aos confins ensoalhados do Algarve, era a mesma em toda a parte, falando até a mesma linguagem. Descendente do antigo habitante lusitano, o Cristianismo a caldeou e unificou tão fortemente que, separada durante séculos pela divisão político-religiosa da Península, a sua identidade manteve-se indestrutível, como não tardaremos em reconhecer. O que nos esgotava, o que nos consumia em Lisboa, - na Lisboa de Quatrocentos e Quinhentos, - não traduzia, por isso, uma submissão da pátria autóctone a qualquer revivescência hereditária, alheia à sua formação colectiva. Lisboa sofria as fatais consequências da nossa hegemonia nos mares, tornando-se um foco de cosmopolitismo dissolvente. É, pois, um facto social, - e não um facto étnico, o que há a considerar em semelhante fenómeno. Lamentavelmente equivocado, não o reputou assim Alberto Sampaio. Como homenagem à sua obra, inspirada sempre na mais alta intenção nacionalista, ousamos opôr-lhe esta despretensiosa retificação." (pp. 28-29; negritos acrescentados).
(...)
"Fixemo-nos neste detalhe e ele nos dará a chave de muito enigma da história da ocupação muçulmana na Península, em que berberes e naturais se acabaram de aliar, minando a pouco e pouco o poder, só aparentemente consolidado, do unitarismo islamista. A única barreira que separava entre si esses dois ramos da mesma família era a religião. O Cristianismo na Península levara os seus habitantes a uma maior capacidade civilizadora, enquanto que o berbere, adormecido numa vida inferior de instintos, não logrou atingir um estádio de sociabilidade tão adiantada pelo marasmo em que o deixou a moral depressiva do maometismo." (p. 40)
(...)
Em "O Sul contra o Norte" Sardinha contestava as afinidades púnicas ou semíticas de iberos e de berberes, atribuídas por Basilio Teles aos portugueses do Sul. Situando-se na linha de Rocha Peixoto e Martins Sarmento, e firmando-se também em elementos colhidos em Antón y Fernandiz, Giménez Soler, Otto Meltzer, Sardinha escrevia em conclusão: "Não há Norte contra o Sul, - nem Sul contra o Norte! Há na sua bela homogeneidade moral e social o Portugal de todos nós" (À sombra dos Pórticos, Lisboa, 1927, p. 55).
Basílio Teles retomava a "antinomia de fases" de Oliveira Martins, que acentuara uma componente "púnica" ou "africana" na corte de D. Manuel, para afirmar que a história de Portugal apresentaria um hiato ou solução de continuidade entre o antes e o depois da crise de 1383-85. Segundo Teles, no período medieval, os portugueses lavram a terra, trabalham nos ofícios, fazem comércio com os povos do norte da Europa e com algumas cidades do mediterrâneo. "«Portugal, enfim, não é um balcão; é um grande campo, onde moureja e canta alegremente uma população paciente, vivaz e robusta.» Como é que de um povo de lavradores nos sai, quase de súbito, como se fosse por milagre, um povo de mercadores?, - interroga depois Basílio Teles." (p. 5)
Segundo a tese de Basílio Teles, no Norte de Portugal estaria a célula autónoma da pátria e, no Sul, um núcleo arabizado e mercantilista. Sardinha apresenta a visão bipolar de Teles como fruto de uma "mentalidade individualista e contraditória" - "é um gérmen funesto de guerra civil que a teoria de Basílio Teles introduz na nossa história, quebrando com os seus subjectivismos superficiais e novelescos a unidade moral que se deve à ideia de Pátria". (p. 7).
Situando-se na linha Giuseppe Sergi Sardinha contesta o semitismo e as afinidades púnicas de iberos e berberes, considerando o lusitano como "parente próximo - saído do mesmo tronco" - do tipo "líbio" da estirpe mediterrânica:
"Nada, de resto, mais oposto ao tipo «cartaginês», semita e adventício nas suas marcadas tendências sociais do que o tipo «africano», ou «líbio», - comunitário, agrícola e guerrilheiro. O tipo «africano», ou «líbio», da estirpe mediterrânea classificada por Sergi, entre outros especialistas, é parente próximo do lusitano, - ramo saído do mesmo tronco. E tanto na sua monogamia instintiva como nas dshemas, ou assembleias deliberativas, em que institucionalmente se exprime, podemos encontrar sem esforço a origem da família e do município nos habitantes da Península, tonificados, evidentemente, mais tarde pela acção depuradora do Cristianismo." [negritos acrescentados]
Em O Valor da Raça (1915), Sardinha não fundara num critério étnico as origens da nação portuguesa portuguesa, atribuindo-a antes a uma instituição e ao espírito que a vivifica - ao município e ao localismo. Neste ensaio publicado postumamente em À sombra dos Pórticos (Lisboa, 1927), Sardinha volta a abordar as prementes questões étnicas do ambiente intelectual da sua época, mas colocando uma vez mais a tónica em aspectos sociais.
Ao abordar a expansão portuguesa dos séculos XV e XVI, Sardinha recusa atribuir papel a uma qualquer sobrevivência semita, concluindo na base dos elementos coligidos por Alberto Sampaio no seu estudo sobre o Norte marítimo. Sardinha concluiu recorrendo aos estudos de Alberto Sampaio, mas recusando a contaminação de quaisquer elementos de interpretação étnica. Palavras de António Sardinha:
"A circunstância de Alberto Sampaio, - olvidado dos ensinamentos de Martins Sarmento - , considerar a nacionalidade portuguesa, «originada não pela atração duma mesma raça, nem pelas condições idênticas de terreno», e sim como «o resultado duma conquista, é que impediu o autor de As «vilas» do norte de Portugal de abranger totalmente o problema. No centralismo inevitável de Lisboa não se denunciava, de maneira alguma, uma anterior sobrevivência semita. A raça, desde as colinas verdejantes do Minho e Lima até aos confins ensoalhados do Algarve, era a mesma em toda a parte, falando até a mesma linguagem. Descendente do antigo habitante lusitano, o Cristianismo a caldeou e unificou tão fortemente que, separada durante séculos pela divisão político-religiosa da Península, a sua identidade manteve-se indestrutível, como não tardaremos em reconhecer. O que nos esgotava, o que nos consumia em Lisboa, - na Lisboa de Quatrocentos e Quinhentos, - não traduzia, por isso, uma submissão da pátria autóctone a qualquer revivescência hereditária, alheia à sua formação colectiva. Lisboa sofria as fatais consequências da nossa hegemonia nos mares, tornando-se um foco de cosmopolitismo dissolvente. É, pois, um facto social, - e não um facto étnico, o que há a considerar em semelhante fenómeno. Lamentavelmente equivocado, não o reputou assim Alberto Sampaio. Como homenagem à sua obra, inspirada sempre na mais alta intenção nacionalista, ousamos opôr-lhe esta despretensiosa retificação." (pp. 28-29; negritos acrescentados).
(...)
"Fixemo-nos neste detalhe e ele nos dará a chave de muito enigma da história da ocupação muçulmana na Península, em que berberes e naturais se acabaram de aliar, minando a pouco e pouco o poder, só aparentemente consolidado, do unitarismo islamista. A única barreira que separava entre si esses dois ramos da mesma família era a religião. O Cristianismo na Península levara os seus habitantes a uma maior capacidade civilizadora, enquanto que o berbere, adormecido numa vida inferior de instintos, não logrou atingir um estádio de sociabilidade tão adiantada pelo marasmo em que o deixou a moral depressiva do maometismo." (p. 40)
(...)
Em "O Sul contra o Norte" Sardinha contestava as afinidades púnicas ou semíticas de iberos e de berberes, atribuídas por Basilio Teles aos portugueses do Sul. Situando-se na linha de Rocha Peixoto e Martins Sarmento, e firmando-se também em elementos colhidos em Antón y Fernandiz, Giménez Soler, Otto Meltzer, Sardinha escrevia em conclusão: "Não há Norte contra o Sul, - nem Sul contra o Norte! Há na sua bela homogeneidade moral e social o Portugal de todos nós" (À sombra dos Pórticos, Lisboa, 1927, p. 55).

Fixemo-nos deste detalhe e ele nos dará a chave de muito enigma da história da ocupação muçulmana na Península, em que berberes e naturais se acabaram de aliar, minando a pouco e pouco o poder, só aparentemente consolidado, do unitarismo islamista. A única barreira que separava entre si esses dois ramos da mesma família era a religião. O Cristianismo na Península levara os seus habitantes a uma maior capacidade civilizadora, enquanto que o berbere, adormecido numa vida inferior de instintos, não logrou atingir um estádio de sociabilidade tão adiantada pelo marasmo em que o deixou a moral depressiva do maometismo.
António Sardinha - À sombra dos Pórticos, Lisboa, Ferin, 1927, pp. 3-56.
Refs
I (pp. 3-30)
II (pp. 30-56)
I (pp. 3-30)
- Alberto Sampaio (1841-1908), As vilas do norte de Portugal - p. 3
- Basílio Teles (1856-1923), Estudos Históricos e Económicos, 1901. - p. 3-4 [ 1901_-_basilio_teles_-_estudos_historicos_economicos.pdf ]
- Giuseppe Sergi (1841-1936), The Mediterranean Race: a study of the origin of European Peoples, 1ª ed., em italiano, 1895 (Segundo o Autor, em 1901, a edição em lingua inglesa veio a ser a mais completa: London & New York, The Walter Scott Publishing - Charles Scribner's Sons, 1909).
- Manuel Antón y Ferrándiz (1849-1929), Razas y tribus de Marruecos, 1903 - p. 8
- Andrés Giménez Soler (1869-1938), La antiqua peninsula ibérica - p. 8, 11
- Otto Meltzer (1846-1909) e Ulrich Kahrstedt (1888-1962), História de Cartago. - p. 8
- Martins Sarmento (1833-1899), Ora Marítima, 2ª edição. - p. 9
- M. A. Coelho da Rocha (1793-1850), Ensaio sobre a História do Governo e Legislação de Portugal, 1841. [1841_-_coelho_da_rocha_-_ensaio_sobre_a_historia.pdf ]
- Rocha Peixoto (1866-1909), Formas da vida comunalista em Portugal: «Formas da Vida Communalista em Portugal. Summario de uma monographia inedita», in Exposição Nacional do Rio de Janeiro em 1908. Secção Portuguesa. Notas sobre Portugal, vol. I (Lisboa, 1908), pp. 73-83; «Survivances du Régime Communautaire en Portugal (Abregé d'une monographie inédite)», in Annaes Scientificos da Academia Polytechnica do Porto, vol. III, n.° 4 (Coimbra, 1908), pp. 205-221; «O communismo em Portugal», no jornal O Primeiro de Janeiro, Porto, 25 de Dezembro de 1908 (p. 1), de 1 de Janeiro de 1909 (pp. 1-2) e de 6 de Janeiro de 1909 (pp. 1-2). [ rocha_peixoto_-_formas_vida_obras.pdf ]
- Manuel Bento de Sousa (1835-1899), O Doutor Minerva, 1894.
- Claude Bernard, Les phénoménes de la vie
II (pp. 30-56)
- Basílio Teles, O problema agrícola; Estudos Históricos e Económicos, 1901.
- Alberto Sampaio, O Norte Marítimo in Revista de Portugal.
- Teófilo Braga, O povo português nos seus costumes, crenças e tradições.
- Joaquin Costa, Viriato y la cuestión social en España en el siglo II antes de Jesucristo, in Tutela de pueblos en la História.
- Adolfo Schulten, in Boletin de la Biblioteca Menendez y Pelayo, an. II, Santander, 1920.